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Por uma curadoria ética e socialmente responsável VINICIUS SPRICIGO

Ainda imprevisível, o impacto sócio-econômico, político e cultural da pandemia de COVID-19 coloca em xeque muitas hipóteses levantadas até pouco tempo atrás. Publicado originalmente no Reino Unido, em 2016, e lançado em português no ano passado pelas Edições SESC São Paulo, o livro Curadoria: o poder na seleção no mundo do excesso,

[i]

de Michael Bhaskar, apresenta uma definição bastante

ousada da atividade curatorial e ressalta a sua importância na produção de valor no capitalismo avançado. Tais ideias, no entanto, estão sendo confrontadas com conjecturas sobre uma suposta mudança drástica não somente no cenário econômico global, mas em todas as esferas da existência humana. Aquilo que alguns anunciam como um ‘novo normal’ que sucederá o igualmente imprevisto final da pandemia. A falta de recursos e insumos em escala global para o combate à pandemia e seus efeitos vão de encontro ao argumento central do livro, de que vivemos ‘no mundo do excesso’, resultado da ‘expansão prolongada’ da produção de bens de consumo, mas sobretudo de informação. A cadeia global de valores foi incapaz de fornecer equipamentos hospitalares durante a pandemia levando os países à uma disputa injusta, que resultou no envio à China de aeronaves por parte do presidente norte-americano Donald Trump para garantir acesso exclusivo aos respiradores, protetores individuais e insumos, uma atitude que chocou a opinião pública mundial. Tivesse a China interrompido a produção por mais tempo os resultados da pandemia nos países ocidentais teriam sido ainda mais desastrosos. O enfrentamento à pandemia demonstrou, portanto, que o suposto excesso resultante de uma produção globalizada pode facilmente se transformar em


escassez e, principalmente, converter-se numa questão geopolítica que afetará principalmente os países mais pobres.

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Algumas considerações também podem ser feitas a respeito da guerra de informação e a politização do debate sobre a doença nas redes sociais. Se os resultados do excesso de informação eram antes de mais nada um problema do 'primeiro mundo’, daqueles profissionais e empresas que trabalham na ponta do desenvolvimento de tecnologias, produtos e serviços, como destaca o autor, hoje ficou mais evidente que o acesso à informação relevante é um problema que atinge a todos. A demora ou hesitação na tomada de decisão com base nas informações científicas disponíveis sobre o COVID-19 por muitos governos ocidentais, mas principalmente a disseminação de notícias falsas sobre o vírus, demonstram que a curadoria da informação é fundamental não somente para o mundo artístico, corporativo e financeiro, mas para toda a sociedade. Além disso, as respostas governamentais ao combate à pandemia têm sido contestadas por minorias extremistas no ocidente como ataques às liberdades individuais. Nesse contexto, a curadoria se torna algo necessário não somente para a produção de valor, como destacado no livro, mas também para a manutenção das sociedades democráticas. O próprio advento tecnológico que produz o atual excesso de informação já nos oferece hoje ferramentas capazes de fazer uma escolha definida por meio de algoritmos. Coletando informações a nosso respeito o tempo todo, a rede mundial de computadores é capaz de selecionar automaticamente não somente as informações mais relevantes mas também aquela mais compatível com os nossos gostos e opiniões. Se num primeiro momento essas tecnologias se colocavam como uma alternativa às mídias tradicionais, subsidiadas por anúncios de grandes marcas e corporações, as redes sociais - cujo potencial para o empoderamento de cidadãos aptos a divulgarem as próprias notícias e comentários e análises sobre os fatos é enorme -, elas se transformaram em instrumentos para a manipulação indevida de dados pessoais e a disseminação de notícias falsas com objetivos políticos anti-democráticos e extremistas.


Embora não trate dessas questões políticas e éticas diretamente, as ideias de Michael Bhaskar continuam relevantes no contexto atual, ao ressaltar o fato de que o potencial produtivo alcançado pelo capitalismo avançado é capaz de prover a sociedade com abundância de produtos, serviços e informações. Nesse ‘mundo do excesso’ as escolhas feitas por curadores e especialistas são de suma importância tanto na tomada de decisões por empresas e governos, mas sobretudo na orientação do público. Devemos nos lembrar, no entanto, que a curadoria não trata tão somente da atribuição de valores e da aferição de relevância aos produtos e conteúdos produzidos atualmente. Nas últimas décadas, o mundo dos museus e da curadoria de arte, no qual surgiu essa atividade de seleção, organização e valorização, estão se conscientizando de que não basta o conhecimento especializado para uma boa curadoria, uma vez que o público demanda também o envolvimento social e político da instituição. A responsabilidade e a ética da curadoria devem se voltar contra as diversas desigualdades de acesso, caso contrário um número muito pequeno da população mundial poderá ter acesso aos resultados das escolhas curatoriais, enquanto os demais seguirão à deriva no excesso de opções irrelevantes. Tudo leva a crer que a ciência avançou muito nas descobertas sobre o COVID-19 e estamos muito próximos da descoberta de uma vacina. No entanto, ainda carecemos de curadorias engajadas que inibam a disseminação de notícias falsas e informem corretamente a população, algo fundamental na garantia ao direito universal à saúde, entre tantos outros.

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Termo que designava inicialmente uma atividade relacionada à museus e galerias de arte, a saber, o cuidado,

organização e exibição de acervos, a partir dos anos 1980 a curadoria passa a atribuir valor através de uma seleção seleção feita por especialista daquilo que é mais relevante, seja um objeto artístico, um bem de consumo nas prateleiras de uma loja ou uma informação armazenada na rede mundial de computadores. [ii]

No entanto, a iminência de uma recessão econômica global e os demais efeitos da pandemia de COVID-10,

ainda imprevisíveis, apontam que a produção abundante e os hábitos de consumo atuais não compatíveis com a realidade social da grande maioria da população mundial. Mesmo antes da pandemia já enfrentávamos uma redução de investimentos em segurança social, péssimos salários e condições de trabalho nas cadeias de produção de valor e desemprego crescente mesmo nos ‘países do primeiro mundo’. Algo dessa realidade social já começava a se impor inclusive para muitos curadores, como já observou Bhaskar em seu livro. Poucos curadores de arte conseguem posições em instituições e galerias, bem como as grandes corporações oferecem poucas vagas de trabalho para curadores de conteúdos ou atividades curatoriais voltadas ao marketing das empresas. Em grande medida, esses profissionais têm procurado disputar nas redes sociais um espaço


bastante limitado e competitivo para a sua atuação e muitas vezes não têm expectativas de retorno financeiro no curto prazo.


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