Retrospectiva Sam Peckinpah

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retrospectiva

sam

peckinpah 14 a 23 de julho 2014



Vida em movimento

Espaço consagrado à sétima arte, o Cinesesc apresenta a retrospectiva do diretor, produtor e roteirista estadunidense Sam Peckinpah (1925-1984), exibindo sua produção cinematográfica, bem como documentários sobre sua obra. Por sua filmografia, na década de 1970, recebeu o título de “poeta da violência”, pois as cenas de ação violentas eram expressas dentro de um contexto estético considerado inovador para a época de sua realização. Embora carregada de realismo, a violência não é a característica primordial de suas películas, mas a forma como era manipulada em função dos personagens e da narrativa. Tal temática, explorada por atributos da linguagem cinematográfica, como o ritmo, texturas e enquadramentos, nos aproximam de uma visão bárbara do ser humano, numa oportunidade para refletirmos sobre as possíveis origens desse embrutecimento. Ao revisitar sua obra, temos a oportunidade de reviver suas inquietações e mergulhar em seu universo criativo, de contribuirmos para a melhor compreensão de sua filmografia, bem como favorecer o acesso a repertórios muitas vezes restritos a circuitos isolados. Sesc São Paulo



Š Warner Brothers



Sumário

Apresentação .............................................................................................11 Entrevista da Playboy ........................................................................ 18 Aurora e crepúsculo ......................................................................... 47 Juramento de vingança ...................................................................... 67 Cinco visões críticas de Meu ódio será sua herança ................................ 73 A morte não manda recado ................................................................ 81 Sob o domínio do medo .................................................................... 87 “Sam era uma mulher”: um argumento contra a misoginia de Sam Peckinpah .................................................. 93 A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid: as várias versões do último faroeste de Peckinpah .................... 113 Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia .............................................. 151 Esforço humano, batalha humana: Sam Peckinpah e a jornada da alma .... 157


Sinopses O homem que eu devia odiar ...................................................... 169 Pistoleiros do entardecer .............................................................. 173 Juramento de vingança ............................................................... 177 Meu ódio será sua herança .......................................................... 181 A morte não manda recado ........................................................ 183 Sob o domínio do medo .............................................................. 187 Dez segundos de perigo ............................................................. 191 Os implacáveis ........................................................................ 195 Pat Garrett & Billy the Kid ........................................................ 199 Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia ........................................... 203 Elite de assassinos .................................................................... 207 Cruz de Ferro ......................................................................... 211 Comboio................................................................................ 215 O casal Osterman ................................................................... 219 Meu ódio será sua herança: um álbum em montagem .......................... 220 Uma simples história de aventura: Sam Peckinpah, México e Meu ódio será sua herança ................................................... 221


Entre 1961 e 1984, Sam Peckinpah dirigiu apenas 14 longas-metragens. A maior parte deles, dez para sermos exatos, foi feita no espaço de uma década (1968-1978). A explicação para o hiato entre seu penúltimo filme, Comboio (Convoy, 1978), e o último, O casal Osterman (The Osterman Weekend, 1983), é facilmente deduzível por qualquer um que faça uma pesquisa, mesmo superficial, sobre o cineasta. E isto não é algo difícil. Afinal de contas, poucos diretores do seu tempo foram alvo de tantos textos e entrevistas quanto Peckinpah. Suas homéricas batalhas com estúdios e produtores, as tremendas oscilações em seu comportamento trazidas pelo alto consumo de substâncias lícitas e ilícitas, a incessante peleja que travava com seus demônios íntimos, a roupa suja lavada em público, as declarações ultrajantes (o exemplo mais conspícuo, publicado pela Playboy, pode ser lido a seguir), tudo estava à vista em jornais e revistas. Os muitos – e típicos – problemas surgidos durante a produção e a montagem de Comboio foram a gota d’água: nenhum produtor se arriscava a chamar um diretor reconhecidamente brilhante que acabaria por antagonizá-lo, gastando mais do que o estipulado, desobedecendo o cronograma, esticando interminavelmente o período de pós-produção e que, no fim, falaria mal dele para quem quisesse Apresentação 11


ouvir. E mesmo depois de cinco anos no limbo e com o corpo fragilizado, Peckinpah não deu vida fácil aos produtores de O casal Osterman (o absurdo título nacional – não há tal casal – é do lançamento em vídeo, visto ter sido o único filme de Peckinpah não exibido em nossos cinemas). Peckinpah morreu em dezembro de 1984, dois meses antes de completar 60 anos. A tônica de muitos obituários foi lamentar que ele não houvesse atingido plenamente seu potencial, que seu enorme talento tivesse se dissipado. A notoriedade de sua vida pessoal parecia irremediavelmente ligada a seu trabalho e muitos tinham dificuldade em separá-los. Em Peckinpah isso é realmente tarefa árdua. A estrutura do cinema americano não recebe de braços abertos aqueles que buscam subvertê-la e moldá-la a fim de exteriorizarem uma visão de mundo toda particular. Peckinpah foi dos poucos a enfrentá-la, punhos em riste, durante tão prolongado espaço de tempo. Assim, em vez de manifestar pesar pelo que deixou de ser feito, deveríamos celebrar o que ele conseguiu nos legar contra todos os obstáculos, os externos bem como os internos. As dificuldades estavam lá desde o começo e não poderia ser de outro modo. Peckinpah escolheu como forma de expressão uma arte industrial. Fazer filmes custa muito dinheiro e está sujeito a uma infindável quantidade de variantes, as mais prementes delas via de regra ligadas às vontades de quem paga as contas. Qualquer artista digno do nome acabará entrando em conflito. Peckinpah, além de artista, era rebelde, tinha gênio difícil e não fugia de briga. Seu primeiro mentor em cinema foi Don Siegel, a quem serviu como assistente em meados dos anos 1950. Encorajado por Siegel, passou a escrever roteiros para séries televisivas de faroeste (Gunsmoke, O homem do rifle, Broken Arrow) e, a partir de 1958, dirigiu alguns episódios das mesmas. Em 1960, Peckinpah foi produtor (além de escrever e dirigir certos episódios) da série The Westerner. Apesar de críticas muito favoráveis, ela foi cancelada depois de apenas uma dúzia de episódios. Foi o astro de The Westerner, Brian Keith, quem facilitou a estreia de Peckinpah como diretor de cinema. Keith encabeçava, com Maureen O’Hara, o elenco de O homem que eu devia odiar (The Deadly Companions, 1961), um western produzido pelo irmão de O’Hara, Charles B. FitzSimons. Primeiro filme, primeiro confronto: FitzSimons desnaturou o final na sala de montagem à revelia de Peckinpah. Embora ele não pudesse alterar o roteiro a seu gosto e ainda demonstrasse inexperiência em questões técnicas, O homem que eu devia odiar, como salienta Gerard Camy no ensaio “Aurora e crepúsculo”, Sérgio Leemann 12


já contém em seu bojo várias das características do cinema de Sam Peckinpah. Seu filme seguinte, o western crepuscular Pistoleiros do entardecer (Ride the High Country – em certos países, incluindo o Brasil, conhecido também como Guns in the Afternoon –, 1962) pode ser facilmente incluído entre seus mais expressivos. Apesar de a MGM tê-lo tratado como um faroeste B, relegando-o a programas duplos nos Estados Unidos, foi saudado por críticos atentos que viram nesta meditação lírica e elegíaca sobre o fim de uma era (tema muito caro ao autor) a revelação de um diretor de inspiração poética e firmeza narrativa. Mesmo aqui, e por conta de brigas no comando do estúdio, Peckinpah foi impedido de acompanhar a pós-produção até o fim. Ainda assim, Pistoleiros do entardecer não chegou a ser deturpado. Já Juramento de vingança (Major Dundee, 1965)... Quem nos conduz através da tortuosa produção deste western de alto orçamento é Julie Kirgo. Seu texto detalha os pormenores da primeira épica batalha de Peckinpah para preservar um filme seu. A esta débâcle seguiu-se a demissão do diretor do comando de A mesa do diabo (The Cincinnati Kid, 1965), após menos de uma semana de filmagem, por parte do produtor Martin Ransohoff . As portas de Hollywood fecharam-se para Peckinpah. Quem ousou abrir uma fresta foi o produtor Daniel Melnick, que não dando ouvidos a todos os que tentaram dissuadi-lo, confiou a Peckinpah a adaptação de uma novela de Katherine Ann Porter como um especial de 50 minutos para a televisão. Noon Wine (1966) rendeu a Peckinpah indicações aos prêmios do Directors Guild e do Writers Guild of America. E então veio aquele que se tornou um dos pilares do moderno cinema americano, Meu ódio será sua herança (The Wild Bunch, 1969), o filme que mais que qualquer outro condensa a essência de Peckinpah. Marcaram época as inovações estilísticas (câmera lenta, montagem relâmpago) e a violência desabrida que atingem um paroxismo na longuíssima sequência da matança final, ainda hoje capaz de tirar o folêgo. A seção em que juntamos textos de um quinteto de bambas da nossa crítica dá bem uma ideia de como o filme foi recebido por aqui. Para além da incomensurável influência que exerceu e dos intensos debates que suscitou, Meu ódio será sua herança é um filme de uma grandeza trágica raramente igualada no western. Em contraponto direto, A morte não manda recado (The Ballad of Cable Hogue, 1970) é um western amável, no qual alguns dos mesmos temas do filme anterior – a passagem do velho para o novo Oeste, a dificuldade de preservar a individualidade – assumem um Apresentação 13


ar de romantismo picaresco. Grande especialista em Peckinpah, Nick Redman nos mostra como A morte não manda recado é o mais próximo a que chegou o diretor de fazer um musical e, ao fornecer detalhes de sua tipicamente conturbada produção, trata também das agruras pelas quais o cineasta passou na fase de pós-produção de Meu ódio será sua herança. Ambos os filmes foram feitos para a Warner Bros. e ao terminá-los, apesar do êxito comercial do primeiro, Peckinpah voltou à condição de pária. Novamente foi Daniel Melnick quem o socorreu ao oferecer-lhe um projeto a ser feito na Inglaterra. Sob o domínio do medo (The Straw Dogs, 1971), primeiro não western de Peckinpah, foi uma cause célèbre, dividindo crítica e público ainda mais intensamente que Meu ódio será sua herança. Redman nos dá uma clara noção do porquê de tamanha celeuma. Entre os motivos figura a propalada misoginia de Peckinpah e é justamente uma mulher, Julie Kirgo, quem dá uma visão contrária no ensaio inédito “‘Sam era uma mulher’: um argumento contra a misoginia de Sam Peckinpah” (somos particularmente agradecidos à autora por nos permitir publicá-lo pela primeira vez). Uma instigante análise da Amy (Susan George) de Sob o domínio do medo forma o núcleo do ensaio, mas Kirgo oferece retratos de três outras mulheres de Peckinpah. Uma delas a Ellie (Ida Lupino) de Dez segundos de perigo (Junior Bonner, 1972), um dos filmes mais injustamente subestimados do diretor. Trata-se de um caloroso drama acerca de um cansado caubói de rodeios (Steve McQueen) que retorna brevemente à casa materna. Os indispensáveis toques de estilo do diretor (que brilham nas sequências de rodeio) adornam uma história de gente simples em que bate um grande coração. Dez segundos de perigo deu a Peckinpah a oportunidade de fazer um filme inteiro com Steve McQueen depois do desagradável episódio de A mesa do diabo. Diretor e astro logo emendaram Os implacáveis (The Getaway, 1972), uma espécie de outro lado da moeda de Dez segundos de perigo, um thriller violento e diabolicamente eficiente. Condenado por uns como uma concessão do cineasta a uma fórmula comercial (o filme foi, de fato, um sucesso nas bilheterias), não seria possível confundir Os implacáveis com o trabalho de nenhum outro diretor. O díptico com McQueen não ocasionou fricções, chegando às telas sem maiores problemas. Pat Garret & Billy the Kid (1973) foi o exato oposto. Incluímos no presente catálogo um longo texto de outro especialista em Peckinpah, Paul Seydor, “A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Sérgio Leemann 14


Billy the Kid: as várias versões do último faroeste de Peckinpah”. Nele o leitor encontra uma minuciosa descrição de como o diretor, a esta altura fora de controle, perdeu o mais encarniçado de seus combates com um estúdio. Seydor teve a chance em 2005 de colocar de volta cenas que haviam sido cortadas da versão de cinema de Pat Garret & Billy the Kid para uma Edição Especial lançada em DVD. É a partir dessa reconstrução que ele comenta as diferentes versões de um filme problemático e essencial na carreira de Peckinpah. O cineasta recuperou-se dessa terrível experiência e exorcizou muitos demônios com o raro projeto que não sofreu interferências Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia, 1974). É mais uma vez Julie Kirgo quem se desincumbe de nos mostrar por que ele é uma obra fundamental. Os filmes seguintes de Peckinpah são geralmente considerados um anticlímax, mas em “Esforço humano, batalha humana: Sam Peckinpah e a jornada da alma” Cordell Strug revisita Elite de assassinos (The Killer Elite, 1975) e Cruz de Ferro (Cross of Iron, 1977) e encontra muito o que admirar. O mesmo acontece com Gerard Camy ao falar de O casal Osterman em “Aurora e crepúsculo”. Trinta anos após a sua morte, Sam Peckinpah continua uma presença viva. Os temas e o estilo que um dia causaram tanta controvérsia há muito viraram moeda corrente. Criticado pela violência excessiva de vários de seus filmes, Peckinpah não a utilizava de forma gratuita, mas sim como manifestação de um lado sombrio da natureza humana que ele compreendia muito bem. Foi um grande homem de cinema, utilizando com suprema perícia e criatividade toda sorte de recurso narrativo, em particular a montagem, na criação de obras unicamente suas. Sérgio Leemann

Apresentação 15



© Foto: Divulgação


Entrevista da Playboy concedida a William Murray

Em uma cena de Meu ódio será sua herança, de Sam Peckinpah, a gangue – um grupo de desajustados cruéis – está reunida em torno de uma fogueira depois de um dia agitado. Eles roubaram um banco e mataram quase todos os habitantes de uma cidade em sua fuga, sem saber que esse banho de sangue estava sendo cometido não em nome do ouro, mas de uma sacola de anilhas de ferro sem valor. Bebendo todos da mesma garrafa, eles discutem sobre seu futuro. Holden, o líder, diz para Ernest Borgnine: “Este ia ser o meu último. Eu ia me aposentar depois”. Borgnine responde: “Se aposentar do quê?”. É esse o tema do clássico filme de Peckinpah: homens desesperados, com suas cansadas visões de mundo, presos a uma luta brutal contra uma nova ordem. Já disseram que Peckinpah teria se inspirado em seu próprio anacronismo. Dustin Hoffman, protagonista de Sob o domínio do medo, disse sobre ele: “Eu vejo Sam como um homem fora do seu tempo. É irônico que ele esteja vivo hoje, um pistoleiro numa época em que estamos indo à Lua”. E Peckinpah diz de si mesmo: “Eu cresci numa fazenda, mas aquele mundo já foi. Eu me sinto sem raízes”. Aquela fazenda ficava no condado rural de Madera, na Califórnia, aos William Murray 18


pés de uma montanha cujo nome veio da família do diretor, originalmente um grupo de desbravadores. Lá, ele andava a cavalo, caçava e pescava por toda sua extensão. Seu pai era um juiz que comandava a família com o mesmo autoritarismo que exercia no tribunal. Sam foi mandado para estudar num colégio militar por ser extremamente resistente a essa disciplina. Depois de se formar, se alistou na Marinha, passou um tempo servindo na China, e voltou aos Estados Unidos para fazer faculdade. Ele saiu da University of Southern California formado em Artes Dramáticas e, ao fim dos anos 1950, começou sua carreira como roteirista – e logo diretor – de faroestes na televisão. Num espaço de alguns anos, escreveu dezenas de episódios da série Gunsmoke e ajudou a criar duas séries de caubói: The Rifleman, da qual pediu demissão quando se tornou um “programa para crianças”, e The Westerner, que teve curta duração. Peckinpah estreou no cinema em 1961, como diretor em O homem que eu devia odiar, seguido de Pistoleiros do entardecer e Juramento de vingança. Sua carreira parecia estar evoluindo, mas não demorou para que ficasse conhecido como um tirano mal-humorado, cuja presença era garantia de filmagens cheias de conflitos, orçamentos descontrolados e cronogramas absurdamente atrasados. (Sua vida privada tem sido igualmente volátil; ele já se casou algumas vezes.) Como resultado, Peckinpah acabou banido da indústria, até que – depois de três anos no exílio – o produtor Phil Feldman resolveu assumir o risco e o contratou para dirigir Meu ódio será sua herança, o filme que o estabeleceu como um diretor de primeira linha e que deu início às discussões sobre seu uso excessivo de violência no cinema. A cópia final do longa foi submetida a mais de 3.500 cortes, o maior número de cortes para um filme em cores na história do cinema. Ainda assim, era um dos filmes mais sangrentos jamais feitos e seu sucesso deu início a uma onda de violência nas telas que ainda não terminou. Depois de um trabalho bem menos sangrento, A morte não manda recado – um fracasso de crítica e público –, Peckinpah fez Sob o domínio do medo, que, para alguns críticos, era o filme para o qual ele vinha se encaminhando durante toda sua carreira; a sua obra-prima da violência. É a história de um jovem matemático norte-americano, David Sumner (Dustin Hoffman), que ganha uma bolsa de pesquisa e vai viver na Cornualha, Inglaterra, com sua bela esposa inglesa. Durante o filme, David é submetido aos abusos de cinco jovens do vilarejo onde mora que ele havia contratado para consertar sua garagem. Eles reagem às suas vacilantes instruções e tentativas patéticas de simpatia com condescendência e Entrevista da Playboy 19


William Murray 20


Entrevista da Playboy © Foto: Divulgação

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brincadeiras sádicas se excitando com a presença de sua esposa, que por sua vez provoca a libido dos rapazes e acaba eventualmente sendo vítima de um estupro duplo por parte deles. O tormento pessoal de David só aumenta, até chegar à cena final, que dura 30 minutos, em que, ao proteger um doente mental da cidade que está sendo procurado pelos mesmos homens que estupraram sua esposa, ele os proíbe de entrarem em sua casa. É quando a tela se enche de sangue à medida que David trucida todos eles. As sombrias implicações de Sob o domínio do medo – e o nível de violência do filme – provocaram reações contrárias dos críticos. David Denby, da Atlantic, o classificou como “um filme odiável, mas muito excitante”. Pauline Kael, do NewYork Times, foi mais longe, o denunciando como “uma obra de arte fascista”. A Variety o insultou como “uma orgia de violência e sordidez sem paralelos (...) um banho de sangue que desafia qualquer descrição mais detalhada”. Mas Jay Cocks, crítico da revista Time, o saudou como “um brilhante feito cinematográfico (...) o filme talvez seja mais cínico do que realista. Mas se as coisas não são assim mesmo, podemos então medir a destreza de Peckinpah em como, ao dar voz a seu desespero, conseguiu fazer com que esse pesadelo parecesse nosso”. Nunca houve um consenso sobre Peckinpah, mesmo entre seus amigos – em muitos dos quais, em algum momento, ele já deu um soco, às vezes sem nenhum aviso prévio. Um desses seus amigos, vítima de um desses seus socos dominicais, diz que, tanto pessoalmente como profissionalmente, “Sam é tão imprevisível quanto uma cobra”. A fim de descobrir o quão imprevisível ele é e saber se algumas das histórias sobre ele são verdadeiras, a Playboy enviou seu colaborador William Murray para passar algum tempo com Peckinpah e o entrevistar. Murray relata: “Sam é um grande vigarista, e também um pouco exagerado. Também aprendeu a lidar com a imprensa, dando aos repórteres exatamente o tipo de coisa que querem ouvir. Ele resiste a entrevistas muito extensas fugindo de você, te forçando a fazer seu trabalho num ritmo mais lento. Eu conduzi essa entrevista na praia de Malibu, na sala de uma casa alugada, durante uma festa, em vários bares, restaurantes, trailers e em locação em San Antonio e El Paso – onde ele dirige seu novo filme, Os implacáveis, estrelado por Steve McQueen e Ali MacGraw. [McQueen também é o protagonista de Dez segundos de perigo, filme de Peckinpah lançado recentemente, sobre um peão de rodeio se aproximando da meia-idade.] William Murray 22


“Vê-lo trabalhando pode ser instrutivo. Ele raramente está à frente do que está acontecendo, mas você sabe, mesmo que ninguém tenha dito, que ele está no comando. Há algo formidável sobre ele. Ele normalmente veste uma calça Levis, uma camisa de botão e um casacão – um homem esguio, detalhadamente arrumado, com os olhinhos escuros de um pistoleiro. Seu bigode cinza prateado, cabelo ralo e traços de marcas profundas fazem com que pareça ter mais que seus 46 anos; ele tem o rosto de um homem que lutou muitas guerras – e perdeu algumas. Quando fala, mesmo dando uma ordem, tem um tom de voz tão suave que tende a atrair quem o ouve em sua direção. Às vezes nos arrependemos, porque o que diz, assim como a maneira como diz, pode ser bastante intimidante. O truque é não hesitar – como aprendi quando sentamos para começar a gravar.” Peckinpah: Está certo, vamos começar. Eu prometo fazer o meu papel. Mas não vou falar sobre violência. Playboy: Então é melhor nem começarmos. Peckinpah: Por mim tudo bem. Playboy: Por que você não quer falar sobre violência? Peckinpah: Porque é por aí que todos querem me pegar. Eles acham que eu inventei isso. Acham que eu me limito a isso. Acham que eu me divirto muito quando as pessoas nos meus filmes têm suas cabeças explodidas. Eu não aguento mais. Playboy: Quando você diz “eles”, quer dizer os críticos? Peckinpah: E quem mais? Vocês têm um belo exemplo na Playboy, um verdadeiro cavalo. Aquela crítica que o seu cara escreveu de Sob o domínio do medo era literalmente um linguine. Eu não sabia que Hefner estava contratando groupies do New York Review, gatos que não sabem escrever ou assistir a um filme. Playboy: Na verdade, nosso crítico gostou bastante do filme. Mas muitos consideram Sob o domínio do medo uma obra de arte, e a maioria dos seus outros filmes receberam boas críticas. A questão talvez seja que ninguém tem uma reação morna à sua obra. Eles amam ou odeiam. Peckinpah: Seja como for, eles quase nunca me compreendem. Para alguns, Sob o domínio do medo é uma obra íntegra, mas não muito inteligente. Para outros, um trabalho de enorme sutileza e muita inteligência, mas que falhou o campo moral. Meu Deus do céu, Sob o domínio do medo é baseado em um livro chamado The Siege of Trencher’s Farm. Um livro medíocre com uma boa sequência de ação – a cena do cerco. Você é contratado para pegar esse livro ruim e Entrevista da Playboy 23


fazer dele um filme. Te dão um roteirista, David Goodman, e um ator, Dustin Hoffman; e te dão uma história para contar que você conta da melhor maneira que sabe, é isso. Então que merda toda é essa sobre integridade e sobre o filme não ser uma obra de muita inteligência? Playboy: Pauline Kael disse que o senhor é um artista apaixonado e sensual em conflito consigo mesmo. E ela escreveu em sua crítica de Sob o domínio do medo que este é o filme para o qual você vinha se preparando desde sempre. Mas isso não é exatamente um elogio: ela fica chocada com seu suposto aval à violência no filme e o acusa de consagrar o imperativo territorial e espalhar por aí a palavra do Homem de Neandertal. Peckinpah: Mais, mais, estou adorando! Playboy: Ela também o classifica como “o primeiro filme norte-americano que é uma obra de arte fascista”. Peckinpah: Explique, por favor. Playboy: Ela diz que o filme encena a velha fantasia masculina de que as mulheres só respeitam homens brutos e que não existe o estupro, que as mulheres não passam de pequenos animais implorando para serem subjugadas. Peckinpah: Amy, a moça interpretada por Susan George no filme, é uma jovem garota desinformada, arrogante e gostosinha, com muita coisa acontecendo a seu favor, mas que ainda não virou adulta. É esse o personagem. Não tentei representar as mulheres em geral, pelo amor de Deus. Playboy: Mas e quanto à cena do estupro? Amy está claramente gostando da experiência, não? Você não estaria dizendo, como sugere Kael, que é para isso que as mulheres servem – para serem usadas e abusadas? Peckinpah: Sim, eu acredito que seja um pouco isso. Mas não estou colocando todas as mulheres naquela cena. Amy está apreciando a experiência sim. Em um primeiro momento. Kael não entende nada de sexo? Dominar e ser dominado; a fantasia de ser forçado é também uma maneira de fazer amor. As fantasias sexuais não têm fim, e essa é uma delas. Amy está gostando, é claro. Pelo menos com o primeiro hombre que abusa dela. O segundo já é um pouco demais para o que ela queria, mas é um dos preços que se paga por jogar o seu joguinho. Há sempre um preço a se pagar, doutor. Playboy: Kael o compara com Norman Mailer e diz que vocês dois são areia do mesmo saco machista, com a diferença que Mailer se preocupa com isso. Quanto a você, ela acha que é o caso de ser assim até o fim. William Murray 24


Entrevista da Playboy 25

Sob o domínio do medo © Walt Disney Studios


Peckinpah: Eu gosto de Kael; ela é uma menina espevitada e eu adoro sair para beber com ela – algo que já fiz algumas vezes –, mas nesse caso ela está quebrando nozes com o rabo. Olha, e se tivessem me dado Guerra e paz para adaptar, em vez de Trencher’s Farm? Eu tenho bastante certeza de que teria feito um filme diferente. Playboy: Mas foi você quem escolheu The Siege of Trencher’s Farm, não foi? Peckinpah: Eu não escolhi nada. Nunca escolhi nenhum dos meus filmes, exceto A morte não manda recado. Esse foi o único que eu escolhi fazer. Playboy: Conte-nos como funciona então.Te oferecem muitos projetos... Peckinpah: Eu estou atrás de trabalho. Sou uma prostituta.Vou aonde me querem. Mas sou uma rameira das melhores. Playboy: Não importa que material te deem, você segue em frente e faz seu próprio filme. Com certeza existe o inegável toque de Peckinpah. Peckinpah: O toque de Peckinpah! Jesus! Leia o maldito livro.Você morrerá engasgado em seu próprio vômito. Playboy: Quando você diz ser uma prostituta, isso não seria uma meia verdade? Se você não fosse tão bom, ninguém nunca o notaria. Há muitas prostitutas por aí. Peckinpah: Quando me dão algo para fazer, pego o material e tento tirar algo dali. Então, sem querer soar muito pomposo, o que coloco nele é aquilo que vejo, como me sinto com relação a como as coisas são ou como estão indo. Mas tento contar uma história acima de tudo, e a partir do material que me é dado. E muito raramente me dão algum material decente. Playboy: O que mais te interessa no resultado final de Sob o domínio do medo? Peckinpah: O que realmente me animou foi a quantidade de dinheiro que eu teria para fazê-lo.Você começa com o dinheiro e, depois de ter essa parte mais clara, tenta entender o que diabos está fazendo. Nesse caso, David Goodman e eu nos sentamos para tentar fazer algo minimamente válido desse livro podre. Nós fizemos. A única coisa que mantivemos foi a cena do cerco. Playboy: David Sumner, o personagem de Dustin Hoffman no filme, é um intelectual que está fugindo de si mesmo e se recusa a tomar uma atitude com relação a tudo.Você o mostra como uma espécie de minhoca. Quando ele toma uma atitude, é uma de excruciante violência, pela qual você deixa entender que ele se transformou em homem ao apelar para essa violência. E que ele teria curtido o massacre. William Murray 26


Peckinpah: Totalmente errado. Não sei que filme você viu. Há um momento no meio do cerco em que David quase vomita, ele está passando mal e diz “Vá em frente, puxe o gatilho”. Ele está cansado daquilo, cansado de si mesmo, da violência que reconhece em si mesmo. Não acredito que alguém não perceba isso no filme. Ele acaba de usar um atiçador para matar um homem que estava tentando matá-lo. Ele olha para o que fez com desespero e horror absoluto e já não se importa naquele momento se sairá vivo ou morto. Playboy: E quanto ao último plano do filme, no qual Hoffman dirige para longe do lugar onde ocorreu aquela carnificina? Um crítico viu um olhar de prazer em seu rosto quando diz ao rapaz com problemas mentais que já não sabe o caminho para casa. Peckinpah: Não é prazer de maneira alguma. Nem Dustin nem eu interpretamos desta maneira. Essa fala foi escrita enquanto dirigíamos para a locação no último dia de filmagem. David Warner havia nos dado essa deixa no ensaio dizendo “Eu não sei meu caminho para casa”. Virei para Dustin e disse “Você também não, e esse é o ponto desse filme”. “Sim”, ele disse, “e eu direi isso com um sorriso porque a ironia é forte demais para que ele o diga com o rosto sério.” Dustin quis fazer dessa maneira e ele estava certo. David Sumner reconhecera em si a enormemente reprimida violência que vivia com ele. E uma vez exposta, não há como voltar atrás.Veja bem, ele realmente armou a coisa toda. Ele poderia ter parado aquilo uma dúzia de vezes. Ele estava testando sua esposa, testando a si mesmo. Ele manobrou a si mesmo em direção a uma situação em que seria forçado a botar para fora a violência que existia dentro dele, como muitos dos chamados pacifistas e supostamente pessoas passivas fazem. Você se lembra de ler sobre aquele menino que atirou em 45 pessoas do alto de uma torre em um campus? Cara, aquele era o aluno cheio de honrarias, o bom menino, o líder dos escoteiros que era bondoso com sua mãe e com os animaizinhos. Se ele sentiu prazer ao atirar naquelas pessoas, não é relevante. O que é relevante é que ele atirou. Ele tinha toda essa violência dentro de si e ele subiu naquela torre e botou para fora. Agora, você ouve todo esse papo sobre a violência em Sob o domínio do medo e em alguns dos meus outros filmes como se essa violência estivesse contribuindo para a violência na sociedade. A coisa é que a violência que está em nós, dentro de todos nós, tem de ser expressada construtivamente ou irá nos afundar. Eu acredito muito na catarse. Você acha que as pessoas assistem ao Super Bowl porque acham o futebol americano um esporte lindo? Porcaria nenhuma! Elas Entrevista da Playboy 27


Sob o domínio do medo © Walt Disney Studios

estão sendo violentas indiretamente. Olha, a antiga origem da catarse era expurgar as emoções através da pena e do medo. As pessoas costumavam ir ver as peças de Eurípides e Sófocles e aqueles outros caras gregos. Os atores representavam e o público entrava junto e meio que vivia aquilo tudo junto com eles. O que é mais violento que as peças de William Shakespeare? E quanto às grand opéra? O que é mais sangrento que uma grand opéra romântica? Pegue um enredo, qualquer um – irmão mata irmão para dormir com sua esposa, que por sua vez mata seu pai, e por aí vai. Quer se divertir? Leia os contos de fada de Grimm. Quando você mostra essas coisas para os caras em Nova York, eles dizem que aquilo era arte, o que é besteira. Essas peças e óperas e contos eram o entretenimento popular de suas épocas. Playboy: Mas não se preocupavam tanto quanto você com os detalhes físicos da violência. A violência nos seus filmes é executada de maneira amorosa, super-realista, e quase sempre em close-up. Peckinpah: Não dá para querer que a violência seja real hoje em dia sem esfregar o nariz do público nela. Nós assistimos às nossas guerras e vemos William Murray 28


homens morrer, morrer de verdade, todos os dias na televisão, mas isso não parece real. Nós não acreditamos que são pessoas de verdade morrendo naquela tela. Nós fomos anestesiados pela mídia. O que eu faço é mostrar às pessoas como realmente é – nem tanto mostrando como é, mas aumentando, estilizando. A maioria das pessoas nem mesmo sabe como é um buraco de tiro em um corpo humano. Eu quero que elas saibam como é. A única maneira que posso fazer isso é não as deixando polir essa aparência, como se fosse o noticiário das sete, direto da zona desmilitarizada do Vietnã. Quando reclamam da maneira como lido com a violência, o que estão dizendo na verdade é “Por favor não me mostre; eu não quero saber; e me traga outra cerveja da geladeira”. Playboy: Muitas pessoas querem pôr um fim a tudo aquilo que, na televisão ou no cinema, possa contribuir com a violência pública da nossa época. Elas estão erradas? Peckinpah: Eu acho que é errado – e perigoso – se recusar a aceitar a natureza animalesca do homem. É disso que Robert Ardrey fala naqueles seus três livros incríveis, African Genesis,The Territorial Imperative e The Social Contract. Ardrey é o único profeta vivo hoje em dia. Alguns anos atrás, quando estava trabalhando em Meu ódio será sua herança, um amigo meu me trouxe African Genesis e disse que eu tinha que ler porque Ardrey escrevia sobre aquilo que eu estava trabalhando, que estávamos no mesmo caminho. Então depois que terminei o filme, eu li e pensei “Uau, esse é um cara que conhece alguns segredinhos sórdidos sobre nós”. Sob o domínio do medo é sobre um cara que descobre alguns segredos sórdidos sobre si mesmo – sobre seu casamento, sobre onde se encontra, sobre o mundo à sua volta. Algumas pessoas não gostam de encarar esse tipo de coisa; os deixa inquietos. Veja bem, David Sumner arrancou seus óculos de proteção. O homem disse que não se pode voltar para casa e David também não pode. Ele pode seguir em frente – todos podemos – mas não pode voltar ao que era. Eu não sei o que poderia ser mais claro. Playboy: E quanto à esposa, Amy? O que ela descobre sobre si mesma? Peckinpah: Bom, existem dois tipos de mulheres. Há mulheres e há gatinhas. Uma mulher é uma parceira. Se você consegue chegar a algum lugar sozinho, com uma boa mulher, você pode chegar a três vezes isso. Mas Amy é o tipo de garota – e todos já as vimos aos milhões – que casam, que tem algumas qualidades, mas que são tão terrivelmente imaturas, tão ignorantes em relação à vida, ao que realmente importa na vida, nesse caso com relação ao casamento, Entrevista da Playboy 29


que acabam por destruí-la. Amy é uma gatinha sob a aparência de uma mulher. Talvez em razão do que acontece, ela eventualmente se tornará uma mulher. Playboy:Você está insinuando que Amy não poderia se tornar uma mulher enquanto David não se tornasse um homem? Peckinpah: Não, David sempre foi um homem. Ele apenas não via fundo o suficiente dentro de si. Ele não sabia quem era nem do que era feito. Nós todos intelectualizamos o porquê de fazer as coisas, mas é o nosso mais puro instinto animal que nos conduz a fazê-las o tempo todo. David descobriu que tinha todos esses instintos e isso o deixou enojado, até a morte, e ao mesmo tempo ele teve estômago e razão o suficiente para tomar uma atitude e fazer o que precisava ser feito. Playboy: Mas Amy foi o instrumento dessa autodescoberta, não foi? Ela não o impulsionou a “agir como um homem”? Peckinpah: Ela não sabia o que queria. Ela o impulsionou, como você diz, mas não de maneira construtiva. Para começar, ela pediu pelo estupro. Mas mais tarde, ela mal conseguia se obrigar a puxar o gatilho para salvar a vida dele. Eu não sei se eles ficarão juntos novamente. Eles terão ao menos que lidar um com o outro de uma maneira diferente. O que eu espero que ele faça é continuar seguindo naquele carro até o fim – sem voltar para trás. Ele claramente casou com a senhorita errada. Ela é basicamente uma gatinha. Eu sou a favor de casamentos predestinados, e esse é o único tipo de casamento que deveria existir. E, falando de estupro, eu gostaria de mostrar à Srta. Kael e a outros desses supostos críticos que pela entrada traseira não significa necessariamente sodomia, como disseram em seus textos. No filme, Amy é dominada por um cara com quem costumava sair, e então é tomada por trás por outro cara que ela não queria, por lado nenhum. O estupro duplo foi um pouco mais do que ela previa. De qualquer maneira, acho que a Srta. Kael e seus amigos tem algum complexo anal. Perfeitamente justificável nessa época em que vivemos. Playboy: Se Amy é uma gatinha, por que David se casou com ela? Peckinpah: Por favor, você é melhor que isso. Muitos de nós casamos com gatinhas uma vez ou outra. Uma puta esperta e sem escrúpulos pode sempre se utilizar de sua beleza para conseguir casar com um pobre pateta. E no casamento, sobretudo se o homem estiver solitário, ele irá vesti-la com as vestimentas de suas carências – e se ela for muito jovem, fará o mesmo com ele. Eles não olham de verdade para o que a outra pessoa é, mas para o que eles querem William Murray 30


que ela seja. De repente a ilusão se dissipa e eles se enxergam de verdade e dizem “Ei, que história é essa?”. Agora que David também consegue se enxergar, ele pode começar a construir sua vida. Quanto a ela, provavelmente nunca mudará. Playboy:Você fala como um homem que já teve muitas experiências com gatinhas. Peckinpah: Só poderia ser assim. Uma das vantagens de ser uma celebridade é que muitas das belas gatinhas que não estavam disponíveis antes, de repente ficam disponíveis. Groupies e meninas que querem transar com as grandes estrelas estão por todo lado e você certamente não precisará se casar com elas, ainda que muitos pobres coitados o façam. Playboy: Como você explica essa atração mútua entre estrelas e groupies? Peckinpah: É a mesma coisa que atrai todos os homens às mulheres e vice-versa. Os homens são atraídos primeiramente pela beleza física, magnetismo, ou talvez apenas pela maneira como uma mulher se move e pela atmosfera que a envolve. Mas o que atrai uma mulher a um homem é completamente diferente. Tem muito mais a ver com o lugar em que o homem está na sua vida. Não estou falando de dinheiro; estou falando de sucesso. Na verdade, estou falando de território. Quanto e onde e como se está seguro, confiante. É o impulso mais básico. Observe o comportamento de um rebanho. Quem está com as vacas? O touro maior e mais forte. E todo ano ele tem que lutar contra todos os desafiantes, até que eventualmente alguém ganhe dele. Mas enquanto ele reinar, fará tudo à sua maneira. É o processo evolucionário mais básico e fascinante que existe. Playboy: Etólogos talvez concordem com você, mas duvido que os movimentos dos direitos das mulheres caiam na sua conversa. Peckinpah: Eu ignoro esses movimentos. Sou a favor da maioria das coisas que eles propõem, social, política e economicamente, mas não vejo por que precisem se passar por babacas. Essas lésbicas machonas e as loucas com seus tênis esportivos e mochilas de lona – tente explicar alguns fatos da vida para elas. Como o fato que eu tenho um pênis que se insere em uma mulher e ela tem uma vagina para me receber. O ato masculino mais básico, por natureza, se inicia por uma ação de agressão física, não importa quanto amor eventualmente expresse. E o da mulher se inicia como um ato de passividade, de submissão. É um fato físico. Exceto para uma lésbica machona. Não que eu esteja atacando o lesbianismo. Eu me considero uma das principais lésbicas masculinas do mundo. Eu não ligo para o que passa na cabeça das pessoas; nós somos construídos Entrevista da Playboy 31


fisicamente de uma certa maneira e nos foi dado um conjunto de instintos para combinar com essa maquinária. Diga isso para qualquer maluca do movimento dos direitos das mulheres e elas vão praguejar que você é um porco chauvinista. O que pode acontecer quando você nega seus instintos e ímpetos mais básicos é o verdadeiro tema de Sob o domínio do medo. Eu li em algum lugar recentemente que um cara desses estava tendo dificuldades em transar com mulheres hoje em dia porque metade das que ele levava para a cama começava a fazer demandas geográficas. Elas expõem todo um plano de batalha sexual antes de começarem. Elas querem isso, querem aquilo. Você precisa fornecer satisfação instantânea, como se fosse algum tipo de acrobata computadorizado. Isso é logística, não é sexo – e certamente não é amor. No sexo, quando você faz só por você ou pela outra pessoa, você está se masturbando ou masturbando ela. Qualquer boa prostituta sabe mais sobre sexo que Betty Friedan. Playboy:Você gosta mesmo de prostitutas? Peckinpah: De todas as prostitutas com as quais já estive – norte-americanas, chinesas, inglesas, mexicanas, de qualquer nacionalidade –, não desenvolvi uma acolhedora relação pessoal com apenas uns 10%. Eu vivi com algumas boas prostitutas. Elas me levavam para suas casas ou eu as levava para a minha. Nós fomos seres humanos juntos. Nunca vi essas mulheres como objetos a serem usados. Eu coloquei muito das relações que tive com prostitutas na história de amor entre Cable Hogue e a sua prostituta, Hildy [N.T.: no filme A morte não manda recado]. Eles tinham uma relação que era mais verdadeira e mais afetuosa do que aquela que existe entre muitos maridos e esposas. O fato de ela ser uma prostituta e ir para cama com homens por dinheiro não mudava nada. Muitas mulheres casadas trepam pelo dinheiro. Playboy: Independentemente dos seus relacionamentos com prostitutas, será que o fato de você se conectar tão bem com elas não demonstra uma necessidade da sua parte de permanecer superior ou emocionalmente não envolvido? Peckinpah: É possível, mas acredito que significa que gosto de mulher honesta, que é honesta consigo mesma e com as pessoas com as quais se importa. Com frequência, de um jeito ou de outro, essa mulher é uma prostituta. Playboy: Parando para pensar, a maioria das mulheres nos seus filmes são prostitutas. Peckinpah: Quando se encontra algo bom, você não larga. Playboy: Como a violência.Você sempre tratou disso, não é? William Murray 32


Peckinpah: É um dos meus maiores temas. Mas se você quiser descobrir algo sobre a violência nesse país, precisa conversar com as pessoas nas nossas prisões, como tenho feito recentemente em razão do filme Os implacáveis. Esse pessoal abre nossos olhos. Para eles, esse é um estilo de vida, uma existência vivida sob certos códigos. Tem coisas que se pode fazer, outras não. É tudo construído sobre a estrutura das vidas deles, como era para os caras em Meu ódio será sua herança. Eram pessoas que viviam não só pela violência, mas também para ela. Mas toda a camada inferior da nossa sociedade sempre foi violenta e ainda é. É um reflexo da própria sociedade.Você sabia que pessoas vinham me dar socos porque estavam irritadas com a violência em Meu ódio será sua herança? Esses pacifistas vinham tentar me bater. Eles não entendiam quem eram. Em O discípulo do diabo, peça de George Bernard Shaw, um pregador descobre sua verdadeira natureza, que é a de um homem de ação, de violência, e o homem de ação descobre que ele na verdade é um pregador. Isso não te sugere nada? Playboy: Que você talvez seja um pouco um pregador. Peckinpah: Exato. Algo ligado às minhas origens talvez. Playboy: Você acha que os pacifistas são desonestos consigo mesmos ou desconectados da realidade? Ou apenas não são viris? Peckinpah: Claro que não. O verdadeiro pacifismo é viril. Na verdade, é a mais nobre forma de virilidade. Mas se um homem vem até você e corta uma de suas mãos, você não lhe oferece a outra. Pelo menos não se quiser continuar tocando piano. Não estou dizendo que a violência é o que faz um homem ser homem. Estou dizendo que quando a violência surge, você não pode fugir dela. Você precisa reconhecer sua real natureza, em si mesmo e nos outros, e tomar uma atitude. Se correr, você morrerá, ou ao menos será melhor que morra. Playboy: Quando você diz que alguém é homem de verdade, o que quer dizer com isso? Peckinpah: Que ele não precisa provar nada. Ele é ele mesmo. Meu pai dizia isso de outra maneira. Ele costumava dizer: “Quando chegar a hora, levante-se e mostre sua importância”. Para a coisa certa. Para algo que importe. É o teste final. Ou você se compromete até o ponto em que se destrói ou você se levanta e diz “Cai fora”. É impressionante como poucas pessoas fariam isso. Então se eu sou fascista por acreditar que os homens não foram feitos iguais, então tudo bem, sou um fascista. Mas eu detesto esse termo e o tipo de raciocínio que rotula esse ponto de vista como fascista. Eu não sou anti-intelectuais, mas sou Entrevista da Playboy 33


Meu ódio será sua herança © Warner Brothers William Murray 34


contra os pseudointelectuais que rolam como cachorros em sua própria diarreia verbal e a chamam de propósito e identidade. Um intelectual que incorpora seu intelecto em ações, esse é um ser humano completo. Mas jogar uma partida no banco dos reservas é brincar consigo mesmo. Playboy: David Sumner em Sob o domínio do medo é o primeiro intelectual que você colocou como herói em um filme. Peckinpah: Ele não é um herói. Ele é um patife. Eu sou louco por patifes. Playboy: Era assim que você via seus personagens em Meu ódio será sua herança? Já ouvi dizer que você odiava Pike Bishop, o personagem de Bill Holden, e seus companheiros, que eles eram perigosos e tinham que morrer; mas a maneira como você os mostra no filme parece te contradizer. Parece expressar respeito e até amor por eles e pelo que eles representam. Peckinpah: É claro que eu os amava. Eu amo os marginais. Veja bem, a menos que você se conforme, se entregue completamente, você estará sozinho nesse mundo. Mas ao se entregar, você perde sua independência como ser humano. Então eu prefiro os solitários. Eu não sou nada além de um romântico e tenho essa queda por perdedores em grande escala, assim como uma sorrateira afeição por todos os desajustados e andarilhos do mundo. Playboy: Os seus perdedores e desajustados não estão conformados a um código antiquado? Peckinpah: Códigos antiquados como coragem, lealdade, amizade, bondade sob pressão, todas as virtudes simples que se tornaram clichês, com certeza. Eles são caras que fugiram de seu território e sabem disso, mas eles também não vão se curvar; eles se recusam a serem diminuídos por isso. Eles tocam sua música até o fim. Playboy: Mas a dura realidade da fronteira não era que ela não tinha códigos – exceto a sobrevivência do mais forte? Peckinpah: Sim, mas eu não faço documentários. Os fatos sobre o cerco a Troia, o duelo entre Heitor e Aquile e todo o resto são muito menos interessantes para mim do que o que Homero tirou disso. E, de qualquer forma, os fatos em si tendem a ofuscar a verdade. Como sigo dizendo, sou apenas um contador de histórias. Nem tenho mais certeza do que acredito. Uma vez eu dirigi uma peça de [William] Saroyan na qual um dos personagens perguntava a outro se ele morreria por aquilo em que acreditava. O cara respondia “Não, eu posso estar errado”. É nisso que me encaixo. Não vou ficar no caminho entre meu Entrevista da Playboy 35


público e a história. Eu odeio aquela sensação no cinema de estar mais consciente do que o diretor está fazendo do que aquilo que de fato está lá na tela. Playboy: É por isso que você gosta de fazer faroestes? Porque o Oeste é praticamente nossa única mitologia? Peckinpah: Não, diabos. Cheguei a isso naturalmente. A minha memória mais antiga é a de ser amarrado a uma sela quando tinha dois anos para uma cavalgada pelo interior do estado. Estávamos sempre próximos às montanhas, sempre voltando a elas. Quando meu avô estava morrendo, suas últimas palavras foram sobre as montanhas. Nós passávamos o verão lá e, em alguns invernos, eu fazia armadilhas na neve. Nós amávamos aquela região, todos nós. Meu avô, Denver Church, tinha um rancho de gado com 4.100 acres aos pés das montanhas de Sierra, 25 milhas a leste de Fresno, e a família toda, os Peckinpah e os Church, circulava por essa região desde que se mudou do Meio-Oeste em meados do século XIX. Nós temos até mesmo uma montanha que leva nosso nome. Playboy:Você já usou sua família como personagens em seus filmes? Peckinpah: Não, eles são honestos demais. Estão envolvidos com o mercado imobiliário, com a política e com a lei. Minha mãe, que ainda é muito presente, acredita piamente em duas coisas: abstinência alcoólica e ciência cristã. Meu pai era um juiz. Ele acreditava na Bíblia como literatura e na lei. Ele era uma autoridade e nós crescemos acreditando que ele não poderia nunca, jamais estar errado em relação a nada. A lei, a Bíblia e Robert Ingersoll eram os principais assuntos na mesa de jantar. Quando eu ainda era criança, papai me fez ir ao julgamento, na sua corte, de um menino de 17 anos acusado de estuprar uma menor de idade. Ele achou que seria uma boa lição para mim. E foi, mas não pelas razões que ele pensava. Além de juiz, meu pai também era talvez o pior vaqueiro em atividade. Ele faliu 13 vezes. E nas montanhas, ele fazia suas próprias leis. Ele acreditava que não se devia caçar se não fosse para comer a sua caça. Mas dizia que todos os animais em sua terra eram seus e poderia fazer com eles o que quisesse. Eu tinha 20 anos quando soube que existia uma temporada de caça ou guardas florestais, e só com 30 fui começar a me importar com isso. As pessoas, os lugares naquela região! Hoje em dia quase tudo já se foi. Fresno virou uma pequena Los Angeles e os campos ao redor foram destruídos por estradas novas e grandes hotéis, e dominados por turistas e campistas de merda. Meu irmão Denny e eu fomos a última fase dessa história. Muitos dos velhos eram do tempo em que a área era tomada por caçadores, índios, mineradores – William Murray 36


todo tipo de andarilho e trapaceiro.Tudo o que resta hoje são os nomes para nos lembrar, cidades como Coarsegold e Finegold, o Pico de Shuteye, a montanha Dead Man, o espinhaço Wild Horse, Slick Rock. E os mais velhos tinham suas histórias para contar também. Denny e eu pescamos, cavalgamos e caçamos por toda essa região. Achávamos que seríamos sempre parte dela. Nos últimos anos não tenho nem mais caçado, mas estou pensando em retomar. Playboy: Você concorda com seu pai que é errado caçar a menos que você vá comer o animal que matou? Peckinpah: Sim, e você também não deve matar mais do que pode comer. Um veado tem um gosto maravilhoso, mas também é um animal muito bonito. Mas qualquer um mata, se tiver fome o suficiente – até aqueles que se recusam a caçar por razões morais. Uma barriga roncando é ótima para equalizar os princípios. É claro que a maioria dos homens mata só por princípio, e quase sempre seus semelhantes . Que belo princípio. Playboy: Você acha que é possível, como disse um crítico, que você seja na verdade um homem do século XIX e que, na sua obra, você estaria vivendo indiretamente o período em que preferia ter vivido? Peckinpah: Antes de qualquer coisa, quando se faz um filme, a época em que ele se passa importa menos do que o seu tema.Você se torna todos aqueles personagens. Eu já fui todos os personagens dos meus filmes. Os atores fazem o mesmo. Eles vestem os papéis um dos outros para os testarem em seu corpo, para testarem os personagens e a si mesmos, às vezes criando até um embate. Mas eu gostei daquele período na história dos Estados Unidos. E também da época em que cresci, os anos 1930. Era um país diferente. Nós não tínhamos perdido o chão. Playboy: Com sua origem num universo de uma elite branca teimosa e sua relação profunda com a natureza, como você deu esse passo em direção ao show business? Peckinpah: Por acaso. Eu tinha acabado de sair da Marinha, depois da Segunda Guerra, e não tinha nenhum plano específico em mente. Denny tinha ido estudar direito. A minha única certeza era que isso eu não queria fazer. Eu voltei a estudar, na Fresno State, porque não tinha nada melhor para fazer. Lá conheci minha primeira esposa, Marie, que queria ser atriz. Na Fresno State tinha um pequeno mas muito ativo departamento de teatro e eu acompanhei Marie um dia a uma aula de direção. Aquilo me excitou de cara. Eu gostava Entrevista da Playboy 37


especialmente das peças de Tennessee Williams e meu grande projeto na faculdade foi uma montagem de uma hora de Algemas de cristal, que eu adaptei e dirigi. Acho que aprendi mais com Williams do que com qualquer outro. Ele é de longe o melhor dramaturgo dos Estados Unidos. Sempre me emocionou muito. Eu também dirigi Um bonde chamado desejo, assim como boa parte de suas peças em um ato. Ele é um tremendo artista e eu lhe desejo a melhor das sortes, sempre. Acho que aprendi mais sobre escrever tendo que cortar Algemas do que com qualquer coisa desde então. Playboy: Escrever foi o que lhe abriu portas, não é? Peckinpah: Sim, mas foi um inferno, porque eu odeio escrever. Eu sofro as torturas de um condenado. Não consigo dormir e parece que vou morrer a qualquer minuto. Eventualmente, me tranco em algum canto, longe do alcance de uma arma, e vou em frente num empurrão. Sempre estive cercado de escritores, como alguns amigos, mas nunca tinha me tocado do quão angustiante é esse processo. Mas foi uma maneira de começar. Eu paguei minhas dívidas nesse meio. Já fui boy de set, fui contrarregra, já varri estúdio, e assisti a alguns ótimos profissionais trabalhando. Então comecei a escrever e finalmente a vender roteiros para a TV. E depois de um tempo, resolvi tentar minha sorte no cinema. Sempre tive dois ou três projetos andando ao mesmo tempo. Eu colocava toda minha energia neles e então vendia alguns e eles desapareciam. Escrevi dois roteiros bem bons nessa época e o que aconteceu com eles é bem típico. Um, Villa, o caudilho, foi produzido com Yul Brynner estrelando. Era terrível. Tinha muita coisa passada no México e eu conheço a história do país. Brynner disse que eu não entendia o México e Villa, o caudilho foi o resultado das mudanças que eles fizeram. É uma farsa. O outro roteiro virou A face oculta, dirigido e estrelado por [Marlon] Brando. Eu tinha adaptado um romance de Charles Neider, The Authentic Death of Hendry Jones, baseado na história real de Billy the Kid. Era a obra definitiva sobre esse assunto, mas Marlon estragou tudo. Ele é um baita de um ator, mas naquela época tinha que terminar o filme como herói e esse não é o tema da história. Billy the Kid não era um herói. Era um pistoleiro, um assassino de verdade. Mas eu não quero falar mal de atores. Alguns dos meus melhores amigos são atores. Foi Brian Keith, que havia trabalhado comigo no seriado The Westerner, quem me conseguiu minha estreia como diretor de cinema. Ele fora contratado para estrelar, ao lado de Maureen O’Hara, em O homem que eu devia odiar e persuadiu o produtor do filme, que por William Murray 38


acaso era o irmão da Srta. O’Hara, a me contratar. Não foi o melhor acordo do mundo: eu queria fazer um filme e esse cara queria ficar mandando em mim. O roteiro precisava de muitas mudanças, mas me mandavam me limitar ao meu trabalho. Brian sabia que estávamos com problemas, então tentávamos entre nós dar algum sentido dramático ao filme. O resultado foi que todas as cenas dele funcionaram, enquanto as dela morreram. Eu aprendi bastante sobre produtores. Playboy:Você sempre teve problemas com produtores. Existe algum com quem você tenha gostado de trabalhar? Peckinpah: Um, talvez dois, e mesmo assim não muito. Eu não funciono bem sob o comando de outras pessoas. Eu acho que tem que ter uma pessoa fazendo o filme e essa pessoa tem que ser o diretor. Produtores muitas vezes são apenas administradores interessados em defender as suas regalias. Eu tenho um gênio forte e não aguento gente estúpida, então vivo em guerra com esses caras. Eu quero controle total, do roteiro ao corte final. E se não consigo o que quero das pessoas, eu as mando embora. O problema com produtores é que você não pode fazer isso com eles. Todo o resto vem e vai num filme, mas o produtor e o diretor ficam do início ao fim. O melhor produtor é aquele que te deixa fazer seu filme. Não existem muitos assim. Playboy: Que diretores têm essa liberdade? Peckinpah: Kurosawa tem. Fellini, Bergman. Mas nenhum norte-americano. Alguns, como [Stanley] Kubrick e [Mike] Nichols, acham que têm, mas não têm. Não é só uma questão do que acontece durante a filmagem e a montagem; é como te tratam depois que o filme já não está mais em suas mãos. Houve um momento em que [John] Huston quase teve controle total, mas perdeu tudo com A glória de um covarde, quando desistiu da montagem do filme. Mas eu o admiro muito mesmo assim.Todos os seus filmes tentam não só contar uma história, mas falar sobre algo importante. Exemplos perfeitos são Relíquia macabra e O tesouro da Sierra Madre. Quisera eu fazer um filme assim tão bom. Comparado a John Huston, eu ainda estou na sétima série – mas estou melhorando. Playboy: Ouvimos falar que Huston não desistiu da montagem de A glória de um covarde, mas que tinha outros compromissos. Peckinpah: Bem, mesmo que ele tivesse fugido, eu não o culparia. Isso não é brincadeira. Há muita coisa em risco. E a floresta está repleta de assassinos, de todos os tamanhos e cores. Eu não sabia disso quando era apenas um roteirista. Eu não aguentava ficar tão sozinho comigo mesmo, e era um trabalho muito Entrevista da Playboy 39


pesado; mas escrever tem uma grande vantagem em relação a dirigir: você só precisa lidar consigo mesmo. Você pode escapar para as suas fantasias e ser um rei. O mundo externo, para um roteirista, se limita a lidar com um agente e talvez uns dois editores, alguns deles gente muito boa. Mas um diretor tem que lidar com um mundo inteiro absolutamente tomado pela mediocridade, por lacaios, parasitas ou mesmo assassinos. O atrito é terrível. Pode te matar. Dizem que podem te matar, mas não te comer. Isso é besteira. Eles já me comiam quando eu andava por aí. Meu trabalho principal é lidar com os talentos ligados a uma história e levá-la à frente. Eu gostaria que o resto fosse assim tão simples. Mas tem toda a merda que vem antes e depois. Playboy: Agora que os grandes estúdios já não controlam mais a indústria, você e outros grandes diretores não têm mais liberdade para fazer os filmes que quiserem? A chamada “Nova Hollywood” não é isso? Peckinpah: Não estou falando de Hollywood, nova ou velha. Estou falando de dinheiro, doutor. Essa é a razão de tudo. Diferentemente de um romancista, eu estou lidando com um produto que custa milhões de dólares. Quando se lida com milhões, você se depara com o lado mais mesquinho das pessoas. Por Deus, um confronto no Velho Oeste não é nada comparado às lutas internas por dinheiro. Para fazer meus filmes, especialmente no início, eu sempre tive que mentir e trapacear e roubar. Era a única maneira que eu tinha para lidar com toda a força que existia por trás do peso do dinheiro. E ainda assim não conseguia ganhar. A MGM via Pistoleiros do entardecer como um filminho de baixo orçamento que eles podiam enfiar na segunda parte das sessões duplas de verão. E se eu tentasse argumentar sobre os principais temas do filme, que eram salvação e solidão, eles me demitiriam na hora. Mesmo assim eles odiaram meu trabalho e me mandaram embora antes que eu pudesse terminar de montar, dublar e colocar a trilha. Juramento de vingança, que tinha um astro, Chuck [Charlton] Heston, e poderia ter virado algo, foi trucidado pelo estúdio e o produtor se revelou um vigarista cujo maior talento era para envenenar poços. Marty Ransohoff me mandou embora de A mesa do diabo depois de apenas quatro dias. E ainda contou para os jornais que eu estava vulgarizando o filme ao colocar uma cena de nu. Havia uma cena num quarto de hotel entre Rip Torn e sua namorada, que fazia uma prostituta melancólica. Bem, nós trabalhamos na cena e ela foi ficando cada vez mais triste. Por acaso, a menina estava nua debaixo de seu casaco. Era apenas um elemento em meio a uma cena bem maior. Mas eu William Murray 40


aprendi uma coisa sobre Marty: ele tinha um ódio tremendo de talentos verdadeiros. Demorou quatro anos para eu voltar a trabalhar. Eu sobrevivi fazendo bicos, pegando dinheiro emprestado e escrevendo um ou outro roteiro. Não conseguia falar com ninguém ao telefone ou passar pelo portão de um estúdio. Estava fora. Eu só me vi de volta ao trabalho quando Danny Melnick, que vira Pistoleiros do entardecer e gostara, me contratou para adaptar e dirigir uma versão de Noon Wine, de [Katherine] Anne Porter, para a televisão. E quando ficaram sabendo que eu tinha sido contratado, Melnick recebeu ligações de gente que não só nunca tinha trabalhado comigo como de alguns que nem ao menos me conheciam. Todos tentando abrir seus olhos em relação a mim. Playboy: Por quê? Peckinpah: Muitos caras nessa indústria têm salários altos demais e se sentem culpados por isso. Para eles, eu sou uma ameaça. Playboy: Ou talvez você apenas não tenha se esforçado o bastante para fazer amigos no mundo do cinema. De qualquer forma, depois de Noon Wine, você se firmou. Isso não deixou as coisas mais fáceis? Peckinpah: Não muito. Meus dois filmes seguintes, Meu ódio será sua herança e A morte não manda recado, foram produzidos, mas foram praticamente aniquilados. A Warner Bros. picotou Meu ódio será sua herança em pedacinhos e você precisa ir à Europa para poder ver uma versão do filme próxima daquela que eu fiz. A morte não manda recado foi lançado em programas duplos, apesar do fato de as pessoas já estarem começando a prestar atenção no meu nome e de Meu ódio será sua herança ter feito muito dinheiro para o estúdio. Antes de começar Sob o domínio do medo, eu já tinha feito cinco filmes e nenhum deles foi visto no país – ao menos nenhum da forma como eu gostaria que tivesse sido. Os filmes que fiz foram ou trucidados ou deixados de lado. O pior que pode acontecer a um romancista é que seu livro saia de catálogo. Mas ele sobrevive em algum lugar, em bibliotecas pelo menos, no seu formato original. Há pessoas por aí, dezenas delas, que eu gostaria de matar, literalmente matar. Sabe, você investe seu tempo, cumpre com suas obrigações e vêm esses caras e te destroem. Eu não vou mais trabalhar para gente que faz isso. Playboy: Então para onde você vai daqui? Peckinpah: Logística ou espiritualmente? Playboy: Ambos. Peckinpah: Logisticamente, tudo o que quero do meu trabalho agora é saúde e felicidade para minha preciosa família, como diz Williams em Algemas Entrevista da Playboy 41


de cristal. Ou seja, vou continuar trabalhando. Eu tenho dois roteiros nas mãos agora, mas eles precisam ser trabalhados. Todos os roteiros precisam. Playboy: Por que você acha que sempre tem que reescrever? Peckinpah: Não importa que um roteiro seja ótimo, você tem que adaptá-lo às necessidades dos atores. Playboy: E as suas necessidade? Todos os seus roteiros, originais ou adaptações de livros, têm um estilo bem distinto, uma linguagem única que os identificam como seus. Peckinpah: O toque de Peckinpah de novo? Bem, algumas pessoas acham meus filmes bem horríveis, incluindo o seu crítico de cinema, que eu gostaria de ver rasgando dinheiro e colhendo cocô com as galinhas. Playboy: Nós daremos seu recado.Você parece bastante vulnerável ao que as pessoas pensam de você. Peckinpah: Eu acho o papel do crítico muito importante para os filmes. Por isso eu fico tão zangado quando os críticos não dão bola para bons filmes e se animam com porcarias. Como fizeram com o filme de [Peter] Bogdanovich, A última sessão de cinema, que era uma chatice sem fim, e ignoraram algo como Corrida sem fim, que eu achei uma obra de arte em potencial. A última sessão de cinema é coisa de artistinha, punheteirozinho, e é um pé no saco. Eu tinha um jantar com Ben Johnson, que está soberbo no filme, mas sabia que Peter estaria lá e eu teria que dar-lhe um soco na porra da boca, então não fui. Eu realmente odiei aquele filme. Playboy: Que filmes você gostou recentemente? Peckinpah: Os meus. Eu faço filmes incríveis. Acho que Dez segundos de perigo, que filmei em 40 dias, pode ser meu melhor filme. Estou realmente encantado com ele. E acho que [Steve] McQueen nunca esteve melhor, e isso é um baita elogio. O filme é sobre três dias na vida de um peão, um homem solitário durante um circuito de rodeios. Playboy: Há outros filmes, além dos seus, sobre quais você queira falar? Peckinpah: Eu não tenho visto muitos. Mas adorei Perseguidor implacável, ainda que tenha me deixado estarrecido. Uma grande porcaria que Don Siegel conseguiu transformar. Brilhante. Odeio sua mensagem, mas no dia em que vi, o público aplaudiu extasiado. Playboy: E O poderoso chefão? Peckinpah: Não vi – mas odeio [Francis Ford] Coppola também. William Murray 42


Playboy: Por quê? Peckinpah: Porque ouvi falar que o filme é ótimo e os únicos filmes que eu quero gostar são os meus. Eu não quero nenhum outro filho da mãe fazendo filmes bons. Playboy: Então você odeia bons diretores, assim como os ruins. Peckinpah: Eu detesto todo cineasta, exceto os inócuos. Eu amo Ross Hunter, ele é meu ídolo. Eu queria ser Ross Hunter. Ele sabe das coisas, baby. Mas você me perguntou lá atrás para onde eu ia daqui, logística e espiritualmente, e eu só respondi a primeira parte da pergunta. Playboy: Pois bem? Peckinpah: Espiritualmente, eu preciso de descanso e repouso, e isso normalmente significa o México. Eu tenho trabalhado sem parar por um bom tempo e estou cansado. Playboy: Por que você sempre volta ao México? Peckinpah: O México sempre significou algo especial para mim. Minha experiência mexicana não tem fim. Minha primeira vez lá foi logo depois da guerra, porque eu tinha ido para a China com a Marinha e queria voltar para lá, mas não podia porque os comunistas tinham tomado o poder. O México era o lugar mais próximo para ir e era a época propícia. Estávamos todos na estrada nessa época, exatamente como [Jack] Kerouac escreveu. Eu amei o México. Fiquei três meses nessa primeira viagem e já voltei várias vezes. Levei Marie lá primeiro. Minha segunda esposa era mexicana. E casei com minha atual esposa, Joie, em Juárez, quando estávamos em El Paso filmando Os implacáveis. Tudo de importante na minha vida esteve ligado ao México de uma maneira ou de outra. É um país que mexe comigo de uma maneira especial. Playboy: Consegue definir como? Peckinpah: Pode apostar que sim. No México é tudo escancarado – as cores, a vida, o calor. Se um mexicano gostar de você, ele vai encostar em você. É direto. É real. Seja o que for, eles não confundem com outra coisa. Aqui nesse país, todo mundo está preocupado em parar a guerra e salvar as florestas e essas coisas todas, mas esses mesmos salvadores saem de casa todo dia de manhã esquecendo de dar um beijo em suas esposas e de molhar as flores. No México, não se preocupam tanto assim em salvar a raça humana ou com as maquinações que estão nos envenenando. No México, não se esquecem de dar um beijo e de molhar as flores. Entrevista da Playboy 43


Playboy: Percebe-se que você não bota muita fé em resoluções sociais ou políticas. Peckinpah: Nenhuma. Sabe do que esse país é feito, doutor? Propaganda. É uma lavagem cerebral. É uma besteirada. É uma indústria de produtos e pessoas, sem fazer distinção entre os dois. Estamos na Idade das Trevas novamente. Veja em quem as pessoas votam – Nixon, Wallace – macacos assassinos saídos das cavernas, vestidos em ternos e falando e andando por aí com a morte nos olhos. E qual a alternativa a esses caras? Humphrey and Muskie? Dois caras sem alma própria, sem ideia do que representam, de quem são, sem uma moral fundamental. Playboy: E George McGovern? Peckinpah: Duvido que ele seja firme o suficiente para o papel. Se for, é melhor que preservem o pobre coitado numa redoma de metal. O tiro que soou em Dallas em 1963 fez um barulho enorme e horrível. Sabe, eu não filmaria nenhuma cena de Os implacáveis em Dallas. Nós estávamos programados para filmar algumas cenas em uma ferrovia de lá. Eu estava dirigindo por ali e parei num sinal vermelho, olhei para cima e vi uma placa. Me toquei que estava naquele cruzamento. Eu disse “Vamos cair fora daqui. Não vamos filmar nada do meu filme nessa cidade”. Quer fazer compras na Neiman-Marcus? Tudo bem. Bela loja, a melhor do mundo. Mas ficar em Dallas para botar algo seu em risco? Não. De qualquer modo, voltando aos políticos, acho que concordo com algo que meu irmão disse há um tempo atrás. “Chegará o momento”, ele disse, “em que você olhará para trás e verá Harry Truman como possivelmente o melhor presidente que esse país já teve”. Até Eisenhower foi melhor que esses caras. Pelo menos ele sabia quem era. Ele não estava morto e a sociedade não estava morta. Playboy: E quanto àqueles que estão lutando para mudar as coisas? Os Estados Unidos parecem cheios de boas causas hoje em dia e boas pessoas comprometidas com elas. Você acredita que há espaço para otimismo, para esperança? Peckinpah: Não. O tédio matará tudo. O país tem um déficit de atenção. Somos orientados pela televisão atualmente. Temos que perceber que o Grande Irmão está aqui. E agora, com a TV a cabo e os videocassetes chegando, ninguém precisará levantar a bunda da cadeira, nem mesmo para ir na esquina ver um filme. É terrível. Uma das melhores coisas de se ir ao cinema ou ao teatro William Murray 44


é o ato em si – sair de casa, comprar os ingressos, dividir essa experiência com um bando de outras pessoas. Oitenta por cento das pessoas que assistem à televisão, o fazem em grupos de três ou menos, e um desses três está meio chapado. A maioria das pessoas chega em casa à noite, depois do trabalho, bebe umas duas doses antes do jantar e se senta em suas salas de estar da morte. A maneira como nossa sociedade está evoluindo, doutor, foi muito bem planejada. Não é um acaso. Estamos todos sendo programados. E eu me ressinto disso, amargamente. Playboy: O que podemos fazer com relação a isso? Peckinpah: Temos que molhar as flores – e trepar bastante. Playboy:Você acha que o amor é a resposta? Peckinpah: Você é algum tipo de maluco? Tudo o que sei sobre o amor é: não mexa com ele. Playboy: Bem, pelo menos você está ganhando dinheiro agora. O que está fazendo com ele? Peckinpah: Eu tenho quatro filhos e muita bagagem para carregar. Eu não tenho muitos bens e nem quero. Ainda tenho um terreno de frente para o mar em Malibu e um pequeno rancho de gado nos arredores de Ely, Nevada, mas estou tentando me desfazer dos dois. Estou vendendo tudo o que posso. Quero me livrar dessas coisas reconfortantes. Playboy: Qual o problema com algumas das amenidades mais prazerosas que o sucesso pode trazer? Por que não viver um pouco? Peckinpah: Eu vivo o bastante. Gosto de uma boa bebida, uma boa comida, roupas confortáveis e mulheres extravagantes. Mas se eu for sugado por essa sociedade de consumo, então não poderei fazer os filmes que quero sobre ela. Eu sou um diabo de um nômade.Vivo com uma mala e minha casa é onde quer que eu esteja fazendo um filme. Playboy: Se o dinheiro significa mesmo tão pouco e você não se importa em ter posses, então o que quer de fato de sua carreira? É só uma ego trip? Peckinpah:Vá se foder, camarada. Ok, ego tem muito a ver com isso, claro. Mas não se trata disso e você sabe. Playboy: Se é um jogo, então é um jogo do quê? Peckinpah: Deixe-me lhe explicar. Eu cheguei longe e paguei um preço. Me custou bastante – talvez minha sanidade e pelo menos dois casamentos – e não sei se o jogo vale a pena. Às vezes eu tenho vontade de mandar para o inferno e cair fora, mas não posso fazer isso. Eu fico ou então sei que não sou nada. Entrevista da Playboy 45


Então olho à minha volta e percebo que não estou completamente sozinho. Há talvez uns 17 de nós no mundo. E somos uma família. Uma família composta de caras que querem fazer seu número e ir em frente. É a única família que existe. Meu pai disse tudo um dia. Ele me deu a ótima fala de Steve Judd em Pistoleiros do entardecer: “Tudo o que quero é entrar em minha casa legitimado”.

Entrevista publicada originalmente na revista, em agosto de 1972.

William Murray 46


Aurora e crepúsculo Gerard Camy

O homem que eu devia odiar e O casal Osterman são respectivamente a primeira e a última obra de uma carreira cinematográfica tumultuada, recheada de obras-primas (Pistoleiros do entardecer, Sob o domínio do medo, Meu ódio será sua herança, Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia, Cruz de Ferro) e pontuada por homéricas batalhas com produtores e estúdios (Juramento de vingança, Pat Garrett & Billy the Kid, Comboio). Sam Peckinpah, sempre à margem e rebelde com relação à ideologia hollywoodiana, ainda é sem dúvida um dos diretores mais importantes dos Estados Unidos. Ao longo dos 14 filmes que dirigiu, mostrou uma reflexão de grande profundidade, tanto em níveis temáticos quanto estéticos. Com seus seis faroestes, ele toma partido ativamente em um questionamento radical do gênero e de sua mitologia. Com sete de seus outros filmes, cuja ação se passa entre 1970 e 1983, lança um olhar feroz e desiludido sobre os Estados Unidos de hoje. Por fim, com Cruz de Ferro, explora os aspectos da violência em toda a sua dimensão social ao mergulhar no inferno da Segunda Guerra Mundial. A obra de Peckinpah provém de uma sensibilidade na qual visão e paixão, romantismo e ironia coexistem. Aurora e crepúsculo 47


O mundo que retrata ecoa suas próprias contradições. O Bem emula o Mal e a ambiguidade governa. Ao mesmo tempo em que denuncia a competição individual que constitui o capitalismo, mantém intacta sua fé no homem. Quando desmascara os disparates do sonho americano, ele costuma parar a fim de saciar a ilusão romântica de uma aventura final (e normalmente desesperada). Ao analisar os dois filmes que emolduram sua obra, meu objetivo não é medir a distância entre eles, mas, com relação ao primeiro, apontar os sinais iniciais de suas reflexões futuras que vão além de suspeições, mesmo que Peckinpah tenha brigado com os estúdios que não lhe permitiram ter o corte final. Com relação ao segundo, tento entender os elementos que compõem essa sua última realização – embora não seja seu melhor filme (pois não é) – à medida que o filme revela sua visão de cinema, da vida e do mundo à luz de suas 13 experiências anteriores.

O homem que eu devia odiar: Aurora Por volta de 1870, um ex-oficial do Exército da União, apelidado de Yellowleg (em razão de uma fita amarela costurada em suas calças do exército) salva um homem prestes a ser enforcado. Esse homem é Turk, que havia tentado escalpelar Yellowleg quando este estava caído, ferido em um campo de batalha durante a Guerra Civil. Yellowleg se junta a Turk e a seu amigo Billy Keplinger em um assalto ao banco da cidade de Gila, mas também – e acima de tudo – para saciar sua sede de vingança contra Turk. No entanto, uma gangue de fora da lei rouba o banco antes que Yellowleg e seus companheiros cheguem. Os ladrões, ao deixar o banco, enchem o trio de balas. Durante o tiroteio, Yellowleg mata acidentalmente Mead, o jovem filho de Kit Tilden, uma viúva, dona de um saloon. Em choque, Kit planeja deixar a cidade em direção a Siringo a fim de enterrar seu filho na mesma cova do pai. Tomado pelo remorso, Yellowleg a acompanha, apesar de suas objeções, e força seus dois companheiros a irem junto. Uma noite, Billy tenta estuprar Kit.Yellowleg se interpõe e o manda ir embora. Turk o segue e os dois voltam para roubar o banco. Yellowleg e Kit seguem enfrentando os perigos de uma longa viagem através de território índio e chegam, exaustos, à cidade fantasma de Siringo. Billy e Turk, depois de um roubo bem-sucedido, ressurgem brutalmente. Os três homens se enfrentam em um duelo. Billy atira em Turk, que então o mata pelas costas. Yellowleg insiste para que Turk o escalpele, mas Kit o detém. Gerard Camy 48


A cavalaria de Gila chega, atrás dos dois assaltantes. Turk é preso, em delírio, Mead é enterrado e Kit e Yellowleg vão embora sozinhos, tendo encontrado o caminho do amor em meio a essa aventura. A pedido de Brian Keith (o ator que interpretava Dave Blassingame na série de TV The Westerner e que faria o papel de Yellowleg), Peckinpah foi contradado em 1961 pela Pathe America e pela Carousel Productions para estrear na direção de longas depois de uma extensa carreira na televisão. Ele aceitou, esperando poder melhorar o roteiro medíocre que A. S. Fleishman havia escrito. Infelizmente, a produção não permitiu que Peckinpah mudasse nada. Ele então deixou claro que não colocaria nada de pessoal neste seu primeiro projeto. Ainda assim, O homem que eu devia odiar está, uma sequência atrás da outra, repleto de milhares de ideias peckinpahnianas. Durante os 21 dias de filmagem no estúdio Old Tucson, no Arizona, e em seus arredores, as terríveis condições climáticas não facilitaram seu trabalho; e o produtor Charles B. FitzSimons, irmão de Maureen O’Hara (que fazia Kit no filme), seguia tentando impor seu ponto de vista ao filme. Mas FitzSimons não tinha muitas ideias e O homem que eu devia odiar foi sua primeira e última produção. Peckinpah remendou discretamente o roteiro em frangalhos com alguns planos inovadores. No entanto, insatisfeito, deixou a produção do filme depois que FitzSimons fez mudanças apressadas e pobres no primeiro corte. Em uma entrevista a Ernest Callenbach, na Film Quarterly, em 1963, Peckinpah contou que, ao final do filme, Brian Keith deveria matar Billy, interpretado por Steve Cochran. O filme foi cortado e reeditado para que o espectador viesse a entender que quem matou Billy foi Turk, papel de Chill Wills. A única coisa que não foi mudada foi a música original de Marlin Skiles. Não há dúvidas de que o filme, concebido como uma jornada obsessiva sem fim por parte de Kit e Yellowleg, ficou totalmente desequilibrado pelo absurdo corte final do produtor. Os personagens do índio (a selvageria e a violência) e de Billy (“o mulherengo”) espelham aquilo que Yellowleg e Kit querem esquecer, e sua satisfação só poderá sem alcançada através do desaparecimento dessas duas imagens de vingança e desprezo. A fim de permitir que assumissem uma identidade real, cada um deles, segundo Peckinpah, teria que destruir a imagem do outro. Mas enquanto Kit coloca o fantasma de Yellowleg para descansar ao destruir o índio apache solitário, a lógica que pedia que Yellowleg matasse Billy, em uma significativa simetria, não é respeitada. Aurora e crepúsculo 49


No entanto, em outros filmes de Peckinpah, a lógica da obsessão ou da vingança também não é respeitada: em Juramento de vingança, o índio Charriba, que assombra os sonhos do major Dundee (papel de Charlton Heston), não será morto por ele; em Meu ódio será sua herança, Deke (Robert Ryan) nunca chega a prender Pike (William Holden), cujo corpo é levado por caçadores de recompensa antes que Deke retorne, ao fim do filme; e finalmente, em Elite de assassinos, Hansen (Robert Duvall) é morto por Miller (Bo Hopkins), impedindo assim o duelo entre Hansen e Locken (James Caan). Esses deslizes na lógica prevista não permitem que os heróis alcancem o objetivo final de suas buscas (matar) e, ao contrário, os conduz por caminhos que os levam à verdadeira paz de espírito:Yellowleg vai encontrar o amor de Kit; o major Dundee, enquanto testemunha o sacrifício de Tyreen, o sulista (Richard Harris), vai entender a importância dos laços que unem um homem à sua nação; Deke vai embora com os revolucionários mexicanos de uma maneira parecida com a de Locken indo embora de barco, sozinho, em direção ao mar aberto. Para as filmagens de O homem que eu devia odiar, Peckinpah teve que usar película Pathe Color porque a Pathe Company era produtora do filme. Essa película era boa para filmagens internas, mas as externas são de péssima qualidade, apesar dos esforços do diretor de fotografi a William Clothier, um especialista em faroestes (ele trabalhou algumas vezes com John Ford). As cenas à noite são particularmente escuras. E, por fim, as cores do filme foram processadas pelo pior laboratório de Los Angeles. Apesar de todas essas dificuldades, Peckinpah não se furtou a fazer um filme original. Ele conseguiu criar personagens dotados de uma profundidade psicológica real. O roteiro é o único elemento que se prende às regras do gênero. No entanto, os críticos norte-americanos não gostaram de O homem que eu devia odiar. Mas, em razão de sua dinâmica (uma viagem ao passado) e de seu tema (uma batalha interna contra as tentações da selvageria), o filme já se encaixava no corpo da obra do diretor. Isso ficaria óbvio para os espectadores franceses, que descobriram o filme em julho de 1977 sob o título Novo México, depois de já terem tido a chance de ver todos os filmes de Peckinpah desde Pistoleiros do entardecer, de 1962. Os críticos franceses consideraram à época que o filme era muito mais do que meramente um “veículo” para a estrela Maureen O’Hara, e que permitia, em retrospecto, um aperfeiçoamento da compreensão da obra subestimada de um dos diretores mais importantes dos Estados Unidos. “Sem ser um Gerard Camy 50


faroeste intelectual (...) O homem que eu devia odiar tem todos os atributos do faroeste pós-moderno, ao mesmo tempo em que desmascara a conquista do Oeste, assim como seu alter ego, Um de nós morrerá, de Arthur Penn. [Peckinpah dirige o filme] tanto com ironia quanto com ferocidade.”1 Partindo de arquétipos da história do faroeste (vingança, jornada física e moral, locações-chave), Sam Peckinpah conseguiu dar a este filme as dimensões de uma tragédia desesperada; no entanto, o filme foi um fracasso comercial tão grande que a Warner Brothers o relançou sob um título diferente (Trigger Happy, 1965) – aliás, também com pouco sucesso. Essa primeira e dolorosa experiência cinematográfica reforçaria em Peckinpah sua doentia aversão a produtores. Em pouco tempo, nenhum deles se encantaria com seus belos olhos. Se O homem que eu devia odiar não tinha as marcas registradas que chocariam espectadores em Meu ódio será sua herança (a catarse da violência, câmera lenta nos planos de tiroteio, montagem paralela acompanhada de ensurdecedora trilha de efeitos sonoros), antecipava seus trabalhos futuros ao apresentar um faroeste que abandonava seus mitos e deixava de lado, sem dúvida, sua grandiosidade. Para assinalar a perda da inocência e a decadência do gênero, o único personagem morto pelo herói é uma criança, vítima de uma bala perdida. Neste seu primeiro faroeste, Peckinpah se encontra numa encruzilhada de influências, em particular John Ford (a mise en scène clássica) e Anthony Mann (as paisagens tortuosas que se equivalem ao estado de espírito do protagonista). O filme conta com incríveis elementos barrocos, beirando o surrealismo, que levam o faroeste a novos limites, à medida que Peckinpah apresenta personagens repletos de uma ambiguidade perturbadora. No saloon, no início do filme, Yellowleg e Billy salvam Turk, que está pendurado por uma corda no pescoço, empoleirado num barril depois de ter trapaceado em um jogo de pôquer. Enquanto os três fogem, Billy para por um momento em frente a um espelho que reflete sua imagem. Ele atira, quebrando o espelho e destruindo a imagem. Esse é o plano fundador de O homem que eu devia odiar. O vilão revela seus problemas de consciência e prefere negá-los de uma maneira cínica e destrutiva. Doze anos depois, em um contexto mais

Belmans, "Image et Son", 45.

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trágico, Pat Garrett (James Coburn), que acabara de matar Billy (Kris Kristofferson) ao final de Pat Garret & Billy the Kid, reencena exatamente o mesmo ato. Ele não suporta olhar para sua própria imagem depois do crime que acabara de cometer. E ali, o cinismo dá lugar ao desgosto. Yellowleg inicia uma longa lista de heróis peckinpahnianos, patéticos desconhecidos em um mundo que os rejeita, tentando desesperadamente encontrar uma razão para viver. Eles são mental e muitas vezes fisicamente debilitados:Yellowleg e Pike Bishop são aleijados por lesões antigas. Amos Dundee, Mike Locken e Rolf Steiner (James Coburn em Cruz de Ferro) serão mais ou menos feridos seriamente. Enquanto Steve Judd (Joel McCrea em Pistoleiros do entardecer) precisa usar óculos para ler seu contrato. Yellowleg não consegue levantar o braço direito muito bem. Essa limitação, examinada por um médico no início do filme, será a causa da morte do jovem Mead. Outra sequência do filme também é bastante reveladora. Enquanto Yellowleg conversa com Kit, Billy, que está atrás dele, atira;Yellowleg se vira e saca sua arma, mas seu machucado faz com que deixe cair no chão o seu revólver. Billy sorri. Esta cena à la Mann traz à mente o que acontece ao ferido James Stewart em Um certo capitão Lockhart. Mas também faz lembrar Bishop caindo de seu cavalo na frente de seus amigos irônicos em Meu ódio será sua herança. O close-up do revólver de Yellowleg na poeira evoca então o close-up da gaita caída na rua depois da morte de Mead. A arma, prova da inabilidade de Yellowleg, faz paralelo com a gaita, símbolo de uma vida assassinada. Yellowleg é também um homem confrontado com um dilema moral grave cuja resolução vai determinar o resto de sua vida. Uma companheira ocasional (Kit) lhe oferece uma imagem frequentemente negativa de seu estado de espírito. Alguns outros personagens (Turk e Billy) são apresentados como reflexos perversos de seu próprio eu. A sede de Yellowleg por vingança, alimentada pela cicatriz demasiadamente real que marca sua testa e que ele mantém escondida noite e dia sob a aba do chapéu, o mantém vivo. Ele demorou cinco anos para encontrar o homem que tentara escalpelá-lo. Ao encontrá-lo,Yellowleg de repente percebe que perdeu o objetivo que o fazia continuar. Peckinpah também apresenta um dos temas que passará a permear sua obra: a história de pessoas obrigadas a trabalhar, agir ou viver juntas, apesar da antipatia mútua que é latente, mas às vezes completamente evidente. O pequeno grupo (três homens, uma mulher) de O homem que eu devia odiar e Pistoleiros Gerard Camy 52


do entardecer viria a se tornar um exército completo em Juramento de vingança e Cruz de Ferro, um bando de fora da lei em Meu ódio será sua herança e Pat Garrett & Billy the Kid, um sindicato de caminhoneiros irados em Comboio. Yellowleg, o ex-soldado do Exército da União; Kit, a mulher desamparada; e Billy e Turk, ex-rebeldes do sul e bandidos nômades, formam este grupo, típico dos filmes de Peckinpah. E é em torno desta estrutura entrelaçada de relações que se constrói toda a sua obra. As situações mudam, e não os “heróis”. Então seu discurso profundamente pessoal, reiterado ao extremo e cruelmente patético, se torna emocionante e surpreendente. Quanto a Kit Tilden, ela encarna precisamente um tipo de mulher que nunca mais encontraremos nos próximos filmes de Peckinpah de forma tão direta. Kit está sempre em pé de igualdade com seus companheiros, uma mulher forte e bonita que marca seu território em um universo de homens, repleto de violência. Independente, ela toca sua vida sem a ajuda de ninguém. Ela consegue usar um rifle, e, determinada, sabe o que quer. Desde a primeira cena, no saloon transformado em igreja pela duração de um serviço religioso e, em seguida, em um tribunal de justiça para um julgamento, ela, de maneira estoica, suporta as ofensas de um grupo de intolerantes que sussurra pelas suas costas. Quando Billy, esperando o bar reabrir, tenta beijá-la, ela se defende com vigor, ganhando assim a admiração do ministro. Maureen O’Hara, soberba atriz fordiana, ecoa Dallas (Claire Trevor), de No tempo das diligências, a prostituta que é expulsa da pequena cidade de Tonto por fanáticos e forçada a ir embora na diligência. Esta bela caracterização de uma mulher que nunca mudará de ideia sob qualquer tipo de pressão pode, de alguma forma, lembrar o espectador das enfermeiras de Juramento de vingança e Cruz de Ferro (ambas interpretadas por Senta Berger) ou mesmo mais precisamente de Carol McCoy (Ali MacGraw), em Os implacáveis, embora nenhuma delas se iguale à plenitude que emana da beleza e da determinação de Kit. Ela se recusa a ter um caso com Yellowleg, e então toma a iniciativa de fazer acontecer um relacionamento, mesmo que a morte de seu filho seja esquecida. Um momento soberbo consolida, por um instante, a união de dois destinos desesperados no deserto, sob o olhar do índio que os persegue e não os mata, mas coloca sobre eles uma pressão insuportável: ambos cedem a um impulso de afeição, bem como de desespero. Um olhar discreto é dado para fora do quadro, em direção ao caixão colocado sobre o cavalete improvisado. Kit volta à realidade e se afasta de Yellowleg. Mais tarde, durante outro acampamento, Aurora e crepúsculo 53


ele adormece. Ela se aproxima dele para tirar seu chapéu e ver sua cicatriz, por pura curiosidade. Ele segura a mão dela. “Há algo em mim que você não entende”, ele diz. “Você matou a única pessoa que eu amei neste mundo. Isso é tudo que eu sei sobre você”, ela responde sem piedade, se levantando e indo embora. Ela esperava aprender algo novo sobre ele e quebrar sua concha. No dia seguinte, seu segundo cavalo é morto pelo índio.Yellowleg e Kit carregam o caixão e atravessam longos trechos do deserto, cobertos de cactos e cheio de fendas e cavernas. Peckinpah constrói uma rota completa, um caminho para a redenção, como o de Cristo (uma maneira bastante manniana), que lembra a longa caminhada de Bennie e Elita em Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia em sua jornada para trazer de volta a cabeça de um cadáver em troca de uma recompensa. Bennie e Elita vão cada vez mais fundo em território mexicano; a paisagem se torna cada vez mais seca, monocromática, mórbida, lembrando um pesadelo. Quanto mais fundo mergulham neste cenário, mais se aproximam da morte, ao contrário de Kit Tilden e Yellowleg, que, caminhando com força, vão criar brevemente algo belo (como Cable e Hildy em A morte não manda recado), mesmo que seus esforços sejam iminentemente perigosos. Deixando Kit em uma caverna, Yellowleg escala uma encosta rochosa perseguindo o índio. Uma montagem paralela sutil nos faz sentir a presença deste último dentro da própria caverna. Kit olha para cima. A figura fantasmagórica e assustadora – que parece saída do filme de Hugo Fregonese, Flechas da vingança (1953) – olha para ela. Ela atira. A morte do índio.Yellowleg a encontra, sentada ao lado do corpo prostrado do índio, com o rifle em suas mãos, assim como Charles (Robert Taylor), que morre congelado em A última caçada (1956), de Richard Brooks. Ele remove com cuidado o rifle das mãos dela. Mais tarde, quando Yellowleg está prestes a escalpelar Turk, a voz de Kit para a sua ação: “Não!” “Não faça isso” pode ser ouvido uma segunda vez, como um contraponto perfeito para a jovem noiva de Alfredo Garcia, Elita, que, mostrando seu pai para Bennie, grita “Mate-o!”, começando assim o derramamento de sangue. A obra de Peckinpah favorece temas recorrentes. Neste mundo cheio de homens rudes e brutais, um tema em particular diz respeito às mulheres e é frequentemente usado: o estupro. Durante sua viagem, em uma cena longa de acampamento, Billy se aproveita da solidão de Kit e tenta estuprá-la. Ela não é nada mais que um objeto sexual para ele, comparável a Elsa, a jovem de Gerard Camy 54


Pistoleiros do entardecer, abusada pelos irmãos Hammond; Amy Sumner, estuprada por seu ex-namorado e seu amigo em Sob o domínio do medo; e Elita, estuprada por Paco, o motoqueiro, em Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia. Quanto à briga entre Billy e Yellowleg, que se segue à sua intervenção para impedir o estupro, ela traz de volta a imagem do acampamento noturno em Pistoleiros do entardecer, quando Westrum tenta roubar o dinheiro de Judd. Há uma briga aqui novamente, que termina com um “Vamos, levante-se” de Judd para Westrum, a mesma fala que Yellowleg diz para Billy enquanto o persegue. Outro tema recorrente envolve crianças: Mead, 10 anos de idade, em um plano próximo e de baixo, céu azul ao fundo, toca uma gaita olhando para baixo. Corta. A rua principal de Gila, uma pequena cidade no Oeste selvagem. Crianças brincam, imitando uma luta de espadas com pedaços de pau. Um moleque olha para cima e grita: “Ei, porco! Veja isto, porco!” As outras crianças começam a cantar em coro, olhando na mesma direção: “Ei, porco! Veja isto, porco!” A câmera faz uma panorâmica vertical para se focar em Mead com a gaita. Ele continua soprando seu instrumento enquanto olha para eles. Ele está em pé sobre um telhado. Plano próximo e de baixo, assim como o primeiro. Mead para de tocar sob o efeito das zombarias dos meninos que estão fora do quadro. Ele tira o instrumento da boca e se vira para a esquerda. Corta. Plano aberto da casa. Mead, imóvel – plano baixo – observa o trio subindo a rua, cruzando a tela (da mesma forma que, ao final do filme, o índio, em silhueta contra o topo da montanha, vai olhar Yellowleg e Kit). Um plano acompanha os cavaleiros. Corta. Plano médio frontal dos três homens. Eles param em frente a uma loja. Mead se eleva sobre eles por detrás do telhado. Turk fica para trás para colocar ferradura em seu cavalo. Os outros dois atravessam a rua e deixam o quadro. O garoto caminha de telhado em telhado, como se a segui-los. Yellowleg desaparece também. A câmera permanece em Turk, que desmonta de seu cavalo. Mead, que parece observar o mundo com olhos esbugalhados de surpresa, é como Matthew, o filho do diretor, que se senta no meio da chacina em Meu ódio será sua herança, seus braços laçados em torno dos ombros de uma jovem garota; como o irmão mais velho das crianças raptadas por índios em Juramento de vingança; como as crianças dizimadas por tiros no início de Meu ódio será sua herança (um tiro censurado pela MPAA [Motion Picture Association of America], porém, e exumado pela diretora Kathryn Bigelow); ou, em primeiro lugar, como o adolescente russo, prisioneiro de Steiner, que também toca gaita e que Aurora e crepúsculo 55


vai morrer tragado pelo turbilhão da guerra (Cruz de Ferro). Peckinpah inclui crianças várias vezes no início de seus filmes, às vezes até mesmo nos créditos, como um contraponto à apresentação dos personagens principais. Assim, em O homem que eu devia odiar, eles brincam de guerra no meio da rua e tiram sarro de Mead, pouco antes de Yellowleg e seus dois capangas chegarem. Em Pistoleiros do entardecer, eles são repreendidos por um policial: “Vamos lá, rapazes, saiam da rua”. Em Meu ódio será sua herança, eles queimam insetos, uma metáfora para o futuro desses homens perdidos da horda que passa vagarosamente por eles. Em Sob o domínio do medo, ninguém os impede de brincar na frente de um cemitério, anunciando assim o massacre que vai acontecer. Quanto à criança que irá nascer, que ainda está no ventre de sua mãe enquanto ela repousa às margens de um lago nos créditos de abertura Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia, ela é a única razão para a carnificina sem sentido que se seguirá. As paisagens em que Peckinpah encena conflitos são muitas vezes estranhas, porque sua visão frenética e febril das relações humanas o incita a escolher locações desoladas cujo clima tem uma ambientação dominadora e obsessiva. Por exemplo, a cidade fantasma de O homem que eu devia odiar, um monte de escombros, paredes em ruínas e lápides destroçadas, e, acima de tudo, a presença opressiva do deserto do Oeste, onipresente em todos os seus faroestes, permite ao autor estabelecer uma permanente tensão moral entre os personagens. Carrosséis incessantes de rochas, montanhas arborizadas, caminhos sinuosos, vastas extensões de água, neve e areia, pedras e arbustos ressecados, imensos planaltos áridos, árvores retorcidas e torturadas, areias escaldantes e um sol implacável constituem um comentário silencioso sobre a dureza e a dificuldade da viagem do herói e sobre a aspereza de sua tarefa. Estes desertos serão muitas vezes dotados por Peckinpah com criaturas emblemáticas que serão ou as ferramentas de um destino fatal, como a cascavel que morde o cavalo antes de ser morta por Yellowleg, ou os elementos de uma metáfora, como a iguana em A morte não manda recado, um animal arcaico do passado, fadado à danação, como a maioria de seus protagonistas, incapazes de lidar com o mundo moderno. E à espreita na escuridão, em total conformidade com a paisagem: o índio. Em O homem que eu devia odiar, bem como em Juramento de vingança, ele é representado como arcaico, fantasmagórico e ameaçador, sempre associado ao deserto. Frequentemente prenunciado por uma flecha que, como um mau presságio, é atirada a um ponto próximo a uma vítima atônita, o índio – que mal se vê, com sua magra Gerard Camy 56


face pintada – se inclina nas sombras, pronto para saltar, armar uma armadilha ou destruir. Ele incorpora as forças do mal, mas é também uma espécie de projeção do sentimento de culpa dos Estados Unidos. O comportamento violento do homem “civilizado” é comparável à violência dos nativos. O ataque a uma diligência em O homem que eu devia odiar é reduzido a uma palhaçada de índios bêbados, imitando o homem branco, desfilando com cartolas e ternos e interpretando tanto o papel do agressor quanto o do agredido. Mas onde estão os passageiros de verdade? De certa forma, os créditos de Juramento de vingança nos informam. Ao lado de um rancho em chamas, corpos massacrados estão caídos, queimados por um grupo de índios, estranhos irmãos em armas dos apaches de O homem que eu devia odiar. Desde este primeiro filme, Peckinpah imprime um ritmo muito pessoal, baseado em uma calculada lentidão, dando tempo para os personagens se estabelecerem através dos diálogos, dos olhares e dos silêncios. E, de repente, uma explosão de violência (a visão da diligência à beira de um penhasco, do índio na caverna, de Billy agarrando Kit para beijá-la ou para estuprá-la) ou uma ação inesperada (um ataque noturno em um acampamento índio por um solitário Yellowleg enquanto Kit toma tranquilamente um banho da meia-noite) desestabilizam essa viagem tensa e perturba acampamentos opressivos. E finalmente, temos um incrível duelo final que mostra Yellowleg, tão envolvido em sua vingança, passando direto por Billy, enquanto este cai lentamente no chão depois de ser morto por Turk. Yellowleg corre até a igreja onde Turk encontrou abrigo. Esta sequência ecoa o tiroteio final de Dragões da violência (1957), filme de Samuel Fuller, durante o qual o vencedor ignora sua vítima para se juntar à sua amante ferida. Mesmo que Sam Peckinpah lamentasse profundamente o fato de não poder reescrever o roteiro do filme, é difícil não reconhecer alguns temas familiares ao diretor no enredo e na ambientação de O homem que eu devia odiar: sua inventividade barroca no tratamento de uma linha narrativa clássica e seu olhar desiludido de personagens em conflito que, confrontados com circunstâncias caóticas, criam grupos não naturais, prontos a se destruírem uns aos outros. Já em Pistoleiros do entardecer, seu segundo filme, Peckinpah configura em definitivo os elementos do seu ofício que dialogam tão bem com a visão apocalíptica de Gustave Flaubert em Memórias de um louco: “Pois tudo terá um fim, e a terra será desgastada por um pisoteio constante (...) Em seguida, haverá uma Aurora e crepúsculo 57


enorme gargalhada de desespero quando os homens virem este vazio, quando tiverem que deixar a vida pela morte (...) E tudo irá entrar em colapso e desaparecer em direção ao nada (...) Alguns poucos homens ainda perambulando por regiões áridas irão gritar uns pelos outros; eles irão se aproximar uns dos outros, e em seguida recuar em horror, apavorados consigo mesmos, e eles morrerão.”2

O casal Osterman: Crepúsculo Um assassinato “ao vivo” na tela da televisão; um executivo da CIA, Lawrence Fassett, marido da mulher que foi assassinada minutos antes, propõe a seu patrão, Maxwell Danforth, um plano para desmantelar uma rede de espionagem da KGB, o Círculo Omega. A ideia é “trazer para o seu lado” três espiões, com a ajuda de um famoso jornalista à frente de um programa de entrevistas na TV, John Tanner, com quem os espiões costumam passar um fim de semana juntos todo ano. Este último, habilmente manipulado, é convencido de que os três homens são culpados e concorda em ajudar a desmascará-los (com Danforth no ar) durante um de seus próximos programas. Então Fassett enche a casa de Tanner com câmeras e microfones escondidos para espionar os suspeitos – Bernard Osterman, Joseph Cardone e Richard Tremayne – em todas as suas ações. Os três logo começam a suspeitar e a tensão cresce rapidamente entre eles e Tanner. Mas os “agentes soviéticos” são, na verdade, apenas fraudadores do imposto de renda. Tanner começa a ter dúvidas e corre para a sala de controle de Fassett, pedindo que cancele toda a operação. Fassett recusa e mata Cardone e Tremayne, que estavam tentando fugir com suas esposas, e coloca seus agentes atrás de Osterman e Tanner. Uma caçada mortal se segue na mansão. Fassett sequestra a esposa e o filho do jornalista para conseguir controlá-lo. Na verdade, Fassett está pondo em prática um plano maquiavélico para se vingar de Danforth, que havia “autorizado” o assassinato de sua esposa por ela ser uma agente dupla. Ele exige aparecer no programa quando Tanner entrevistar o chefe da CIA. Graças à ajuda de Osterman, que mistura a entrevista ao vivo de Danforth com algumas perguntas gravadas,Tanner consegue convencer Fassett (isolado em seu esconderijo) a libertar sua esposa e seu filho. Mas a cadeira de Tanner permanece vazia na tela da TV...

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Flaubert, Memórias de um louco, 19-20. Gerard Camy 58


Em 1978, a postura errática de Peckinpah durante as filmagens de Comboio arruinou completamente sua credibilidade como diretor. Os estúdios não queriam ter mais nada a ver com ele, embora já tivessem feito vista grossa muitas vezes para suas excentricidades em nome da eficiência e rentabilidade, mas também de sua genialidade. Mas já era o suficiente, e os quatro anos seguintes não trouxeram nada além de projetos abortados e esperanças despedaçadas para o grande Sam. Se a lenda que se construiu em torno dele e de sua obra ainda estava viva e trazia admiração de atores e críticos, ela não significava nada além de memórias odiosas para os produtores de Hollywood. Esta queda sem fim começou em 15 de maio de 1979, com um ataque cardíaco que exigiu a implantação de um marca-passo, muitas semanas de descanso e um período de recuperação muito estressante. No início de 1982, vivendo entre o México e seu trailer em Paradise Cove, em Malibu, ele sentiu a necessidade de entrar em contato com os estúdios novamente. Peter Davis e William Panzer, dois jovens produtores que haviam até então produzido apenas filmes de baixíssimo orçamento, tinham adquirido os direitos de um romance escrito pelo best-seller Robert L. Ludlum: The Osterman Weekend. O roteiro já havia sido reescrito várias vezes. A versão mais recente, pelo escritor inglês Alan Sharp, que havia roteirizado previamente A vingança de Ulzana (1972), dirigido por Robert Aldrich. Davis e Panzer estavam à procura de um diretor talentoso, capaz de encenar esta história complexa. Um iniciante não servia. Ambos conheciam Sam Peckinpah e apreciavam seu trabalho, mas os financiadores não se entusiasmavam quando ouviam seu nome. Martin Baum, agente artístico de Peckinpah, fez o possível para convencer a todos a confiarem em sua recuperação. Finalmente, Davis e Panzer assumiram o risco e o contrataram. Ele tomou conta dos escritórios de produção e começou a trabalhar no roteiro e no elenco. Teve liberdade para escolher seus atores, mas não poderia mudar o roteiro de forma alguma. Os contratos de Rutger Hauer (que acabara de terminar as filmagens de Blade Runner – O caçador de androides, de Ridley Scott) e Burt Lancaster foram rapidamente assinados; os dois atores trouxeram ímpeto ao projeto. John Hurt, Dennis Hopper, Meg Foster, Chris Sarandon e Craig T. Nelson completaram um elenco no qual os financiadores poderiam confiar. A pedido de Sam, o filho de Tanner seria interpretado por Christopher Starr, filho de Ronald Starr (Heck em Pistoleiros do entardecer) e Meg Foster. As filmagens iam começar. Aurora e crepúsculo 59


Sam tentou juntar sua antiga equipe e escolheu, pela quarta vez, John Coquillon como diretor de fotografia. Mas os produtores estavam atentos. Eles queriam ter controle em alguns postos-chave, como o montador, e depois que o diretor sugeriu Lou Lombardo, eles acabaram contratando dois montadores que conheciam muito bem: Edward Abroms e David Rawlins. No entanto, Peckinpah seria ajudado por sua filha Kristen e seu amigo de longa data Walter Kelley. Ambos teriam pequenos papéis no filme e poderiam ficar e cuidar dele no set. Na verdade, ele estava constantemente doente e exaurido e havia machucado seriamente sua mão, o que fez necessária a implantação de um acesso venoso para que ele recebesse antibiótico, além do uso de uma máscara de oxigênio durante a maior parte da filmagem. Como seus vícios em drogas e álcool não estavam resolvidos, trabalhar com ele não era tranquilo. As filmagens tiveram início no outono de 1982, na mansão de Robert Taylor em Mandeville Canyon, próximo a Bervely Hills. Durante os tempos difíceis que tinha acabado de passar, Sam se questionou quanto a seu futuro como diretor, e a recepção calorosa da equipe no set o animou, mesmo sendo escassa a presença de membros de sua equipe original. Os técnicos que já haviam trabalhado com ele lhe desejaram sucesso em seu retorno, e os outros que não o conheciam demonstraram muito respeito. Quanto aos atores, estavam orgulhosos em atuar em um filme dirigido por uma lenda viva. Sam ainda era Peckinpah. Se parecia menos pronto para lutar, menos intransigente, isso não iria durar. Alguns takes adiados em razão do mau tempo, um roteiro complexo demais para afirmar diferenças, algumas observações durante a produção acerca de seu trabalho – a pressão estava aumentando. E Peckinpah, depois de alguns drinques de saquê (sua nova bebida), encontrou forças para criar os conflitos que tanto apreciava. Embora enfraquecido, ele não se curvaria frente a uma produção que desprezava. As filmagens terminaram no final de 1982, sem qualquer tragédia perceptível. Por um lado, Sam finalmente escutou seu agente, Martin Baum, e conseguiu terminar o filme dentro do cronograma e sem quase exceder o orçamento, provando assim sua capacidade. Por outro, Davis e Panzer deixaram as coisas se desenrolarem, como fez Charles B. FitzSimons em O homem que eu devia odiar, esperando por terrenos mais favoráveis na pós-produção. E, de fato, surgiram problemas na sala de montagem. Peckinpah queria passar uma mensagem perturbadora, recusando-se a se alinhar com as produções melosas que estavam invadindo as telas norte-americanas nos anos 1980. Gerard Camy 60


Este thriller de espionagem deveria caminhar gradualmente em direção à história de uma vingança mortal e obsessiva (já presente em O homem que eu devia odiar) e, acima de tudo, servir de pretexto para captar variações sobre o tema de imagens e pessoas sendo manipuladas. Para chegar a esse efeito, os espectadores deveriam ser mantidos nesse estado de confusão e mal-estar gerado por essa mesma manipulação. No entanto, Davis e Panzer queriam um bom filme de espionagem com a sua carga de violência e ação e seu final feliz... Sam ainda se lembrava das discussões tempestuosas com Martin Baum, na época seu produtor, e Arthur Levis acerca do sentido que queriam dar a Elite de assassinos, outro filme de espionagem que dirigira em 1975. Esta controvérsia despertou seus antigos demônios. Ele bebeu mais do que deveria e tirou alguns dias de férias em junho para ir ao enterro de sua mãe em Fresno. No entanto, os produtores o deixaram terminar a montagem. Mas depois de uma sessão-teste desastrosa, eles cortaram alguns minutos (de específico, a relação de Tanner com sua amante desapareceu por completo, o que diminuiu bastante seu lado negro) e reeditaram algumas sequências com a colaboração do desencantado Edward Abroms (David Rawlins já tinha pulado fora muito antes), que já conseguia apreciar o instinto de construção e ritmo do diretor. Davis e Panzer logo perceberam que não poderiam mudar muito no filme, então apenas encurtaram a sequência de abertura, suprimindo as imagens distorcidas que Peckinpah havia usado, e atenuaram a cena da masturbação com a esposa de Fassett. O filme foi lançado no final de 1983. Como a maioria de seus filmes, O casal Osterman teve uma recepção mais calorosa na Europa do que nos Estados Unidos. Então Sam cruzou o Atlântico com seu advogado, Joe Swindlehurst, para promover um filme que reconhecia plenamente como sendo seu. Durante esta viagem patética, ele ingeriu quantidades impressionantes de álcool, com um entusiasmo doente e desesperado.Vários críticos o culparam por um roteiro atrapalhado e uma direção frouxa. Esses comentários não resistem a uma análise mais detalhada da obra. A trama desestruturada combina perfeitamente com a desordem mental dos protagonistas, e Peckinpah dominou o elenco do início ao fim. Este último filme, vindo depois de um longo silêncio, mostra que Peckinpah não perdera nada de seu talento, independência e agressividade. Ele cedeu menos do que nunca à ideologia reconfortante e formatada da nova Hollywood. Não seria a casa tomada por um circuito fechado de vídeo uma metáfora para o que os Estados Unidos e o mundo ocidental se tornaram, com Aurora e crepúsculo 61


os seus reality shows transformando sua população em uma sociedade voyeurística, prisioneira de sinistros videogames? O roteiro de O casal Osterman, usado como um pretexto, permitiu a Peckinpah, que não gostava do romance original, arrastar os espectadores em sua visão infernal da manipulação do homem e dos símbolos. O que é real? O que é falso? O filme inteiro, deste ponto de vista, se destaca como um ponto de interrogação permanente. Tanner se convence de que seus amigos são culpados depois de ver algumas fotos que parecem inquestionáveis, mas que, após um exame mais detalhado, são desprovidas de qualquer significado. Assim, cada sequência nos confronta com a presença de alguma foto. Nesse sentido, em dado momento, um dos personagens declara que somos muito dependentes daquilo que vemos. E percebemos gradualmente que Fassett mentiu, primeiro para seu chefe e depois para John Tanner.Todos os personagens parecem não ser mais do que marionetes controladas por vídeo. Fassett, é claro, espiona, grava, interfere e dá ordens, mas o espectador nunca sabe quem realmente está no comando. A primeira sequência, dos créditos, não mostrava Fassett sendo vigiado em sua casa por câmeras de vigilância? Esta sequência de abertura é, sem dúvida, uma das cenas de assassinato mais aterrorizantes e selvagens na filmografia de Peckinpah. No entanto, nem uma única gota de sangue pôde ser vista! “Bloody Sam” nos oferece mais uma grande surpresa. Na cena de abertura do filme, Fassett e sua mulher estão na cama. Uma atmosfera agradável e amorosa de intimidade deveria surgir dos planos dos dois amantes; no entanto, a textura granulada da imagem, semelhante à de câmeras de vigilância, e o planos de um ângulo alto propagam sutilmente neste momento uma vulnerabilidade sinistra e perigosa, lembrando a atmosfera sufocante de Sob o domínio do medo. A sensação de algo definitivo parece impor uma verdade brutal, mas a montagem sutil destrói a realidade de um show “ao vivo” ao introduzir uma confusão cinematográfica. Fassett se levanta, enquanto sua esposa continua na cama, buscando a satisfação do desejo frustrado ao se acariciar suavemente. Os dois assassinos saem de dentro de um armário. Nenhum lugar é seguro, nos diz Peckinpah, transformando uma cena suave em um filme de terror. Os dois homens saltam sobre a jovem mulher que jaz na cama. Um deles a amordaça, enquanto o outro lhe dá uma injeção letal. Com os olhos bem abertos, a esposa de Fasset testemunha seu próprio assassinato, completamente impotente. Os dois assassinos desaparecem. Fassett então volta, secando o cabelo. Ao olhar para sua esposa, percebe que ela está morta. Um carrinho para trás revela sua imagem Gerard Camy 62


em preto e branco numa tela. “Dirigido por Sam Peckinpah” aparece. Dois homens de costas estão sentados na escuridão, de frente para a tela que mostra a cena. Aqui, Danforth e Stennings comentam tranquilamente sobre o assassinato, justificando-o por alguma obscura razão internacional ou política. Esta cena transmite uma sensação insuportável de incerteza, uma impressão geral de se estar sendo enganado o tempo todo. Observar, ser observado. Quem manda no jogo? Os dois agentes da CIA? Peckinpah? Esta perversidade voyeurística dá a O casal Osterman uma dimensão que Elite de assassinos não tinha. Para Peckinpah, a sociedade em geral não é nada além de um gigantesco lugar de corrupção e desordem, e seu filme é o espelho de um comportamento frio e bárbaro. Todo filme seu (e este particularmente) tende a denunciar e subverter a mitologia de Hollywood ao induzir o espectador a pensar sobre a essência da própria representação. Mais uma vez, Peckinpah joga em ambos os lados dessa relação, com o enredo e com o espectador. Ele nos manipula da mesma forma que Fassett parece brincar com suas vítimas. De um plano para o outro, tudo é misturado. O título já é enganoso. Osterman é apenas um personagem entre outros personagens, um dos amigos de Tanner – um dos mais importantes, é verdade, mas ele não é de maneira alguma o herói do filme. No entanto, o diretor usa sua voz para proferir algumas reivindicações desesperadas e desiludidas, como: “Eu não sou um revolucionário, sou um niilista” ou “A verdade é apenas uma mentira que não foi descoberta”. No filme, uma questão central é o ato de mentir: as fotos que Fassett mostra e não mostra na televisão (como um Peckinpah divino) estão mentindo; as telas de vídeo que espionam a vida das pessoas estão mentindo quando misturam imagens ao vivo com outras gravadas – elas borram e pervertem a realidade do cinema. E essa é exatamente a mesma técnica que Tanner e Osterman usarão para vencer Fassett. A sequência de abertura deve ser vista em paralelo com a cena final em que Tanner entrevista Danforth durante seu programa, cara a cara. Por ser muito interessado em padrões cíclicos (como em Pat Garrett & Billy the Kid) e em temas recorrentes, Peckinpah nos mostra Tanner gravando sua apresentação e suas perguntas, e então sua entrevista “ao vivo”, a uma distância de Danforth, que fica em seu escritório com os seus colaboradores. Essa mistura de material ao vivo e gravado (uma técnica que a televisão usa cada vez mais, como em suas falsas transmissões “ao vivo”) permite que Tanner esteja em dois lugares diferentes ao mesmo tempo. O programa é editado em paralelo com o assassinato Aurora e crepúsculo 63


de Fassett, que Tanner mata em seu covil, seguido pelo “assassinato” do próprio Tanner (sugerido por um tiro fora da tela). Durante toda a montagem paralela, Tanner, em voice-over, fala aos telespectadores sobre as ilusões da televisão e os efeitos da mídia sobre as vontades do espectador. Ele os aconselha a desligarem seus aparelhos de televisão, mas observa: “Aposto que vocês não conseguem”. (Plano do cão amordaçado gemendo ao lado da esposa e da filha de Tanner, que estão amarradas.) Tanner conclui dizendo: “Mas vá em frente, tente”. Um estrondo agudo ecoa. O close-up de Tanner desaparece dos monitores de vídeo e é substituído por uma tela vazia. Silêncio. Corta para a poltrona de Tanner vazia. O estúdio está vazio também. Um carrinho para trás, semelhante ao do fim da sequência de abertura. Mas, à medida que a câmera se distancia, ninguém está lá para assistir. Ninguém parece estar no controle da televisão, do país... Na primeira sequência, Danforth e Stennings estavam sentados em frente à tela, mantendo a vantagem em seu jogo. Aqui, nada acontece; ainda temos uma tela vazia. A televisão não desliga... “Tarde demais!” Esse parece ser o significado deste longo plano fixo, uma declaração amarga de Peckinpah, que soa como o eco da frase de Tanner no início do filme: “As pessoas não são capazes de desligar seus televisores. É uma droga”. Bennie em Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia não vacilou em atirar em uma televisão durante um ataque de raiva. Em O casal Osterman, ninguém está lá para fazê-lo. Como de costume, Peckinpah estava mais interessado nas relações entre os personagens do que na trama em si, e, como em O homem que eu devia odiar e Elite de assassinos, ele não se debruça sobre as inconsistências do roteiro, preferindo tratá-las de forma irônica, assim como na cena em que os quatro amigos se encontram em um estacionamento grande e vazio, exceto por seus carros e um guarda olhando para eles à distância, e uma voz diz: “Espero que ninguém esteja nos observando”. Da mesma forma, Peckinpah não queria filmar a perseguição de carro, que ele considerava inútil. A produção, ao contrário, a via como um clímax. Ele, então, decidiu filmá-la como uma sequência fechada em si mesma, sem qualquer ligação real com a história – um brilhante e gratuito interlúdio, desconectado da realidade, uma realidade que Peckinpah gosta de distorcer ao jogar com o tempo cinematográfico, algo que poucos diretores fizeram como ele. Dos efeitos mais óbvios (câmera lenta, imagens recorrentes, close-ups sugestivos, profundidade de campo mínima) às construções mais sutis (montagem paralela, Gerard Camy 64


flashbacks, flash-forwards), Peckinpah nunca deixa o espectador descansar. Suas escolhas estilísticas são perfeitamente adequadas às situações que descreve. Perturbador, isso é tudo. Imagens e sons se misturam, sem qualquer ligação aparente, para reforçar sua história com força e luminosidade. Sua genialidade é flagrante quando os amigos e suas esposas se encontram na mansão de Tanner sob o olhar assassino de Fassett. Na mansão, Peckinpah cria uma real organização espacial graças aos ângulos de câmera. Ele consegue construir uma espécie de labirinto intrincado no qual Osterman e Tanner são perseguidos. Quando os dois homens fogem em direção à piscina em busca de abrigo, seguidos pelos feixes de laser dos rifles automáticos que estão atirando neles, a poesia visual de Peckinpah chega a seu nível mais elevado. Suntuosas câmeras lentas. Múltiplos ângulos de câmera, os movimentos em câmera lenta, uma flecha que cruza pelo espaço até furar o corpo de um agressor em um baque surdo. Silêncio. Armas param de disparar. Tanner mergulha em câmera lenta para se juntar a Osterman, que já está deitado no fundo da piscina. Uma obra-prima. Puro Peckinpah. Uma impressionante dança de violência acompanhada pela música discreta, mas ainda assim poderosa do grande Lalo Schifrin. Não podemos deixar de pensar na sequência sublime em Cruz de Ferro quando Steiner e Stransky correm em câmera lenta para fugir dos tiros que são disparados contra eles. As imagens estão envoltas em um véu preto com tons esverdeados, transmitindo uma atmosfera noturna magistral orquestrada por John Coquillon, que criou momentos inesquecíveis no cinema com sua fotografia do cerco noturno da casa em Sob o domínio do medo, da morte crepuscular de um velho xerife em Pat Garrett & Billy the Kid e os claro-escuros de Cruz de Ferro. Com O casal Osterman, ele está no auge de seu ofício. Com Elite de assassinos, seguido de Cruz de Ferro, e acima de tudo O casal Osterman, a importância da luz do dia desaparecerá do mundo de Peckinpah, sufocada pelas forças da escuridão.Todas as cenas violentas dos últimos trabalhos do diretor são encenadas durante noites ameaçadoras, favorecendo maquinações sujas e assassinatos. Não há mais redentoras festas mexicanas como em Meu ódio será sua herança. O barulho de bombinhas e fogos de artifício é substituído pelo de tiros letais de fuzis automáticos e os lampejos mortais que colocam o trailer e a piscina em chamas em O casal Osterman. O pano de fundo da casa está definido. Os personagens estão prontos. Sentimentos humanos podem se expressar: amizade entre velhos amigos (o grupo dos quatro homens mais as quatro mulheres aqui) e, em seguida, a traição, a obrigação Aurora e crepúsculo 65


para alguns de “terminar o trabalho” juntos (Tanner e Osterman)... Nós pertencemos a um mundo verdadeiramente peckinpahniano. A este tema recorrente, podemos acrescentar a defesa de uma família dentro de uma casa cercada, como em Sob o domínio do medo. As semelhanças com aquele filme são enormes. A longa noite de ansiedade e violência vivida por Tanner e seus convidados lembra David Sumner defendendo sua casa com toda sua energia. Quando o filho de Tanner descobre a cabeça falsa de um cão em seu freezer, a imagem do gato enforcado no armário de David em seu quarto imediatamente vem à mente. E o que dizer sobre a afetuosa cena de amor entre Tanner e sua esposa, Ali, cujo enquadramento nos lembra estranhamente de Amy Sumner sendo estuprada por seu ex-namorado? E se David usa técnicas medievais contra seus agressores, a esposa de Tanner não hesitará em recorrer a arcos e flechas. Para salvar seu filho e seu marido, ela descobre os instintos primitivos de David, assim como David usa armadilhas de caça e óleo fervente para defender sua casa. O casal Osterman afirma uma visão das mulheres que, se formos para trás na filmografia de Peckinpah, associa Ali Tanner, uma mulher de ação, com Kit Tilden em O homem que eu devia odiar. Como Kit, Ali é uma mulher forte e bonita que não se dobra a um mundo de homens cheio de violência. Independente, ela tem o charme e a força de uma heroína mítica. Assim como Kit, que mata o índio na escuridão da caverna, Ali, armada com um arco mortal, causa estragos e semeia a morte, ainda que encarando agentes secretos equipados com rifles sofisticados – um belo retrato, que é bastante raro vindo de um diretor inclinado a catalogar as mulheres de acordo com estereótipos simplistas. A última centelha de um dos maiores cineastas de seu tempo, O casal Osterman pode ser visto como uma metáfora da carreira cinematográfica de Peckinpah, especialmente se compararmos Peckinpah a Fassett, que se destaca como um demiurgo e ao mesmo tempo como um prisioneiro patético das imagens da morte de sua esposa, que ele continua assistindo compulsivamente o tempo todo. Para mentir, enganar, manipular, surpreender, assustar, orientar, perder, mas também para assistir e assistir de novo, para nunca mais se esquecer de nada, nunca mais virar a página... Este canto do cisne desiludido e fascinante, o trabalho de um visionário que não acreditava mais no futuro do mundo, é bastante revelador sobre o estado de espírito de Sam Peckinpah.

Gerard Camy 66


Juramento de vingança Julie Kirgo

Juramento de vingança é, possivelmente, o mais discutido “fracasso” do cinema. Sua versão original foi um devastador fiasco de bilheteria e mesmo seus mais ardentes defensores admitem que ela é bela e desgrenhada, confusa em sua narrativa, em grande parte por culpa das grotescas amputações efetuadas pelo estúdio, mas também porque seu imprudente escritor/diretor começou as filmagens com um roteiro incompleto e não mostrou consideração alguma pelo cronograma, orçamento e os sentimentos do elenco, da equipe técnica e dos patrocinadores. Em suma, foi uma típica produção de Peckinpah, incluindo os momentos de absoluto brilhantismo vistos na tela. Saído do succès d’estime de Pistoleiros do entardecer, Peckinpah foi atraído pela promessa de poder fazer um filme em larga escala: um épico de três horas de duração para exibição em esquema roadshow, um western na linha de Lawrence da Arábia (filme que Peckinpah admirava muito e que tem, não coincidentemente, pontos de contato com Juramento de vingança). Escrito por Harry Julian Fink (mais tarde um dos roteiristas de Perseguidor implacável / Dirty Harry), o argumento parecia encaixar-se perfeitamente nas já manifestas preocupações Juramento de vingança 67


temáticas de Peckinpah, detalhando a história de um obsessivo oficial de cavalaria do Exército da União durante a Guerra Civil Americana que, sem diretiva oficial ou missão definida, comanda um desordenado destacamento (composto, como é dito claramente no filme, de “ladrões, renegados e desertores”) México adentro em perseguição a um bando de apaches liderados pelo malévolo chefe Sierra Charriba, responsável pelo massacre de um grupo de colonizadores e uma companhia de cavalaria, e pelo sequestro de três crianças. Era uma espécie de Moby Dick no sudoeste, uma história de busca que incluía um adversário quimérico e um anti-herói do tipo ame-o ou odeie-o. E, apropriadamente, os vingativos perseguidores eram racistas, sexistas e totalmente americanos. Não por acaso, Peckinpah vinha planejando um filme sobre Custer e sua infame última batalha. Ao fazer Juramento de vingança, tornou-se ele próprio um êmulo de Custer: um líder ambicioso, carismático e meio louco intimidando suas tropas exaustas a enfrentar situações impossíveis, das quais poucos sairiam ilesos, incluindo o próprio Peckinpah. Os problemas começaram quando ele confiou a Fink a feitura do roteiro. A primeira versão de 163 páginas foi duramente criticada pelo diretor, que chamou a atenção para o fato de que ela cobria apenas um terço da trama. Além disso, Peckinpah reclamou que a visão de Fink era um “denso, brutal e implausível banho de sangue” – uma crítica que pode surpreender alguns admiradores, mas que é inteiramente consistente com a convicção do diretor de que a violência deveria ser motivada pelos personagens e pela história. Com a ajuda de Oscar Saul (que havia adaptado Um bonde chamado desejo para o cinema), Peckinpah começou um novo roteiro. Mas, não havia muito tempo: Charlton Heston – um astro de primeira grandeza, recentemente premiado com o Oscar por Ben-Hur e um fervoroso partidário de Peckinpah – havia concordado em fazer o papel do major Dundee, mas ele tinha outros compromissos que se aproximavam rapidamente. O diretor garantiu ao produtor Jerry Bresler (apático, provavelmente bem intencionado, mas mais comprometido com o estúdio, a Columbia, do que com Peckinpah) que tudo corria bem. Dois dias (dois dias!) antes do início das filmagens, Bresler informou Peckinpah que o comando do estúdio havia cortado um milhão de dólares do orçamento e reduzido em 15 dias o prazo de rodagem. O palco estava pronto para um desastre de épicas proporções. Para aumentar os problemas, as filmagens haviam sido programadas – com a entusiástica aprovação de Peckinpah – para Julie Kirgo 68


locações em vários pontos do México (muitas das quais poderiam ser reproduzidas facilmente em Hollywood, afinal um céu é um céu, especialmente como pano de fundo para um perfil de granito como o de Heston). Como resultado, uma produção já atenuada foi levada a um ponto extremo, ocasionando, em uma muito bem enunciada entrevista, o seguinte comentário de Heston: “Nós vivíamos um bocado das experiências do filme”. Elenco e equipe técnica estavam tão determinados e exaustos quanto as tropas de Dundee. A certa altura, pressionado pelo diretor além do limite, Heston, montado a cavalo, perseguiu Peckinpah de sabre em punho. Mas o ator, que está ótimo no papel, continuou a ser, apesar dos muitos contratempos, um devotado adepto do diretor. A tal ponto que, quando executivos da Columbia – alguns deles cambaleando em seus ternos de tecido lustroso pelo deserto mexicano – ameaçaram interromper a produção que estourara o orçamento, Heston ofereceu o seu próprio salário para garantir que as filmagens continuassem sob o comando de Peckinpah. Incrivelmente, a Columbia aceitou a oferta. Heston, com efeito, fez Juramento de vingança de graça e o estúdio, não permitindo que Peckinpah rodasse o massacre no rancho Rostes que abriria o filme, encerrou a produção assim mesmo. Mas, como salienta Paul Seydor no seu definitivo Peckinpah, The Western Films: A Reconsideration, o pior ainda estava por vir. Após apresentar sua versão inicial de duas horas e quarenta e um minutos, o diretor foi demitido e o estúdio remontou o filme, eliminando quase uma hora de projeção e reordenando o que permaneceu. O filme foi então jogado no mercado de forma abrupta e sem promoção adequada. Juramento de vingança sofreu uma desfiguração adicional com a adição da bombástica e incongruente música de Daniele Amfitheatrof (substituída na versão longa por uma exemplar nova partitura de Christopher Caliendo), que inclui uma marcha cantada por Mitch Miller e sua Sing-Along Gang. Conta-se que quando Peckinpah viu esta versão, passou mal do estômago. E, no entanto, no entanto... há muito aqui que suscita admiração, mesmo na versão original, melhorada – particularmente em termos de narrativa – na versão expandida de 2005, confeccionada sob a supervisão de Grover Crisp e que adiciona 14 minutos de material expurgado. Ambas as versões oferecem uma visão provocante, repleta de temas, talvez mais do que um único filme deveria conter: o horror do expansionismo americano (sendo de 1965 não chega a ser uma condenação à Guerra do Vietnã, mas é precognitivo), o racismo Juramento de vingança 69


(o líder da detestada tropa de negros é interpretado por Brock Peters, que havia aparecido pouco antes como o honrado homem falsamente acusado de estupro, defendido por Gregory Peck em O Sol é para todos / To Kill a Mockingbird), a sexualidade reprimida (o soberbo Richard Harris interpretando de forma estranha e com um exotismo felino – complementado por cabelo oxigenado e delineador nos olhos – um oficial do Exército Confederado, amigo/inimigo de Dundee e mais importante para este que a suposta mocinha Senta Berger, arrastada despropositadamente pelo filme por causa da magnificência pneumática de seu busto). Tudo isso é combinado com elementos autobiográficos que nenhum entusiasta de Peckinpah pode negar. Em particular, há o episódio sine qua non – mutilado na versão original, mas restaurado na versão expandida e imperativo para a compreensão da narrativa – no qual Dundee, ferido na perna por uma flecha apache, recebe cuidados médicos em Durango e passa o que parecem ser semanas na bebedeira. Como Peckinpah fez tantas vezes no curso dos altos e baixos de sua carreira, Dundee escapa das pressões do comando entregando-se a toda sorte de estimulantes (incluindo Aurora Clavel, que figuraria depois, de forma memorável, em Meu ódio será sua herança), abandonando sua autoridade, seus talentos, seu próprio ser. Também como Dundee, Peckinpah estava cercado de inimigos por todos os lados: o major pelos apaches, pelos franceses e seus próprios homens; Peckinpah por seu produtor, pelo estúdio e seus próprios homens. Mas se, apesar de seus muitos momentos soberbos – a representação de homens da fronteira por atores que se tornariam parte da companhia de Peckinpah (entre eles Warren Oates, Ben Johnson, R. G. Armstrong e L. Q. Jones), a encantadora descrição da vida de aldeia ao sul da fronteira, as vívidas cenas de ação e, sobretudo, o retrato de homens esgotados –, Juramento de vingança falha como o épico que seu diretor havia idealizado, ele é bem-sucedido como um proveitoso ensaio para a obra-prima de Peckinpah, Meu ódio será sua herança, feito quatro anos mais tarde, após um aparentemente proveitoso período no limbo cinematográfico. Há muitas correlações: tanto Juramento de vingança quanto Meu ódio será sua herança ambientam-se na perigosa zona fronteiriça entre Estados Unidos e México (incluindo belas despedidas a gratos aldeões nos dois filmes); ambos tratam de homens agindo fora dos limites aceitáveis, em missões que, embora combinando honra e ambição, fazem pouco sentido em termos convencionais; Julie Kirgo 70


ambos enfocam a relação entre antigos aliados que se tornaram inimigos (Heston e Harris em Juramento de vingança, William Holden e Robert Ryan em Meu ódio será sua herança), e, é claro, a análise da violência, profundamente significativa em um, se não no outro, tão frequentemente associada ao legado de Sam Peckinpah. A diferença é que em Meu ódio será sua herança o roteirista/diretor contou com um produtor compreensivo e protetor, Phil Feldman, com o diretor de fotografia que ele queria para Juramento de vingança, Lucien Ballard e, talvez o mais importante de tudo, com um roteiro rico e plenamente acabado, coescrito com Walon Green. Meu ódio será sua herança é uma joia perfeitamente polida; Juramento de vingança, um diamante bruto. Ah, Juramento de vingança. Tanto o que dizer e tão pouco tempo. A verdade é que, mesmo em sua versão expandida, fica difícil saber exatamente o que Peckinpah pretendia. Havia cenas que ele deveria ter rodado mas não o fez e outras que, por existirem somente como fragmentos da sua primeira montagem, podemos apenas imaginar o que ele tinha em mente. O filme é um esplêndido artefato, danificado pelas circunstâncias e pelo tempo – e ao diretor só restou queixar-se, incessantemente, sobre seu “filme arruinado”. O que sabemos, décadas depois de Juramento de vingança ter sido lançado na sua forma truncada – e mesmo anos após o presente que foi a versão expandida –, é que havia algo em Sam Peckinpah que amava o amargor do desastre.Várias vezes foi oferecida a ele a oportunidade de retrabalhar o filme e ele recusou, talvez porque soubesse, de algum modo, que faltava algo. Ou talvez porque, no fundo, ele era um rebelde não por acaso, mas por vocação.

Juramento de vingança 71



Cinco visões críticas de Meu ódio será sua herança

Sérgio Augusto Numa cena de Pistoleiros do entardecer, Elsa Knudsen (Mariette Hartley) refere-se a um ditado que seu pai, velho homem da fronteira, lhe ensinara: “No mundo só existem duas coisas, o Bem e o Mal”. Ao que Steve Judd (Joel McCrea) responde: “Na realidade, as coisas não são tão simples assim”. Em seus filmes, Sam Peckinpah procura contestar sempre a concepção maniqueísta do velho Knudsen e munição ideológica de quase todos os westerns americanos: tanto em Pistoleiros do entardecer como em Juramento de vingança e Meu ódio será sua herança, nenhum dos personagens polarizantes (Randolph Scott-Joel McCrea, Charlton Heston-Richard Harris, William Holden-Robert Ryan) representa, com clara definição, o Bem e o Mal. Para Peckinpah, não há bons sujeitos nem maus sujeitos ao longo das planícies; existem somente marginais pertencentes à última geração de uma sociedade em transformação: o agonizante Oeste mitológico surpreendido pelos primeiros signos da Revolução lndustrial (o automóvel, a metralhadora, o avião). A opção é desaparecer ou adaptar-se às mudanças? Não é à toa que Meu ódio será sua herança começa como uma epopeia (modo de representação das heroicas façanhas do velho Oeste) e termina como um réquiem Cinco visões críticas de Meu ódio será sua herança 73


(modelar forma de expressar a falência de mitos superados pelo tempo, pelo novo Oeste de fábricas e sem aventuras). Ambivalentes e permeáveis às oscilações da justiça, da lei, da moral, da guerra (civil em Juramento de vingança) e da revolução (mexicana em Meu ódio será sua herança), os personagens de Peckinpah não têm escrúpulos nem ideais políticos. Para eles, a ação ou a aventura a qualquer preço e em qualquer lugar é mais do que uma forma de vida: é uma redenção, um ato de exorcismo. Em Juramento de vingança, Senta Berger acusa Charlton Heston de sentir prazer diante da morte: “Para você, major, a guerra não terminaria nunca”. Esta atração pela luta, ainda que em situações de flagrante desigualdade, exprime uma vocação natural para o perigo (de efeito catártico) que tem sido a tônica dos últimos superwesterns americanos, de Os profissionais a Butch Cassidy. Peckinpah vai mais longe, atribuindo a seus personagens um instinto sádico (hereditário ou gerado pelo meio, conforme prova a satisfação das crianças diante do escorpião devorado pelas formigas) ou, como no duelo contra os soldados do General Mapache, uma tendência paranoica ao suicídio. Ao contrário de seus suicidas e sádicos marginais, Peckinpah tem ideias definidas sobre o mundo (admira a juventude, apoia a rebeldia dos negros, é contra a guerra no Vietnã e pretendeu fazer de Meu ódio será sua herança uma parábola da violência reinante na América), mas, à imagem de seus heróis crepusculares, ainda não conseguiu se livrar do passado nem se adaptar às exigências do cinema moderno fora dos padrões estéticos do sistema. Os temas que o preocupam (fracasso, inadaptação, aventura pela aventura) são os mesmos que fizeram a glória autoral dos cineastas americanos dos anos 50 (Huston, especialmente) e os índices de modernidade com que procura tornar seu filme up to date – apelo sistemático ao ralenti, prólogo expositivo – exprimem o que de mais intolerável e pernicioso existe no cinema comercial atual: a tendência à redundância. Meu ódio será sua herança repete durante 130 minutos as mesmas imagens e os mesmos problemas mostrados nos 15 minutos iniciais. Redundante e ambíguo (estaria o cineasta criticando a violência ou ernbelezando-a com a sua câmara lenta?), Meu ódio será sua herança vale como uma exibição primorosa de técnica, como espetáculo, ou ainda, involuntariamente, como um pasticho, cheio de parênteses e digressões, de O tesouro da Sierra Madre, Os profissionais e de um hipotético comercial sádico do Libby’s Tomato Juice.

Sérgio Augusto - Ronald F. Monteiro - Fernando Ferreira - José Lino Grünewald - Ruy Castro 74


Ronald F. Monteiro Apesar da fórmula western que o filme adota, a narrativa se desenrola em 1914 e o prazeroso testemunho das crianças às ações violentas funciona como um leitmotiv. Não é preciso fazer as contas para constatar a intenção crítica de Peckinpah neste filme em que a brutalidade das ações é a tônica. Inclusive estruturalmente: dois grandes massacres – com insistentes detalhes em imagem lenta – se desenvolvem a poucos minutos do início e do final. E a investigação de uma realidade atinge os compromissos dos personagens, que surgem como servidores – intencionais ou não – das forças econômicas que dominam a região (ou melhor, as regiões). No entanto, Peckinpah revela-se muito mais saudosista do que desmistificador. Assim como Polonsky no recente Willie Boy, ele parece pretender usar a fórmula em razão de uma ideia. Mas ao contrário do seu por tanto tempo marginalizado colega, ele termina sucumbindo aos atrativos que os personagens míticos ofereciam. Porque, na definição dos tipos e no desenvolvimento da ação, predomina a tradição do western sobre sua desmistificação. No relacionamento dos fora da lei, o realizador acaba dando ênfase às lições conteudísticas de Ford, desprezando, até, a coerência do roteiro (contraste entre o interesse pela salvação de Angel – dramaticamente útil – e a desistência de auxilio a Sykes – hiato a ser esclarecido na conclusão). O líder dos assaltantes (Pike/William Holden) a despeito das encomendas políticas de trabalho, é tão tradicional nas atitudes e no desencanto como o foram os personagens vividos por Gary Cooper, John Wayne, Joel McCrea ou Randolph Scott na faixa do herói cinquentão. E, do outro lado, Deke/Robert Ryan, quase tão espectador da ação quanto o público, também mantém a mesma atitude. Somente o Dutch de Borgnine violenta o tipo, fornecendo uma visão diversificada (especialmente quando aceita o sacrifício de Angel imposto pelos poderosos ou discute sobre valores). E a própria estrutura rítmica do western vai se impondo, minimizando as intenções críticas de um roteiro que, baldadamente, tentou dinamitar por dentro. Resta, porém, um espetáculo primorosamente conduzido. E que, a despeito de sua frustração enquanto veiculação de uma ideia, serve para destruir de vez a ingênua visão de uma colonização tranquila, de uma tradição que forçava a aliança daquele tipo de progresso com a moral pacifista alardeada pelos colonizadores. A grande contradição do filme é o impacto de violência escorado na elaboração estética, independentemente do conteúdo que a anima.

Cinco visões críticas de Meu ódio será sua herança 75


Fernando Ferreira Sam Peckinpah revelou, certa vez, a propósito de uma série televisionada que criou, sob o título de The Losers, com Lee Marvin, a sua compreensão do que, em sua temática, são os “perdedores”: “Aqueles que foram vencidos por antecedência e que fizeram, desde muito cedo, suas acomodações com a morte e a derrota, de modo que nada mais lhes resta perder. Representam eles, também, a aventura descompromissada”. Em sua curta filmografia de cinco filmes, que são cinco westerns, nos três que conhecemos Peckinpah tratou de personagens que se ajustam à sua definição do perdedor. Perdedores eram os dois veteranos gunfighters do admirável Pistoleiros do entardecer, jogando sua última cartada numa aventura de encerramento de carreira; perdedor, nato e obtuso, era o Major Dundee, do filme do mesmo nome [no Brasil, Juramento de vingança](que Peckinpah renega pelos cortes feitos à sua revelia), que se destruirá e aos seus soldados numa guerra individual e delirante; perdedores são os integrantes desse também delirante wild bunch (bando selvagem) que, sob o comando de Pike, insiste em viver os últimos lances do crepúsculo do Oeste. Quando o filme se inicia, Pike e seus comandados já estão num fim de linha. O velho Oeste em que sempre viveram e com cuja lenda se confundiram chega, rapidamente, a um fim para eles melancólico. Os assaltos ao “cavalo de ferro” estão cada vez mais difíceis e a companhia ferroviária, sem muito se importar com os métodos e os valores morais, coloca-lhes no encalço um bando de maltrapilhos sob a chefia de Deke Thornton, ex-associado de Pike, para quem é apresentada uma opção insustentável: ou a prisão com torturas ou a missão perigosa. Para Deke Thornton a caçada tem também um sabor de aventura crepuscular no confronto que se estabelece entre a astúcia do antigo companheiro e a eficiência de seus asseclas e a missão patética que lhe foi imposta no comando de uma súcia de vagabundos despreparados. Após testemunhar o ocaso dos gunfighters em luta contra o tempo (Pistoleiros do entardecer) e o fim da imponência da cavalaria cantada por Ford ou Walsh (Juramento de vingança), Peckinpah faz o retrato final, de incrível violência, das quadrilhas de outlaws do Oeste, alternando suas façanhas de um lado e de outro da fronteira com o México, conforme seja a missão um assalto à caixa da ferrovia ou o serviço mercenário à causa da ditadura contra Pancho Villa. A violência utilizada pelo diretor tem sido objeto de comentários contraditórios. Há quem Sérgio Augusto - Ronald F. Monteiro - Fernando Ferreira - José Lino Grünewald - Ruy Castro 76


fale de sua “beleza selvagem” e quem a compare, impropriamente, à do western italiano. Sem dúvida, o efeito alcançado por Peckinpah não é gratuito pois que aqui existe, ao contrário do que ocorre no western spaghetti, um impacto estético. Cabe a aproximação, por exemplo, com Bonnie & Clyde e é possível falar-se, a título de lembrança, de alguma influência de Buñuel. Parece-nos claro, portanto, que o diretor se valeu da violência não por deleite, por sadismo ou como num apelo a reações primárias da plateia, e sim para definir um quadro de caos moral e social. A violência em Meu ódio será sua herança é incômoda e desmistificadora e, como em Bonnie & Clyde, está intimamente associada à violência de nossos dias. Sempre muito inspirado, alardeando um domínio excepcional da técnica e um conhecimento íntimo dos personagens e dos fatos históricos narrados na fita, Sam Peckinpah realizou, com Meu ódio será sua herança, uma obra de densidade dramática incomum e de grande brilho como realização cinematográfica onde tudo colabora para um resultado final exuberante.Tanto quanto o seu já hoje clássico Pistoleiros do entardecer, este novo western de Peckinpah sacode o gênero, tão sacrificado pelas mediocridades e pelos Iugares-comuns, com uma dose substancial de talento e criatividade. A personalidade forte do realizador impôs aos intérpretes participações excepcionais. Sem exceção, de William Holden a Jaime Sanchez e Ben Johnson, passando por Ernest Borgnine, Robert Ryan, Edmond O’Brien (numa surpreendente composição como o velho Sykes) e Warren Oates, os atores fazem o retrato exato dos heróis obsoletos da fronteira “guiados por reflexos tão automáticos quanto o coice de um rifle”. De nível também excepcional a qualidade da fotografia do veterano Lucien Ballard e da música de Jerry Fielding.

José Lino Grünewald Meu ódio será sua herança – se assim for catalogado – pode classificar-se como um dos maiores westerns de todos os tempos. De qualquer forma – e por enquanto – o melhor filme estreado este ano. A nostalgia. Heidegger associa a ilação do conceito de nostalgia como a proximidade sensorial do longínquo. Aqui, em Meu ódio será sua herança, o imperativo máximo constitui o anelo dos tempos heroicos, de ação individual (amiúde marginal, como no caso do faroeste) ultraintensa. A história já se desenrola em 1913, logo antes da Primeira Guerra Mundial, quando então as últimas quadrilhas de assaltantes no âmbito rural marcavam seus estertores. Logo depois, na faixa Cinco visões críticas de Meu ódio será sua herança 77


urbana, chegaria ao ápice a era do gângster. Significativamente, objetos como o automóvel ou a metralhadora estão presentes para evidenciar o desenvolvimento industrial para conforto ou extermínio que liquidarão com o banditismo clássico do gunfighter. As quadrilhas já trocaram o alvo dos assaltos – o trem pela diligência, ou os bancos e caixas de escritório pelas minas de ouro ou currais e manadas. Mas perpassando a simples comutação histórica ou indo além da própria nostalgia, existe uma modalidade de apelo ético. Os quatro membros de Meu ódio será sua herança, verificando no outro lado da fronteira – no México incendiado pela rebeldia de Pancho Villa – a miséria do povo contrastando com a rapinagem do generalíssimo (o diretor Emilio Fernández em ótima caricatura do caudilho sul-americano), revoltados com as torturas e o assassinato de um seu companheiro mexicano, iniciam uma ofensiva fulminante contra um exército inteiro – cena notável de movimentação e sangue.Violência e consciência. Ao fim, Sykes, o velho (Edmond O’Brien em excelente caracterização), dirá a Robert Ryan, sentado e melancólico, apontando para os campônios, aliados de Villa: “Vamos com eles, não será tão emocionante mas dará para o gasto”. Até o soldado mercenário pode fazer suas opções. A fita começa de modo rigorosamente antológico, numa sequência de cerca de 20 minutos. A quadrilha de Pike (William Holden) chega à cidade de San Raphael, disfarçada com uniforme da cavalaria americana. Lá, sob uma tenda, no mesmo instante, realiza-se uma reunião da liga contra o álcool. Emboscados, à espera de Pike, estão outros marginais, contratados pelo prefeito corrupto e chefiados por um antigo companheiro do líder dos bandidos: Thorton (Robert Ryan). Primeiro, os letreiros, magistrais em alto contraste, inserindo-se ritmicamente na passagem da chegada dos bandidos à cidade. Planos magníficos de crianças em torno de um escorpião entre insetos. No assalto à estação, inicia-se o tiroteio demorado entre os dois bandos enquanto tombam ensanguentados, não apenas os contentores, mas também os congregados à liga contra o álcool que desfilavam na rua. Tudo, de montagem à composição, é simplesmente magistral – ao nível eisensteiniano. Ao fim, restam os feridos, cadáveres de ambos os lados e continuará a perseguição. Muitas passagens de batalha têm efeitos estéticos do flou e do ralenti. O filme pode ser visto estruturalmente como uma cadeia de grandes movimentos, encadeados por momentos poéticos ou descritivos. O segundo grande movimento, por exemplo, seria a passagem no povoado mexicano, com a saída dos bandidos saudados ao som de “La Golondrina” – canção que retornará Sérgio Augusto - Ronald F. Monteiro - Fernando Ferreira - José Lino Grünewald - Ruy Castro 78


no desfecho, reiterando o tema da nostalgia. Enquanto isso, ligeiríssimos flashbacks contribuem, anetodicamente, para explicar as relações e as experiências de alguns personagens no passado. Em suma, o morticínio final, já mencionado, dos mais esfuziantes em toda a história do cinema: a estesia da violência, a saúde do grande cinema americano. O diretor Sam Peckinpah havia chamado a atenção sobre si com alguns filmes (Pistoleiros do entardecer, Juramento de vingança). Agora, aproveitou ao máximo os recursos da grande administração. Os espaços da imensa tela panorâmica preenchidos funcionalmente. A colaboração inestimável de um veterano fotógrafo (Lucien Ballard) e do acompanhamento musical de Jerry Fielding. Sem falar dos atores, todos eles impecáveis, também explorados em fabulosos close-ups: William Holden, Ernest Borgnine, Robert Ryan, Edmond O’Brien, Warren Oates, Ben Johnson, Jaime Sanchez, Emilio Fernandez etc. Enfim, Meu ódio será sua herança, exemplo da catarse do cinema como espetáculo, impacto e mesmo invenção.

Ruy Castro Meu ódio será sua herança é a saída do impasse em que se via mergulhado o western – talvez a maior crise que o gênero já experimentou em toda sua história. O último grande western, pronto para competir com os do primeiro time (No tempo das diligências, Rastros de ódio, Os brutos também amam, Matar ou morrer) tinha sido O homem que matou o facínora, de 1962. Essa simples constatação estatística já denota a crise, sendo irrelevantes os exemplos de outros bons filmes como Butch Cassidy (que não chega a ser exatamente um western) ou Pistoleiros do entardecer, do mesmo diretor de Meu ódio será sua herança, Sam Peckinpah. O êxito absoluto de Meu ódio será sua herança era necessário até ao próprio cinema, pois a televisão, com sua produção em massa de westerns de baixo custo para consumo imediato, estava liquidando qualquer possibilidade de se fazer com regularidade aquele tipo de filme feijão com arroz que alimentou por muito tempo o cinema americano. E o western, se não era o cinema por excelência, como queriam muitos, era, no mínimo, o “gênero” mais sadio, no seu aparente descompromisso com a seriedade, sem a intenção literatizante de desfechar grandes conteúdos, e baseando sua força no espetáculo. A geração que sucedeu àquela dos grandes mestres do gênero (Ford,Walsh,Wellman), ou seja, a geração de Anthony Mann, Delmer Daves e John Sturges, se não conseguiu nunca subir para o primeiro time, sempre mateve ativa a usina de filme apreciáveis. Cinco visões críticas de Meu ódio será sua herança 79


Com a escalada da televisão, o western (junto com o filme musical) foi talvez o mais atingido. Já não interessava produzir o filme barato, a produção B (de onde saíram filmes como Dragões da violência e Reinado do terror), pois estes a televisão oferecia em grande quantidade. Tentou-se a saída do psicologismo, na pretensão de que temas mais ambiciosos pusessem a nocaute a preferência pelo western na tevê. Daí a estranha combinação Freud x Ford (John), que resultou em produtos híbridos como A face oculta ou os de ambiência moderna, como O indomado e Os desajustados. Parece que a impossibilidade da combinação foi afinal percebida, quando o cinema italiano começou a dar, de graça, a solução para o impasse: sem nenhuma outra qualidade senão a de mínimo apuro técnico, e repisando os clichês mais batidos do cinema americano, os spaghesterns com Franco Nero e Giuliano Gemma tiveram a virtude de pôr o ovo em pé: a violência do espetáculo e a violência como espetáculo. Uma solução óbvia, flagrante, e já possível com a liberalidade com que hoje são apreciados temas até pouco tempo tidos como ousados. Solução que Meu ódio será sua herança aplica com poderio total, retomando a linha saudável do bangue-bangue, e tudo sob o controle de um cineasta furiosamente inventivo. O importante, no filme, não é a violência (que alguns tomaram ingenuamente como gratuita), mas o espetáculo, o poderio de efeitos. O western não tem a menor obrigação de ser indigente para ser bom, até pelo contrário. Como, aliás, todo o cinema. Nem é preciso citar os 20 minutos iniciais do filme, assim como o tiroteio final: é ver e constatar a riqueza de soluções, que vão das tomadas em ralenti até a metralhadora de cortes. O outro lado importante de Meu ódio será sua herança, além da magia do espetáculo, é que ele reitera um achado comum em dois bons westerns dos últimos tempos, como Butch Cassidy e Bravura indômita: o western autorreferencial. No primeiro, são as imagens de um faroeste primitivo que são lançadas na tela, enquanto os títulos são apresentados; no segundo, é a imagem de um western típico, John Wayne comportando-se como a anti-imagem do super-herói que estamos habituados a ver. Em Meu ódio será sua herança é permanente a nostalgia pelo passado. Mas, para não nos distanciarmos de Sam Peckinpah, é lembrar que isto já estava presente em um filme seu, de 1962, Pistoleiros do entardecer. E se mais não fosse, Meu ódio será sua herança seria autorreferencial porque se refere a um tipo de cinema cada vez mais raro hoje em dia.

Sérgio Augusto - Ronald F. Monteiro - Fernando Ferreira - José Lino Grünewald - Ruy Castro 80


A morte não manda recado Nick Redman

No começo de 1969, tudo corria muito bem para Sam Peckinpah. Depois de vários anos desempregado, alguém deu a ele a chance de fazer um filme. Meu ódio será sua herança havia sido rodado no México entre o fim da primavera e o início do verão de 1968, mas ainda estava no meio de seu longuíssimo período (um ano) de pós-produção. Kenneth Hyman, vice-presidente a cargo da produção mundial da Warner-Seven Arts, tornara-se um defensor do diretor desde que eles se conheceram em Londres em 1965. Na verdade, Hyman disse a Sam que quando estivesse em condições de oferecer-lhe trabalho, ele o faria. Hyman cumpriu a promessa quando assumiu o cargo na Warner, depois de produzir Os doze condenados (The Dirty Dozen) para a MGM. Peckinpah queria fazer um projeto chamado “The Diamond Story”, mas a Warner e Hyman preferiam Meu ódio será sua herança, que então era apenas um argumento, escrito por um velho amigo de Peckinpah, o dublê Roy Sickner. Peckinpah assinou o contrato e Phil Feldman foi designado produtor do filme. Meu ódio será sua herança acabou com as reservas financeiras de Peckinpah e ele, nervoso, se perguntava como seria recebido no lançamento. A morte não manda recado 81


Ansioso por fazer outro filme o mais rápido possível, Peckinpah conseguiu que a Warner aprovasse A morte não manda recado. Aqui estava uma história que significava muito para Peckinpah e ele, mais tarde, disse que foi o único de seus filmes que ele próprio escolheu. Baseado em um roteiro original de Edmund Penney e John Crawford, A morte não manda recado é um western em tom de fábula passado na virada do século. Cable Hogue é um rato do deserto, um garimpeiro sem sorte, prestes a ficar sem nada. Seus dois comparsas, Taggart e Bowen, roubam-no e o abandonam para morrer. Vagando por vários dias, derrotado pelo meio impiedoso, Cable, sentindo-se condenado, cai ao solo e fala com Deus: “Senhor, a decisão é Sua”. Nesse momento começa uma tempestade de areia e ele nota que sua bota está molhada. Ao cavar com as mãos, água sobe à superfície. Ele bebe – está salvo. Tomando posse desse pedaço de terra árida, Hogue cria Cable Springs, um “éden de cactos”, servindo aos passageiros da linha de diligências entre Deaddog e Gila. O que Deus ensinou a Cable é que o artigo mais precioso do mundo, a água, não apenas alimenta a terra e mata a sede de homens e cavalos, mas faz com que o mundo floresça. De repente surgem flores, borboletas e o amor – tudo em meio à mais árida das paisagens. Para Hogue isso é uma revelação. Ele é apresentado a uma vida que nunca imaginou. Com o crescimento vêm as mudanças e, como nos melhores filmes de Peckinpah, a aproximação da civilização e a mecanização do século XX significam desastre para os veteranos. Quem trouxe o roteiro à atenção de Peckinpah foi seu amigo Warren Oates, que pretendia fazer Hogue, ao lado de L. Q. Jones como Sloane. Contudo, Peckinpah achava que a história pedia um outro tipo de interpretação. Ele sondou e conseguiu o inglês David Warner para ser Sloane e Stella Stevens para Hildy. Para o papel principal ele optou por Jason Robards, que havia estrelado Noon Wine, a adaptação que Sam fez para a televisão do romance de Katherine Anne Porter. Robards era um famoso ator de teatro e havia criado personagens memoráveis também no cinema. Nos anos 1970 ele ganharia dois Oscar consecutivos como ator coadjuvante por Todos os homens do presidente (All the President’s Men) e Julia. Como Peckinpah, ele bebia muito e, em 1969, passava por um momento difícil ao se separar da terceira esposa, a atriz Lauren Bacall. Ele era perfeito para viver o bode velho e sua atuação é considerada por muitos como das melhores de sua carreira. Com Meu ódio será sua herança próximo de sua forma final, Peckinpah partiu para Nevada. Nick Redman 82


A morte não manda recado esteve em dificuldade praticamente desde o princípio. Como seria um filme mais barato e em menor escala, o estúdio esperava que reinasse a tranquilidade. Nos créditos apareceria como “Uma Produção de Phil Feldman”, assim como em Meu ódio será sua herança. Peckinpah se deu bem com Feldman e o produtor havia dado todo o apoio a Sam durante a problemática filmagem no México. Peckinpah estava agradecido e esperava fazer vários outros filmes com Feldman. Dessa vez Sam seria creditado como produtor e diretor, tendo Feldman como supervisor executivo. Como não havia um produtor por perto para contê-lo, Peckinpah se excedeu. Segundo o produtor associado Gordon Dawson:“Trinta e seis pessoas foram demitidas. E quando você manda 36 pessoas escolhidas por você mesmo de volta para casa, você perde muitos amigos. Sam esperava que o filme fosse tanto seu quanto dele. Ele esperava que todos, até mesmo os eletricistas, lessem o roteiro. Se eles fizessem algo que, para ele, não combinava com a cena e não teria sido feito por alguém que tivesse lido o roteiro, eles não tinham mais a chance de lê-lo. Estavam demitidos”. Para piorar as coisas, o tempo ficou ruim. No Vale do Fogo, chuvas fortes, dia após dia, transformaram a locação num pântano, pulverizando o cronograma de filmagem em exteriores. Sempre que possível, rodava-se em interiores, mas a maior parte do tempo Peckinpah estava engaiolado no hotel conhecido como Lizard Lounge, emburrado, bebendo e se irritando com os lagartos que despencavam. Logo, as colunas de fofoca e as publicações especializadas passaram a dar notícias diárias sobre A morte não manda recado, que corria o risco de virar uma balbúrdia completa. Inicialmente previsto para custar US$ 880,000, o orçamento começou a subir. Peckinpah estava preocupado. Ele sabia que tinha em mãos a possibilidade de fazer um magnífico filme sobre o fim de uma era e que sua abordagem era invulgar, quase um musical, ou o mais próximo de um musical a que Sam Peckinpah chegaria. O título original já deixava isso claro, A Balada de Cable Hogue – um engraçado, tocante e, por fim, trágico romance no qual a música tinha importância vital. Para conseguir seu objetivo, Peckinpah contratou um cantor e compositor que conhecera em um bar. O problema é que Richard Gillis era um amador, nunca havia trabalhado em um filme. Conseguiria ele fazer toda a música do filme ou a companhia teria de contratar um profissional para socorrê-lo? Qualquer que fosse a resposta, Gillis estava garantido, pois suas canções eram parte integrante do filme. Em outras palavras, elas já haviam sido gravadas para uso nas filmagens. A morte não manda recado 83


A natureza musical de A morte não manda recado é expressa mais obviamente na montage que acompanha o desabrochar do amor de Cable e Hildy no deserto. Os dois atores tiveram de gravar previamente suas vozes cantando e, quando a cena foi filmada, fizeram os movimentos labiais necessários. Robards e Stevens não eram cantores, mas deram o melhor de si. A cena funciona perfeitamente, mas, para a maior parte dos espectadores, ela é a peça-chave do filme – ou funciona ou não funciona. Artifício tão incomum – em um western que joga constantemente com mudanças de tom –, ou forma um elo caloroso com o espectador ou o deixa frio. Uma vez filmado este segmento, Peckinpah sabia que a música deveria fluir para frente e para trás a partir desse ponto. As filmagens de A morte não manda recado terminaram no fim de março. Um membro da equipe, Bob Visciglia, achou que elas haviam sido uma autêntica guerra e disse a Sam que os sobreviventes deveriam receber uma medalha. Peckinpah concordou e encomendou medalhas de ouro a um joalheiro. Em cada uma estava gravado o nome da pessoa que a receberia e a legenda “A Batalha de Cable Hogue – por serviços prestados além do dever”. Durante a primavera, Peckinpah labutou para completar a pós-produção de Meu ódio será sua herança. Ele adiou fazer uma primeira montagem de A morte não manda recado até junho, quando poderia, finalmente, se dedicar inteiramente ao filme. Peckinpah levou sua equipe de montagem para o Havaí. Ele estava exausto e precisava de uma atmosfera mais relaxada para trabalhar. Logo surgiu um grave problema, com ramificações terríveis. A Warner-Seven Arts foi vendida e a Kinney Company assumiu o comando. O protetor de Sam, Kenneth Hyman, saiu, Ted Ashley e John Calley entraram. Meu ódio será sua herança foi avaliado e considerado longo demais. Sem a participação de Sam, a Warner persuadiu Feldman a encurtar sua duração. Além disso, executivos do braço exibidor da Warner viram o copião de duas horas e meia de A morte não manda recado e ficaram loucos da vida. Meu ódio será sua herança era uma tremenda dor de cabeça para o novo comando da Warner e agora A morte não manda recado ameaçava ser um abacaxi que eles não queriam digerir. Phil Feldman ficou dividido. Ele não informou Sam das mudanças que seriam feitas em Meu ódio será sua herança, provavelmente porque sabia que o volátil diretor ficaria tão abalado que o futuro de A morte não manda recado estaria em perigo. Adicione-se a isso que havia um movimento anti-Peckinpah no estúdio que poderia prejudicar os outros projetos de Feldman. Ele tentou atender Nick Redman 84


aos dois lados: executar os cortes em Meu ódio será sua herança e enfrentar a fúria de Peckinpah mais tarde. Enquanto isso, fazer o possível para salvar A morte não manda recado. A questão da música ainda ocupava produtor e diretor, que trocaram mensagens em agosto e setembro, sem chegar a uma conclusão sobre quem deveria compor a partitura. A essa altura, Sam sabia da mutilação de Meu ódio será sua herança e do antagonismo a A morte não manda recado. Naturalmente, ele culpou Feldman. Produtor e diretor continuavam, também, a não concordar com relação à música. Os constantes atrasos facilitaram a contratação do compositor Jerry Goldsmith, a quem Feldman queria desde o princípio, mas que estava ocupado com outros projetos. Novos retardamentos permitiram a Goldsmith passar novembro e dezembro criando a partitura, interpolando as melodias das canções de Gillis onde julgava necessário. As gravações foram marcadas para janeiro de 1970. Peckinpah insistiu para que fosse permitido a Gillis escrever a letra para o tema principal composto por Goldsmith. Com o paciente apoio deste, Gillis mostrou-se inspirado. A letra de “Tomorrow Is the Song I Sing” é perfeitamente emblemática de Cable e da situação na qual ele se encontrava no começo do filme. A noção do “trapeiro” convertendo-se em “rei” está em total harmonia com o cunho alegórico da queda e ascenção de Cable. Para Peckinpah, esta era a peça que faltava no quebra-cabeça. Com a canção-título em seu devido lugar, a narrativa se tornava completa. Em 27 de janeiro de 1970, Phil Feldman escreveu para o novo patrão da Warner,Ted Ashley: “A música é linda”. Se Ashley gostou ou não da música não se sabe, mas ele certamente não gostou do filme. O custo final da produção foi de US$ 3,7 milhões, absurdamente acima do orçamento e impossível de gerar algum lucro. Do ponto de vista do estúdio, A morte não manda recado era um embaraço a ser esquecido. O filme foi convenientemente enterrado em programas duplos em cinemas de segunda linha. Peckinpah acusou a Warner e promoveu entrevistas coletivas para ralhar contra o estúdio. Ele tentou processar a companhia por danos à sua reputação, mas não foi adiante. Derrotado, Peckinpah aceitou o fato de que sua passagem pela Warner chegara ao fim. A relação com seu maior aliado, Phil Feldman, também acabou. Mais tarde, quando o livro de James Dickey Deliverance estava para ser filmado pela Warner, o autor fez uma campanha beligerante para que Peckinpah o dirigisse, mas o estúdio não cedeu. Eles não queriam mais saber dele. A morte não manda recado 85


A morte não manda recado pode ser uma pequena nota de pé de página na história do cinema, mas continua sendo um filme admirável. Ele se aventura por território difícil e pouco habitual, pois conta uma gentil história do Oeste de modo simples e poético, sem sentimentalismo e com a dose exata de sátira excêntrica. Cable, do modo como Jason Robards o interpretou, é um personagem maravilhoso – rude, franco e decididamente humano. Suas falas são repletas de expressões autênticas do Oeste. Unificando tudo está a música – tão poética quanto as palavras, tão aberta quanto o céu, cada nota uma alegria para o ouvido.

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Sob o domínio do medo Nick Redman O Céu e a Terra são implacáveis e tratam as incontáveis criaturas como cães de palha; o sábio é implacável e trata as pessoas como cães de palha. —Lao-tse

Em 1970, Sam Peckinpah estava um tanto perdido. Sua relação com a Warner Bros., que começara de forma tão promissora, havia sido irreparavelmente danificada. Ambas as partes ameaçavam-se com processos, imperava a acrimônia e o nome e a reputação de Peckinpah foram novamente manchados. Tendo realizado Meu ódio será sua herança e A morte não manda recado um em seguida ao outro – e ainda pelejando com a Warner sobre o lançamento deste último – o espinhoso diretor tornara-se, mais uma vez, persona non grata em Hollywood, condição com a qual estava muito familiarizado. Os problemas com a Warner custaram-lhe a oportunidade de dirigir Amargo pesadelo (Deliverance), baseado no aclamado romance de James Dickey. Embora Dickey quisesse Sam, o estúdio não o queria. A Warner não entraria no ringue com Peckinpah uma terceira vez e terminou optando por John Boorman. Foram por água abaixo também as adaptações do brilhante livro Sometimes a Great Notion, de Ken Kesey, e de Play It as It Lays, de Joan Didion. A perda desses projetos tão caros a ele devastou Peckinpah, especialmente porque os estúdios agora o tinham categorizado como diretor de filmes de ação e não alguém capaz de abordar temas Sob o domínio do medo 87


com profundidade psicológica. Temendo um longo período de desemprego, Peckinpah correu quando seu velho amigo Dan Melnick, agora chefe da ABC Pictures (a divisão de cinema da cadeia de televisão) o abordou com um livro intitulado The Siege of Trencher’s Farm, do autor britânico Gordon M. Williams. Peckinpah tinha uma dívida de gratidão com Melnick. Quatro anos antes, quando passava por fase semelhante e não conseguia trabalho, Melnick veio em seu auxílio, oferecendo-lhe um salva-vidas chamado Noon Wine, feito para a série de TV da ABC Stage 67. Agora, por lealdade ou desespero, Peckinpah sabia que deveria aceitar a oferta de Melnick, apesar de não gostar nem do livro de Williams nem do roteiro dele tirado. Mais tarde, Peckinpah diria do autor: “O sr. Williams tem seu trabalho em alta conta. Eu, não!”. Quanto à adaptação de David Zelag Goodman, Peckinpah faria, como sempre, abundantes revisões, moldando a história para refletir suas obsessões temáticas. Mais tarde, durante as filmagens, novas revisões foram confiadas a Colin Welland, o ator que interpretava o reverendo Hood (e que, uma década depois, receberia um Oscar pelo roteiro de Carruagens de fogo / Chariots of Fire). Agradecido pelo emprego e esperançoso em causar boa impressão, Peckinpah voou para Londres, cidade da qual gostava, para montar seu escritório e transformar o roteiro em um drama verossímil. Como o filme seria rodado na Inglaterra, Sam ficaria privado de seu habitual bando de cúmplices; regulamentos sindicais barravam seus técnicos americanos, seus atores habituais, seus assistentes pessoais e companheiros de copo. Basicamente só, ele estava entediado e irritadiço e mais do que nunca propenso a aumentar o seu já elevado consumo de álcool. Contudo, ele conheceria duas senhoras inglesas que teriam enorme influência em sua vida nos anos seguintes: Katharine (Katy) Haber, que ficou com ele intermitentemente por sete anos como amante, confidente e inestimável assistente; e Joie Gould, que, estranhamente, foi até testada para o papel de Amy antes de assumir a função de sua outra amante durante as filmagens e, mais tarde, de sua esposa (embora por apenas alguns meses). [Convém informar que sou amigo pessoal de Katy Haber, que testemunhou pessoalmente muitos dos episódios tumultuados aqui narrados.] Forçada a aceitar o cargo depois que várias predecessoras desistiram dele, e sem nada conhecer do iconoclasta diretor, a primeira missão de Kate foi datilografar a cena do estupro: o controvertido cerne da história que condenaria para sempre o filme a ser difamado e insultado em todo canto. O roteiro ficou Nick Redman 88


pronto no outono e as filmagens começariam no frio brutal de janeiro de 1971. A escolha do elenco também prosseguia, com Jack Nicholson e a atriz britânica Carol White (A lágrima secreta / Poor Cow) como os preferidos de Peckinpah. O acaso, entretanto, proporcionou Dustin Hoffman como um soberbo ator principal. Uma prolongada busca resultaria na descoberta de uma ninfeta de 20 anos, a tentadora e fascinante Susan George. O restante do elenco foi preenchido com um seleto grupo de atores secundários: Peter Vaughn como o velho Hedden, T. P. McKenna como o juiz, Del Henney como Charlie Venner, Ken Hutchison como Norman Scutt, Sally Thomsett como Janice Hedden e, sem receber crédito, como o deficiente mental Henry Niles, David Warner. Tendo atuado em A morte não manda recado, Warner era a única pessoa que Peckinpah conhecia no set. Aqui um parêntese que bem ilustra a obscenidade que grassava atrás das câmaras: a razão pela qual Henry Niles caminha com uma bengala no filme é porque algum tempo antes Warner teve de saltar da janela do quarto de uma mulher, fraturando ambas as pernas na queda – um sacrifício, disse ele depois, feito em nome de todos os conquistadores do mundo. Também ligeiramente incapacitado estava T. P. McKenna, que quebrara o braço ao cair, bêbado, de uma mesa durante uma festa promovida por Peckinpah antes do início das filmagens (e para a qual Haber recebeu instruções de providenciar um sortimento de prostitutas). Foi nesse clima tumultuado que Sam Peckinpah rumou para St. Buryan, uma pequena vila na Cornualha, a fim de rodar aquela que se tornaria uma cause célèbre nacional e internacional A trama do filme é simples, mas incendiária: um professor de matemática americano, David Sumner (Dustin Hoffman), muda-se com sua jovem esposa inglesa, Amy (Susan George), para uma remota localidade no campo, onde David pretende trabalhar em paz, longe da família de Amy. Mas, a atmosfera logo fica envenenada quando os problemas de relação do casal são exacerbados por forças externas. Entre os operários contratados para fazer uma obra na casa estão Charlie (Del Henney), um ex-namorado de Amy, e Norman (Ken Hutchison), que gostaria de ser o próximo. Detestando David por ser um intruso ianque e um intelectual “delicado”, desejando a sensual Amy e observando diariamente as desavenças do casal, os dois imiscuem-se mais e mais na vida privada de David e Amy, culminando na violação física dela, perpetrada primeiro por Charlie e depois, sob a mira de uma arma, por Norman. Esse horror é espelhado na subsequente morte “acidental” da sedutora adolescente Janice Hedden por Henry Sob o domínio do medo 89


Niles. Mais tarde, David inadvertidamente dará abrigo a Henry, desencadeando uma torrente de hostilidade quando parentes e amigos de Janice, embriagados, cercam a casa, sedentos de sangue. Acostumado à violência na tela, Sam Peckinpah havia lido recentemente dois livros de Robert Ardrey, African Genesis e The Territorial Imperative, ambos tratando do impulso instintivo do homem em resolver conflitos através do comportamento guerreiro. A Guerra do Vietnã prosseguia, em 1970 houve distúrbios em vários campus americanos e rebeliões de estudantes espocavam ao redor do mundo. Se Meu ódio será sua herança havia sido, em parte, uma alegoria sobre o envolvimento americano no sudoeste asiático, Sob o domínio do medo seria o apocalipse de um homem, uma descida do racional para o irracional, da razão para o instinto, uma regressão ao primordial. Sua ambientação na Inglaterra evoca horror gótico, maldade nos charcos, os elementos em cruel alinhamento. O idiota da aldeia incapaz de controlar seus impulsos, os desordeiros bêbados, zangados e insatisfeitos, a esposa sexualmente agitada e o marido covarde são os ingredientes de uma mistura diabólica e sombriamente instável, pronta a entrar em combustão. Adicione-se a essa volátil composição o próprio diretor, cuja permanente sensação de estar sob ataque, combinada aos altos e baixos emocionais alimentados pelo álcool, garantia que o resultado seria explosivo de vários modos. As primeiras semanas de filmagem foram todas feitas em exteriores na rua principal do vilarejo e na área em torno do chalé dos Sumner. Peckinpah temia que isso complicasse a rodagem do cerco à casa no clímax do filme, pois os interiores só seriam feitos em fins de março e abril, em cenários construídos nos estúdios Twickenham em Londres. Mais preocupante foi a perda de dois diretores de fotografia – Arthur Ibbetson, que abandonou o projeto pois achou-o ofensivo, e Brian Probyn, que afastou-se depois de brigar com Peckinpah por discordar dos métodos do diretor. A escolha seguinte, John Coquillon, provou ser acertada: seu trabalho, em especial nos apertados interiores durante o cerco, ajudou a intensificar o drama e o suspense. Esse problema foi solucionado, mas logo apareceu outro, graças ao congelante frio nas locações em fevereiro. Já enfraquecido pelas preocupações, exaustão e constante uso de bebidas, Peckinpah foi diagnosticado com pneumonia. Com o diretor hospitalizado, a produção foi interrompida, reuniões de emergência convocadas e tomada a decisão de demitir Peckinpah. Mas, o fiel empresário Nick Redman 90


de Sam, Martin Baum, interveio; ele e Dan Melnick chegaram a um acordo para dar a Peckinpah uma última chance. Com os brios feridos por essa quase calamidade e robustecido pelo período de repouso, Sam retornou e prosseguiu vigorosamente com o filme, como se os demônios do inferno estivessem em seu encalço – o que, de certo modo, era verdade. Quando as filmagens terminaram em 29 de abril de 1971, Sam Peckinpah não tinha muita certeza do que havia feito. Como era habitual com ele, o processo de montagem foi longo e complicado, dele emergindo várias versões diferentes do filme. Peckinpah permaneceu na Inglaterra até junho, quando levou seus montadores para os Estados Unidos, onde preparava seu próximo filme, Dez segundos de perigo. Não era incomum para Sam trabalhar dessa maneira; na realidade, ele se sentia energizado filmando Dez segundos de perigo durante o dia e dando forma a Sob o domínio do medo à noite. E seus esforços eram extraordinariamente auxiliados pela chegada de um velho e apreciado colaborador, o compositor Jerry Fielding. A princípio, Fielding ficou chocado com a temática do filme e esforçou-se para formular uma teoria sobre que tipo de música seria conveniente. Mais tarde, declarou que Sob o domínio do medo foi o mais difícil de todos os filmes para os quais escreveu a música, não pela composição em si, mas pela busca de uma linguagem apropriada.

Sob o domínio do medo 91



“Sam era uma mulher”:

um argumento contra a misoginia de Sam Peckinpah Julie Kirgo

Se você ama Sam Peckinpah, rapidamente aprende a estar municiado e bem disposto a participar de qualquer discussão sobre o trabalho dele. Controvertido em seu tempo, Peckinpah continua a ser, um quarto de século depois de sua morte, um barril de pólvora pronto a detonar. E ele certamente não gostaria que fosse de outro modo. Sua chama criativa era alimentada por conflitos e ele não tinha problema algum em jogar gasolina na fogueira. Muitos de seus pronunciamentos públicos (a notória entrevista para a Playboy em 1972 é, possivelmente, o exemplo mais flagrante) pareciam feitos para confirmar a pior opinião que os críticos tinham dele – e, com certeza, para impelir seus defensores a montar ainda mais veementes contra-ataques Ser um defensor de Peckinpah é duro, embora estimulante, mas é uma atividade peculiarmente solitária se acontece de você ser uma mulher. Apesar de toda a celeuma provocada pelo impiedoso tratamento dado pelo diretor aos temas da violência, autodestruição e redenção (assuntos do interesse, diga-se de passagem, de qualquer ser pensante, incluindo aqueles equipados com seios), é a maneira como ele olhou para as mulheres que parece ter trazido à tona um Sam era uma mulher 93


tipo especialmente cáustico de desprezo, para não dizer de fúria. Faça uma pesquisa na internet combinando o nome Peckinpah com a palavra misógino e você encontrará mais de 10 mil itens – e, sem dúvida, nem todos saídos das esperadas fontes feministas (ou mesmo originados por mulheres). Para cada Molly Haskell ferozmente condenando-o por seu “sentimento, visceralmente aparente em filme após filme, de que toda mulher, no fundo, é uma prostituta”, existem dezenas de críticos homens que concordam com ela. Um fã de renome (e muito homem) como David Thomson pode se perguntar, num rompante de retórica, “Houve algum outro diretor tão triste, tão apaixonado, tão perigoso? Tão belo?”, e então desferir, “Na tela, Peckinpah foi um misógino impiedoso”. Para uma entusiasta de Peckinpah, lutar contra seu próprio sexo por causa de uma pessoa que divide tanto as opiniões é ruim o bastante – um tipo perverso de colaboração com o inimigo. Mas, pior ainda é a sensação de que é uma colaboração em nada tolerada pelo outro campo. Como argumentar com homens que sabiamente concordam que Peckinpah maltratava as mulheres? Principalmente homens como os profissionais de Peckinpah, um fervoroso grupo de especialistas que fizeram da contínua reputação do cineasta sua causa e missão. Eles formam, nas palavras de Thomson, “um culto que difunde desejos reais ou imaginários de Sam muito depois da morte dele”. A resposta parece ser: veja os filmes, cuidadosamente e sem preconceito, mas também sem censurar o ponto de vista feminino. Existem, claramente, elementos de misoginia na obra de Peckinpah (como na de George Cukor também). A esposa passiva e esbofeteada (Ali McGraw) e a conspícua vadia (Sally Struthers) de Os implacáveis não representam o melhor do pensamento do cineasta sobre as mulheres.Tampouco Hildy (Stella Stevens), a prostituta com coração de ouro de A morte não manda recado; Peckinpah alternadamente torna-a aceitável e a humilha. É interessante notar que a cena mais convincente entre Hildy e Cable (Jason Robards) é aquela em que ele se volta contra ela numa crise de ciúme. Quanto àquela titânica força da natureza que é Meu ódio será sua herança, não é à toa que Paul Seydor, em seu incomparável estudo dos westerns de Peckinpah, intitulou o capítulo sobre a obra-prima como “Homens sem mulheres”. As poucas que aparecem são, em sua maioria, prostitutas que seguem o bando. Na batalha final, uma dessas pombas maculadas atira em Pike Bishop (William Holden) pelas costas, recebendo a exclamação “Puta!” e um tiro como troco. Ai! Se você é uma mulher que ama Meu ódio será sua herança, fica difícil não tomar as dores. Julie Kirgo 94


Mas, essas são as exceções. Olhe para além delas e uma surpreendente coleção de personagens femininas complexas começa a emergir das trevas da má reputação de Peckinpah. E frequentemente dos filmes que receberam as críticas mais severas por sua visão brutal das mulheres. Embora existam muitas evidências que sugerem que o diretor era um misógino empedernido na vida real, em seu trabalho, talvez inconscientemente, ele era algo diverso: um artista rigoroso que procurou ver a vida em sua plenitude, em toda a sua dolorosa, às vezes gloriosa, ambiguidade. Em sua primeira obra-prima, Pistoleiros do entardecer, foi uma mulher que deu voz ao seu credo: “Meu pai diz que só existe certo e errado, bem e mal, nada mais. Não é tão simples assim, é?”. E um homem, inspirado no próprio pai que Peckinpah temia e idolatrava, confirma a intuição dela: “Não, não é. Deveria ser, mas não é”. A mulher intuitiva é Elsa Knudsen (luminosamente interpretada pela subestimada Mariette Hartley), que vive praticamente como uma escrava de seu pai fanático religioso (R. G. Armstrong). Uma rebeldia natural vai se formando dentro do peito castamente coberto por ordem paterna. David Thomson fez a seguinte generalização arbitrária sobre Peckinpah: “Suas mulheres são cadelas, prostitutas, meretrizes santificadas, vagabundas, traidoras, madonas locais”. Elsa, claramente, não é nada disso. Ela é, na verdade, jovem e ingênua, forte e determinada, trabalhadora (quando a vemos pela primeira vez, suas roupas fazem supor que se trate de um rapaz), com um congênito anseio de liberdade e um saudável interesse pelo sexo oposto. Essas duas últimas qualidades – invariavelmente positivas quando ligadas a personagens masculinos – são as causas de seus problemas; Peckinpah reitera que isso não é só injusto como absurdo. Quando seu pai a vê conversando inocentemente com Heck Longtree (Ron Starr), manda-a para casa e pergunta, “Quando você vai aprender a ser decente?”. Ironicamente, com a possível exceção do virtuoso Steve Judd (Joel McCrea), que se tornará seu pai substituto, Elsa é a personagem mais honesta de Pistoleiros do entardecer. Por isso é tão chocante quando ela confronta seu pai por causa do anormal, possivelmente incestuoso, zelo dele (“Todo homem é o homem errado, menos você”) e ele a agride fisicamente. Essa repentina erupção de violência, que se desenrola em silhueta, nada tem de gratuita – e não deixa dúvida que Peckinpah está do lado da jovem sofredora. É interessante notar que Hartley, então com 21 anos, estava na época envolvida em um relação abusiva com um marido ciumento que frequentemente Sam era uma mulher 95


batia nela. É possível que o diretor (que um de seus atores favoritos, Strother Martin, chamou de um “psiquiatra sujo”) tenha usado este fato para instigar a atriz na sua empática atuação. Movida pelo comportamento sádico de um homem, Elsa faz o que Peckinpah descreve como uma perfeitamente compreensível fuga rumo à liberdade e cai nos braços de outro homem que trairá sua confiança. Juntando-se a Judd, Heck, e Gil Westrum (Randolph Scott), ela parte para o campo de mineração de Coarsegold, esperando encontrar Billy Hammond (James Drury), um jovem impetuoso que a pedira em casamento. No momento em que chega a Coarsegold, Elsa se dá conta de que saiu de uma situação ruim para uma pior. A cidade – uma coleção de cabanas caindo aos pedaços e barracas rasgadas ao pé de uma pilha de resíduos de metais – é uma pocilga e Billy, embora entusiasmado com o casamento, arrasta Elsa como se fosse uma boneca de pano e prontamente a apresenta aos seus esquisitos irmãos, todos sinistramente entusiasmados com a entrada dela para a família. “Ela deve ser quente”, é o consenso babão deles – uma opinião dada quando Elsa está tensa com o casamento que vai acontecer, cansada e suja da viagem e vestindo uma pouco atraente roupa masculina. Em outras palavras, sua sexualidade está em baixa. É o desejo masculino que ignora a realidade e cria uma fantasia do que quer: uma mulher “quente” e disposta. Apesar de suas dúvidas crescentes, Elsa, como tantos homens nos filmes de Peckinpah, está determinada a ir até o fim. Trajando branco virginal, ela é acompanhada pelos Hammond à cerimônia de casamento, um rito sagrado que se transforma em pesadelo e encontrará um eco potente na perturbadora sequência da festa da igreja de Sob o domínio do medo. Ambientada no saloon/ bordel de Coarsegold, presidida pelo bêbado da cidade e com um grupo de tristes prostitutas como damas de honra, a cerimônia é um medonho show de horror de proporções fellinianas. Uma robusta cafetina de seios pontudos fica dando bebida para Elsa e comanda a congregação de beberrões e clientes num animado coro da tradicional canção de núpcias “Ela é uma boa companheira”. A partir daí as coisas só pioram. Com sua última centelha de decência extinta pelo álcool, Billy decide exercer seu direito matrimonial atrás de uma cortina num canto do saloon. Quando Elsa resiste, ele bate nela com uma ferocidade semelhante à do pai dela – e Peckinpah certifica-se de que vejamos a conexão, iluminando a cena em um claro-escuro similar. O choque final acontece Julie Kirgo 96


quando os outros irmãos Hammond avidamente se aproximam. Ao que parece, eles querem participar. Apenas a providencial chegada de Judd e Heck impede uma violação coletiva. O que é realmente notável nesta sequência – uma das melhores do filme, com a emboscada na montanha e o tiroteio do clímax – é o fato dela ser apresentada do ponto de vista de Elsa, com tomadas inclinadas e closes de rostos maliciosos comunicando sua perspectiva torturada. “Seu terror ao descobrir o que se espera dela é um terror ao que Peckinpah responde com grande delicadeza”, observaria Pauline Kael. “Como espectadores, nos sentimos na pele dela. Duvido que alguma cineasta feminista tenha igualado esta sequência.” A extraordinária sensibilidade e atenção ao detalhe que Peckinpah dedica ao seu retrato de Elsa torna um comentário como o de Molly Haskell ainda mais espantoso: Peckinpah, escreveria ela, é “culpado” de uma “gentil indiferença” com relação à protagonista feminina de Pistoleiros do entardecer. Desconcertante em si, esta observação torna-se duplamente surpreendente quando consideramos que, no fim, Elsa é não apenas uma complexa e multifacetada personagem, mas, também, o agente da redenção dos homens que a conhecem. Heck descobre uma honrável masculinidade em seu amor por Elsa e Gil Westrum inicia seu caminho de retorno ao gênero humano quando a ajuda a escapar de Coarsegold com uma hábil exibição de malandragem. Que maior homenagem poderia um roteirista/diretor fazer a um personagem, masculino ou feminino? Diga-se de passagem que Haskell, uma competente e inovadora crítica, escreveu sobre Pistoleiros do entardecer enquanto rumava para uma bem mais contundente condenação de Sob o domínio do medo, o filme que, acima de que qualquer outro, tem servido como plataforma para as mais vociferantes afirmações da misoginia de Peckinpah. Filme banhado em inquietação, Sob o domínio do medo é, com absoluta certeza, uma obra-prima de misantropia; sua visão da raça humana não é edificante. Mas, ao contrário do consenso geral, ele não seleciona as mulheres como alvo de escárnio. Sua principal figura feminina, Amy Sumner (a extraordinária Susan George), é, na verdade, o personagem apresentado com mais simpatia e sua punição é muito injusta. Mas, você jamais saberia disso se ouvisse os mais ilustres críticos do filme – comumente mulheres. “Susan George”, escreve Haskell, “pavoneia como Daisy Mae [N.T.: voluptuosa personagem da história em quadrinhos As aventuras de Ferdinando / Li’l Abner] entre os caipiras e então leva uma Sam era uma mulher 97


vez, duas vezes e mais uma vez porque não passa de uma assanhada.” Mesmo Pauline Kael, uma dedicada apologista e amiga de Peckinpah por toda a carreira de ambos, refere-se a Amy como “bonequinha casada vagabunda... cocotinha provocante... vadia insatisfeita... uma esposa-criança que quer que brinquem com ela” (Kael também chamou Sob o domínio do medo de “obra de arte fascista”). De algum modo, esses críticos parecem com o cego que apalpa a tromba de um elefante e depois o descreve com algo longo, semelhante a uma cobra: eles não veem o quadro completo. Realmente, Amy é apresentada como um dorso sem cabeça, um par de seios sem sutiã que balança animadamente quando ela anda pela rua principal do vilarejo inglês para o qual retornou como a mulher de um matemático americano, David Sumner (Dustin Hoffman). Contudo, mais uma vez Peckinpah deixa claro que é o olhar masculino que a reduz a partes do seu corpo: ela está sendo comida com os olhos por um grupo de habitantes locais (o equivalente atual dos irmãos Hammond), que inclui seu antigo namorado Charlie Venner (Del Henney). Quando passamos para um plano aberto, vemos que Amy não está vestida como Daisy Mae; na verdade ela usa jeans, tênis e uma suéter grossa de gola rulê – dificilmente um traje que provoque sonhos eróticos. Falta apenas o sutiã, pelo que, mais tarde, seu marido a repreenderá. “Por que você não usa sutiã?”, ele pergunta acusadoramente. “Por que eu deveria?”, ela responde. E, realmente, por que a reputação e a segurança de uma mulher deveriam depender do uso ou não de um sutiã? “Você não deveria andar por aí sem sutiã e esperar que aquele sujeito não vá olhar”, David responde, com a veemência de quem culpa a vítima. (Convém sublinhar que na época do filme feministas queimavam sutiãs em protesto e essa peça de vestuário causava discussão, o que é difícil de imaginar nos nossos dias de seios quase à mostra em toda parte.) Amy é injustamente julgada de outras maneiras, no mundo de Sob o domínio do medo e nas críticas ao filme. Por ser provocante e por ser jovem (George tinha apenas 20 anos durante a produção), ela é considerada inapropriada para David em termos de classe social e intelecto. Na verdade, ela não é uma aldeã comum, apesar de sua habilidade em socializar com os nativos; ela é saudada como uma igual pela nobreza local – o Major (T. P. McKenna) e o reverendo Hood (Colin Welland) – e é significativo que a casa decorada com bem cuidadas antiguidades e pedra trabalhada que ela divide com David seja de sua família. Além disso, ela conheceu David quando estudava em uma universidade americana, Julie Kirgo 98


dificilmente algo que aconteceria com gente como Charlie, seu grosseiro amigo Scutt (Ken Hutchison) ou o caçador de ratos Cawsey (Jim Norton). Amy é uma cidadã do mundo, à vontade em qualquer lugar e capaz de se dar com todos, ao contrário de seu eternamente desconfortável marido. Quanto à sua capacidade intelectual, apesar dos intermináveis comentários mordazes de David (quando ela, orgulhosa, começa a explicar o trabalho dele, é interrompida com um brusco, “Boa tentativa”), ela demonstra inteligência (sua rápida compreensão de números binários faz com que David reaja com insultante surpresa: “Você é esperta; Você não é tão burra”) e acuidade psicológica. “Eu sei por que você está aqui”, ela diz para ele, referindo-se à sua fuga de uma América política e socialmente conturbada. “Será por que não há outro lugar para se esconder?” Amy é perspicaz e isso causa ressentimento em David. Então, ele desconta nela em maior ou menor escala. David é como um homem de Neandertal irritadiço e Amy, sua vítima sofredora. Ela diz para ele, quase implorando, que quer ajudá-lo; ele responde, “Você quer ajudar? Conserte o vaso sanitário, limpe a cozinha”. Quando ele reclama que o gato dela (um animal totalmente identificado com Amy que ele atormenta ocasionalmente) não responde quando ele chama, ela diz insolentemente, “E eu respondo?” “É melhor que responda”, diz ele com suprema torpeza machista. Ele faz caso da criancice dela; ao oferecer-lhe chiclete, David fica olhando para ela mascando com vontade e ironiza, “Você age come se tivesse 14 anos”. Depois a incita, “experimente 12” ou, melhor ainda, oito: “Fico doido com garotas de oito”. Pouco importa que tenha sido ele que ofereceu o chiclete a ela ou que ele próprio esteja mascando; o que ele desaprova é o prazer dela em fazê-lo. De alguma forma, os prazeres de Amy – outras pessoas, seu gatinho, dirigir velozmente ouvindo música alta, sua mente brincalhona, seu corpo saudável – são uma ofensa para David e, frequentemente, para os críticos de Sob o domínio do medo. Ele a chama de criança, eles a chamam de menina-mulher. Mas, reiteradas vezes Peckinpah a mostra como uma verdadeira adulta, especialmente em questões de sexualidade. Ele brinca com ela, mas quando as coisas ficam sérias sexualmete, ele evita, protela, até foge. Na cena mais extensa de intimidade sexual entre os dois, ele interrompe o estudo de xadrez dela (algo que ela faz para agradá-lo) e inicia animadas preliminares. Mas, na hora de chegar às vias de fato, ele interrompe para tirar os óculos e o relógio de pulso e para dar corda no despertador. Peckinpah parece perguntar: quem tem um problema aqui? Sam era uma mulher 99


Da mesma forma, Amy é responsabilizada pela tensão sexual entre os operários que trabalham na garagem dos Sumner. Mas, por quê? Isso começa logo que o filme se abre, quando ela os cumprimenta amigavelmente, mas sem nenhuma intenção de sedução. Charlie, que não a vê há anos, parte logo para o ataque: “Lembra-se de quando eu cuidava de você, Amy?” Ela o corrige imediatamente: “Mas você não cuidou, lembra-se?” Ele ignora a indireta e toma liberdades, tocando-a e murmurando, “Havia um tempo, Sra. Sumner, em que estava pronta a me implorar por aquilo”. A resposta dela é inequívoca: “Tire as mãos de mim!”. Mas, os rufiões não querem entender. Como o marido – cuja habitual e deliberada falta de resposta quando ela o chama é um elemento recorrente no filme –, eles não escutam Amy. Mesmo quando está tentando manter uma paz precária com David e com eles, ela é assediada pelos olhares, risinhos e agressiva intimidação sexual destes. Peckinpah nos mostra mesmo um incidente que Amy desconhece: o roubo de uma calcinha sua, que vai parar no bolso da jaqueta de Scuff para ser exibida e ostentosamente cheirada no bar local. É de se perguntar o que Amy fez para merecer tal indignidade. Ao que parece, meramente ser mulher é provocação o bastante. O ato mais provocante de Amy – o momento em que mostra os seios aos trabalhadores, comumente usado para amparar a tese de que ela é uma “vadia” que “está implorando por aquilo” – é, de fato, uma impensada, mas compreensível, resposta a uma série de hostilidades lançadas a ela pelos homens à sua volta, inclusive seu marido. Ao chegar em casa após pegar (como uma boa esposa) um pacote na lavanderia, ela nota, saindo do carro, que sua meia-calça está rasgada. Distraidamente avaliando o tamanho do estrago, ela é repentinamente alertada pelos olhares libidinosos dos trabalhadores empoleirados num telhado próximo. Peckinpah usa uma série de planos aproximados para tornar explícitos a luxúria dos desordeiros e o tormento de Amy. Não há flerte aqui, nem um mínimo de provocação. Ela abaixa a saia e marcha zangada para dentro de casa, atirando o pacote e dizendo furiosamente para David, “Eles estão praticamente lambendo o meu corpo!”. Em vez de defendê-la ou, ao menos, de oferecer-lhe algum conforto, ele imediatamente a trai, tomando partido dos idiotas: “Eu os cumprimento pelo bom gosto”. David culpa Amy por acender o interesse dos trabalhadores ao não usar sutiã (neste momento, particularmente, ela veste um casaco pesado, o que impede que a avidez deles seja inspirada por mamilos); ela rebate, dizendo, “Se você Julie Kirgo 100


soubesse usar um martelo,Venner e Scutt não estariam aqui”. A discussão cresce em intensidade, mas, quando se aproxima de verdades desagradáveis sobre seu casamento, eles recuam, num empate forçado. Amy vai para o andar de cima tomar banho. “Você não precisa de banho”, diz David. “Eu acho que sim”, ela responde enfaticamente; fizeram com que ela se sentisse suja. Tirando a suéter, ela a arremessa ao andar de baixo para alfinetar David que, com atraso, torna-se protetor – de Amy?, de sua “propriedade”?, de seu orgulho? –, lembrando-a de fechar a cortina. Irritada, decepcionada e desafiadora, Amy caminha, nua da cintura para cima, para próximo de uma janela aberta. Do lado de fora, os homens trabalham no telhado. Amy para por um instante – o suficiente para que Charles, em particular, a veja – e, então, se vai. A mensagem em seu rosto contrariado – para quem se dispuser a olhar acima dos seios – parece clara: “Quer olhar? Vá em frente, olhe, babaca!”. Mas, aos olhos dos desordeiros – e, aparentemente, de muitos espectadores –, Amy é uma “assanhada” e vai ter o que merece. Mas, antes disso, significativamente, Peckinpah dá a David outra chance de defender sua esposa. E, mais uma vez, sua omissão – falta da qual Amy já o acusara – acaba com eles. Quando se preparam para dormir, comentando a desagradável visita do reverendo (retratado como um porco chauvinista que porta-se miseravelmente com sua distinta esposa, dessa forma comprovando que o mau tratamento das mulheres vai de um polo a outro da sociedade local), Amy lança um apelo velado para que David lhe dê um pouco de suporte emocional: “Às vezes”, diz ela, “eu preciso de ajuda”. A conversa é interrompida quando, ao abrir o armário, David encontra algo horripilante: o gatinho de Amy enforcado. Ele bate a porta e volta-se para sua esposa, perturbado; por um momento quase acreditamos que ele fará algo para suavizar o choque dela. Mas ele permanece atônito e permite que ela descubra o gato sozinha; ele não ajuda em nada. As coisas pioram. Amy fica enfurecida, certa de quem é o responsável (“Scutt ou Cawsey!”; repete ela três vezes, como uma fórmula mágica) e quer que David confronte os assassinos. Recusando a admitir a verdade, ele vacila, mesmo quando ela diz categoricamente que eles estrangularam o gato “para provar a você que poderiam entrar no seu quarto”. Ele olha para ela vagamente: “Eu não acredito nisso”. Ela continua martelando, mas ele não aceita fazer uma acusação direta. Em típico comportamento passivo-agressivo, ele decide que o melhor será “pegá-los desprevenidos” convidando-os a entrar sob o pretexto de precisar de ajuda para pendurar um presente que ela lhe dera, uma armadilha, Sam era uma mulher 101


de aparência medieval, feita para pegar caçadores clandestinos. Alguém disse simbolismo de vagina? Em uma patentemente alongada metáfora, David cede sua mulher aos vândalos – e se acaso você não entendeu, Peckinpah repisa o assunto. “Aberta ou fechada, Mr. Sumner?”, pergunta Charlie, apontando para as mandíbulas pontiagudas da armadilha. “Aberta, se você conseguir” (a insinuação é de que ele não conseguirá). Com a ajuda de Scutt, Charlie consegue (como um presságio nada heroico) forçar a armadilha a abrir, observando, “Ela morde, senhor”. David murmura: “Eu percebi isso”. Contudo, nada é dito sobre o gato. É Amy quem tem a coragem de dar a entender aos assassinos que ela sabe, trazendo uma bandeja com bebidas e uma conspícua tigela de leite. Todos os homens, incluindo David, deliberadamente ignoram a clara mensagem dela; e Peckinpah não tem dúvida em mostrar a reação de Amy, um novo desprezo por seu marido que é aumentado quando ele avidamente (e quase pateticamente) aceita um surpreendente convite dos provincianos para ir caçar com eles no dia seguinte. Ao que parece, David está mais interessado em camaradagem com eles do que em defender sua esposa. O convite é, obviamente, uma artimanha para permitir a Charlie estar a sós com Amy. Começa então a mais controvertida cena da obra de Peckinpah, mais polarizadora mesmo que a batalha final em câmera lenta de Meu ódio será sua herança, que tinha a vantagem de lidar abertamente com a violência, um assunto aparentemente mais palatável que o sexo. Na realidade, a violação dupla que se segue é igualmente sobre violência, e a compreensão de Peckinpah desta verdade fundamental sobre a violação indica que ou ele leu sobre o assunto ou tinha uma compreensão instintiva (embora, talvez, inconsciente) da psiquê feminina. A interpretação mais amplamente aceita desta cena é de que Charlie começa estuprando Amy, que, excitada com a sua brutalidade, sucumbe aos seus encantos másculos – ou, como alternativa, revive lembranças da antiga relação dos dois – e termina por entregar-se a ele voluntariamente.Tendo gostado desta “boa” violação ela deve passar por uma versão “ruim”, imposta a ela por Scutt com o conluio e assistência de Charlie. Esta leitura supõe que Peckinpah acredite que Amy pediu por isto, recebeu de Charlie o que queria e então ganhou de Scutt mais do que desejava. Ao contrário, como já vimos, Peckinpah tem uma noção bem diferente de quem e o que Amy é, e não sanciona tal interpretação. Charlie chega na casa e encontra Amy dedicada a uma tarde de leitura, vestindo um robe velho, camiseta e óculos – em outras palavras, não exatamente Julie Kirgo 102


uma isca sexual. E ao vê-lo ela pergunta pelo marido: “Tudo bem com o David?”. Ao saber que sim, ela passa, sem rodeios, ao próximo assunto: “Eu gostaria de saber o que você acha de gatos”. É Charlie quem aperta o gatilho sexual, simultaneamente tornando explícita a conexão entre Amy e o gatinho estrangulado: “Eu gosto de gatos”, ele diz e a beija. Por um momento, Amy acredita que possa controlar a situação; ela rejeita Charlie inequivocamente três vezes, afastando-se e dizendo, “Por favor, me deixe”, esbofeteando-o com força quando ele avança novamente e gritando, “Saia!”. Mas, Charlie é simplesmente maior e mais forte que ela. Ele a golpeia – aqui, deliberadamente, Peckinpah ralenta a ação para enfatizar a tremenda força da violência que Charlie pode infligir. Os que argumentam que a câmera lenta de certo modo erotiza a ação deveriam notar que somente os ataques de Charlie têm esta perversa propriedade sensual; quando ela bate nele o filme passa em velocidade normal. Somente Charlie (e, claro, os espectadores, que tem com o estuprador uma perspectiva de cumplicidade) pode ver o que se passa como sexual. Amy não pode e não vê. A erotização, Peckinpah parece dizer, está nos olhos de quem vê. A vítima só entende o estupro como um ato de violência. Seria difícil, se não perverso, encontrar uma sugestão de prazer na reação de Amy à dolorosa surra que recebe de Charlie, ou no que acontece a seguir, quando ele a arrasta pelos cabelos como um homem das cavernas (ela grita todo o tempo; isso dói) e a joga no sofá. Boa parte da sequência agora se passa do ponto de vista de Amy, com o rosto e o dorso de Charlie ameaçadoramente acima dela (e lhe lembrando, nos primeiros rápidos planos subliminais do filme, de seu decepcionante porém mais dócil marido). Ela foi, literalmente, subjugada, mas continua a resistir, dizendo “não” uma boa dúzia de vezes, tentando empurrá-lo, fazendo uma fútil tentativa de se cobrir quando ele sem esforço rasga a sua roupa. Mas, ele continua a reagir com força bruta, facilmente afastando as mãos dela, prendendo-as contra o sofá, ameaçando-a com sua pata erguida e rugindo um ameaçador “Amy!” Ela se encolhe, amedrontada. Como pode ela combater alguém tão mais forte e tão disposto a usar de violência contra ela? Então Amy faz o que outras vítimas de estupro também fizeram, desde tempos imemoriais: ela tenta mudar a dinâmica de brutalidade bárbara para algo que a permitirá sobreviver. Ela faz exatamente o que um estudo da Universidade de Minnesota sobre “Os mitos do estupro” recomenda: “Visto que o estupro coloca uma vida em risco… a melhor coisa que a vítima pode fazer é Sam era uma mulher 103


seguir seus instintos e respeitar qualquer sinal do estuprador. Se a vítima escapar com vida ela terá feito a coisa certa”. Amy é irmã da mais experiente Elita de Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia, que cria uma atmosfera quase mágica para atrair o agressor que ameaça de morte seu amante. Colocando a mão no rosto de Charlie, Amy o aplaca; ela permite que ele a beije; ela diz a ele, “Calma”. Ela não está ali deitada pensando em como ficou excitada, nem mesmo, “Isso não é tão ruim assim”. Lágrimas descem pelo seu rosto, ela apenas quer que chegue ao fim. Peckinpah vai ao ponto de nos mostrar, meticulosamente, o momento em que Charlie, totalmente excitado, a penetra. Seu rosto contorcido em dor – ignorantemente interpretada por alguns como êxtase – nos mostra que ela não está em nada estimulada. Não é divertido, dói. (Se outra pista é necessária ouça a soberbamente sombria música de Jerry Fielding, que longe de comunicar êxtase, poderia perfeitamente adornar um filme de terror.) Ao fim, quando Charlie murmura um deploravelmente inapropriado “Desculpe” e ela responde, “Me abrace”, ela ainda está tentando mudar o cunho da experiência – agora, talvez, tanto para ela mesma quanto para seu agressor. Mas já é tarde demais; os que duvidam só precisam ver as imagens para as quais Peckinpah corta imediatamente: David atirando em um pássaro, cujo corpo mole ele acalanta como Charlie agora acalanta Amy. O cineasta não faz segredo de seus sentimentos pessoais, associando Amy seguidas vezes a animais inocentes, vulneráveis, brutalizados: primeiro o gato, agora o pássaro. E o martírio dela não acabou. Agora aparece Scutt (é difícil não se perguntar quanto do ataque de Charlie ele teria testemunhado), segurando, muito ereta, uma espingarda de cano duplo. É problemático: para quem ele está mostrando a arma? Amy ou Charlie? De fato, o que acontece parece mais uma troca entre os dois homens que entre Scutt e Amy. Quando Scutt se aproxima, Charlie faz com a cabeça que não. Seu camarada simplesmente balança a arma. Confrontado com essa situação, Charlie trai Amy uma segunda vez, segurando-a – gritando, lutando freneticamente – para que Scutt possa currá-la também. Scutt, estranhamente, mal olha para ela, penetrando-a por trás; ele olha mesmo é para seu colega. Quando ele termina, dirige a Charlie um sorriso secreto: foi bom para você também? Homoerotismo – sim! No contexto, é bem mais fácil de acreditar do que a noção de que, a segunda violação tendo sido tão ruim, de alguma forma torna boa a primeira. Mesmo uma crítica compreensiva com Linda Ruth Williams Julie Kirgo 104


pode sugerir que, “No discurso de Sob o domínio do medo a violação não é necessariamente negativa – tudo depende de quem faz isto com você”. Mas, na verdade, Peckinpah apresenta ambos os estupros como traumáticos. E embora o perpetrado por Charlie seja, discutivelmente, mais ambíguo, ele é também mais devastador, em parte porque sua violência foi mais extensa e detalhada de forma mais chocante, mas ainda pior porque Amy foi violada por alguém que um dia ela amou e confiou. Scutt e Cawsey são os vilões que ela desafiou, mas é Charlie quem a arruina, não apenas uma vez, mas duas. Qualquer dúvida quanto à reação de Amy ao que aconteceu com ela é banida pelas extraordinárias sequências que se seguem. Peckinpah a deixou no limbo: nós não vemos Charlie e Scutt partirem ou como ela se recompõe; ela tem de se virar sozinha. Quando Charlie volta a pé para casa, zangado por ter sido abandonado no campo, ela está na cama, com as cobertas para cima, fumando, bebendo, trêmula, o rosto machucado. David entra; eles se olham por um momento, sem nada dizer; ele vai até o armário pendurar seu casaco, muda de ideia e coloca-o na coluna da cama. “Por que você não abriu o armário?”, Amy pergunta. “Nós não temos mais gatos”. Não – eles foram ambos mortos. E é isso – isto é o mais próximo que Amy chega de contar a David sobre o estupro. Ela se permite uma farpa velada: quando ele se queixa que “eles me puniram hoje no charco”, ela de forma cifrada descarrega, “Eles também servem àqueles que ficam em casa e esperam”. Mas – e isso conta como um dos mais espantosos momentos em um filme espantoso – ela tem tão pouca fé em seu marido, tão pouca certeza de ser amparada por ele que guarda a história de seu martírio para si. Talvez ela sinta, como tantas vítimas de estupro sentem – e como tantos dos críticos do filme também – que de alguma forma ela seja culpada. Seja como for, Peckinpah sugere que ela está tão estrangulada e sem voz quanto seu gatinho morto. Enquanto isso, David, o supremo narcisista, tem a evidência em frente aos olhos – por que ele nunca diz, “Nossa querida, como foi que você machucou o rosto?” – e deliberadamente a ignora. Amy tem de enfrentar esse caminho difícil e tortuoso sozinha. A sequência da festa da igreja – que nos coloca dentro da cabeça de Amy do mesmo modo como entramos na de Elsa na cena do casamento de Pistoleiros do entardecer – é um dos mais extraordinários episódios que Peckinpah registrou em celuloide. Reunindo todos os personagens de Sob o domínio do medo, ela prepara uma série de armadilhas que funcionarão, uma depois da outra, levando o filme Sam era uma mulher 105


ao seu clímax de destruição com bizarra inevitabilidade. E o faz em meio a uma atmosfera de celebração demoníaca: uma reunião de comunidade carnavalesca e sinistra, culminando com um entretenimento oferecido pelo terrível (supostamente cristão) reverendo que é em parte um show de mágica, parte rito druída. E nós vemos tudo pelos olhos de Amy, que, embora tentando agir “normalmente”, é atormentada por recorrentes flashbacks do ataque sexual. Esses flashbacks – apresentados por meio de tomadas brilhantemente montadas no estilo subliminar (algumas delas notadamente diferentes das que vimos anteriormente, mas todas remetendo aos estupros com igual terror) – são ao mesmo tempo uma sensacional aula de cinema e um astuto estudo psicológico. Passadas mais de quatro décadas, a maior parte de nós sabe que as vítimas de estupro sofrem de transtorno de estresse pós-traumático, comumente pontuado por repentinos momentos de completa e aterrorizante lembrança. Mas, em 1971, Peckinpah navegava por mares inexplorados. Como sabia ele que o sofrimento de Amy poderia se manifestar exatamente desta maneira? É uma pergunta instigante sem uma resposta clara. O que é certo é que poucos cineastas conseguiram fazer o que Peckinpah faz aqui: colocar na tela uma representação severa e completamente empática da psiquê feminina in extremis. O “psiquiatra sujo” aparentemente não fazia distinção entre os sexos. Mas era impiedoso. Ao caminhar para seus momentos finais, Sob o domínio do medo não oferecerá alívio para o sofrimento de Amy. Em rápida sucessão, ela verá seu marido finalmente reagir, mas não por causa dela. Como um terapeuta que coloca seus pacientes acima de sua família, David finalmente demonstra algum interesse, mas por um completo estranho, Henry Niles (David Warner). Um patético molestador, deficiente mental, que sem querer matou uma jovem, Niles representa para David um fundamento abstrato, e a abstração deixa David mais confortável do que aquele ser vivente e insubordinado que é a sua esposa. Em defesa de Niles ele está disposto a sacrificar tudo, mesmo Amy. Já traumatizada além do suportável, é Amy que Peckinpah mostra como o personagem verdadeiramente assediado de Sob o domínio do medo, caçada dentro e fora de casa por um bando de homens ensandecidos. Durante o cerco final, os rústicos berrando do lado de fora podem ser dementes, mas, dentro, David é melhor que eles? Ele vai desde dizer a Amy para “ir fazer café” até a sugerir que ela “entretenha” Niles, o predador sexual. Como seus estupradores, ele bate nela algumas vezes e acaba ameaçando-a de Julie Kirgo 106


morte, “Fique aqui. Se você não ficar, eu quebro o seu pescoço”. Surpreende que neste ponto ela fica tentada a arriscar a sorte com os provincianos? Esse momento, quando Amy quase deixa a turba entrar, é comumente citado como a sua “traição” a David. É mesmo? Ele já a traiu várias vezes; certamente seu argumento de que “se eles entrarem agora vão matar todos nós” não significa muito para uma mulher a quem ele acaba de ameçar de quebrar o pescoço. Enquanto isso, Charlie, na janela, está dizendo as palavras mais doces que Amy ouviu do começo ao fim de Sob o domínio do medo: “Eu não vou deixar que eles machuquem você, meu amor”. Charlie logo tem a chance de se redimir, matando Scutt, que conseguira entrar na casa e está tentando estuprar Amy novamente. Momentos depois, o próprio Charlie é liquidado de modo terrível por David, usando o presente que Amy lhe dera, a simbólica e potente armadilha para pegar caçadores clandestinos. E, finalmente, quando David se gaba prematuramente de ter acabado com todos, é Amy quem despacha o último agressor com um tiro, salvando a vida de David.Vale a pena assinalar que, depois de um frenesi de óleo fervente, tiros em pés, jugulares ameaçadas, golpes com atiçador de lareira, cabeças em armadilhas e similares medievais – Amy é a única a desferir uma morte limpa. A recompensa dela? Mal falando com ela, David dirige nevoeiro adentro acompanhado de Niles, exibindo um sorriso misterioso. Amy é deixada sozinha, tremendo e muda, em sua casa arruinada e cheia de cadáveres. Em uma entrevista anos depois, o produtor de Sob o domínio do medo, Daniel Melnick, lembrou da cena de forma errada, colocando Amy no carro com David e Niles; parece sintomático que este homem muito inteligente – como produtor do filme, presume-se que ele tenha visto o final várias vezes – ainda não entendesse as assombrosas consequências deste final sombrio. A dura realidade é que, depois de ser passada na máquina de moer carne por virtualmente todos os homens da sua vida – enlouquecidos por questões de masculinidade –, acabe sobrando para Amy limpar a sujeira deles. Uma conclusão assim parece menos o trabalho de um misógino do que o de um artista sensível, cheio de culpa e francamente realista. Certamente foi o trabalho de um artista obcecado. Peckinpah retornaria a temas similares e a um personagem similar apenas três anos depois com Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia. Aqui, a protagonista feminina, Elita (radiantemente encarnada por Isela Vega), possui várias das patentes qualificações enumeradas por David Thomson para ser uma mulher de filme de Peckinpah: Sam era uma mulher 107


ela é prostituta e madona nativa. Mas ela é também uma artista: uma cantora que consegue criar um clima mágico de serenidade nos lugares menos prováveis, de um bordel a um quarto de hotel miserável no meio do deserto. Sua sensualidade simples e o bom-senso franco prendem Alfredo Garcia à realidade, e se há um filme que precisa de pés no chão é este. Estranhamente belo, assustadoramente fantasmagórico, ele se passa em um México que é metade sonho, metade pesadelo: o México do Dia dos Mortos. Em certo sentido, o México foi outro personagem para Peckinpah, e invariavelmente feminino: misterioso, imprevisível, infinitamente desejável. Lembre-se de Angel cantando “México lindo” em Meu ódio será sua herança quando o bando atravessa o Rio Grande; como ninguém parece compartilhar sua admiração, ele zomba, “Vocês não têm olhos”. A maior parte do tempo em Alfredo Garcia o homem sem olhos é Bennie (o indispensável Warren Oates), geralmente de modo quase literal: ele está quase sempre espreitando por trás de impenetráveis óculos escuros, um possível tributo a ninguém menos que o próprio Peckinpah. Mas Bennie é verdadeiramente cego quando se trata da amorosa Elita; obcecado com o dinheiro que ganhará se conseguir trazer a cabeça do título, ele é incapaz de ver a verdade do que ela repete para ele: “Só estarmos juntos é o bastante”. Peckinpah se certifica de que saibamos que ela está certa, despendendo considerável atenção e minúcia no delinear da relação dos dois. Nós os vemos dirigindo juntos, cantando juntos, se divertindo juntos na cama, o conforto dela com seu próprio corpo um presente em si. Como em nenhum outro de seus filmes, Peckinpah esboça a calorosa, preguiçosa intimidade que existe entre duas pessoas que estão totalmente à vontade uma com a outra. Mas Bennie tem suas reservas, afinal de contas, Elita é uma prostituta – e ele quer “melhorar de vida”. Em uma longa, desconfortável cena de piquenique, ela obtém dele uma proposta de casamento e então chora, dando-se conta de que uma proposta obtida com coação não vale nada. E então ela mostra seu valor em uma das mais misteriosas, carregadas sequências do cânone de Peckinpah. Quando Bennie e Elita acampam no deserto, dois motoqueiros, Paco (Kris Kristofferson) e John (Donnie Fritts), interrompem o idílio. Enquanto John mantém Bennie sob a mira de uma arma, Paco sai com Elita para violentá-la. Bennie arrisca tentar parar com este ultraje, mas Elita, em uma das afirmações mais heroicamente resignadas de qualquer Julie Kirgo 108


Peckinpah, o adverte: “Eu já estive aqui antes. Você não conhece o caminho”. O que acontece a seguir começa como uma violação e termina como um encantamento, mais uma vez levando alguns a culpar a vítima. Peckinpah, contudo, não se esquiva de mostrar que Elita está lidando com uma situação de vida ou morte. Brandindo sua arma, Paco abre uma navalha e corta a blusa de Elita do pescoço à cintura. Determinada a manter o controle, ela lhe dá um, dois tapas. Quando ele revida, ela desafiadoramente recusa a dar-lhe suas lágrimas. O perspicaz Garner Simmons, presente às filmagens de Alfredo Garcia, escreveria que ela efetivamente destrói “a fantasia masculina de que ele pode subjugá-la sexualmente”. Ele caminha furtivamente até umas rochas próximas, agachando-se como um animal ferido. Mas Elita sabe que um animal ferido ainda morde. Paco está armado, é perigoso e pode partir para o ataque contra ela e Bennie. Sem tirar os olhos dele, seguindo seus instintos e respeitando os sinais como Amy fez com Charlie, ela chega próximo a ele – e de repente a cena ganha um clima de realismo poético, o deserto brilhando como o jardim de uma feiticeira. O que, de certo modo, ele é: um reino de paz e aceitação, invocado por Elita para desarmar seu agressor e salvar a vida de Bennie e a sua própria. Nós já a vimos fazer algo assim antes, acalmando o turbulento Bennie; também já vimos como ela genuinamente ama e se deleita com seu amante sem sorte. Não faz sentido imaginar (como, novamente, alguns críticos fizeram) que quando Elita abraça Paco ela o faz porque “está querendo aquilo”. Momento a momento, Peckinpah nos diz o contrário. Quando Bennie finalmente se livra do outro motoqueiro e mata Paco, Elita corre para seus braços, chorando aliviada. Na fuga, ela permanece no carro, tremendo, bebendo, chorando traumatizada. Na extraordinária cena que se segue, ela fica prostrada nua debaixo do chuveiro de um hotel, deixando a água purificadora correr sobre ela, misturada com suas lágrimas. Bennie, ao menos, sabe o que ela fez por ele. Espontaneamente ele diz que a ama. Como é frequentemente o caso com nosso cineasta, compreensão e redenção chegam tarde demais. Mais convencido que nunca da necessidade de dar a grande tacada, Bennie não será persuadido a abandonar a busca pela potencialmente lucrativa cabeça. Mesmo deplorando sua escolha, ainda assim Elita fica com seu homem – e paga o preço por isso. Quando ela é assassinada, o filme se torna um longo estudo sobre a dor. Destruído pela morte de Elita, Bennie terá êxito na sua procura pelo tesouro, mas escolhe perecer em uma saraivada de balas, pois sua vida não vale nada sem ela. Profundamente trágica e romântica, esta não é uma história contada por um misógino. Sam era uma mulher 109


É reconhecidamente difícil sentir o amor em filmes cujas protagonistas sofrem tamanhas butalidades (e Sob o domínio do medo e Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia são os exemplos mais extremos na obra de Peckinpah), embora se possa argumentar que: a) o diretor está apenas refletindo uma triste realidade da vida e b) seus personagens masculinos também são frequentemente brutalizados. Mas, quando a oportunidade aparecia – infelizmente isso era raro depois que foi rotulado como “Sam, o sanguinário” – Peckinpah era capaz de produzir um perfeitamente proporcionado retrato de mulher “comum”, vivendo as complicações da vida enquanto mantém seu calor, seu senso de humor e sua perspectiva. Em outras palavras, nem um pouco comum. Uma mulher assim é Ellie Bonner (Ida Lupino, em uma performance temperada com afeto contido), a mãe de Steve McQueen em Dez segundos de perigo. Feito entre Sob o domínio do medo e Os implacáveis, é o que Paul Seydor chamou de “o filme mais gentil” de Peckinpah. É também um dos menos conhecidos. Uma pequena joia de sensibilidade, demonstra com amplitude o que o cineasta podia fazer quando lhe era permitido explorar os caminhos mais tranquilos dos Estados Unidos. Aparentemente um filme sobre rodeios, é mesmo um drama familiar, ricamente adornado com toques cômicos. E como a matriarca do clã Bonner, Ellie tem um papel central, embora seja tão lacônica quanto qualquer homem do Oeste. Vista a princípio pelos olhos de seu filho – um caubói de rodeio longamente ausente, cansado, passando por um momento ruim –, Ellie aparece como uma força da natureza em miniatura, animada em seus jeans e botas, suada do trabalho na horta, com os braços cheios de tomates. Ela não demonstra surpresa com o reaparecimento repentino de Junior, simplesmente comparece com uma torta, leite e muita compreensão maternal. E a compreensão é recíproca. Sem que nada tenha sido dito entre eles sobre o assunto, Junior pergunta a ela, “Desde quando você tem pensionistas, mãe?”. “Um ano”, ela responde, envergonhada, sem se alongar. Ellie está em dificuldades: separada de seu indolente marido, Ace (Robert Preston), ela tenta dar força a seu outro filho, Curly (Joe Don Baker), em seu crescente negócio imobiliário, embora não goste muito do que ele faz, ao mesmo tempo em que luta pela sobrevivência aceitando pensionistas e gerenciando um antiquário. Ela é tão bem-sucedida em não reclamar, que o velhaco Ace pode alegremente declarar a Junior que ela está “feliz da vida”, uma observação que diz mais Julie Kirgo 110


sobre o negligente ex-marido do que sobre ela. Ace tem sido, para sermos indulgentes, uma decepção como marido: ele próprio, campeão de rodeios no passado, decaiu, tornando-se jogador, mulherengo e nômade. Mas que charme! Ace não é um picareta qualquer. Ele tem a vantagem de acreditar nas suas próprias histórias. Seja mineração de prata em Nevada ou sua atual fixação, criação de gado na Austrália, ele tem sempre um sonho atraente no bolso. É isso que Ellie ama nele, mas ela não se deixa enganar: “Sonhos. Conversa fiada. É tudo o que você tem”. Peckinpah obviamente ama este par. Parte do prazer de Dez segundos de perigo vem da presença deles, em especial da sábia Ellie. O filme é perfumado com pequenas, frequentemente mudas observações: o olhar que mistura medo, vergonha e afeição no rosto de Ace quando ele vê Ellie na multidão; a alegre saudação que ela faz em retorno; o modo estoico como ela demonstra determinação após este encontro (o diretor a observa aqui, pungentemente, de trás, um gesto concedido, como salientou Paul Seydor, “sempre que Sam queria pagar tributo a um de seus isolados, atormentados personagens”). Talvez o mais expressivo desses momentos tenha lugar na longa sequência do bar. Ace está fazendo mais uma exibição pessoal, contando uma animada história sobre a noite em que levou vantagem sobre Jack Dempsey (“Quer ver uma luta? Me veja com um touro por oito segundos!”). Peckinpah capta Ellie estudando Ace com uma dolorosa mistura de emoções: ela conhece de sobra o seu papo furado, ela já o ouviu um milhão de vezes antes e mesmo assim ela o ama. (O diretor, que também podia ser um falastrão, deve ter recebido muitos olhares assim.) Este momento leva a uma surpreendente sequência – surpreendente especialmente porque ela não avança a trama e existe somente para adicionar textura e aprofundar os personagens; quantos filmes hoje em dia podem ser dar ao luxo de ser tão sem pressa? Ellie, cansada de ouvir Ace contar vantagem, vai para fora tomar ar; ele a segue. Como todas as grandes cenas de Peckinpah, seu poder de evocação é supremo, sugerindo um sem-número de significados do modo mais simples. Conforme eles conversam, Ellie sobe umas escadas exteriores e Ace a segue. Estas duas pessoas estão literal e figurativamente no ar, suspensos entre possibilidades, e não é acidente que Ace, o suplicante, esteja alguns degraus abaixo dela. Não se diz muito, mas velhas feridas são reabertas. Em um certo ponto, quando Ace abusa um pouco do charme (lembrando-a, quando ela certamente não precisa ser lembrada, de como ele costumava “adoçar” os seus sonhos), ela dá um tapa no rosto dele e então olha para a própria mão como que se Sam era uma mulher 111


perguntando como pôde fazer algo assim. Ele admite ter merecido, ela concorda – e neste momento de acordo uma trégua é estabelecida que permitirá que a indestrutível atração entre ambos refloresça. “Tudo que nos resta é o hoje”, Ellie diz para o seu envelhecido sedutor (sem forçar nada, Preston está soberbo, o companheiro perfeito para Lupino), e eles sobem a escada – rumo ao céu – para uma última tarde juntos. E isso é tudo. Ellie apenas reaparece rapidamente para dizer adeus ao seu filho peregrino (mesmo Ace não chega a se despedir). Contemplando uma última vez seus belos e resignados olhos, Peckinpah fecha a porta para uma das mulheres que ele observou com mais delicadeza. Lamentavelmente, ele não teria outra chance como esta. Alfredo Garcia estava por vir, assim como Pat Garrett & Billy the Kid, cuja árida paisagem não é desprovida de mulheres (Katy Jurado, em particular, impressiona com sua quase muda interpretação de uma devotada mulher da fronteira). Mas, a Peckinpah não seria dada outra oportunidade de oferecer um retrato assim tão compreensivo, sensato e honesto de uma mulher “comum”. Em seu lugar, tivemos o diretor falando provocativamente de “xoxota” e do desejo feminino do estupro – mesmo quando seus filmes contradiziam esse tipo de incitação idiota. O que poderia justificar o crescente abismo entre os sentimentos expressos por Peckinpah em seu trabalho e a busca do confronto em suas declarações sexistas? Uma resposta possível vem de uma das poucas mulheres que o conheceu bem, sua irmã, Fern Lea Peter. “Sam”, disse ela a David Weddle, “era basicamente uma mulher emocionalmente. Eu penso que os homens são sistemáticos no seu modo de pensar para chegar a um certo ponto. Sam chegava à resposta emocionalmente. Eu acho que isso o envergonhava porque na nossa família, ‘Deus do Céu, os homens são homens!’. Ele não queria que esse seu lado aparecesse”. Evidentemente, como artista Peckinpah não poderia se esconder. Sua sensibilidade a todas as facetas da humanidade – incluindo as mulheres – não poderia ficar submersa por muito tempo. O resultado, talvez inconscientemente, talvez contra a sua vontade, foi uma perceptiva, finamente detalhada galeria de mulheres, diferente da de qualquer outro diretor. As lutas e tormentos delas, ao que parece, refletiam bastante dele mesmo.

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A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid: as várias versões do último faroeste de Peckinpah Paul Seydor

Começou discretamente há mais de 30 anos: Três cenas cortadas – Garrett com sua esposa, Garrett & Chisum, e Billy cortejando Maria – e várias excisões menores foram restauradas para a versão na televisão... Infelizmente, o arcabouço da história ainda está faltando, e tantas outras coisas foram alteradas ou estão faltando... que a única maneira de se ver uma aproximação ao original de Peckinpah é tentar assistir ao filme na televisão e no cinema no mesmo curto período de tempo, então, editar os dois em conjunto com o olho da mente.1 Escondida em uma nota de rodapé na primeira edição do meu estudo crítico de filmes de faroeste de Sam Peckinpah (Peckinpah: The Western Films), essa parecia ser a mais inocente das observações, dificilmente prática, ainda que todas as vezes admitida: a longa versão de teste de Pat Garrett & Billy the Kid não se tornaria disponível por oito anos, enquanto isso, tanta violência e nudez foram expurgadas para exibição em televisão que, a fim de preencher as duas horas do

Seydor, Peckinpah:The Western Films, 202n (a partir daqui, Seydor, Peckinpah).

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A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 113


horário nobre, algum material que tinha sido retirado da versão para cinema teve que ser recolocado. Meu pequeno exercício de edição caseira foi, portanto, a única maneira de “construir”, por assim dizer, uma versão que nos aproximou, mesmo que apenas nos cinemas de nossa imaginação, com o filme que o diretor poderia ter tido em mente mas nunca foi capaz de convencer o estúdio a lançar. Eu mal imaginava que um quarto de século e uma carreira diferente mais tarde, muito tempo depois de eu ter deixado a academia e ter me tornado um montador de filmes, teria a oportunidade de fazer algo muito parecido para essa versão imaginária se tornar realidade. Se o germe do que se tornou a Edição Especial de Pat Garrett teve origem na referida nota, a ideia de realmente fazê-la se originou com Nick Redman, o produtor do meu documentário sobre Meu ódio será sua herança.2 Em meu Peckinpah: The Western Films – A Reconsideration (que é a segunda edição do meu livro), publicado em 1997, eu revi as versões existentes do filme e sugeri que nenhuma delas poderia, em qualquer sentido, ser considerada final ou definitiva.3 Havia duas versões de teste, próximas, mas não idênticas, a primeira das quais foi lançada em disco a laser em 1990 pela Turner (que então era dona do acervo da MGM). Entre elas e a versão de cinema, não há uma escolha ideal. As versões de teste, muito soltas e desajeitadas para serem consideradas cortes acabados ou até mesmo para passarem da melhor maneira, foram conceitual e praticamente nunca terminadas. Elas contêm, no entanto, várias cenas importantes que contribuem para um filme mais rico. Para o lançamento nos cinemas, o estúdio exigiu que essas cenas fossem removidas e o ritmo acelerado, reduzindo personagens e destacando a ação. A versão de cinema é, portanto, tematicamente um pouco diminuída, eliminando pelo menos dois personagens secundários, mas significativos (a esposa de Garrett, Ida, e o barão do gado Chisum), e reduz substancialmente as ironias. Porém, e é um grande “porém”, no que diz respeito a todas as cenas que são partilhadas em comum com as versões de teste, que é a maioria delas, na versão de cinema elas são melhor montadas, em forma e ritmo. Em uma palavra, funcionam melhor. Também estavam realmente terminadas.

Meu ódio será sua herança: um álbum em montagem (1996), incluído em Meu ódio será sua herança: com a versão do director [The Wild Bunch: The Original Director’s Cut], DVD da Warner Home Video (2006), Blu-Ray (2007) e também na caixa de DVD Sam Peckinpah’s The Legendary Westerns Collection. 2

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Seydor, Peckinpah:The Western Films - A Reconsideration, 298-306 (hereafter, Seydor, Reconsideration). Paul Seydor 114


Minha conclusão foi que as versões de teste comprometeram a arte e o estilo de Peckinpah, a versão de cinema comprometeu sua visão, ainda que na época nunca tenha me ocorrido que poderia ser possível colocar as cenas que faltavam de volta na versão de cinema. Mas o meu argumento, Nick me disse, é o que lhe deu a ideia de lançar uma Edição Especial para a Warner Bros. que fizesse exatamente isso. Isso foi em 2002, e o momento não poderia ter sido melhor, ele disse. Tendo adquirido o acervo da MGM da Turner alguns anos antes, a Warner Home Video, graças em grande parte à insistência de Nick, finalmente planejara uma caixa de DVD dos quatro faroestes de Peckinpah que agora eram de propriedade do estúdio, os dois para a MGM (Pistoleiros do entardecer e Pat Garrett) e os dois para a Warner (Meu ódio será sua herança e A morte não manda recado). Nick eventualmente se tornou o produtor de fato da colecão. Será que eu concordaria em ser o consultor de montagem de uma nova versão de Pat Garrett que (aqui ele me devolveu minhas próprias palavras) finalmente combinasse a visão e a arte de Peckinpah – pelo menor dinheiro possível, é claro, que era, por dizer, nada? (Não era esta a última condição de Nick, mas da Warner: eu já tinha feito o documentário sobre Meu ódio será sua herança de graça – uma vez que eles sabem que você trabalha por amor e não por dinheiro ...) Eu aceitei ansiosamente, mas com três condições. A primeira e mais importante foi que qualquer que fosse a forma que eventualmente a Edição Especial tomasse, nunca, jamais seria usada para substituir a versão de teste da Turner, apenas para complementá-la. Minhas reservas sobre as versões de teste são várias e substanciais; que Peckinpah saiu antes de terminá-las é um fato que não pode ser negado. No entanto, a que a Turner lançou continua sendo a única versão que temos na qual Peckinpah pessoalmente trabalhou, por si só uma razão para que lhe seja concedido respeito e que esteja sempre disponível. A segunda condição era que eu não tocaria na da Turner; seria deixada exatamente como Peckinpah deixou. A terceira foi que eu não iria, em nenhum sentido, reeditar o material da versão de cinema no todo ou em detalhes, exceto o mínimo necessário para fazer caber o material trazido de volta aos lugares de onde havia sido removido. (A única exceção a isso é o prólogo, que retomo mais adiante.) A Warner prontamente concordou com todas as três condições, o trabalho foi feito, e a caixa foi lançada com as duas versões de Pat Garrett & Billy the Kid, batizadas pelo estúdio como Edição Especial 2005 e Turner Preview 1988. (A data na segunda é um pouco enganadora, referindo-se não ao ano da A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 115


sessão-teste em maio de 1973, mas ao ano em que esta foi ressuscitada pela primeira vez para ir ao ar no lendário Z Channel de Jerry Harvey.) A recepção à coleção foi agradavelmente entusiástica pela imprensa e críticos da internet, um entusiasmo que se estendeu de forma mais contida, mas ainda bastante real, para o “novo” Pat Garrett. A maioria parecia compreender as questões envolvidas, incluindo as circunstâncias únicas que tornam uma versão definitiva impossível; e a aceitaram nos termos em que foi oferecida: não como a versão que Peckinpah “iria” ou até mesmo “poderia” ter feito – algo que ninguém conseguiria saber –, mas como uma maneira de levar a única versão que já tinha sido devidamente terminada e, em certo sentido, concluí-la do modo como seus montadores a teriam concluído caso não tivessem sido forçados a fazer de outro modo. Muito mais pessoalmente gratificante foi a resposta dos muitos que conhecem a obra de Peckinpah intimamente ou que tinham de fato trabalhado neste filme. Garner Simmons, que conheceu Sam três meses após Pat Garrett ser lançado em 1973 e cuja biografia pioneira, Peckinpah: A Portrait in Montage, sempre continuará indispensável, a considera a melhor versão provavelmente obtida a partir dos materiais disponíveis e achou que funcionava melhor do que qualquer outra que ele já tinha visto. Kris Kristofferson, que atuou como Billy, e Donnie Fritts, que teve um pequeno papel como membro da gangue de Billy, concordaram, dizendo a Nick que foi a melhor versão que tinham visto. Devido às lembranças dolorosas que desperta, Roger Spottiswoode, o montador-chefe, ainda tem dificuldade para ver o filme, mas ele viu minha reedição do prólogo e achou melhor do que sua contraparte na Turner Preview. Naturalmente, havia dissidentes: fãs em sua maioria, alguns acadêmicos e alguns blogueiros que levantaram questões que iam desde o específico (por que não foi restaurada a cena da esposa para a Turner Preview?) ao geral (por que não foi feita uma completa restauração da Turner Preview, incluindo uma cópia nova com correção de cor e uma trilha sonora devidamente mixada, em vez de uma outra versão?).Todas perguntas bastante justas, que eu vou tentar responder. Mas uma palavra, em primeiro lugar, sobre as fontes. “Eu não diria que o filme foi algo menos do que um campo de batalha, de duas a três semanas antes de começarmos a filmar até as 13 semanas depois de terminarmos.” A observação é do produtor Gordon Carroll, e foi assim que ele começou a primeira das entrevistas que realizei com ele, há mais de 30 anos, quando eu estava pesquisando Pat Garrett. Na elaboração deste ensaio, eu reli o capítulo, o expandido na segunda Paul Seydor 116


edição, e os de Garner e David Weddle em seus respectivos livros: juntos fornecem uma história completa e principalmente confiável das dificuldades de se fazer o filme.4 Depois conversei com Roger Spottiswoode, Garth Craven (o segundo montador) e Katy Haber (a assistente pessoal de Sam de muitos anos), três pessoas que conheci durante anos como amigos e colegas (Roger um amigo próximo), com quem muitas vezes falava sobre Sam e sua obra. Eu revi todas as notas da montagem de Pat Garrett e memorandos da coleção de Peckinpah na Margaret Herrick Library da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.5 Este volume com cerca de 50 ou 60 páginas, a maioria delas datilografadas por Katy e, pelo que sei, completas ou quase, ainda incluem as do próprio Sam, Roger, Dan Melnick (vice-presidente encarregado de produção na MGM) e de alguns outros executivos, incluindo James Aubrey, o chefe do estúdio com quem Sam lutou amargamente do início ao fim. Essas notas constituem um registro extraordinariamente detalhado do processo de montagem em pós-produção.6 Examinei também vários rascunhos do roteiro que fazem parte da coleção. Finalmente, eu passei todas as versões disponíveis do filme: a segunda versão de teste, roubada por Sam das salas de montagem e doada por sua família para os arquivos da biblioteca da Academia após sua morte; a primeira versão de teste (a Turner 1988); e a versão de cinema. Eu há muito acreditava que as duas versões de teste não mereciam o chamado status definitivo que foi atribuído em alguns círculos, principalmente por alguns acadêmicos e muitos fãs de Peckinpah que igualam mais com melhor, ao mesmo tempo mantendo-se totalmente inocentes da história factual por trás deste filme conturbado. As duas versões de teste são obras em andamento, razoavelmente avançadas, com certeza, mas ainda com muito em andamento quando

4 Seydor, Reconsideration, 254-306; Simmons, Peckinpah: A Portrait in Montage, 168-88; e Weddle, If They Move – Kill ‘Em!, 445-91.

Coleção Peckinpah, pasta 770. Salvo indicação ao contrário, todas as referências às notas da sala de montagem são as existentes na biblioteca neste pasta, citando data e paginação apenas. As poucas que estão sem data serão identificadas por título (se estiverem intituladas; algumas não estão) e data provável.Vou distinguir memorandos e cartas de notas da sala de montagem como tal. 5

Tal como acontece com todos os filmes, Pat Garrett ia sendo montado durante as filmagens, a partir do momento em que as primeiras tomadas sairam do laboratório. Quando tinha tempo, Sam assistia a esses cortes iniciais, mas fazia apenas algumas notas, pois queria basicamente certificar-se de que havia filmado o necessário para que as cenas se encaixassem. Isso é procedimento padrão no cinema. A menos que haja algum problema técnico ou relacionado aos atores, alguns diretores nem sequer assistem às cenas cortadas durante a produção por não quererem ter a atenção desviada das filmagens.

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A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 117


Sam tomou a decisão de parar de trabalhar nelas, embora fosse evidente para todos, incluindo o próprio Sam e seus montadores, que mais trabalho era necessário. Além disso, quanto mais a evidência é examinada, mais difícil é escapar da conclusão de que Sam queria que sua versão fosse deixada inacabada. Ao mesmo tempo, a reputação das versões de teste foi inflada e a versão de cinema foi injustamente caluniada e insuficientemente apreciada. Muitos jornalistas e críticos, para não mencionar os fãs – de novo, totalmente inocentes a respeito de como e por quem a versão de cinema foi realmente preparada – ainda recorriam ao previsível “massacrada” quando se referiam a ela. Não é apenas uma inverdade, é completamente o oposto da verdade. Houve uma montagem espúria: Aubrey mandou fazer uma cópia da versão de trabalho e colocou outra equipe de montadores para reduzi-la a um faroeste quase incoerente de 96 minutos que ameaçou lançar a menos que Sam cooperasse. Sam se recusou, e Garth ficou do seu lado. Os outros dois, Roger e Robert (“Bob”) Wolfe, perceberam que foram colocados entre a cruz e a espada, tanto por Aubrey quanto por Sam. Foi, portanto, precisamente para manter a versão verdadeiramente massacrada de Aubrey de ser vista alguma vez no escuro dos cinemas que eles concordaram em preparar uma versão oficial mais curta e compacta, mas o mais fiel possível, dadas as circunstâncias, à visão de Sam. Longe de ser um massacre, o trabalho deles foi tão cuidadoso, compreensivo e sensível que fazemos bem em lembrar que, com base na versão de cinema em si – anos e anos antes da Turner ter produzido a primeira versão de teste em disco laser –, Pat Garrett & Billy the Kid foi aclamado por muitos como uma das obras-primas de Peckinpah.

As versões de teste Há três fatos distintos, mas relacionados, que minam a legitimidade das duas versões de teste de Pat Garrett & Billy the Kid como representações totalmente adequadas dos pensamentos finais de Peckinpah. A primeira é a agenda de pós-produção drasticamente reduzida. Com um filme do tamanho, dimensão e complexidade deste, a versão do diretor em dez semanas é a norma – de fato, é garantida por contrato entre o Producers Guild e o Directors Guild of America, um contrato respeitado também pelos estúdios. Seguem-se uma ou duas sessões-teste com espectadores, duas a quatro semanas de refinamentos na sala de montagem, e depois mais algumas semanas de trabalho de acabamento do Paul Seydor 118


som e da música até a versão final aprovada mutuamente pelo diretor e o estúdio. Para Pat Garrett, todo este processo foi condensado em insanas 13 semanas. O segundo fato é o alcoolismo de Sam, em uma ordem de magnitude pior neste projeto do que em qualquer um anterior (talvez em qualquer um de sua carreira). Segundo todas as fontes, incluindo seus amigos mais próximos e colegas de longa data, Sam não apenas bebia todos os dias, mas estava bêbado uma boa parte de muitos dias. Isto continuou sem trégua depois da conclusão das filmagens em 6 de fevereiro de 1973, direto até a segunda sessão-teste de 1º de maio, depois da qual ele parou de trabalhar no filme. O terceiro é a real probabilidade de que Sam jamais tenha assistido ao filme do começo ao fim em uma única sessão durante a qual tenha ficado acordado e/ou sóbrio. Roger não se lembra de sequer uma. Quando perguntei a Garth sobre isso, lembrando-lhe que anos antes ele tinha me dito que ele parecia se recordar de pelo menos uma projeção em que Sam veio sóbrio e ficou acordado, ele disse, “Eu acho que você pode ter me entendido mal. Eu não vou dizer que Sam nunca chegou a uma projeção sem bebida na mão, mas vou dizer que ele nunca chegou a uma sóbrio. Mas na época ele nunca fez nada sóbrio”. Este é um fato extraordinário, e suas implicações não podem ser minimizadas para o eventual destino editorial do filme. Sam tinha um respeito raro entre diretores de cinema pelo público; a partir de suas raízes no teatro, ele sabia o quão importante era assistir aos seus filmes com uma plateia para saber se eles funcionavam ou não. Ele próprio admitia que as sessões-teste foram fundamentais para o ajuste final de Meu ódio será sua herança.7 Não comparecendo a uma das únicas duas que ele teria para Pat Garrett deixou-o na posição mais comprometida imaginável quando se tratava de defender a duração da versão que preparou. Isto não deve ser mal interpretado: ninguém alega que Sam nunca viu o filme inteiro. Normalmente, os diretores e montadores não tomam muitas notas durante as projeções privadas porque estão assistindo ao filme, tentando senti-lo como o público e para terem uma ideia de como o filme está saindo. No dia seguinte, ele é revisto na mesa de montagem e notas detalhadas são tomadas. Como a maioria dos bons diretores, Sam deixava seus montadores implementarem as mudanças sem ele – ele não ficava por perto, preferindo ver

Seydor, Reconsideration, 138-39.

7

A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 119


o que eles fariam por conta própria. Então, sim, é claro que ele viu o filme todo, mas apenas rolo por rolo nas sessões de trabalho, parando para discutir isso ou aquilo, interrompendo para atender a chamadas telefônicas, fazendo pausas para o almoço ou esticar as pernas. Este não era um substituto para projeções ininterruptas em uma tela grande com mudanças de rolo adequadas. O roteiro original de Rudolph Wurlitzer era poético e lírico, e preenchido com uma variedade rica e colorida de personagens. Foi na época um dos mais amplamente admirado e respeitado em Hollywood, amado por todos, incluindo Sam na primeira vez que o leu. Mas vários meses mais tarde, quando ele releu e começou a pensar em como filmá-lo, ele percebeu que era uma armadilha: lia-se maravilhosamente ainda que fosse quase resolutamente não dramático e faltasse uma forte direção narrativa. O roteiro era longo, disperso e episódico e tornou-se mais longo com as mudanças que Sam exigiu antes e depois da produção começar. Em si mesmos, esses problemas estavam longe de ser insuperáveis; muitos roteiros poderiam ser assim caracterizados, incluindo Dez segundos de perigo, um dos mais belos filmes de Sam, que ele tinha acabado de terminar um ano antes. Mas o que ele quis dizer foi que ia demorar mais na sala de montagem para encontrar a combinação certa de lirismo e de fluxo, de movimento vertical e horizontal, para descobrir quanto tempo deve durar uma grande cena e quando passar para a próxima. Muitas vezes, uma cena funciona lindamente em sua integralidade fora do filme, mas parece arrastada quando vista como parte do todo. O problema é a cena ou o seu lugar na estrutura; precisa ser encurtada, movida ou eliminada? Quando se tem pouco tempo não há muito a fazer: encurtar a cena, cortando falas e pedaços, e em seguida vê-la novamente, só ou no contexto de outras cenas, ou então movê-la e assistir a algumas cenas antes e depois da nova locação. Eventualmente, a única maneira de saber se você está no caminho certo é assistir ao filme inteiro ou pelo menos a uma parte substancial do mesmo, de preferência em um cinema ou sala de projeção. E escusado será dizer que, se você está bêbado, é improvável que seu julgamento esteja aguçado. Muitas vezes, Sam não conseguia lembrar o que tinha visto nas projeções. Ele era geralmente alerta e bastante focado em muitas das sessões de trabalho, no entanto, mesmo nestas, às vezes ele chegou bêbado ou se embebedou. Neste ponto de sua vida, seu alcoolismo era tão grave que muitas manhãs ele precisava de uma bebida apenas para dar a partida. Paul Seydor 120


Em seguida, houve as atuações. James Coburn como Garrett fez talvez o melhor trabalho de sua vida: disciplinado, concentrado, interiorizado. Mas Kris Kristofferson como Billy estava apenas começando sua carreira de ator: trabalho duro, carisma e absoluta convicção, para não mencionar a direção de Sam, carregaram-no através de uma performance extraordinariamente eficaz, mas ainda precisava de muita moldagem e manipulação dos montadores. Bob Dylan, escalado como Alias, um membro da gangue de Billy, mostrou-se surpreendentemente hábil com a sua linguagem corporal, mas a cada vez que abria a boca parecia incapaz de pronunciar uma única fala de modo crível.8 E em alguns outros papéis tinha amadores ou atores inexperientes (o antigo colega de faculdade de Sam, Don Levy, o próprio Wurlitzer como O’Folliard). Mas Sam também conseguiu reunir um dos elencos mais estelares de coadjuvantes do cinema de Hollywood do pós-guerra, incluindo Slim Pickens, Jack Elam, L. Q. Jones, Jason Robards, Katy Jurado, Barry Sullivan, John Beck, Harry Dean Stanton, Emilio Fernández, Charles Martin Smith, Richard Jaeckel, Gene Evans, Matt Clark, Richard Bright, Elisha Cook Jr., Dub Taylor e John Davis Chandler. Contra estes profissionais experientes, as deficiências dos atores inexperientes e amadores ficaram ainda mais evidentemente em realce. Estes problemas variados e outros vieram à tona na montagem de Pat Garrett. Não surpreendentemente, eles se concentraram em grande parte nas cenas em que os litígios posteriores com o estúdio surgiram: a cena da esposa, a cena de Chisum, a morte de Paco e o Tuckerman’s Hotel, bem como o prólogo e a abertura em Fort Sumner, a mansão de Lew Wallace, a caça aos perus e a morte de Silva, e a cena da balsa. Mas muito antes de o estúdio se envolver, essas cenas foram dando problema a Sam e seus montadores. As notas indicam que foram alteradas de novo e de novo – falas e pedaços retirados, então colocados de volta, em seguida, mais uma vez retirados – ou movidos para cá, lá e outro lugar qualquer. Tuckerman’s Hotel, o cortiço onde Poe descobre o paradeiro da criança, mostrou-se especialmente intratável, não devendo nada ao desempenho atroz do colega de faculdade de Sam.

Para dar a Dylan o benefício da dúvida, Garner Simmons me disse que “Sam nunca teve o personagem de Alias desenvolvido no roteiro, então Dylan nunca sentiu que estava atuando em um personagem real”. E porque fora Gordon Carroll que trouxera Dylan, vários membros da equipe acharam que Sam tratava Dylan de acordo, ou seja, como o “cantor de Gordon”, assim, o ignorando enquanto tomava conta de Kristofferson, o “cantor de Sam”. 8

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Outro “pesadelo” – segundo Garth – foi a morte de Paco e o estupro de sua esposa por três dos homens de Chisum. Ambos, Sam e seu Paco, Emilio Fernández, começaram a filmagem bêbados e ficaram mais bêbados na continuação, Sam pedindo mais e mais sangue para ser espalhado no corpo chicoteado de Fernandez, muito mais do que a equipe julgava necessário. E qual foi a instrução de Sam ao ver a cena montada? Mandar esmaecer as cores porque o sangue parecia “ruim”.9 Mas esse era o menor dos problemas da cena. O maior deles é que ela revela Kid em uma luz muito estranha, que não faz sentido. Depois de Paco, que é um amigo próximo, morrer, por que Billy apenas monta e vai embora, sem ajudar a mulher de Paco a enterrar seu corpo ou a colocá-lo na carroça? Acontece que no roteiro havia originalmente uma segunda parte para a cena: depois de uma passagem de tempo, vemos túmulos para Paco e os dois homens de Chisum que Billy matou. O terceiro homem de Chisum agora está amarrado, implorando a Kid para deixá-lo ir, porque a mulher vai “arrancar meus olhos”. “Eu espero que ela o faça”, Billy responde. Ele dá a ela um cavalo e diz para ela fazer o que quiser com seu agressor, e vai embora. Como os três ajudantes de Chisum são mortos no que era originalmente a primeira parte da cena, é óbvio que a segunda parte nunca foi filmada. Esta parte permanece no roteiro final, mas é riscada com um grande X. Uma vez que a decisão foi tomada de cortar a segunda metade da cena, todos parecem ter percebido que a primeira metade se tornou sem sentido, então, em seu lugar, foi escrito um acréscimo apressado que exige que Alias monte. Billy monta e diz a Alias para “cuidar dela”.“Você vai voltar?”, Alias pergunta, enquanto Billy vai embora. Sam evidentemente filmou isso, mas também fez tão pouco sentido – de onde Alias vem? – que ele ordenou que fosse retirado, o que por sua vez deixou o que permaneceu tão sem sentido como antes. Não é de se admirar que Sam considerou tirar a cena completamente. 10 A presença desta cena em tudo é indicativa do quão caótico o projeto às vezes era. A única razão pela qual parece ter sido escrita, em primeiro lugar, foi para responder a temores de que a decisão de Billy de voltar a Fort Sumner não seria motivada apropriadamente. Mas isso me parece um problema inexistente, e a inclinação inicial de Sam de jogar fora a cena sugere que ele também pensava assim. Na versão de Arthur Penn de Um de nós morrerá (1958), de Gore Vidal,

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19 de fevereiro de 1973, 2.

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1º de março de 1973. Paul Seydor 122


o personagem de Billy é “motivado” incessantemente com todos os clichês da psicologia freudiana popular na década de 1950. O que Wurlitzer e Peckinpah trouxeram ao recontar essa lenda era um senso de destino implacável, um determinismo quase dreiseriano que mina o livre arbítrio e torna a motivação, como é vulgarmente entendida, como virtualmente irrelevante. Este Billy não precisa de “motivação” para voltar; ele volta porque já está no processo de se tornar Billy the Kid, porque dado a quem e ao que ele é, ele é atraído impotente ao seu destino. Motivação convencional nada faz a não ser enfraquecer o tema. Roger realmente aparece com a melhor solução aqui: no deserto aberto, Billy cavalga até a câmera, enquanto o guindaste com a câmera se abaixa para encontrá-lo; ele faz uma pausa, olha para frente, depois para trás, em seguida, à frente novamente. Ele toma o tanto de tempo quanto o momento parece precisar, então vira o seu cavalo e retorna para a direção que tinha vindo – de volta para a história e eventual lenda. Isso nunca foi filmado, mas uma nota de Melnick sugere que houve uma conversa de se tentar construir a cena a partir de cavalgadas não utilizadas.11 Em acréscimo a cenas problemáticas e performances, havia as habituais oscilações e desvios de rotina na montagem de qualquer filme comprido e complexo. Um em particular deixou a todos perplexos. Duas das cenas mais fortes eram apresentadas consecutivamente: a do Jones’s Saloon, onde Garrett mata Holly, e a do Horrell Trading Post, onde Billy mata o delegado de Garrett, Alamosa Bill. Desde a primeira montagem, ambas as cenas funcionaram tão bem que, fora um pouco de sobras, todos achavam que por hora não precisavam mais ser mexidas – todos exceto Sam, que tem a ideia de que devem ser intercaladas, e por intercaladas ele quer dizer fala a fala, pedaço a pedaço, um dever ingrato que foi atribuído a Garth, para quem este era o mais bizarro dos trabalhos inúteis que os montadores tiveram de fazer.12 E quanto mais óbvio se tornava para ele e Roger que este esquema estava arruinando duas cenas esplêndidas sem quaisquer benefícios de compensação, mais Sam se apegava a isto.13

“Dan Melnick’s Suggestions” (sem data, provavelmente no começo de abril de 1973).

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“Horrells Jones Format” (sem data, provavelmente no final de fevereiro).

Por outro lado, talvez não fosse o mais bizarro. De acordo com as notas, Sam também tentou intercalar a morte de Paco com as prostitutas, aparentemente cortando logo após a parte de Garrett brincando com o mamilo da menina, que Melnick pensou “confundir a morte de Paco” (“Executive Screening Notes”, em citação posterior) . E ele evidentemente filmou a sequência da balsa para que pudesse ser editada para parecer que Billy está vendo a coisa toda, o que Melnick considera “totalmente ilógico” (notas de Melnick de 6 de março, em citação posterior). 13

A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 123


Roger e Garth conseguiram preparar uma “muito longa” versão do diretor para mostrar para os executivos da MGM na projeção programada para 13 de março. Esta versão era inegavelmente dura e longa, mas, dadas as circunstâncias, impressionante o suficiente para indicar a dimensão do filme. Espantosamente, Sam não apareceu. Para além de ser irresponsável, esta era uma coisa absurdamente deselegante para se fazer com seus montadores, deixando-os lidar com um Aubrey apoplético, que, de acordo com Roger, fez jus à sua reputação de porco abusivo, reclamando, criticando e dizendo obscenidades ao longo de toda a exibição. No entanto, para surpresa de todos, as notas com seus comentários foram fundamentadas, favoráveis e até mesmo entusiasmadas. “Um primeiro corte sensacional”, ele escreveu, “estou orgulhoso e feliz ... o que você está buscando é realmente incomum e provocante.” Outras pessoas presentes ficaram ainda mais entusiasmadas (“um filme maravilhoso”, “este filme é fantástico”).14 As cenas e partes do filme que os incomodaram foram aquelas que já vinham incomodando Sam e a sua equipe, e havia um consenso geral de que o filme era muito longo e desigualmente ritmado. As notas mais inteligentes e penetrantes vieram de Dan Melnick, que havia de fato visto um corte semelhante cerca de uma semana antes na Cidade do México.15 Sam sempre tinha problemas com os executivos dos estúdios e os produtores, e ele e Melnick certamente tiveram suas desavenças neste projeto.16 Mas Melnick foi, no entanto, um produtor criativo cujos instintos Sam sempre respeitou. Como todo mundo, Melnick sentiu que o prólogo não funcionava da forma que tinha sido construído. Ele foi inflexível quanto à combinação das cenas de Jones e Horrell ser mutuamente prejudicial a ambas. Ele não gostava de Tuckerman’s e sugeriu que a cena fosse eliminada. Ele achava o mesmo das cenas de Chisum e da esposa (embora o seu principal problema neste caso parecesse ser o desempenho de Aurora Clavel, que ele achava que

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“Executive Running” (13 de março de 1973).

Tenho aqui condensadas e resumidas as notas de Melnick, que foram produzidas ao longo de um período de várias semanas desde o início de março até depois das sessões-teste de maio. Os documentos pertinentes são “Editing Notes Taken at Melnick Showing Tuesday March 6th”, “Executive Running” (13 de março de 1973), “Executive Showing Notes” (sem data, mas um dia ou dois após a projeção de 13 março), memorando de Gordon Carroll para Melnick, Peckinpah e Spottiswoode (19 de março de 1973), “Dan Melnick’s Notes after Executive Screening April 6th” e “ April 6th Executive Screening Notes”. 15

16 Mas não é verdadeiro, como eu erroneamente relatei em Reconsideration, que a amizade deles desenvolveu um racha não curado por alguns anos. Não houve racha e malícia de que eu tenha ciência da participação de Sam.

Paul Seydor 124


precisava ser melhorado com dublagem; Sam parecia concordar). Depois de ter lutado com Aubrey para deixar Sam filmar a sequência da balsa, ele agora sentia que ela não funcionava. Sam de jeito nenhum concordava com todas as sugestões de Melnick, especialmente algumas das soluções propostas pelo produtor, mas ele sabia que várias das observações de seu velho amigo tinham mérito. Sam no devido tempo simplificou o esquema de corte das cenas de Jones / Horrell, com a de Horrell colocada de modo lógico entre a mais curta primeira parte e a mais longa segunda parte da de Jones. As cenas de Chisum e da esposa iriam receber mais atenção (incluindo a dublagem de Clavel). Sam disse a Melnick que tinha algumas ideias para corrigir o prólogo, e ele sabia que havia muitas outras questões a serem abordadas, particularmente o encurtamento de várias sequências e novas tentativas de mudar cenas de posição, notadamente o episódio da balsa (que, como Sam e os montadores, Melnick realmente queria manter no filme). Quanto a Tuckerman’s, como a única cena em que nenhum dos dois personagens-título aparece, seu lugar no filme seria tênue, mesmo que fosse uma das melhores cenas que Sam tivesse dirigido (certamente até mesmo seus fãs mais indiscriminados não contestariam isso). Roger não conseguia entender por que Sam estava se agarrando a isto. Durante muito tempo ele acreditava que este era um exemplo de uma das estratégias preferidas de Sam: “Nunca lute por cenas que você realmente ligue”, Sam costumava me dizer. “Lute por aquelas que você não dá a mínima para que ao final, quando você desistir depois de muitos puxões de cabelo, os executivos pensem ter derrotado você, quando o tempo todo você os estava distraindo das cenas importantes.” Mas depois de algum tempo, Roger começou a suspeitar que Sam estava agarrado a ela porque seu amigo de faculdade fazia um dos personagens. Acontece que Roger estava certo, e não apenas sobre Don Levy. Havia um homem chamado Don Hyde, que era o arquivista de filmes e de outros materiais de Sam. Quando Sam morreu, sua família instruiu Hyde a doar os arquivos para a biblioteca da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. De acordo com Hyde, Sam disse que a razão pela qual ele lutou tanto para manter a cena de Tuckerman’s foi porque ambos, Levy e Dub Taylor, um veterano de quatro dos seus filmes anteriores, estavam nela. Eu sempre quis saber se não era também pela presença de Elisha Cook Jr., a quem Sam admirava tanto em Os brutos também amam, mas com quem nunca tinha trabalhado antes. A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 125


No entanto, a única razão dada explicitamente por Sam para a manutenção da cena foi a sua preocupação de que os espectadores poderiam se confundir, depois de Garrett dizer a Poe para atacar por conta própria e se encontrar com ele alguns dias mais tarde em Roswell, não fosse mostrado que Poe na verdade havia viajado para outro lugar, onde ele soube que Kid estava em Fort Sumner.17 Essa preocupação de Sam era real, eu não tenho nenhuma dificuldade em acreditar nisso: este é uma daquelas peças da trama que causam preocupação aos cineastas e é justamente para determinar se elas têm consequência ou não que as sessões-teste são tão importantes. A cena foi retirada da versão de cinema – Roger acha que Sam acabou lhe dizendo para tirá-la –, que é a forma como o filme foi visto por uma década e meia, período no qual eu li quase todas as críticas publicadas em Inglês e dei aulas sobre o filme pelo menos uma dúzia de vezes, sem encontrar ninguém que tenha pensado nesta peça da trama, muito menos se incomodado com ela (e, como Melnick continuou argumentando, ela é abordada na cena de Ruthie Lee, de qualquer maneira). A força motriz deste filme não é seu enredo como tal; são os destinos entrelaçados dos personagens-título. Eu não acho que alguém se lixe a mínima para Poe ou os outros personagens secundários quando eles não estão por perto. O prólogo provou ser igualmente difícil, mas ao contrário de Tuckerman’s, foi considerado essencial. No entanto, para Melnick ele era desnecessariamente complicado, alternadamente prolixo e difuso, num filme cuja força reside na clareza e simplicidade; sua preocupação, compartilhada por outros, era de que atrasava o início real, que era a chegada de Garrett em Fort Sumner. Essas preocupações se intensificaram quando Sam teve a ideia de colocar créditos sobre o prólogo e congelar as imagens, como fez em Meu ódio será sua herança. Mas o que em Meu ódio será sua herança era uma técnica limpa que servia à história, tanto tematicamente quanto estilisticamente, aqui se tornou um mero dispositivo, derivativo e pesado. O prólogo nunca fez parte do roteiro original. A ideia foi de Gordon Carroll, que pensou que seria eficaz abrir com o assassinato de Garrett 27 anos depois de ter matado Kid. A nova cena fez sua primeira aparição em um rascunho datado de 4 de outubro de 1972,18 cerca de cinco semanas antes do começo

Carta de Katherine (“Katy”) Haber para Norma Fink (11 de agosto de 1975). Katy estava escrevendo para Sam em relação à apresentação de televisão de Pat Garrett & Billy the Kid. 17

Peckinpah Collection, pasta 752.

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da produção. Naquela época, era apenas um prólogo; não havia um epílogo no roteiro que retornasse para o assassinato e jamais se falou em filmar um, e assim permaneceu até a pós-produção. Em vez disso, o roteiro terminava com Garrett cavalgando para fora de Fort Sumner na manhã depois que ele mata Kid e desaparecendo em um nevoeiro. O roteiro também instrui que o prólogo seria processado em sépia e intercalado com a chegada de Garrett em Fort Sumner, e pede que a sequência seja muito curta e, embora filmada com diálogo, talvez editada de tal forma a passar sem diálogo. Logo que Sam entra na sala de montagem, no entanto, ele claramente começa a pensar em linhas mais elaboradas. Uma nota inicial indica que a primeira tomada era para ter sido de uma das galinhas enterrados na areia, o que é intrigante.19 Mas nunca havia tempo para trabalhar em qualquer coisa: a abertura é a única abertura laboriosa de qualquer um de seus filmes. Começamos, um cartão nos informa, perto de Las Cruces, em 1909 – na verdade, uma data errada (Garrett foi morto em 1908) que nunca foi corrigida – e uma vez que as armas são sacadas para um Garrett desavisado, cortamos para o velho Fort Sumner em 1881, sobre o qual um outro cartão identifica o local e o ano. Então a justaposição entre as galinhas sendo baleadas e Garrett sendo assassinado começa. Durante todo o tempo, as imagens são congeladas e os créditos são colocados sobre elas, o que levantou problemas adicionais. O prólogo foi processado em sépia, mas quando Sam começou a congelar imagens nas cenas de Fort Sumner da sequência, ele as dessaturou para preto e branco, acrescentando assim mais um floreio a uma sequência já sobrecarregada com floreios. Passado e presente; sépia, cor e preto e branco; quadros congelados e imagens em movimento; cartões narrativos e cartões de crédito; justaposição de sequências – não é que o público teria dificuldade para fazer a triagem de tudo isso, só que tanto do ponto de vista da história quanto do estilo narrativo era confuso. Sam pareceu concordar, porque imediatamente ele disse a Melnick que tinha algumas outras ideias para lidar com os créditos, inclusive colocando mais de um em cada imagem congelada.20 (Roger uma vez me disse que achava que Sam agarrou-se aos créditos contra o bom senso como a mais segura forma de proteger o prólogo, imaginando que o estúdio nunca pagaria por outra sequência de créditos.)

16 de fevereiro de 1973, 1.

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Memorando de Carroll, 1.

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Na noite de 2 de abril, examinando rolos e tomando notas para mudanças, Roger teve a ideia de reprisar uma pequena parte do prólogo como um epílogo, a fim de criar uma estrutura circular.21 A ideia era, em teoria, boa, e Roger, um montador extremamente inventivo, mesmo que em começo de carreira, fez um trabalho engenhoso para que as cenas feitas com um propósito servissem a outro. Isto funcionou? Bem o suficiente para ser posto à prova em ambas as sessões-teste. Mas repetir tomadas para fins referenciais era algo que Sam se esforçava para evitar, e eu sempre pensei que as cenas do epílogo pareciam com o que eram – emprestadas. Quando Sam queria flashbacks, ele filmava o material a ser utilizado especificamente para esse fim, como em Meu ódio será sua herança; e quando, durante a montagem, ele descobria que precisava de flashbacks que não tinham sido filmados, ele usava se fosse possível imagens que não haviam sido utilizadas em cenas anteriores, como fez em A morte não manda recado, Sob o domínio do medo e Dez segundos de perigo. O epílogo também é conceitualmente problemático. Se a ideia provém do conto de Ambrose Bierce “Um incidente na ponte de Owl Creek” e o miolo do filme é a vida de Garrett passando diante de seus olhos quando ele morre, por que o prólogo o deixaria obviamente morto e o epílogo o traria vivo de novo, só para terminar antes que ele caia no chão? E por que congelar aquela tomada estranhamente enquadrada do assento e da roda da charrete no ponto onde o corpo de Garrett cai fora de vista, enquanto o chapéu e os dedos permanecem apontando para cima na parte inferior do quadro? Esta é uma tomada muito trivial para se terminar um épico. Seja qual for a resposta, a única maneira que Sam poderia ter avaliado adequadamente o epílogo seria assisti-lo como parte de todo o filme e ver se a cena repetida o incomodava – algo que ele nunca fez. Como Sam estava entre os mais escrupulosos e sofisticados de todos os diretores de cinema quando se trata de ponto de vista, sempre me pareceu estranho que no prólogo, a sequência mais subjetiva no filme, ele viole o ponto de vista de Garrett ao revelar o atirador distante antes de Garrett o ter visto. Não teria sido mais eficaz, e também mais como o clássico Peckinpah, revelar o primeiro atirador através de Garrett, ou pelo choque de sofrermos o

Uma nota ambígua das sessões de 24 de março sugere a ideia do que pode ter sido primeiro proposto na época, mas a nota de 2 de abril a atribui a Roger e apela para visuais a serem feitos. 21

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primeiro golpe com ele ou, pelo menos, reagirmos com ele ao som do primeiro estalido do rifle? Perguntei a Roger se isso nunca foi tentado; ele só jogou as mãos para o ar e disse: “Todos nós tivemos uma tentavia naquela cena. Ninguém jamais foi completamente feliz com ela; nunca estava certa”. A realidade é que simplesmente não havia tempo suficiente para fazer experimentos com a narrativa circular para tê-la bem afinada e cuidadosamente estruturada como, obviamente, precisava ser.22 Não houve tempo para fazer um monte de coisas. Muitas notas nunca foram abordadas de todo, como remover a imagem do cavalo de Poe no prólogo, recolocando Garrett dando um tapa em Ruthie Lee, e de cortar a fala de Garrett, “O que você quer e o que você consegue”, depois que ele mata Kid (talvez a única extraordinária fala de Coburn em todo o filme).23 Às vezes, as instruções para fazer as mesmas alterações se repetem em mais de um conjunto de notas. É impossível saber o que fazer com tudo isso. Talvez Sam tenha mudado de ideia depois de ditá-las, então esqueceu que tinha revertido; talvez os montadores não tenham tido tempo para implementá-las. Nada disso deveria

Outra evidência que sugere que o prólogo não estava de modo algum em sua forma final, mesmo no momento das sessões-teste, é que há fios claramente visíveis saindo de uma das pernas da calça de Coburn, que não foram removidos nem mesmo para a segunda sessão-teste. É difícil imaginar que ninguém da equipe de montagem tenha notado. A única explicação é que como a remoção de coisas como estas era uma proposta muito cara naqueles dias, a parte visual não seria arranjada até que a imagem fosse inequivocamente resolvida e que fosse certamente a tomada a ser usada. É inteiramente possível que isso também explique por que o ano da morte de Garrett está errado no cartão de crédito “Near Las Cruces” [perto de Las Cruces], mesmo que a data esteja correta na nota histórica que Sam escreveu para a segunda sessão-teste que precedia o desenrolar dos créditos finais. Uma vez que é novamente improvável que ninguém tenha percebido o erro, a explicação lógica é que a correção estava aguardando uma decisão no que diz respeito à forma final do prólogo. Finalmente, em cima da primeira sessão-teste, Sam ainda tinha dúvidas sobre o estilo dos créditos, incluindo a cor vermelha para as fontes, o que pode explicar por que tanto a nota histórica na segunda sequência de créditos é em amarelo quanto por que isso não é seguido por uma sequência final de créditos: havia tempo suficiente para filmar a nota histórica na nova cor para a segunda sessão-teste, mas não havia tempo suficiente para filmar todo uma sequência final de créditos em amarelo, muito menos mudar os créditos de vermelho em todo o prólogo. Finalmente, considere também que já no conjunto de notas de 25 de fevereiro Sam deu esta instrução geral: “CLOSE UP LINES ON ALL LONG SHOTS” [encurtar diálogos em todas as tomadas longas]. O que ele quis dizer foi que era para cortar quaisquer pausas longas desnecessárias entre as falas, o que é fácil de fazer em tomadas de longa distância, porque não importa se, ao fazer isso, o diálogo fica fora de sincronia, porque você não pode vê-lo. Esta é uma prática comum na afinação de montagem, ainda que na primeira tomada do prólogo haja uma pausa longa, inútil, entre a primeira fala de Garrett e a resposta de Poe. Por que não foi encurtada? Ninguém pode dizer, mas a explicação mais provável é que era apenas mais uma coisa que foi ignorada ou que iria ser trabalhada quando a decisão final fosse tomada. Não importa como você olha para as notas, as provas e as versões do filme em si, a conclusão é inevitável: quando Sam deixou o filme, ele deixou um prólogo que ainda estava em construção e não havia feito, de maneira nenhuma, suas determinações finais sobre vários aspectos do mesmo. 22

Memorando de Carroll, 4.

23

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ser surpreendente, considerando a enorme pressa com que tudo foi feito e a multitarefa necessária para fazê-lo. Os montadores trabalharam à exaustão, se colocando durante longas e cansativas horas em frente a moviolas barulhentas durante sete dias por semana, e ainda assim não houve tempo suficiente. Mas outra razão para tantas coisas terem sido ignoradas é que por adormecer durante as projeções, chegando atrasado, ou faltando a elas, Sam não sabia necessariamente se todas as suas notas foram implementadas ou se eles estavam trabalhando como ele esperou que fariam. As notas em si nem sempre eram claras, se acontecesse de ele estar bebendo durante as sessões. Faltar à primeira sessão-teste não foi apenas profissionalmente negligente, foi suicida. Os montadores tinham feito um trabalho milagroso melhorando o filme da versão que os executivos viram: a nova montagem fazia brilhar muito do que Sam tinha filmado, cenas e sequências inteiras eram bonitas de tirar o fôlego, algo claramente extraordinário estava aqui lutando para encontrar forma. Mas, mesmo admitindo que se tratava de um filme essencialmente lírico e meditativo, a narrativa caminhava aos trancos e barrancos, algumas sequências se arrastavam e outras não avançavam, e o público logo começou a ficar inquieto. No dia seguinte, quando Melnick – Melnick, não Aubrey – perguntou pelas notas de Sam, Sam insultuosamente respondeu que 15 pés poderiam sair de uma tomada, acrescentando o insulto de não ter respondido a Melnick diretamente, mas através de seus montadores (especificamente, Roger). Por que Sam continuava a se deixar em uma posição tão vulnerável? Tenho ao longo dos anos muitas vezes falado, e longamente, sobre Pat Garrett & Billy the Kid com várias pessoas que trabalharam nele ou estiveram muito próximas a Sam na época, incluindo membros da família. Sua lealdade e amor foi e está fora de questão, e nenhum deles desperdiça qualquer simpatia em Aubrey, que todos concordaram ter merecido o apelido de “a cobra sorridente”. No entanto, todos acreditam que Sam gratuitamente fabricou um monte de brigas e no momento das sessões-teste não deixou escolha a Aubrey a não ser tirar o filme dele (Garth lamentou em mais de uma ocasião que “se apenas Sam tivesse dispendido o mesmo tempo e energia trabalhando no filme que nas provocações a Aubrey e aos outros”). Se era verdade que Aubrey depois ordenou que cenas fossem removidas por nenhuma outra razão a não ser saber que Sam as queria , também era verdade que Sam deliberadamente deixou cenas que ele sabia serem facilmente dispensáveis, Paul Seydor 130


em alguns casos para o bem maior do filme, simplesmente porque Aubrey as odiava particularmente.24 Uma das estratégias que Sam aparentemente tinha em mente para quando chegasse o momento das sessões-teste era convidar membros do elenco e alguns notáveis da indústria – Henry Fonda, um deles – na esperança de que eles iriam espalhar a palavra e, assim, através de uma certa forma de pressão, forçar Aubrey a lhe permitir completar o filme como ele desejava. Sam também queria convidar membros de sua família. Quando ambas as intenções foram vetadas, ele alegou conspiração. É difícil decifrar o que ele deve ter pensado aqui e igualmente difícil é escapar à conclusão de que ele estava sendo ou hipócrita ou ingênuo. Estúdios nunca permitiam amigos, familiares, membros da equipe, representantes da indústria ou da imprensa em sessões-teste. O exato ponto destas exibições é obter o equivalente mais próximo de espectadores pagantes que não tenham participação no filme que estão assistindo; e uma vez que você os consiga, não quer arriscar em ter amigos, família, iniciados, e assim por diante, a conduzir, estipular ou de alguma forma contribuir para a reação da plateia. Sam sabia disso. Assim, ele também deveria saber que sua artimanha era um substituto fraco para a sua incapacidade de lutar por seu filme de forma eficaz, e não de modo autodestrutivo e autoderrotado. Por que ele não lutou? De acordo com Katy Haber, próximo do fim das filmagens Sam parecia ter adotado como sua principal estratégia evitar qualquer contato direto com Aubrey, incluindo nunca participar de conferências, reuniões ou ocasiões em que ele sabia que Aubrey estaria presente. É por isso que, Katy me disse, Sam faltou a todas as reuniões de estúdio, projeções e sessões-teste. No entanto, quando se tratava de proteger o seu filme do que Aubrey queria fazer, a única pessoa com autoridade e poder para isso era o próprio Sam. No entanto, ele optou por fazê-lo apenas através de intermediários, a quem Aubrey intimidava ou ignorava. Quaisquer que sejam as simpatias de Melnick em relação a Sam, profundas e muitas, ele foi pego em um dilema, na medida em que

O primordial era a cena no Hotel Tuckerman’s. Desde que viu as primeiras tomadas, Aubrey expressou sua repugnância com o desempenho de Don Levy como Sackett e até mesmo escreveu a Sam um memorando nesse sentido (Aubrey para Peckinpah, 22 de janeiro de 1973). O tom do memorando era jocoso, e Sam respondeu na mesma moeda, mas não havia dúvida sobre o que Aubrey queria dizer. Não há, claro, maneira de se saber com certeza, mas algumas pessoas acreditam que se Sam tivesse desistido de Tuckerman’s em um momento estratégico, ele poderia ter sido capaz de reter uma grande quantidade de material que lhe era caro e que Aubrey queria removido. 24

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ele estava a serviço do estúdio; Gordon Carroll simplesmente não tinha o temperamento de um lutador, e de qualquer forma Sam abusou dele tanto quanto Aubrey sem dúvida o fez. Roger, Garth, Bob, Katy e Melnick acreditavam que Sam poderia ter superado e passado a perna em Aubrey e conseguindo a maior parte do que queria porque ele era muito mais esperto. Em vez disso, Sam parecia estar manobrando Aubrey a fazer exatamente o que ele logo iria fazer: tirar-lhe o filme. Essa seria a saída final de Sam, sua válvula de segurança e escotilha de escape de um projeto que ele tinha começado a temer muito antes de a produção começar e no qual sua fé estava abalada no momento das sessões-teste.25 Por fim, ele teria Aubrey onde ele queria. Ele sabia que Aubrey insistiria em mais alterações, sabia que teria que, pois o filme ainda não estava funcionando bem. O medo de Sam era que ele poderia nunca funcionar – mas se fosse tirado dele, ele seria absolvido de culpa por qualquer versão que fosse lançada. E se uma das versões de teste sobrevivesse – bem, deixe-me dizer o que esse filme poderia ter sido se apenas “eles” me tivessem dado o tempo que eu precisava para terminá-lo do meu jeito. Mas Aubrey ainda não havia atacado. Houve uma segunda sessão-teste uma semana mais tarde. Acima de tudo ele honraria se não a sua palavra, o contrato: Sam teria suas duas sessões-teste, e seriam com as versões de Sam, de mais ninguém. Aubrey ainda permitiu que o filme fosse musicado, dublado e o negativo cortado do jeito de Sam. Existem apenas duas pequenas diferenças entre a primeira e a segunda versão de teste. Sam evidentemente passou a acreditar que a cena entre Garrett e McKinney era muito longa e instruiu que todo o diálogo que se seguia à fala de Garrett “há alguns jovens lá também” fosse eliminado, assim como a tomada de Garrett, McKinney e Poe deixando a cidade. Ambas as mudanças foram feitas a tempo para a segunda sessão-teste, mas com resultados mistos. A segunda metade da cena entre Garrett e McKinney, que inclui as razões pelas quais Garrett acha que McKinney tem uma dívida com ele, é inteligentemente escrita e desempenhada; removê-la fez de McKinney um personagem bem menos interessante (na verdade, dificilmente um personagem) e priva o relacionamento de Garrett com ele de qualquer história. Enquanto isso, eliminar a cavalgada

De acordo com Carroll, quando Sam percebeu como o roteiro era realmente problemático, ele implorou ao produtor que o liberasse de seu contrato. Seydor, Reconsideration, 260. 25

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para fora da cidade acarretou uma transição mais áspera, não mais suave, para a última sequência do filme. (Mesmo muito tempo depois da segunda sessão-teste Sam não estava feliz com essas mudanças.) Mas havia também duas grandes diferenças. Na primeira sessão-teste, a passagem dos créditos começa com os títulos finais. Até o momento da segunda sessão-teste, estes foram precedidos por uma legenda que Sam escreveu pessoalmente: uma nota histórica que ligava a morte de Garrett ao Santa Fe Ring, a Albert Fall e ao Teapot Dome, e, consequentemente, por meio de uma alusão velada, a Watergate e a seus próprios problemas na MGM. Parte desta “história” ridícula é totalmente inventada, enquanto as partes que são verdadeiras estão tão distorcidas que parecem inventadas.26 Mas, a esta altura, nada disso parecia importar: Sam não poderia deixar passar qualquer oportunidade para mostrar o dedo a Aubrey, mesmo se fosse algo que fizesse seu filme parecer bobo. A outra grande diferença é que a cena da esposa não estava presente na primeira versão teste, mas estava na segunda. A questão para a qual não consigo encontrar uma resposta é por que a cena da esposa foi removida da primeira, em primeiro lugar. Embora Sam estivesse em cima do muro sobre esta cena durante toda a montagem, como evidenciado pelo quanto ele continuou mexendo nela, e embora tenha havido muita discussão sobre a possibilidade de removê-la ou não, não posso encontrar nenhuma instrução escrita em que ele realmente peça que seja eliminada em sua totalidade. Mas não poderia ter sido removida por ordem de nenhuma outra pessoa, porque o estúdio não estava diretamente envolvido com a montagem neste momento. Na medida em poderia ser retirada por inteiro sem prejuízo à ação, talvez ele apenas tenha dito a um dos montadores para fazê-lo para ter uma noção de como o filme ficaria sem ela. Roger e Garth não se lembram, mas Katy distintamente se lembra que foi ideia de Sam de ir até à cena em que Garrett chega ao portão, onde ele faz uma pausa antes de empurrá-lo, e remover a cena da esposa a partir daí, que é exatamente como

O assassinato de Garrett não tinha conexão com os eventos de quase três décadas antes em torno das guerras do Condado de Lincoln e da morte de Billy the Kid. E embora Albert Fall – que depois se tornou secretário do Interior no governo Harding e pegou um ano de prisão por sua participação no escândalo do Teapot Dome – tenha sido bem-sucedido na defesa do assassino de Garrett, ele não era nem mesmo um membro, muito menos o líder, do Santa Fe Ring [N.T.: grupo de advogados e especuladores de grande poder na virada do século], que não existia na época da morte de Garrett. 26

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está na primeira versão.27 Também é possível que a sua remoção tenha sido um erro ou resultou de uma falha de comunicação, o que é reforçado por uma carta escrita a Melnick cerca de um ano mais tarde, em que Sam se referiu ao “erro na sequência da casa da Ida.”28 Para aumentar a confusão, aqui tem dois conjuntos de notas de montagem sem data, cada um com duas páginas. O primeiro, sem título, contém uma instrução em que se lê, “COLOQUE A CENA DA IDA DE VOLTA”. É impossível se saber exatamente quando essas notas foram ditadas; mas na medida em que algumas delas pedem mudanças que já foram implementadas na primeira versão, é óbvio que devem preceder a primeira sessão-teste. Por exemplo, uma nota pede pela remoção de todo o diálogo a partir da sequência da balsa, mas uma vez que qualquer diálogo na sequência da balsa havia sido removido antes da primeira sessão-teste, este conjunto de notas não pode ter chegado depois. Evidentemente, em algum momento, não muito tempo antes da primeira sessão-teste, Sam disse a seus montadores para remover a cena da esposa, em seguida, mudou de ideia, e neste conjunto de notas instruiu-os a colocá-la de novo. Isso ainda levanta a questão de por que não foi feito. É mais do que provável, na corrida para se preparar a primeira versão, que tenha sido apenas mais uma coisa ignorada. Ainda mais confuso é o segundo conjunto de notas, intitulado “NOTAS FEITAS NA PRÉVIA DA SESSÃO-TESTE DE 3 DE MAIO”. Já que o título identifica uma prévia da sessão-teste, isto sugere que estas notas foram feitas

Na versão de cinema, Roger fez o corte ligeiramente mais cedo, quando Garrett e Alamosa Bill se separam fora da barbearia. Este me parece um lugar mais elegante. Vermos Garrett caminhando até o portão, mas na verdade não entrando, acentua a ausência da cena. Claro, é perfeitamente possível que este fosse o propósito de Sam: fazer a lacuna tão óbvia que não haveria escolha a não ser colocar a cena de volta. 27

Carta a Dan Melnick, 30 de abril de 1974, 1. Minha afirmativa de que a cópia em depósito na biblioteca da Academia, que é a cópia que Sam roubou da MGM, é a segunda versão de teste, enquanto que a Turner Preview 1988 é a primeira, baseia-se em duas peças principais de evidência. A primeira é a lembrança bastante vívida de Garth Craven de que na noite da segunda sessão-teste, depois da exibição, “de repente percebeu que a nossa cópia ainda estava na cabine de projeção”. Garth fez Smiley Ortega, um dos assistentes de montagem, pegar uma bicicleta do estúdio; juntos eles colocaram o filme na cesta e “Smiley pedalou através do estúdio e o jogou no banco de trás” do carro do assistente de Sam, que dirigiu para fora do estúdio (Weddle, If They Move-Kill ‘Em!, 485). A segunda evidência é a carta a Melnick que acabamos de citar, em que Sam se refere a tirar a cena da esposa da segunda versão de teste. Apenas uma das versões de teste tinha a cena da esposa nela, a segunda; a cópia que Sam roubou tem a cena da esposa, e foi roubada da sala de projeção na noite da segunda sessão-teste. Portanto, segue-se que foi a segunda versão. Na outra versão faltava a cena da esposa, assim como na Turner 1988. Uma vez que sabemos que a Turner é uma das versões de teste, segue-se que a Turner deve ser a primeira. 28

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em algum tipo de projeção antes da sessão-teste. Não só não existe nenhuma instrução aqui sobre qualquer remoção ou recolocação da cena da esposa como a única referência diz: “Pare a música na casa de Ida assim que Garrett se vira para sair”. Evidentemente, antes da primeira sessão-teste, a cena foi musicada, mas a música acabou saindo. O que novamente permanece inexplicável é por que nesta projeção, relativamente pouco tempo antes da sessão-teste, a cena da mulher que ainda estava lá acabou sendo removida no momento da sessão-teste propriamente. As respostas a estas perguntas provavelmente nunca virão à tona, mas o que emerge com clareza ofuscante é como a sala de montagem havia se tornado um ambiente caótico, sob altíssima pressão, em que decisões eram tomadas com grande pressa e sem acompanhamento minucioso, total consideração de consequências potenciais e reais, ou do tempo que havia para reconsideração ou correção. Tudo isso nos leva de volta aos três fatos das sessões-teste: o cronograma insanamente acelerado, as bebedeiras e outros comportamentos autodestrutivos de Sam, e seu fracasso em comparecer às projeções. A Warner estava determinada a gastar o mínimo de dinheiro possível na caixa de DVD de Peckinpah; ela concordou com a Edição Especial, porque foi baseada na versão de cinema, para a qual já existia um negativo totalmente dublado e corrigido no qual se poderia colocar de volta algumas cenas de modo fácil e relativamente barato. Por outro lado, uma restauração em grande escala das versões de teste levanta toda uma série de questões práticas e morais ou, ao menos, filosóficas. As questões práticas dizem respeito tanto ao custo quanto à viabilidade, mas vamos resolver primeiro a questão da linguagem. A razão para esta nova versão ser chamada de “Edição Especial” em vez de “restauração” é precisamente porque uma restauração implica em algo que existia em um estado puro ou mais imaculado, perfeito, completo, que caiu em desuso ou foi corrompido, destruído, ou caso contrário poderia se estragar. No caso de Pat Garrett, no entanto, não há nada no sentido literal da palavra para restaurar. Muitos cinéfilos, especialmente aqueles que amam esse filme tanto quanto eu, equivocadamente tratam as versões de teste de Pat Garrett como se fossem os cortes finais, mais ou menos equivalentes às versões originais de Meu ódio será sua herança. Mas há uma diferença crucial: Sam estava intimamente envolvido na montagem de Meu ódio será sua herança, dos cortes iniciais dos montadores até a afinação final, A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 135


sessões-teste, dublagem, mixagem, gravação da música, correção de cor e cópias de lançamento. Ele pessoalmente permitiu que duas versões ligeiramente diferentes do filme fossem lançadas, uma para os Estados Unidos e outra para o resto do mundo: eles não só são verdadeiros cortes finais, mas foram os seus cortes finais, concluídos por ele e sua equipe de pós-produção. Quando a Warner decidiu reduzir a metragem para fazer mais sessões por dia no mercado nacional, as cenas foram removidas diretamente das cópias em circulacão. Os negativos da versão do diretor permaneceram intactos. Quando o estúdio fez a restauração para o primeiro lançamento em DVD em 1995, era uma simples questão de voltar ao negativo da versão europeia. Mas com Pat Garrett não há equivalente a nada disso: Sam nunca completou um verdadeiro corte afinado, e o único negativo é o da versão original de cinema, a versão mais curta de todas e preparada sem o seu consentimento, cooperação ou participação. Quanto às duas versões de teste, embora sendo em grande parte idênticas, diferem em alguns aspectos cruciais e ambas estavam claramente inacabadas em relação à dublagem, adição de música, mixagem, correcão de cor e créditos. (No dia seguinte à segunda sessão-teste, Sam ainda estava ditando mudanças em notas, mesmo que estivesse se recusando a colaborar na preparação do corte final.) Estou bastante certo de que a única cópia existente da segunda versão é aquela, há tempo desvanecida para o vermelho, na biblioteca da Academia. É improvável que haja qualquer negativo equivalente a esta cópia, porque o negativo usado para gerá-la teria sido alterado até formar a versão final de cinema. Já a primeira versão de teste, agora comumente conhecida como Turner 1988, é muito provável que dela também exista apenas uma única cópia, que é a que foi usada para gerar o disco laser e muito mais tarde o DVD para a coleção. Se isto é verdade – e pela aparência do que está no DVD, eu suspeito que seja –, então é óbvio que esta versão foi gerada a partir de um negativo que ainda estava em processo de ser devidamente corrigido. (Aos meus olhos, nem sequer é uma cópia boa, e foi, sem dúvida, processada no laboratório com muita pressa.) Nick Redman e eu estávamos tão desapontados quanto qualquer um pela aparência da Turner Preview na caixa de DVD. Mas os elementos ainda existem para se fazer uma nova e melhor cópia no futuro? Eu não tenho ideia, porque as minhas ofertas para ajudar a identificar o que estava nos cofres e a observar – de novo por nenhum dinheiro – as sessões de masterização foram educadamente, mas com firmeza, recusadas.Também não sei o que existe de backup dos negativos. Paul Seydor 136


Presumo que um IP de proteção – ou seja um interpositivo, uma cópia especial gerada a partir do negativo original e usada para fazer uma duplicata do negativo – foi feito tão logo a montagem estava completa. Mas eu não sei se é isso mesmo, Roger e Garth não se lembram (de todo jeito, esta teria sido uma decisão interna do departamento de pós-produção da MGM), e as práticas da indústria na época eram inconsistentes. Se IP foram feitos para cada versão de teste, então restaurações de imagem são possíveis mas caras.29 Se os IP não existem, mas apenas negativos de sobras de cenas e sequências, ainda seria possível, mas, segundo me informaram, extremamente caro. Isto porque, independentemente de qual das versões de teste fosse selecionada para a restauração, o negativo da versão de cinema teria de ser remontado de acordo com as versões de teste. E porque muitas tomadas no negativo teriam que ser estendidas, uma certa quantidade de restauração digital seria necessária, aumentando assim a despesa. E isso sem considerar que as bandas sonoras não se encaixariam. Em qualquer caso, isso não importa: a Warner Home Video não esteve e não estaria preparada para gastar dinheiro.30 Depois, há a questão filosófica. Na medida em que as versões de teste são diferentes uma da outra, qual delas restaurar? Uma resposta inicial é dizer a segunda. Mas embora tenha a cena da esposa, também contém coisas inacabadas, desajeitadas, incluindo decisões que não têm nada a ver com considerações estéticas (por exemplo, a falsa nota histórica de Sam que inicia a passagem dos créditos

Na verdade, faz todo o sentido que não tenham sido feitos IP de proteção imediatamente. Na medida em que as sessões-teste eram eventos de apenas uma vez, e a primeira versão seria quase certamente mudada, por que incorrer tanto na despesa quanto no risco? Toda vez que o negativo é manuseado, especialmente para a geração de uma cópia ou duplicação, existe a chance de danos. 29

Até hoje eu não sei onde a Warner encontrou as bandas sonoras usadas para masterizar a Turner 1988 em DVD. Metade de uma fala de Kip McKinney foi cortada completamente e os últimos rolos sofreram oscilações. Nenhum desses defeitos aflige o velho disco laser da mesma versão. Enquanto isso, a Edição Especial contém uma transição de som cortada após a cena de Lew Wallace, que eu notei duas vezes nas sessões de edição, mas que nunca foi corrigida. A verdade é que a preparação da caixa de DVD dos faroestes de Peckinpah foi pega em uma guerra interna envolvendo um recém-chegado executivo que desenvolveu um animus especial em relação ao executivo que já estava no comando da caixa e para quem tinha sido um trabalho de amor e devoção. O resultado foi que o novo executivo, que tinha poder, tratou o que deveria ter sido uma caixa de prestígio de forma mesquinha. O alinhamento e balanceamento de cor é falho e os visuais granulados; um livreto de ensaios, entrevistas e outros materiais compilados e editados por David Weddle (de graça) não foi incluído; a embalagem era barata, e assim por diante. A Sony Pictures estava preparando sua restauração de Juramento de vingança ao mesmo tempo e estava ansiosa para tomar as providências para que fosse incluída como parte da caixa, mas a Warner não queria se incomodar em resolver acordos financeiros (que eram generosos com a Warner). De acordo com Nick, os organizadores do Festival de Cannes queriam dar a Peckinpah um prêmio póstumo e estavam implorando à Warner para deixá-los lançar a Edição Especial em conexão com o festival. Incrivelmente, a Warner se recusou a pagar por uma cópia. 30

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finais, o clamoroso Tuckerman’s), e havia várias questões sobre as quais Sam ainda não tinha tomado uma decisão (a música, a cena de Garrett-McKinney). Mesmo o pensamento de Sam sobre a cena da esposa na época das sessões-teste está longe de ser claro. Se a sua remoção não foi um erro, então sugere que Sam estava seriamente tentado a fazê-la. Sua decisão de colocá-la de volta na segunda versão de teste em si não significa nada, porque uma das funções de várias sessões é ver como diferentes versões se desempenham. Tudo o que sabemos com certeza é que, cerca de um ano depois, ele definitivamente a queria de volta. Mas mesmo considerar opções como estas é dar o primeiro passo no terreno escorregadio de presumir que sabemos o que Peckinpah tinha em mente, estarmos preparados para pensar por ele, e podermos tomar essas decisões em seu lugar. Em outras palavras, se a ideia é tentar ser o mais fiel possível ao que sabemos que Peckinpah queria e se é mesmo verdade que ele foi embora antes de terminar qualquer versão, então a única legitimidade que as versões de teste têm como representações de seus pensamentos “finais “ reside precisamente em seu estado inacabado: a sua condição como obras em andamento. Ao apropriar-se da tarefa de acabá-las, mesmo com boas intenções, você viola a integridade única que têm. E todos os fatos sobre o comportamento de Sam durante a execução do filme sugerem que este é o jeito que ele queria. Há uma nota curiosa para a história infeliz da montagem deste filme e da relação de Sam com ele. Em novembro de 1973, sete meses após o filme ter uma morte imerecida nas bilheterias, Aubrey foi demitido, mas Melnick permaneceu na MGM. Poucos meses depois, ele convidou Sam para voltar e preparar um corte final de Pat Garrett & Billy the Kid exatamente como ele desejava que fosse. Em 29 de abril de 1974, Sam, Melnick e Garth assistiram ao filme (qual das versões não é absolutamente claro, mas foi provavelmente a primeira versão de teste).31 No dia seguinte, Sam escreveu a Melnick uma carta de duas páginas enumerando vários assuntos que queria abordar imediatamente (incluindo a colocacão das cenas da esposa e de Chisum de volta, trabalho adicional na cena Garrett-McKinney e sua cavalgada para fora da cidade, reexaminação da questão da voz de Dylan para “Knockin’ on Heaven’s Door”, e dar mais substância à

A primeira é a única versão de teste que o estúdio teria. Além disso, é difícil acreditar que Sam teria trazido consigo a cópia que ele havia roubado. Não obstante a amizade de Sam com Melnick, Melnick ainda era um executivo do estúdio em uma posição muito alta, e Sam, notoriamente paranoico ao longo de sua carreira, o foi especialmente durante a realização de Pat Garrett, e permaneceu assim depois. 31

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música em certos trechos). “Deixe-me dizer que tanto profissionalmente quanto pessoalmente estou muito satisfeito com sua cooperação”, concluiu.32 Mas nada aconteceu. Em 1995, quando eu perguntei a Melnick o que tinha acontecido, ele me disse que Sam apenas não teria se colocado disponível.33 Isto parecia inconcebível para mim, e eu finalmente perguntei a Garth sobre isto quando eu estava preparando esse ensaio. “Cheguei a ir ao estúdio uma tarde e olhei nos cofres. Encontrei a cena da esposa e algumas outras coisas”. E então o quê? “Nada”, Garth respondeu.”Isto ocupou a atenção de Sam por cerca de 15 minutos, e então, como tantas outras coisas na sua vida naqueles anos, nada resultou disto. Ele perdeu o interesse”. Fiquei incrédulo quando ouvi isso. Sam tinha se irritado durante toda a sua carreira com as interferências dos homens do dinheiro em seu trabalho e se queixado que nenhum de seus filmes foi lançado em versões por ele aprovadas,34 e ali estava ele, recebendo meios, orçamento, local para trabalhar, pessoal de pós-produção e instalações de um dos estúdios mais bem equipados do mundo para fazer o corte final de um de seus melhores filmes com o montador de sua escolha... e ele perdeu o interesse? Quando Garth me disse isto, eu silenciei por um momento, porque tudo o que eu conseguia pensar era como o próprio Garth deve ter se sentido naquela época: Pat Garrett foi o seu primeiro filme como montador de cinema, e ele se colocou em perigo potencial com um grande estúdio quando saiu em apoio a Sam. E então eu me perguntei sobre Melnick: ele havia contratado Sam para Noon Wine após Juramento de vingança quando ninguém mais o faria, produziu um dos seus melhores filmes, Sob o domínio do medo, colocou-se entre ele e o chefe de estúdio mais traiçoeiro com quem Sam teve que lidar, e foi recebido com indiferença depois de lhe apresentar uma oportunidade que qualquer diretor mataria para ter. “É uma pena”, eu disse a Garth. “Sim”, ele respondeu suavemente, “não é?”

Carta para Melnick, 2.

32

Garner me fez lembrar que a Columbia, na verdade, fez a mesma oferta a Sam algum tempo depois que Juramento de vingança foi lançado. Sam declinou. Onde ele estava com a cabeça? A menos que ele pudesse produzir uma obra-prima – apesar do alto desempenho de várias sequências e apesar de suas pretensões, não havia nenhuma obra-prima em Juramento –, ele era melhor com “o que poderia ter sido”. 33

É dificilmente picuinha salientar que isto está longe de ser a verdade. Pistoleiros do entardecer, Meu ódio será sua herança, A morte não manda recado, Sob o domínio do medo, Dez segundos de perigo, Os implacáveis, Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia e Cruz de Ferro foram todos imediatamente ou no devido tempo lançados em versões por ele aprovadas ou substancialmente perto do que ele aprovou. 34

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A Edição Especial 2005 Algumas das mesmas pessoas que se queixaram da Edição Especial 2005 também me fizeram um elogio um pouco contraditório ao sugerir que eu fiz uma restauração em grande escala da Turner Preview 1988. Concordo plenamente que à versão Turner deveria ter sido – e agora deve ser – concedido o respeito de uma restauração adequada no sentido estritamente técnico de corretamente ajustar a imagem e mixar o som (supondo que, como observado, os elementos existam para que isso possa ser feito). Mas, por motivos já expostos na seção anterior, eu colocaria limites para fazer qualquer alteração essencial em cenas ou sequências. A única exceção que eu faria seria na cena da esposa, que por duas vezes tentei convencer a Warner a restaurar para a Turner Preview 1988. (Eu fui ignorado porque a divisão de home video queria que a Edição Especial tivesse o diferencial da cena da esposa.) As razões para eu fazer essa exceção são duas: porque está na segunda versão de teste e porque há evidências que sugerem que a sua remoção na época poderia ter sido o resultado de um erro ou uma falha de comunicação (ver a referência de Sam ao “erro” na carta a Melnick). Mas por outro lado, qualquer outra edição, corte ou reorganização de cenas e sequências seria efetivamente redundante. Por quê? Porque uma vez que Sam deixou o filme, quem melhor do que os seus montadores e Dan Melnick para realizar as podas, acertos e restantes afinações que as versões de teste precisavam? Bob Wolfe foi o segundo montador de Meu ódio será sua herança (e fez o primeiro corte da batalha final), o principal montador de Sob o domínio do medo e Os implacáveis, e o comontador de Dez segundos de perigo. Roger Spottiswoode foi o terceiro montador de Sob o domínio do medo, mas ele foi o único que Sam e Bob trouxeram de volta com eles da Inglaterra para ajudar na afinação, e ele foi o coeditor de Bob em Os implacáveis. Dan Melnick produziu Noon Wine e Sob o domínio do medo. Quando trouxeram Sob o domínio do medo de volta à América, Sam foi quase que imediatamente para o Arizona para começar a filmar Dez segundos de perigo e deixou Bob e Roger para terminar de cortar Sob o domínio do medo sob a supervisão de Melnick.35

Não estou sugerindo que eles montaram o filme sem Sam. Em vários fins de semana, eles voaram para o Arizona para mostrar sequências montadas para ele e receber suas notas, e quando a fotografia principal foi concluída, ele voltou para Los Angeles, onde eles poderiam trabalhar de novo próximos. Mas em relação a Pat Garrett, este é precisamente o ponto: ele vinha trabalhando com eles desde que a montagem começara em novembro. 35

Paul Seydor 140


Não é um exagero dizer que ele confiou a esses três homens a montagem de seus filmes mais do que a qualquer outra pessoa no mundo até então, e ele logo passou a sentir o mesmo sobre Garth Craven. Se uma versão de cinema teve que ser preparada sem Sam, o trabalho não poderia ter caído em melhores mãos. Aubrey foi muitas vezes chamado de filho da puta, mas poucos o chamaram de estúpido: ele não tinha intenção nenhuma de lançar a versão espúria que mandou preparar – era apenas uma moeda de troca. Ele queria pessoas que soubessem o que estavam fazendo – de preferência Sam, mas, se não Sam, então, seus montadores – para executar o trabalho. Tudo o que ele queria era que o filme ficasse com cerca de 100 minutos para que pudesse ser facilmente programado em intervalos de duas horas para o mercado de verão. Como eles fariam isso era problema deles. Uma vez que Roger e Bob começaram, eles tinham pouco contato direto com Aubrey; Melnick servia de escudo. Há rumores de que Aubrey ordenou alterações adicionais depois que Roger e Bob entregaram o filme pronto, mas até onde eu sou capaz de determinar a partir de inúmeras conversas com Roger, só há uma coisa que Aubrey mudou depois: no que pode ter sido uma tentativa desesperada de dar ao público de verão um final para cima, Aubrey fez com que os créditos de encerramento tivessem como fundo uma imagem de Garrett e Billy sorridentes, que os montadores, Roger em particular, odiavam muito justamente. Aubrey quis que 20 minutos fossem removidos; os montadores acabaram tirando 16 para uma duração final de 1h46.36 Grande parte da versão de cinema foi completada a partir de notas de Melnick: não porque Melnick estivesse se aproveitando da ausência de Sam para fazer do seu jeito, mas porque suas notas faziam sentido, dada a tarefa em mãos. O prólogo, o epílogo, a cena da esposa, a de Chisum, o flerte de Billy com Maria, a montage com as prostitutas e a do Tuckerman’s eram candidatos óbvios, porque poderiam ser facilmente retirados sem interrupção da continuidade. A cena da balsa era outra possível de ser retirada, pela mesma razão, mas Roger, Bob e Melnick não conseguiam removê-la, mesmo que todos acreditassem que ainda não estava funcionado nas versões de teste. É perfeitamente claro o porquê: chega tarde demais e é ainda mais prejudicada porque é ladeada por aquelas que

O comprimento da primeira versão de teste, sem a cena da esposa, é 2h02. A segunda, com a cena da esposa, é de cerca de 2h04. 36

A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 141


podem ser as duas cenas mais fracas (Tuckerman’s e a morte de Paco). Pat Garrett não é uma trama conduzida no sentido normal da palavra, e seu ritmo nunca vai ser rápido. Mas as cenas entrelaçadas de Garrett matando Holly e de Billy matando Alamosa Bill são momentos cruciais para cada homem e para a ação do filme; como tal, a lógica dramática exige que o ritmo, ainda que não se acelere, pelo menos se intensifique para refletir o aumento da sensação de urgência. A última coisa que se quer neste ponto é uma cena lenta que não nos leve em direção ao confronto final. A solução reside na estratégia que já tinham tentado, mas sem ir longe o suficiente: movê-la para antes, só que agora mais cedo, entre a fuga de Billy de Lincoln e antes que Poe se conecte com Garrett. Aqui a cena funciona do modo como foi concebida, como um interlúdio lírico, aparecendo num momento da história em que Garrett ainda está tentando dar a Kid tempo o bastante para ele fugir do território. A remoção de cenas ainda não foi suficiente para que o filme diminuísse para o comprimento exigido, de modo que os montadores começaram a aparar momentos e a cortar falas e pedaços que não tinham tido tempo de fazer antes. Eu detalhei duas dessas instâncias em Reconsideration;37 eu vou detalhar um pouco mais aqui para dar algum sentido de como o processo de afinação funciona. A fuga de Billy da prisão de Lincoln é praticamente a mesma nas versões de teste e de cinema. Mas na primeira, depois de fuzilar Ollinger com sua espingarda cheia de moedas de dez centavos, Billy diz: “Fique com o troco, Bob”, então atira novamente e há outro corte para o corpo estrebuchando. Se o segundo tiro pretende pontuar a piada, isso não funciona; apenas a estraga, como o faz o corte para o corpo (para não mencionar que chama a atenção para o fato bastante óbvio de que a tomada não é enquadrada para funcionar como ponto de vista de Billy quando é usada novamente mais tarde na cena). Com efeito, um cancela o outro – é o equivalente ao que em termos de comédia o diretor Ron Shelton chama, com desprezo, “uma piada sobre uma piada”. É verdade que o roteiro pede para Billy atirar em Ollinger uma segunda vez (que no fato histórico ele pode ter feito); mas, como o próprio Sam observou em várias ocasiões, filmes mudam consideravelmente do roteiro à afinação: o que importa é o que finalmente funciona ou pode ser feito para funcionar na sala de montagem. Os montadores sabiamente removeram o segundo tiro e os cortes adicionais para o corpo de Ollinger.

37

Seydor, Reconsideration, 300-302. Paul Seydor 142


Na primeira cena de Fort Sumner, a mais inchada nas versões de teste, há um momento em que Garrett, desajeitadamente tentando insinuar-se com a velha gangue, diz: “Eu soube que essas señoritas daqui continuam lindas”. “Ah, é?”, pergunta Holly. “É”, responde Garrett. “É”, diz Holly novamente, sorrindo agora (certamente no ritmo errado), então, dois dos outros também interrompem com seus próprios “é”. Cinco “é” ao todo. Se a ideia de Sam aqui foi parodiar sua própria maneira inigualável de estender um momento, então ele não poderia ter feito um trabalho melhor – bate de longe o famoso esquete de Monty Python. Mais uma vez, os montadores sabiamente eliminaram os falsos “é” e reduziram a cena toda, convertendo uma passagem inflada em um sutilmente tenso encontro que verdadeiramente conduz ao drama a seguir. Como exemplo final, há a aparição de Sam como Will, o fazedor de caixões, perto do final, em que mais da metade do seu diálogo foi removida, incluindo a fala: “Quando é que você vai descobrir que não pode confiar em ninguém, Garrett, nem mesmo em si próprio?”. Eu não sei quem foi exatamente responsável pela remoção de tudo isso, mas permita-me concordar com a decisão a título de afirmar meu preconceito: nada e ninguém vai me convencer de que o contador de histórias brutalmente disciplinado de até um ano antes em Os implacáveis teria permitido um desempenho tão fraco como o seu próprio aqui ou que não tocasse fogo em qualquer um que viesse até ele e dissesse: “Sabe, Sam, o que você deve ter é uma cena em que alguém – talvez você mesmo pudesse fazer – anuncia o tema do filme e as entrelinhas do personagem principal e os coloca em luzes de neon”. Seria tedioso examinar todo o filme detalhando cada ocorrência de afinação. Basta dizer que este é o tipo de coisa que a maioria dos diretores, inclusive Sam, espera que seus montadores façam rotineiramente. Surpreendente seria se um montador tivesse que receber instruções para fazê-lo. Grande parte das afinações já tinha sido efetuada nas versões de teste; preparar a versão de cinema simplesmente permitiu a Roger e Bob cuidarem das que faltavam. Ao falar com Michael Bliss sobre a Edição Especial, ele perguntou se eu tinha tomado “quaisquer decisões com base exclusivamente na estética”. Em outras palavras, se eu tinha feito qualquer coisa simplesmente porque achei que funcionava melhor. É uma pergunta justa, mas não permite uma resposta fácil. Eu deliberadamente planejei o projeto de tal forma a me libertar de ter que tomar quaisquer outras decisões que não fossem as absolutamente necessárias. A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 143


Por exemplo, Sam não queria os vocais de Dylan na morte do xerife Baker. Eu acho que ele estava errado; assim como quase todo mundo. Mas os vocais já estavam na versão de cinema, por isso não foi uma escolha que eu tive que fazer. Da mesma forma, encurtando o diálogo de Walter Kelley (Rupert) e Sam como o fazedor de caixão, movendo a cena da balsa para uma posição mais vantajosa, aparando algumas das falas de Chill Wills perto do início da cena no Jones Saloon, consertando a abertura em Fort Sumner, e mais e mais e mais. Deixando de lado a remoção de cenas inteiras que lhes foi imposta e considerando apenas a afinação de várias cenas, creio que os montadores fizeram todas as escolhas certas, e eu estava feliz que as decisões tivessem sido tomadas por eles: tinham trabalhado diretamente com Sam, conheciam o material melhor do que ninguém, e estavam longamente familiarizados com o seu estilo, especialmente seu estilo de montagem (que, verdade seja dita, eles tinham ajudado a desenvolver e dar forma). Mesmo se eu tivesse me inclinado a fazer algo mais elaborado, as condições para as quais a Warner tinha dado luz verde para a Edição Especial impediam. Eu era obrigado a fornecer antecipadamente uma lista exata de cenas precisamente definidas e de outros materiais a serem reintegrados. Um montador da casa os recuperou dos cofres e, trabalhando a partir de notas que eu forneci, os inseriu na versão de cinema onde eu indiquei. Eu nunca tive acesso direto aos materiais e em nenhum momento eu estava autorizado a fazer qualquer trabalho prático. A relativamente simples edição do prólogo tornou-se bastante difícil nestas circunstâncias. O material que eu senti que deveria voltar consistia de (1) o prólogo, (2) a cena da esposa, (3) a cena de Chisum,38 (4) um diálogo na cena de Lew Wallace,

38 Na versão de cinema, a cena em que Paco se despede e Billy vai para o México se segue imediatamente à caça aos perus, quando Silva é morto pelos homens de Chisum, enquanto que na versão Turner as cenas são separadas por várias outras. Roger não se lembra por que ou como as duas cenas chegaram a ser consecutivas, mas me parece um erro claro ou pelo menos um equívoco ocasionado pela pressa com que a versão de cinema foi preparada. Por um lado, mesmo com a considerável liberdade de manipulação da passagem de tempo que a montagem permite, Billy e Alias parecem de repente se transformar em um par de verdadeiros Ligeirinhos (Speedy Gonzales), de tão rápido que voltam para Fort Sumner. Por outro lado, e mais a propósito, a decisão de Billy de partir colocada assim tão perto da morte de Silva faz parecer que esta foi a sua causa, o que não faz muito sentido, pois Silva foi morto enquanto fazia um trabalho, o que poderia acontecer em qualquer altura. Finalmente, vistas sucessivamente, as duas cenas vão contra o esquema de encadeamento de cenas ora de um protagonista ora de outro. Ao restaurar a cena de Chisum, mantive, embora modificada por conta da nova posição da cena da balsa, a ordem das cenas da Turner 1988: a morte de Silva é seguida da cena da balsa, que corta para a chegada de Poe no acampamento de Garrett à margem do rio, que corta para o dia seguinte quando Garrett e Poe cavalgam até o rancho de Chisum, o encontro com Chisum, e depois a despedida de Paco e a partida de Billy para o México.

Paul Seydor 144


(5) a montage das prostitutas, (6) a fala original de Paco quando morre, e (7) a plano de encerramento de Garrett cavalgando para o deserto. A cena da esposa é necessária por várias razões, especialmente porque intensifica a nossa compreensão das pressões sob as quais Garrett está para apreender Kid e mostra sua indiferença em relação ao casamento, sua crueldade com ela e como ele assume com inquietude o manto da nova vida que escolheu para si mesmo. A cena de Chisum nos informa sobre o relacionamento que ele uma vez teve com Kid e revela que Garrett lhe deve dinheiro. Além do mais, embora seja certo que os políticos anônimos e empresários do Santa Fe Ring, que estão tomando conta do Oeste, sejam sombrias presenças que nunca vemos (apenas seus lacaios que tentam subornar Garrett na casa de Wallace), o mesmo seria errado para Chisum, que deve ser uma presença real e claramente conhecida. Apesar de suas diferenças, Chisum é, como Garrett e Kid, o tipo de personalidade grandiosa cujos dias estão contados, um tema reforçado pela fala adicional de um dos lacaios na cena de Wallace (“Vocês são obsoletos, Xerife”). Nenhum dos discursos de Paco morrendo é bom, mas pelo menos o original, que Sam preferia, não é uma fala pomposa e está vinculada ao personagem. A montage das prostitutas está longe de ser a minha cena favorita, mas Sam a queria lá, provavelmente porque funciona como um contraste irônico com a completa falta de desejo que Garrett demonstra em relação à esposa. O que nos deixa com o prólogo. Na medida em que a versão de cinema já tem uma sequência de crédito (uma muito melhor, na minha opinião, e em uma cor de fonte que Sam evidentemente preferia), os créditos do prólogo e o congelamento das imagens tiveram que ser removidos e a sequência ajustada de acordo. Como disse anteriormente, eu não posso pensar em nenhum equivalente na obra de Peckinpah para uma sequência tão excessiva. É como se ele estivesse dizendo, Agora vamos começar aqui, você entende onde estamos, não é? – Não? – Aqui está um cartão só para esclarecer as coisas – agora vamos por aqui, você entende que estamos em um lugar diferente, sim?, e nas profundezas do passado? – Não? – Outro cartão, então. A esta altura, o que foi obviamente concebido como uma série surpreendente de choques e deslocamentos na mente de Garrett enquanto ele está sendo assassinado, se torna, em vez, um enfadonho começo bifurcado em que o filme parece iniciar, parar, em seguida iniciar de novo. Sempre me pareceu que os cortes paralelos deveriam começar sem nenhuma preparação e que os sustentáculos gêmeos nos quais repousam A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 145


deveriam ser Garrett e as galinhas levando tiro, os cortes de um para outro tão rápidos que funcionassem quase como subliminares.39 Isto, por sua vez, torna possível segurar a tomada alta que introduz Fort Sumner, com seu cartão de identificação, até bem depois do corte paralelo já ter começado, o que poupa o filme da impressão de que está começando pela segunda vez. A sequência também me parece mais eficaz quando passa mais rápido, que é como Sam originalmente imaginou. Isso faz perfeito sentido se você considerar que ele já tinha escrito a primeira cena de Fort Sumner como um prólogo. Não é de se admirar que Melnick e os montadores sentissem que o prólogo mais recente, com as suas imagens paradas e créditos sobrepostos a tomadas do prólogo anterior, fosse irremediavelmente prolongado e desajeitado. E era. Quanto à remoção do epílogo, eu não inventei nada aqui. Quando o prólogo foi abandonado, o epílogo, obviamente, tinha que sair também, então Roger voltou ao final original conforme o roteiro: Garrett desaparecendo em uma névoa no início da manhã cavalgando para o deserto. Como Sam filmou, não havia nevoeiro, mas a imagem que ele obteve transmitiu o mesmo efeito: a figura de Garrett desaparece no amanhecer sombrio enquanto ele se afasta de Fort Sumner, a imagem é congelada e os créditos finais começam. Era assim que o filme terminava quando Roger o entregou ao estúdio, uma cópia já existia nos cofres com este final, e os elementos utilizados para gerá-la permaneceram intactos, então foi usada. Pessoalmente falando, acredito que é preferível ao epílogo improvisado (e muito melhor do que a substituição estúpida de última hora imposta por Aubrey). A forma como o homem da lei parece gradualmente ser engolido pela paisagem impiedosa sugere como o julgamento da história, em forma de lenda, vai pesar contra ele, e põe em foco os temas do destino e do determinismo que permeam todo o filme. (Tem também a vantagem de não usar a cena obviamente reciclada.) A melhor razão, no entanto, para remover o epílogo é o efeito que tem sobre o clímax. Uma vez que Peckinpah adicionou o encontro de abertura entre Garrett e Billy em Fort Sumner, este determinou a sua estrutura básica, o que, na melhor descrição que eu li, Garner Simmons comparou às “duas metades de um grande círculo” a se completarem.40 Este círculo encerra, define e torna-se o

39

James Coburn assim os descreveu para Garner (Simmons, Peckinpah: A Portrait in Montage, 183-84).

40

Simmons, Peckinpah: A Portrait in Montage, 171. Paul Seydor 146


mundo do filme, de modo que quando Billy se vira, vê Garrett e sorri, e Garrett em resposta levanta-se e atira nele, realmente parece que no momento exato em que este mundo se completa ele também se desintegra. Então Garrett se vira e dispara em seu próprio reflexo no espelho, deixando um buraco desfigurante onde o seu coração deveria estar: a destruição física reflete a destruição psicológica, que por sua vez reflete a destruição de um modo de vida; e o ponto do suicídio simbólico é feito com uma clareza tão ofuscante como o lampejo do revólver de Garrett. O pequeno epílogo não poderia adicionar nada à devastação deste final, nem mesmo ironia: tudo o que pôde fazer foi diluir e diminuir. Na medida em que o epílogo já está na Turner Preview 1988, me pareceu ser válida a escolha da alternativa para a Edição Especial, na qual o prólogo agora funciona como ironia dramática perfeitamente bem por si, como também o fez no roteiro e nas primeiras versões do filme, antes da ideia da narrativa circular ocorrer a alguém. Será que eu teria feito a Edição Especial de forma diferente se a Warner tivesse me permitido o acesso ao material para que eu pudesse funcionar como um montador de verdade, com as mãos sobre os controles e meus instintos ligados ao material? Eu ainda me sentiria desconfortável mexendo no que Sam e seus montadores fizeram. Mas eu estaria mentindo se não admitisse que, como alguém que estudou este diretor por um longo tempo antes de se tornar um montador de cinema, eu teria gostado de experimentar algumas coisas e mostrá-las a Roger. Uma que vem imediatamente à mente, seguindo os primeiros instintos de Sam, seria retirar a morte de Paco inteiramente, em seguida, procurar as sobras para ver se alguma poderia servir à ideia de Roger de um momento puramente existencial para a decisão de Billy de retornar. Outra seria para ver se o prólogo poderia ser editado para deixarmos Garrett se contorcendo no chão por algum tempo quando é crivado de balas, antes de passarmos para 1881. Também seria melhor, porque menos nocivo ao fluxo da estrutura de montagem, que a tomada do Fort Sumner – aquela que tem o cartão de identificação – durasse mais tempo, até que o tiroteio terminasse e Garrett começasse a caminhar em direção à fonte.41 Então eu passaria o pente fino no material para ver se era possível construir um epílogo que o pegasse no mesmo ponto em que o

Eu teria feito essa mudança na Edição Especial, mas não tive acesso ao material para ver se existe realmente filme do movimento de Garrett em direção à fonte. Sem tal acesso, a tomada tinha que permanecer onde estava, porque em telas grandes a incompatibilidade na continuidade pode ser facilmente notada. 41

A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 147


deixamos, concluindo com a sua morte real e uma imagem final mais forte, para assim termos a tal estrutura circular. Mas, por razões que eu acabei de explicar, eu não o faria: o assassinato parece perfeito como prólogo; o final original, com Garrett fisicamente vivo, mas psiquicamente morto, ainda mais perfeito. Basta de fantasia. Na realidade, a Edição Especial acabou sendo apenas meros sete minutos mais curta do que a Turner Preview 1988 (nove se levarmos em conta que ela não contém a cena da esposa), três minutos dos quais são contabilizados por Tuckerman’s, a única cena completa que não foi colocada de volta. Agora que estabeleci para além de qualquer dúvida a dimensão real da minha montagem – ou seja, quase nenhuma – na Edição Especial, espero que isto me deixe livre para oferecer alguns elogios muito atrasados para o trabalho verdadeiramente magnífico que Roger, Garth e Bob fizeram para ajudar a realizar a visão de Sam e para o que Melnick fez para proteger o filme da autodestruição de seu diretor e da vingança do chefe do estúdio. Eu não assisti a Pat Garrett desde o último visionamento na Warner há seis anos para garantir se os pedaços retirados foram colocados onde deveriam estar. Enquanto escrevia este ensaio, eu o assisti novamente com a minha esposa, e o vimos da forma como um filme deve ser visto: do começo ao fim, sem interrupções. Nós ficamos muito satisfeitos pela forma como ele funciona lindamente. Sem dúvida, não é de forma nenhuma perfeito, algumas performances permanecem desiguais, e algumas cenas ainda lutam para encontrar uma forma viável que eu acho que vai sempre lhes escapar. Mas a história agora se move com tanta certeza que, até a morte de Paco, sentimos como se não houvesse um momento de fraqueza. E depois disso, ele se recupera imediatamente, o que nunca foi o caso nas versões prévias. O melhor de tudo, talvez, é que o drama agora parece encontrar o seu próprio ritmo natural: pausado, por vezes lento, mas movendo-se adiante, narrativa e poesia conjugados de forma ideal, com um lirismo elegíaco feito mais frágil pela inexorável força da fatalidade puxando cada um para o dia do juízo final. Peckinpah sabia melhor do que ninguém que quando algo é desacelerado demais não se torna necessariamente mais lírico, muitas vezes se torna menos. O tipo particular de expansividade lírica de que ele foi um dos maiores mestres depende de um controle bastante rigoroso do andamento, em combinação com uma certa elasticidade da forma ou do ritmo, de modo que quando ele queria se alongar em um momento ou esticar uma cena ou encenar uma de suas inigualáveis sequências elaboradas, ele poderia Paul Seydor 148


fazê-lo sem se preocupar se a estrutura iria desmoronar. É por isso que nos lembramos de tantos momentos, fugazes e estendidos, de seus filmes: no seu melhor, ele tinha um instinto quase infalível para o quão alto e amplamente ele podia deixar o falcão voar antes que o sustentáculo cedesse. Forma e sentimento, estilo e conteúdo, arte e visão sempre foram inseparáveis em seu melhores trabalhos, como o são em Pat Garrett & Billy the Kid, no qual seus montadores mantiveram e sustentaram a fé muito tempo depois de seu diretor ter perdido a sua.

A obra-prima “Quando eu trabalho, eu me torno todos os personagens do roteiro”, disse Sam uma vez. “É muito perigoso. Eu desempenho na vida real a ilusão daquilo que vou filmar.42 Da boca de 99 entre 100 diretores de cinema, uma declaração como essa seria pura balela. Mas não na de Sam, e em nenhum filme isso é mais profundamente demonstrado que em Pat Garrett & Billy the Kid. Ele se identificou muito mais de perto com Garrett do que com Billy, com quem não se identificou quase nada. Mas ele certamente se comportava na vida real como os personagens que iria filmar, e isso tornou-se tão perigoso que quanto mais perto chegava ao âmago de seus protagonistas mais se embebedava. Não vai dar para ser romântico sobre isso: eu não estou de modo algum sugerindo que Sam fez isso conscientemente como estratégia para entrar no filme ou que em dias melhores ele não poderia ter feito isso de outras maneiras. Ele estava fora de controle e agia mais irresponsavelmente neste projeto do que qualquer diretor que eu já tenha conhecido ou ouvido falar. Como Garrett, ele sentava-se por horas a fio, só bebendo; como Billy, ele praticava tiro ao alvo; como ambos, ele estava fazendo um ritual sombrio e atormentado de suicídio simbólico que quase o destruiu. Ainda assim – a combinação de como ele agiu e o filme que ele tirou de sua angústia me faz pensar em Malcolm Lowry, quando ele insistiu que não havia nenhum momento de seu alcoolismo que ele tenha desperdiçado, nenhuma percepção ou discernimento, mesmo quando em estado de estupor, que ele não tenha guardado para eventual utilização em seu trabalho. Isto é, sem dúvida, um exagero, mas como ocorre com tais exageros, tem sua parcela de verdade.

Qtd. in Bryson, “Wild Bunch in New York”, 140.

42

A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid 149


A veracidade emocional de Pat Garrett, a sua autenticidade psicológica, foi destilada através de uma alquimia algo misteriosa e assustadora, do desamparo de Sam em conseguir parar de ir exatamente aos lugares mais escuros que ele precisava ir para sentir o que ele precisava sentir para dar à história a realidade que valida e justifica. Neste filme ele estava tão completamente autodestrutivo que precisou da ajuda de todos os seus amigos e colegas para realizá-lo e concluí-lo. Mas seus esforços teriam dado em nada se ele não tivesse ido a esses lugares terríveis, voltado para contar a história, e a tenha contado tão belamente, com uma honestidade dilacerante. Ele pode ter tido, como Coburn disse uma vez, somente quatro a seis boas horas por dia, mas ele minerou até a última onça de ouro delas e colocou tudo na tela. O milagre é que Pat Garrett & Billy the Kid, finalmente, surgiu como uma obra-prima; a triste ironia é que o artista que fez isso parece não ter percebido a plena medida de sua realização. Quando se admira um artista, tanto quanto eu faço em relação a este, não é fácil se lembrar do seu comportamento durante a realização do filme, e nenhuma satisfação é tirada disso.Talvez isso me dê licença para terminar este ensaio com outra citação, palavras que eu escrevi há 15 anos, um tributo tão verdadeiro hoje como então a um grande filme e ao homem devastado que enfrentou seus demônios para realizá-lo: Havia algo de indomável no cerne do ser Sam Peckinpah. Foi esse algo, ou melhor, a sua extensão ou o equivalente em sua imaginação que – apesar das falhas, erros e fraquezas de Pat Garrett & Billy the Kid – conseguiu sobreviver, intacto e inquebrantável, todo um longo e atormentado ano de medo, raiva, bebedeiras, brigas e autodestrutividade desesperada. É a coisa que nós chamamos – imprecisamente, mas exatamente – de visão, e ela varre tudo à sua frente. Este é um dos poucos filmes, e talvez o único faroeste, além de Meu ódio será sua herança, em que o efeito da tragédia é sentido e sustentado. No entanto, Meu ódio será sua herança é uma tragédia triunfante, e culmina em transfiguração e redenção. Tal luz não ilumina os horizontes sombrios de Pat Garrett & Billy the Kid. Quando o Sol se põe sobre o mundo empoeirado e esquecido por Deus desse faroeste, ele parece se extinguir, e o sentimento de finalidade é assolador.43

43

Seydor, Reconsideration, 306. Paul Seydor 150


Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia Julie Kirgo

Notório – e, ocasionalmente, celebrado – por ser o diretor que mais sofreu interferências (ele teria usado outra expressão) na história de Hollywood, de qualquer modo Sam Peckinpah conseguia apontar para um filme em sua longa e acidentada carreira que era seu, somente seu, um puro Peckinpah. “Eu fiz Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia exatamente do jeito que eu quis. Bom ou mau, apreciado ou não, ele era meu filme”. Não surpreende que Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia foi, provavelmente, o mais duramente criticado dos filmes de Peckinpah. Com algumas poucas exceções, os críticos atacaram o filme como tubarões famintos. “Uma desajeitada, sinistra visão da escória humana” é um comentário ilustrativo e, comparativamente, amável. As exceções, por outro lado, são notáveis não apenas pela singularidade, mas pela presciência. Roger Ebert – um partidário de Peckinpah desde o controvertido Meu ódio será sua herança – escreveu que Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia era “uma bizarra obra-prima”. Embora admitindo que este filme sombrio, amargo e profundamente resignado “provavelmente não seja do gosto da maioria”, Ebert corajosamente proclamou que Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia 151


ele mostrava “Sam Peckinpah fazendo um cinema objetivo, apresentando um personagem desesperado que ele obviamente ama e pedindo que nós olhemos para além do horror e do sangue e vejamos o poema triste que ele está tentando escrever sobre a condição humana”. Hoje, 40 anos depois do lançamento do filme, a maior parte dos críticos está do lado de Ebert, fato que reflete quatro décadas nos acostumando, na vida real, aos horrores que já chamavam a atenção de Peckinpah nos anos 1970: corrupção, venalidade, corporativismo e a morte da capacidade de amar e viver a própria vida. Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia foi, em certo sentido, um tiro de advertência para sacudir a complacente sociedade ocidental e ele é ainda mais válido hoje do que em seu tempo. Escrito por Peckinpah e seu colega de longa data, o multitalentoso escritor/produtor/supervisor de guarda-roupa/assistente de direção Gordon Dawson, a partir de um argumento de outro camarada de Peckinpah, Frank Kowalski, Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia é uma desenfreada história de vingança que começa com a obsessão de um homem e termina com a de um outro. O filme inicia – num ambiente latino-americano que parece congelado em um ininterrupto ritual medieval – com um poderoso chefe do crime (interpretado por Emilio Fernandez, um favorito de Peckinpah, a quem Dawson chama de “aquele filho da puta malvado”) exigindo a cabeça do homem que engravidou sua filha. Momentos depois, explode para fora desse espaço formal rumo ao caótico mundo mecanizado de meados dos anos 1970, onde não falta gente disposta a fazer qualquer coisa para receber a recompensa de um milhão de dólares oferecida por El Jefe pela cabeça de Garcia. Entre eles estão os executivos da corporação do chefão, liderados pelo afável Max (Helmut Dantine). É sintomático que Peckinpah tenha escolhido Dantine, um ator e produtor que, em realidade, produziu este filme para interpretar um frio e desumano oligarca; afinal, produtores eram os arquivilões na narrativa pessoal do diretor, pouco importando que Dantine fosse, aparentemente, encantador, com irrepreensíveis credenciais como antifascista durante a Segunda Guerra Mundial, além de estar financiando o raro filme que deu toda liberdade a um artista difícil. Peckinpah não hesita em revelar quem são os maus da fita; Dantine e seus companheiros da elite têm um repulsivamente lustroso escritório onde se vê uma fotografia de Richard Nixon (outro que Peckinpah detestava). Eles enviam uma dupla de assassinos trajando ternos elegantes, Julie Kirgo 152


impecavelmente interpretada pelo dissimulado duo Gig Young e Robert Webber. É interessante notar que, embora sejam assassinos de aluguel, eles formam um casal aparentemente amoroso. De qualquer forma, seus empregadores não querem saber de outro competidor na corrida pelo crânio de Garcia. O azarão nesse páreo é Bennie (o icônico Warren Oates no papel de sua vida), pianista eventual, bêbado em tempo integral, de rosto maleável e olhos meigos (isto é, nos raros momentos em que ele tira os óculos de aviador), em busca de uma última oportunidade de mudar de vida. Bennie torna-se ainda mais patético quando nos damos conta de que ele é uma pouco disfarçada versão de Peckinpah (os eternos óculos escuros são apenas uma de muitas pistas). Dawson lembra que, ao escrever o roteiro, “ficou adicionando mais de Sam para que ele pudesse eliminar um pouco depois – mas ele não o fez!” Como Peckinpah nesse período (logo após o catastrófico fracasso de Pat Garrett & Billy the Kid), Bennie está disposto a arriscar tudo para dar a grande tacada que permitirá que ele saia do campo de combate com dignidade. Por essa época, Peckinpah pensava em abandonar Hollywood e ir para o México. E embora os oligarcas não percam tempo com ele, Bennie sabe algo que eles não sabem: que Alfredo já está morto. Ele fica a par dessa importante informação graças à sua intermitente relação com Elita (a magnífica Isela Vega), um clássico exemplo de prostituta com coração de ouro tornada mais terna, mais sensata e, francamente, mais complexa por causa da atuação forte e inteligente de Vega. Ela ama Bennie, mas ele nunca se comprometeu com ela, nem mesmo alguma vez disse que a ama. Por isso, algumas vezes ela se envolveu não profissionalmente com outros homens, incluindo Alfredo. Ela dá a Bennie a crucial, fatal informação sobre o alvo de El Jefe, mas o aconselha a esquecer o que sabe, eles não precisam desse dinheiro todo para serem felizes. Mas Bennie insiste – por algum motivo, ele não se sente um homem de verdade sem dinheiro – e a relutante, mas amorosa, Elita parte com ele numa viagem pelas estradas do México rural em busca da bolada para assegurar um futuro menos incerto para o casal. Mas a viagem é um pesadelo. Abstendo-se dos clichês de cartão-postal, Peckinpah oferece uma visão do México (país que ele adorava) que é flagrantemente, fragrantemente autêntica, ao mesmo tempo bagunçada e bonita. Contra esse quase alucinante pano de fundo, a história de amor de Bennie e Elita surge como uma inesperada, pungente surpresa. De algum modo, mesmo não estando Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia 153


de acordo sobre o que é certo ou errado, eles conseguem, durante a viagem, chegar a um sublime equilíbrio na sua relação. Isso só acontece depois de duas cenas decisivas, a primeira, uma longa e franca conversa ao pé de uma árvore bucólica que não parece ter equivalente na obra de Peckinpah, ou, provavelmente, em qualquer outro filme. Esta cena, como o perspicaz escritor Garner Simmons relata em seu livro Peckinpah: A Portrait in Montage, oferece um perfeito exemplo da habilidade de Peckinpah em captar o momento e trabalhar sem preparo prévio. No roteiro, a cena terminava com Bennie confessando que nunca pensou em pedir Elita em casamento, mas ela continuou graças a instruções privadas de Peckinpah a Vega que, de repente, sem o conhecimento de Oates, diz a frase, “Então, me peça”. Embora surpreso (como Bennie também estaria), o brilhante Oates permaneceu com o personagem e a cena prosseguiu, improvisadamente, de forma devastadora. Oates se lembraria, “Eu sabia que não tinha para onde correr. Ela me encurralou”. E Peckinpah conseguiu um momento indelével. Logo em seguida vem um das mais desconcertantes sequências da singularmente desconcertante filmografi a de Peckinpah: justamente no instante em que eles estavam mais próximos que nunca, Bennie e Elita, como que amaldiçoados pelo destino, encontram um par de motociclistas (interpretados, de modo inesquecível, por Kris Kristofferson e seu tecladista e ator ocasional Donnie Fritts). Entediados, estúpidos e armados, eles não têm nada melhor a fazer que violar Elita. Para proteger Bennie, ela consente, dizendo para seu horrorizado amor, “Eu já estive aqui antes e você não conhece o caminho”– provavelmente a mais poeticamente resignada frase que eu ouvi em décadas como espectadora de cinema. Dawson conta que no roteiro a cena corria em linha reta: a ameaça de violação interrompida quando Bennie tira a arma de Fritts e atira em Kristofferson. Mas, Peckinpah começou a improvisar novamente e o resultado é rico e estranho. Nua até a cintura,Vega intimida o agora infantil Kristofferson a uma posição de submissão; então, quando ela poderia, presumivelmente, pegar sua arma ou fugir, decide transformar-se em uma sedutora complacente.Tudo isso é apresentado pelo diretor de fotografia Alex Phillips Jr. via uma noite americana prateada que faz lembrar um fantástico jardim de Rousseau. A ambiguidade, diz Dawson, foi “toda inserida por Sam” – e deixou uma geração de cinéfilos exclamando, “Hein?”. Especialmente porque o daninho jardim reaparece no filme, naquela que é, talvez, sua cena mais aterrorizante. Julie Kirgo 154


Embora mencionando que a cena da violação em Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia corresponde de modo fascinante a uma sequência semelhante no controvertido Sob o domínio do medo (e reconhecendo que Peckinpah frequentemente resolvia seus sentimentos ambivalentes com relação às mulheres em seus filmes), não farei outras análises aqui. Apenas direi que este é mais um de muitos momentos de fazer cair o queixo em um filme que dá o que pensar o tempo todo. Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia é, simplesmente, um tesouro de grande riqueza, tão cheio de temas, observações e percepção que deixa praticamente qualquer filme atual sentindo vergonha. Lotado de referências literárias (Shakespeare, Cervantes e Lowry são invocados) e cinematográficas (O tesouro da Sierra Madre é apenas a influência mais óbvia), o filme é, também, um agudo comentário sociopolítico, uma meditação sobre o que acontece em um mundo que elimina as mulheres e uma sátira dos filmes sobre amizades masculinas que atinge um pico de humor negro quando Bennie inicia uma relação com a cabeça fétida e infestada de moscas de Alfredo. Tudo isso é comentado e sustentado por uma partitura soberba, das mais melancólicas da história da música de cinema. O incomparável Jerry Fielding aparentemente foi feito para Sam Peckinpah, assim como Peckinpah foi feito para ele. Juntos eles viajaram por pontos altos (Meu ódio será sua herança) e baixos (incluindo este filme maravilhoso, nada apreciado em sua época). Eram perfeitos colaboradores que desafiavam um ao outro a cada passo. Adicione a música de Fielding à assoladora performance de Warren Oates (um renomado coadjuvante que funcionava às mil maravilhas quando ganhava a chance de ser um inusual ator principal) e Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia já mereceria os elogios tardios que recebeu. Mas, há muito mais a considerar, a apreciar e mesmo a amar. A verdadeira “cabeça” aqui é a de Peckinpah: sem dúvida fétida e infestada de moscas, mas, no fim de contas, espetacularmente humana e, por conseguinte, com traços de poesia. Apesar de seus demônios – e ele era cheio deles –, Sam Peckinpah continua sendo um exemplo quase único de artista que, praticamente até o fim de sua curta e atormentada vida, continuou lutando bravamente com a feiura, para dela tirar algum tipo de beleza.

Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia 155



Esforço humano, batalha humana: Sam Peckinpah e a jornada da alma Cordell Strug Tudo é mortal. -Elite de assassinos (1975) Eu não tenho casa. -Cruz de Ferro (1977)

Selvageria, raiva, violência: essas são as palavras e os temas que se espera encontrar em uma reflexão sobre Sam Peckinpah. Elas atestam poder, impacto, uma acolhida desconfortável. Mas será que seu trabalho teria tocado tanta gente e tão fundo se essas palavras descrevessem adequadamente de sua natureza? Acho que, quando se usa esses termos, está se seguindo uma estrada óbvia para entender este artista, mas, explicitamente ou não, está se tateando para algo além. É certo que os personagens de Peckinpah encontram-se num caminho de selvageria, raiva e violência. Mas as obras em si são sobre suas necessidades e decisões, caminhos que escolhem, no desespero ou na ignorância, caminhos em direção aos quais são forçados. Através desses filmes, experimentamos um concentrado de vida e uma meditação de seu valor. Uma das ideias mais antigas a respeito dos efeitos da tragédia vem de Aristóteles: o público tem a experiência da catarse, comumente entendida como uma purgação de emoções. Já ouvi Peckinpah, em entrevistas, defender sua obra dessa maneira, como algo moldado para a catarse, com a intenção de expurgar a sociedade da violência através de um retrato vívido. Ele não pode ter Esforço humano, batalha humana: Sam Peckinpah e a jornada da alma 157


de fato acreditado nisso e a ideia de purgação nunca pareceu fazer muito sentido, exceto como mecanismo de defesa contra moralistas. Martha Nussbaum, em um pungente trabalho sobre o pensamento grego, argumenta que catarse não se trata de purgação, mas elucidação: a tragédia elucidava a vida e seus valores – o quanto é duro perder certas coisas, o quanto é importante lutar por elas. As paixões não são eliminadas, elas são esclarecidas, entendidas.1 Vista dessa maneira, a catarse parece uma descrição perfeita da tragédia grega e da arte de Peckinpah, assim como uma maneira de distinguir uma obra forte e violenta de outra. É a razão pela qual assistimos aos filmes e não queremos ir embora do cinema. O atrativo da violência, do combate, da luta física e da guerra nas artes vai muito além de qualquer experiência que a maioria de nós tem dessas coisas, para não falar do desejo de experimentá-las. Mas há uma fração do espírito humano e uma dimensão da vida que necessita desse imaginário para se expressar por completo. Nada poderia ser mais claro. A fase inicial do Cristianismo, por exemplo, era não violenta a ponto de chegar ao pacifismo absoluto. Ainda assim, um de seus principais convites à disciplina diz: “Por isso, vistam toda a armadura de Deus para que possam resistir no dia mau e permanecer inabaláveis depois de terem feito tudo. Assim, mantenham-se firmes, cingindo-se com o cinto da verdade, vestindo a couraça da justiça. (...) Além disso, usem o escudo da fé, com o qual vocês poderão apagar todas as setas inflamadas do Maligno. Usem o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Efésios 6:13-17). Isso é o equivalente à gangue de Meu ódio será sua herança se preparando para sua caminhada final. Ou: é uma outra versão da mesma cena. A necessidade espiritual por imagens violentas garante a presença duradoura de conflito e violência no drama. Mas Peckinpah é um dos raros artistas para quem essa transação tem mão dupla. É difícil falar de seu trabalho sem usar imagens e termos da vida espiritual: peregrino, busca, visão, jornada, lutar a batalha do bem. Assim como o livro dos Efésios se utiliza do imaginário bélico para preparar os espíritos, o traçado dos perigos espirituais propõe uma descrição

1

Nussbaum, The Fragility of Goodness, 378-94, esp. 389-91. Cordell Strug 158


clara do que está em jogo numa obra de Peckinpah: “Pois a nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (Efésios 6:12). Foi esta forte percepção de uma peregrinação artística e espiritual que corre por toda a sua obra que formou um laço com o público para além de qualquer filme em específico. Não o Peckinpah como homem falho, mas o Peckinpah de alma peregrina que esteve forçadamente presente em suas criações, assim como estiveram Hemingway e, de maneira diferente, Dickens. A experiência e o tempo colocam esses laços à prova. Olhando para os artistas e pensadores que acompanhei em minha vida, me surpreendo como alguns continuam e outros não. Fico surpreso que já não leio mais tanto Dickens, e fico surpreso de ter relido Ética, de Spinoza, tantas vezes. Eu revejo menos filmes de John Huston que pensei que faria. E me surpreendo bastante por não ter me interessado por Godard. Por outro lado, há pensadores e artistas, velhos e novos, aos quais eu volto com tanta frequência que é até estranho falar em retorno. Certamente nunca preciso redescobri-los. William James, Melville, Kipling, o poeta David Jones, Hemingway e Philip Roth me acompanharam através dos anos. Assim como John Ford, Wilder e Welles. Os primeiros filmes de Sam Peckinpah me cativaram tanto e aquela elétrica batalha criativa que durou 20 anos me envolveu de tal maneira que é difícil de imaginar que ele não me acompanharia até hoje. Mas o tempo traz necessariamente uma mudança, especialmente em nossos laços com artistas contemporâneos: nós não acompanhamos mais uma jornada, mas contemplamos algo terminado; não assistimos àquela obra em ignorância, em antecipação e expectativa, mas com conhecimento e reconsideração. Não me surpreende que eu ainda assista aos filmes de Peckinpah nem que minha experiência seja diferente. Fico surpreso, no entanto, com quais de seus filmes eu mais assisto. À época de seus últimos trabalhos, qualquer um que acompanhasse Peckinpah naquele momento pode ter tido dificuldade em encontrá-los. Os DVD ajudaram a fazer justiça nesse sentido: todos os filmes estão disponíveis, e os vemos no mesmo lugar. E os assistimos como parte de uma jornada completa, e não como passos desastrados por um caminho que não estamos esperando. Hoje sabemos onde Esforço humano, batalha humana: Sam Peckinpah e a jornada da alma 159


esse caminho foi dar. Era difícil, à medida que os últimos filmes iam surgindo, não sentir uma certa decepção com suas irregularidades, suas constrições, suas atmosferas amargas. Era difícil vê-los para além da neblina de histórias sobre a decadência de Peckinpah. Agora o tempo deu às obras um distanciamento da vida do artista e das fofocas de jornais. É impossível, com relação a Peckinpah, exagerar no valor desse distanciamento. É um passo enorme em direção à pureza de visão. Exiba um filme como Cruz de Ferro hoje em dia e você não vai ouvir sussurros sobre um artista em fim de carreira: as pessoas irão se perguntar por que esse filme não é saudado como um clássico.2 No meu caso, com o passar do tempo, são os filmes mais recentes que me pego assistindo com mais frequência, especialmente Elite de assassinos e Cruz de Ferro. Foram os que cresceram para mim com o distanciamento, os que se tornaram afirmações mais claras de sua própria integridade. Mas eu diria que todos os filmes de Peckinpah mantiveram sua esperteza sem igual. É tarde demais para dizer que se sustentam melhor que outros. Eles transcendem seu tempo, assim como transcendem seus gêneros. Eles não parecem marcados por uma época mais antiga da história do cinema.3 Eles palpitam com o frescor da criação; a potência de sua força ainda lhe alcança pela profundidade da sua paixão. Eu disse acima que a presença de Peckinpah em seus filmes criou um laço com o público, assim como a presença de Hemingway em sua obra. Ambos eram também perturbados, autodestrutivos, e pode-se dizer que suas figuras públicas os consumiram. Mas, a meu ver, não há uma deterioração na arte de Peckinpah, em comparação com a de Hemingway. Compare os pontos fortes de Do outro lado do rio e entre as árvores e Cruz de Ferro. Compare os protagonistas tardios: o coronel Cantwell, Santiago e o pintor Thomas Hudson mostram apenas a imagem de um Hemingway enfraquecido, flácido, precisando ser mais sábio que todos, precisando ser amado por todos. Não há nada tão interessante acontecendo com eles quanto com os protagonistas tardios de Peckinpah: Pat Garrett, Mike Locken, o sargento Steiner, o agente Fassett (a verdadeira imagem de Peckinpah em O casal Osterman). Eles odeiam

2

Weddle, If They Move… Kill 'Em!, 513.

Compare por exemplo o belo grupo de faroestes dirigidos por Budd Boetticher e lançados em DVD em 2008. Não estão muito distantes da época em que Peckinpah fez seus filmes, mas parecem ser de uma outra era. 3

Cordell Strug 160


seus empregos, seus amos, seu mundo: estão tentando levar suas vidas – ou criar suas próprias integridades – em meio a um círculo de furor do qual não podem escapar. Eles são mais solitários, raivosos e desesperados. Há uma energia neles que dá uma sede ardente à mesma jornada que Steve Judd seguia em Pistoleiros do entardecer: entrar em sua casa legitimado. É isso o que me leva aos filmes mais tardios, então quero discutir Elite de assassinos e Cruz de Ferro como obras cujos elementos permitem que essa alma ardente se sobressaia. Elite de assassinos vive em minha memória, como suspeito que seja com a maioria, pela força de sua deslumbrante batalha final: pálidas figuras em ataque tropeçando e caindo, céu e mar resplandecentes depois de tanta escuridão, a música de mistério e o protagonista do filme, atormentado e ferido, encontrando certa liberdade afinal. A batalha tem uma natureza abstrata tão forte que quase se separa da história na qual está inserida. Então quando voltei a ver o filme depois de muitos anos, as muitas camadas de vozes de crianças no início, a transcrição da cínica entrevista de Weyburn, explosivos sendo preparados, a trilha sonora cheia de percussão de Jerry Fielding – tudo isso me emocionou e intrigou. Parecia me prometer um filme envolvente, mas muito diferente daquele que eu lembrava.Teria sido um filme bem mais ordinário. De qualquer modo, quando os agentes dão início a seu diálogo cheio de brincadeiras e piadas inconsequentes, o filme logo vira outra coisa. A tentação é começar a explicar em vez de assistir. É fácil rejeitar Elite de assassinos como um filme irregular, uma obra boba sobre um mundo ridículo, e ainda malfeita. Eu até mesmo já ouvi se referirem a ele como uma sátira. Mas há um filme sério que começa quando Mike percebe que seu melhor amigo está prestes a atirar nele. Nada com relação a Mike é bobo ou ridículo. Nada sobre ele ou sobre sua batalha pode ser deixado de lado. Muita coisa no filme parece uma brincadeira e os diálogos dispersam a ação, mas as carências e confusões internas de Mike são totalmente sérias. É possível dizer que o drama interno de Mike também se desliga da história da qual faz parte ou que Mike está simplesmente num filme diferente. Mas o universo da espionagem, com seus segredos, traições e corrupções, nutre de soslaio o drama de Mike. E a tensão que essa atmosfera dá ao filme é uma maneira autêntica de sentir o mundo: não o mundo dos filmes de espião ou da espionagem, mas o mundo em si. Essa é a história de um espírito impetuoso em um mundo vazio. É uma história quase sussurrada por debaixo da história principal. Esforço humano, batalha humana: Sam Peckinpah e a jornada da alma 161


Quando Mike se coloca sobre Collis, depois de feri-lo da mesma maneira como fora ferido, e sussurra “Como se sente?”, o filme sério irrompe na superfície. É um clímax mais real do que a batalha que se segue. Na verdade, este é um filme no qual a imobilidade é – até o finalzinho – mais intrigante que a ação: as imagens de Mike ouvindo, pensando, a tristeza em seus olhos enquanto mapeia o que ainda tem, são esses os momentos mais poderosos do filme. Podemos considerar, nesse sentido, quantos personagens de Peckinpah refletem sobre si mesmo em silêncio e o quanto isso aprofunda a experiência de seus filmes. Esse filme em particular funciona como um tipo de poema, e a sequência noturna no cais, em especial, nos remete ao clima e às imagens da poesia chinesa: a luz do luar, sombras na água, formas escuras de prédios, barcos balançando. Pegue uma cena como a da morte de Miller: não tem quase nenhum sentido narrativo que ele seja a única pessoa no grupo de Mike a morrer metralhado durante o ataque de ninjas. Mas ele é um traficante de armas que carrega uma pistola automática. O modo como morre é uma rima. Em um sentido mais amplo, o filme é como um poema sinfônico: da luz à escuridão e de volta à luz, com mudança de poderes e de destinos. É uma combinação de luz e sombra, assim como de desgosto e raiva, poder e propósito. A verdadeira elite, descobrimos, como uma imagem de contraste, é a equipe do hospital. Quase um quarto do filme é dedicado à cirurgia e à reabilitação, com suas frustrações e humilhações. Mas os cirurgiões são gélidos, metódicos, imparciais. São tudo aquilo que Mike não é. Na verdade, Mike falha nas duas coisas que se dispõe a fazer: matar Hansen e voltar a seu antigo trabalho. Esses objetivos deixam de ter importância para ele. Mas ele não consegue dar a si mesmo nada mais do que os cirurgiões. Há um outro contraste importante no filme que se inicia no hospital, quando Mike fica sabendo o quão séria é sua lesão. Seu rosto contrasta com o de Weyburn, cansado, arqueado, flácido. Nada ligado a Weyburn é bobo, ridículo ou facilmente descartável. Ele é mais frio, impiedoso e calculista do que Mike. Ele é o que Mike poderia se tornar, caso o espírito estivesse tão destruído quanto seu corpo. É o próprio machucado de Mike que o remete a uma jornada ainda mais profunda, que o vincula a um destino próprio. Ele terá que lutar para chegar até o banheiro ou para comer sem precisar de ajuda. (Assistindo a essa sequência, é difícil não pensar nos feridos imobilizados em razão da Guerra do Vietnã). Cordell Strug 162


Esse aspecto separa Mike de uma outra forma de poder que assombra o filme: o poderio global dos Estados Unidos, presente nos escritórios corporativos e, como uma pele arranhada, na frota de naftalina. Assim como o mundo da espionagem, a pompa do poderio norte-americano assombra o drama de Mike de soslaio. Há certa percepção no filme de uma algazarra em torno de uma história que não pertence a si. Isso também, eu diria, é uma forma autêntica de se experimentar o mundo, especialmente no último quarto do século XX nos Estados Unidos. Para Mike, em um nível mais profundo, o descuido e a arrogância do poder lhe são negados através de suas feridas e de sua traição. O que seu poder lhe traz e aonde sua jornada o leva são outras das questões inquietantes do filme. Parte de sua atmosfera sem igual vem da presença de uma força explosiva que não vai a lugar algum. O drama interno de Mike é intenso, ele claramente chega naquilo que não quer, e então a paixão retrocede. A batalha certamente resolve muito pouco. A violência em Peckinpah sempre se molda em favor das questões que surgem em torno de si: aqui, a própria abstração, o êxtase quimérico são sinais de insignificância. A conjunção de espadas ao final é como a limpeza feita por zeladores depois de um jogo de basquete O verdadeiro drama não se resolve: ele apenas termina. Steve Judd morreu em paz. O espírito taciturno de Mike apenas se acalma e, mesmo assim, somente por um momento. Sempre que decido rever Cruz de Ferro, uma imagem perto do fim do filme me vem à mente: um soldado russo saltando sobre uma arcada enquanto a linhas alemãs entram em colapso. É um desses momentos de beleza aleatória com os quais os filmes de Peckinpah são agraciados, que os enriquece visualmente. Há uma beleza rústica do começo ao fim do filme: neblina, luz, fumaça, ruínas, rostos desgastados. As imagens são cortantes; as sequências são hermeticamente amarradas: chegar a Cruz de Ferro depois de assistir a muitos outros filmes de guerra é como chegar à poesia moderna, Hopkins e Pound, depois de se ler a poesia vitoriana. Novamente, assistir a esse filme depois que as histórias sobre os problemas de Peckinpah e seu declínio já se foram, significa redescobrir o trabalho de um mestre. Começamos com mais um grupo de crianças à Peckinpah, com as marcas do esforço humano e da batalha humana sobre elas: a sequência inicial nos Esforço humano, batalha humana: Sam Peckinpah e a jornada da alma 163


leva da infância de Hitler, com total convicção, para uma infantaria alemã presa e em desespero num fronte russo. Peckinpah purificou – ou reduziu – seu ponto de vista com relação ao crescimento espiritual: de brincadeiras eletrizantes a combates mortais que nunca terão fim. O cenário da história mais uma vez trabalha no sentido da abstração: o cenário da guerra, a Crimeia, está distante da vivência de guerra dos Estados Unidos. Na verdade, até onde essa história vai, os norte-americanos podem muito bem nem existir. Sentimos o filme puramente como uma história de conflito. Esse é um cenário onde a guerra está sempre presente. Conflito é a totalidade da vida. Essa redução de todas as coisas ao estado de guerra serve ao artista neste momento de sua jornada. Diferentemente dos habitantes das cidades ou dos aldeões de seus primeiros faroestes, nesse cenário ninguém nem finge estar tocando a vida. Na há nenhum real espectador. É como o Oeste norte-americano sem seus polos positivos. É possível dizer: a jornada de Peckinpah sempre teve este lugar como finalidade. Steiner é um personagem que explora como viver neste mundo: ele tem todas as aptidões que o conectam a ele, e o nojo e a raiva que o desconectam. No ataque inicial à base do morteiro russo, Steiner e Kruger se encaram, mais um momento de imobilidade, e seus olhares selam tudo o que virá a seguir, com cansaço e desesperança. Ainda assim, Steiner declara: “Boa morte”. Essa é a única conversa que eles têm, ou a única que existe. Portanto, as rotinas domésticas – se barbear, cozinhar, até mesmo uma festa de aniversário – são surpreendentes. Por mais solitário que seja o protagonista de Peckinpah, a comunhão humana é vital. Steiner não consegue arrancar de si mesmo os rostos desses homens: no hospital, eles surgem em forma de alucinações; mais tarde, vêm até ele depois de mortos. Mas a comunhão acompanha este mundo de conflitos, e o conflito é mais fundamental do que os homens e seus vínculos; ao final, ele os engole. Quando Steiner diz à enfermeira por quem está levemente atraído que não tem um lar, ele está delimitando a fronteira do mundo real. Não há um lugar para onde recuar ou para o qual retornar. Pouco antes da batalha na qual Steiner é ferido e Meyer é morto, há uma cena estranha na qual Steiner manda o menino russo de volta à sua própria linha. (O diálogo é terrível, mas as imagens elevam a cena.) É um momento quase shakespeariano, com Steiner refletindo sobre a imagem de um uniforme Cordell Strug 164


caído em cima do outro, os acasos da guerra e os lados que dividem as pessoas, a realidade da carnificina sob ideais vazios. Mais uma vez, é um ferimento que isola o protagonista e o empurra cada vez mais fundo para dentro de si mesmo. Eu não havia percebido antes de escrever este ensaio o quão cruciais são o tempo no hospital e a recuperação para esses dois filmes e para as jornadas que exprimem. São duas sequências de implacável mutilação física e perda, coisas que a maioria dos filmes de violência ignora. As feridas impedem que os dois homens vejam o mundo à sua volta com clareza e sem limitações. Mas no caso de Steiner, realmente não há outra vida. Seria complicado dizer que esta falta de opção lhe traz paz, mas o poupa de uma cisão. Ainda assim, é a sua própria guerra que está lutando, e de mais ninguém. Quando ele se recusa a apresentar provas contra Stranky e deixa Brandt furioso ao dizer que odeia seu uniforme e tudo o que ele representa, ele estabelece o contraste definitivo desta obra. O próprio Brandt seria o herói ideal para uma história de guerra; junte a ele Kiesel, com seu distanciamento cínico típico de um forasteiro, e você tem um bom par de heróis comuns que se complementam: figuras íntegras e competentes, sem nenhuma ilusão. Steiner e Peckinpah são de uma outra dimensão, quase no universo dos santos e mitos, onde a medida humana afunda na inutilidade. E ainda assim, para Steiner, não existe para onde ir e mais nada a fazer. É importante que Brandt, mandando Kiesel para longe, esteja olhando para além da guerra. Steiner, arrastando Stransky para a batalha, revendo o menino russo morto, rindo de desprezo e frivolidade à medida que a montagem de fotos da guerra se desenrola, só está olhando para mais do mesmo. O romance de Willi Heinrich terminava com Steiner ferido mortalmente, sendo carregado para longe de Kruger, que chora. A versão de Peckinpah termina com Steiner rindo. Ele termina descolado de todos os seus vínculos. Ele estará sempre lutando uma guerra que não lhe pertence. Essa não é nem de longe a única maneira de entender como o mundo funciona ou como viver nele, mas é certamente um modo poderoso e bastante eficiente. William James, defendendo os elementos rudes, duvidosos e trágicos de sua própria filosofia, escreveu um protesto exaltado contra os idealistas religiosos afetuosos e otimistas de sua época: “Não há preço a se pagar no trabalho da salvação? A última palavra é doce? É tudo ‘sim, sim’ no universo? Será que a Esforço humano, batalha humana: Sam Peckinpah e a jornada da alma 165


realidade do ‘não’ não está no âmago da vida? Será que a ‘seriedade’ que atribuímos à vida não significa que os nãos inevitáveis e as perdas fazem parte dela; que há sacrifícios genuínos em algum lugar; e que algo permanentemente drástico e amargo sempre fica no fundo da xícara?”4. Peckinpah transformou questionamentos como esse em visões cinematográficas, coisas permanentemente drásticas e amargas que mostram a seriedade da vida e de suas perdas. Chamo atenção para uma última coisa extraordinária sobre esses dois filmes: os dois protagonistas escapam da morte que poderiam muito bem ter encontrado ao fim de suas histórias. (Como mencionei, isso é surpreendente em Cruz de ferro.) Mas essa libertação dá a ambas as obras certa incompletude, uma portabilidade fácil para as almas que possam vir a se juntar a elas. As batalhas que os protagonistas destes filmes não podem ou não se importam em vencer estão subordinadas a uma jornada de vida. Sam Peckinpah será, sem dúvida, sempre lembrado por seus faroestes. Mas esses filmes mais recentes expressavam algo essencial nele, uma veia profunda da busca em sua arte: batalhas por nada e por tudo; guerras sem fim; paixão, devoção, risada e uma alegria distorcida. É difícil, e provavelmente sem sentido, decidir de que lado do desespero este palhaço louco está. É a alma se contorcendo, furiosa em sua noite escura, vibrando e se sustentando através de seus próprios esforços.

4

James, Pragmatism, 616-17. Cordell Strug 166


Š Warner Brothers

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Empresa produtora: Carousel Productions Primeira exibição: Tucson, Arizona, 6 de junho de 1961 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: A. S. Fleischman Produção: Charles B. FitzSimons Direção de fotografia: William H. Clothier Montagem: Stanley E. Rabjohn Figurino: Frank Beetson Sr. e Sheila O’Brien Música: Marlin Skiles Elenco: Maureen O’Hara, Brian Keith, Steve Cochran, Chill Wills, Strother Martin, Will Wright, Jim O’Hara, Peter O’Crotty, Billy Vaughan

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O homem que eu devia odiar The Deadly Companions EUA, 1961, Cor, 93 min

No final da década de 1860, Yellowleg, um ex-sargento do exército da União, persegue Turk, um desertor rebelde que tentou escalpelá-lo enquanto estava ferido em um campo de batalha da Guerra de Secessão. Ele o encontra em uma cantina e, sem revelar sua verdadeira intenção, convence Turk e Billy, seu companheiro de gatilho, a se unirem a ele a fim de roubar um banco na cidade de Gila, Arizona. Uma vez lá, no entanto, os homens descobrem que outros bandidos também estão na cidade pelo mesmo motivo. É quando um tiroteio irrompe e Yellowleg mata acidentalmente um menino de 9 anos, filho de Kit Tilden, uma dançarina local. Quando a mulher decide enterrar seu filho ao lado da sepultura de seu marido em Siringo, uma cidade fantasma, o remorso de Yellowleg o obriga e a seus companheiros a se juntarem a ela através do deserto, que é habitado por tribos apaches. Mas no meio do caminho, Billy é expulso do grupo ao tentar estuprar Kit, e Turk foge. No entanto, pouco depois de chegarem a Siringo, Kit e Yellowleg reencontram os dois bandidos, que acabaram de roubar o banco de Gila. Yellowleg, apesar do amor cada vez maior por Kit, decide se vingar de Turk. Mas um ferimento no ombro faz com que ele erre sua mira e quem acaba atirando em Turk é seu companheiro Billy. O homem fica apenas ferido e consegue atirar de volta, matando seu antigo amigo. Um pelotão chega para levar Turk de volta para Gila, enquanto Kit e Yellowleg vão embora juntos, cavalgando.

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Empresa produtora: Metro-Goldwyn-Mayer Primeira exibição: Washington, D. C., 9 de maio de 1962 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: N. B. Stone Jr. Produção: Richard E. Lyons Direção de fotografia: Lucien Ballard Montagem: Frank Santillo Direção de arte: Leroy Coleman e George W. Davis Música: George Bassman Elenco: Randolph Scott, Joel McCrea, Mariette Hartley, Ron Starr, Edgar Buchanan, R. G. Armstrong, Jenie Jackson, James Drury, L. Q. Jones, John Anderson, John Davis Chandler, Warren Oates

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Pistoleiros do entardecer Ride the High Country EUA, 1962, Cor, 94 min

Os dias de glória de Steve Judd, um lendário homem da lei, já passaram. Agora velho, ele decide aceitar um trabalho para transportar ouro de um remoto campo de mineração em Sierra Nevada a um banco de uma pequena cidade. Para ajudá-lo, ele tem à sua disposição Gil Westrum, outro homem da lei esquecido, rebaixado a ganhar a vida como atirador em feiras de entretenimento, e Heck Longtree, um jovem e aventureiro andarilho. Secretamente, Gil e Heck planejam roubar os depósitos de ouro, com ou sem a ajuda de Steve. No caminho para o campo de mineração, Elsa Knudsen, a filha rebelde de um fanático religioso, se junta aos três homens. Elsa fugiu para se juntar a seu namorado, Billy Hammond, no campo de mineração. Quando eles finalmente chegam, ela se casa com Billy, mas uma briga começa imediatamente após a cerimônia. Elsa se recusa a ficar com seu marido e seus irmãos bêbados e, em vez disso, deixa o local na companhia de Steve, Gil e Heck, que já recolheram o ouro. No caminho de volta, Gil e Heck botam em ação sua tentativa de roubo, mas Steve os engana. Mais tarde, Gil foge, mas retorna quando seus companheiros são atacados pelos irmãos Hammond. Em um tiroteio feroz, os Hammond são mortos, mas Steve também fica fatalmente ferido. Antes de Steve morrer, Gil lhe promete que vai entregar o ouro e fazer o que puder para ajudar Elsa e Heck, que começam a desenvolver uma ligação amorosa.

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Empresa produtora: Columbia Pictures Primeira exibição: Chicago, Illinois, 2 de abril de 1965 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: Harry Julian Fink, Oscar Saul e Sam Peckinpah Produção: Jerry Bresler Direção de fotografia: Sam Leavitt Montagem: Howard Kunin, William A. Lyon e Don Starling Direção de arte: Al Ybarra Figurino: Tom Dawson Música: Daniele Amfitheatrof Elenco: Charlton Heston, Richard Harris, Jim Hutton, James Coburn, Michael Anderson Jr., Senta Berger, Mario Adorf, Brock Peters, Warren Oates, Ben Johnson, R. G. Armstrong, L. Q. Jones O filme será exibido em sua versão original e em sua versão estendida (136 min).

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Juramento de vingança Major Dundee

EUA, 1965, Cor, 124 min

Nos últimos meses da Guerra Civil norte-americana, um pequeno grupo de apaches liderado por Sierra Charriba ataca um posto da cavalaria no Novo México, massacrando quase toda a força, sequestrando três crianças e escapando pela fronteira para o México. O major Dundee está estacionado próximo dali, em um forte isolado, onde cuida de 400 prisioneiros confederados, dentre desertores da União, assassinos e ladrões. Determinado a acabar com os apaches de Charriba, Dundee aumenta sua pequena força com renegados, voluntários negros e um grupo de prisioneiros confederados a quem foi dada a escolha entre lutarem ou serem enforcados por terem matado um guarda da prisão. Os confederados são liderados pelo capitão Benjamin Tyreen, um velho inimigo de Dundee, que promete matá-lo depois que sua missão estiver concluída. Uma vez no México, a tensão entre os dois homens aumenta à medida que Tyreen se intromete na forma vacilante de comandar de Dundee, e a lealdade oposta entre os homens do Norte e do Sul dividem as linhas de soldados. O grupo liberta uma aldeia ocupada por soldados franceses e os dois líderes se tornam rivais também na briga pela atenção de Teresa Santiago, a viúva de um médico mexicano enforcado pelos franceses. Embora ferido, Dundee lidera seus homens em uma última batalha com o grupo de Charriba: uma tocaia é armada e o chefe índio é morto. Com a missão cumprida, resta agora a Dundee e Tyreen resolverem suas próprias diferenças. Mas logo os remanescentes da tropa se depararam com um regimento francês e, durante a batalha, Tyreen toma uma atitude solitária e ousada que corajosamente termina em sua morte, mas também na vitória do grupo. Quando a luta termina, Dundee e seus 11 sobreviventes voltam para o outro lado do rio, em direção à segurança de seu próprio país.

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Empresa produtora: Warner Bros.-Seven Arts Primeira exibição: Los Angeles, Califórnia, 18 de junho de 1969 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: Walon Green e Sam Peckinpah Produção: Phil Feldman Direção de fotografia: Lucien Ballard Montagem: Louis Lombardo Direção de arte: Edward Carrere Figurino: James R. Silke Música: Jerry Fielding Elenco: William Holden, Ernest Borgnine, Robert Ryan, Edmond O’Brien, Warren Oates, Jaime Sanchez, Ben Johnson, Emilio Fernández, Strother Martin, L. Q. Jones, Albert Dekker, Bo Hopkins

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Meu ódio será sua herança The Wild Bunch

EUA, 1969, Cor, 145 min

Estamos em 1913 e os bandidos do Velho Oeste estão desaparecendo rapidamente. Sob a liderança do velho Pike Bishop, uma gangue chega a San Rafael, no Texas, para roubar o escritório da companhia de trem local. Ainda que vestidos com uniformes da cavalaria, Bishop e seus homens são emboscados por caçadores de recompensa liderados por Deke Thornton, ex-membro da gangue de Bishop. Quando um grupo de manifestantes é apanhado no fogo cruzado, a emboscada se transforma em um massacre que termina com os homens de Bishop escapando para o México, enquanto os caçadores de recompensa saqueiam os cadáveres. No México, a gangue descobre que os sacos roubados contêm anilhas de ferro, em vez de dinheiro. Aceitando sua má sorte, eles vão para a aldeia natal de Angel, um dos membros do grupo, onde ficam sabendo que o bandido Mapache, sádico oponente de Pancho Villa, matou o pai de Angel e sequestrou sua namorada, Teresa. Embora Angel mate Teresa quando a descobre com o general, Bishop intervém em seu nome e faz um acordo com Mapache que sua gangue irá roubar um trem do exército e vender sua carga de fuzis para os bandidos por US$ 10,000. Ainda que Thornton e seus capangas estejam no trem, a gangue de Bishop sequestra o veículo e foge com os fuzis. Angel, que deu uma caixa de munição para as pessoas de sua aldeia, é feito prisioneiro pelos bandidos. Como a lealdade é tudo o que resta, o bando exige a libertação de Angel; mas Mapache corta a garganta do rapaz. Bishop mata o chefe dos bandidos em retaliação, desencadeando uma chacina em que toda a gangue, assim como centenas de mexicanos, é morta.Thornton e seus caçadores de recompensa chegam para recolher os corpos dos bandidos procurados; mas quando todos menos Thornton saem da cidade, são abatidos pelos camponeses.

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Empresa produtora: Warner Bros.-Seven Arts Primeira exibição: Los Angeles, Califórnia, 18 de março de 1970 Direção e produção: Sam Peckinpah Roteiro: John Crawford e Edmund Penney Produção executiva: Phil Feldman Direção de fotografia: Lucien Ballard Montagem: Lou Lombardo e Frank Santillo Direção de arte: Leroy Coleman Música: Jerry Goldsmith Elenco: Jason Robards, Stella Stevens, David Warner, Strother Martin, Slim Pickens, L. Q. Jones, Peter Whitney, R. G. Armstrong, Gene Evans, William Mims, Kathleen Freeman, Susan O’Connell

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A morte não manda recado The Ballad of Cable Hogue EUA, 1970, Cor, 121 min

Abandonado no deserto por seus parceiros Bowen e Taggart, o garimpeiro Cable Hogue jura vingança. Após quatro dias perambulando sem destino, Hogue descobre água. Como o local é o único poço num raio de 65 quilômetros e fica convenientemente localizado próximo à rota das diligências, Hogue estabelece ali Cable Springs, um oásis para viajantes cansados. O empresário, no entanto, atira em seu primeiro cliente quando este se recusa a pagar uma taxa de US$ 0.10 pelo consumo de água. Seu segundo visitante, Joshua Sloane, um evangelista libertino, toma conta do poço enquanto Hogue vai até a cidade de Deaddog para oficializar sua descoberta. Lá, ele convence Cushing, um banqueiro da cidade, a investir US$ 100 no oásis. Hogue conhece também Hildy, a prostituta local, que lhe dá um banho. Mas logo ele se lembra de Sloane e sai abruptamente, sem pagar a prostituta. Tempos depois, o oásis cresce e começa a dar lucros. Até que um dia Hogue oferece refúgio a Hildy quando ela é expulsa de Deaddog por religiosos. Os dois se apaixonam, mas Hildy parte para São Francisco atrás de um marido rico. Sua partida coincide com a chegada dos ex-parceiros de Hogue, que têm a intenção de adquirir para si a fortuna de seu velho amigo. O garimpeiro, adivinhando seu propósito, monta uma armadilha que os prende em um ninho de cobras, onde ele atira em Taggart e poupa Bowen. Quando Hildy reaparece, viúva e rica, a fim de levar seu amor consigo para Nova Orleans, Hogue é acidentalmente atropelado por seu carro. Ao morrer, ele recebe a extrema unção das mãos de Joshua Sloane.

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Empresa produtora: ABC Pictures Corp. Primeira exibição: Londres, 20 de novembro de 1971 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: David Zelag Goodman e Sam Peckinpah Produção: Daniel Melnick Direção de fotografia: John Coquillon Montagem: Paul Davies, Tony Lawson e Roger Spottiswoode Direção de arte: Ray Simm Figurino: Tiny Nicholls Música: Jerry Fielding Elenco: Dustin Hoffman, Susan George, Peter Vaughan, T. P. McKenna, Del Henney, Jim Norton, Donald Webster, Ken Hutchison, Len Jones, Sally Thomsett, Robert Keegan, Peter Arne

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Sob o domínio do medo Straw Dogs

EUA/Reino Unido, 1971, Cor, 118 min

David Sumner, um tímido matemático norte-americano, deixa o caos dos protestos antiguerra das universidades de seu país para viver com sua jovem esposa, Amy, em Wakely, um vilarejo na Cornualha, na Inglaterra, terra natal dela. Logo de cara, há tensão entre o casal, com David cada vez mais imerso em seu trabalho acadêmico. É quando vêm à tona as visões diferentes de cada um dos dois sobre a natureza de seu relacionamento: David quer a tradicional e arcaica divisão de tarefas, com o homem sustentando a casa e a esposa satisfazendo suas necessidades na cozinha e cama. Para aceitar se submeter a tal papel, Amy exige maior participação de David: ela quer que ele execute bem todas as tarefas tradicionalmente masculinas, como consertar a torradeira, mas também que ele se envolva mais com a comunidade local. Chris Cawsey, Norman Scutt, Riddaway e Charlie Venner, um ex-namorado de Amy, são moradores de Wakely contratados para renovar a isolada granja dos Sumner. Eles não gostam de David descaradamente e se ressentem de seu ar superior de intelectual, o assediando constantemente. Quando Amy descobre seu gato estrangulado, pendurado por um fio de luz no armário de seu quarto, ela tem certeza que os trabalhadores fizeram isso para intimidar seu marido. Ela o pressiona a enfrentar os aldeões, mas David se recusa. Ele tenta uma estratégia contrária: ganhar a sua amizade, aceitando o convite do grupo para caçar na floresta. Durante o passeio, David é levado a uma parte remota da floresta e deixado lá, à espera que os trabalhadores mandem os pássaros em sua direção. Depois de abandonar David,Venner retorna à casa do casal, onde estupra Amy. Logo Scutt chega e obriga Venner a segurar Amy enquanto também a estupra. Depois de horas, David percebe que foi enganado e volta para casa, onde encontra Amy em estado catatônico. Quando ele finalmente decide tomar uma atitude, as coisas rapidamente se transformam em uma batalha sangrenta.

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Empresas produtoras: Solar Productions e ABC Pictures Primeira exibição: Dallas, Texas, 11 de junho de 1972 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: Jeb Rosebrook Produção: Joe Wizan Direção de fotografia: Lucien Ballard Montagem: Frank Santillo e Robert Wolfe Direção de arte: Edward S. Haworth Figurino: Eddie Armand Música: Jerry Fielding Elenco: Steve McQueen, Robert Preston, Ida Lupino, Ben Johnson, Joe Don Baker, Barbara Leigh, Mary Murphy, William McKinney, Dub Taylor, Sandra Deel, Donald Barry, Charles Gray

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Dez segundos de perigo Junior Bonner

EUA, 1972, Cor, 100 min

Junior “JR” Bonner é um peão de rodeio que está se aproximando da meia-idade. Nós o vemos pela primeira vez cuidando de seus ferimentos depois de uma malfadada montaria em um touro violento chamado Sunshine. Junior volta para casa em Prescott, Arizona, para participar do desfile e do rodeio do Dia da Independência. Quando chega, a casa da família Bonner está sendo demolida por seu irmão mais novo, Curly, um empresário e promotor imobiliário que pretende construir ali casas de fazenda. Ace, o pai mulherengo e vagabundo de Junior, e Elvira, sua mãe sofredora, estão afastados. Ace sonha em emigrar para a Austrália para criar ovelhas e explorar minas de ouro, mas não consegue obter financiamento de Junior, que está sem dinheiro, e se recusa a pedir para Curly. Depois de derrubar seu irmão arrogante com um soco, Junior suborna Buck Roan, proprietário de rodeios, para que o deixe montar Sunshine novamente, prometendo-lhe metade do prêmio em dinheiro. Buck acredita que ele esteja ficando louco, mas dessa vez Junior realmente consegue domar o touro, passando os oito segundos necessários em cima do animal. Junior entra no escritório de um agente de viagens e compra para seu pai um bilhete somente de ida, na primeira classe, para a Austrália. E a bem-sucedida montaria em Sunshine continuará a adiar o inevitável fim de sua carreira.

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Empresas produtoras: First Artists Production Company, Solar Productions, David Foster Productions e Tatiana Films Primeira exibição: Los Angeles, Califórnia, 19 de dezembro de 1972 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: Walter Hill Produção: Mitchell Brower e David Foster Direção de fotografia: Lucien Ballard Montagem: Robert Wolfe e Roger Spottiswoode Direção de arte: Angelo Graham e Ted Haworth Música: Quincy Jones Elenco: Steve McQueen, Ali MacGraw, Ben Johnson, Sally Struthers, Al Lettieri, Slim Pickens, Richard Bright, Jack Dodson, Dub Taylor, Bo Hopkins, Roy Jenson, John Bryson

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Os implacáveis The Getaway

EUA, 1972, Cor, 122 min

Carter “Doc” McCoy, um bandido condenado do Texas, tem seu pedido de condicional negado. Quando sua esposa Carol o visita na cadeia, ele pede que ela faça o que for necessário para convencer Jack Benyon, um empresário de San Antonio, a ajudá-lo. Influente, Benyon consegue a condicional para Doc, mas sob a condição de que ele participe de um assalto a um banco com dois de seus asseclas, Rudy e Frank. Durante o assalto, Frank mata um dos guardas. Rudy tenta passar-lhes a perna, matando Frank e jogando a arma nas mãos de Doc, que reage e atira de volta várias vezes. Doc vai então se encontrar com Benyon, que tenta passá-lo para trás. Mas Carol surge e o mata. É quando Doc percebe que Carol teve de manter relações sexuais com Benyon a fim de conseguir sua soltura. Com raiva, ele junta todo o dinheiro e, após uma discussão dolorosa, o casal foge em direção à fronteira em El Paso. Mas Rudy, que, sem que ninguém soubesse, vestia um colete antibalas, está vivo. Ele força Harold, um veterinário, e sua jovem esposa Fran a cuidarem de seus ferimentos e os sequestra em sua perseguição a Doc e Carol. Enquanto isso, Cully, irmão de Benyon, e seus capangas também estão atrás dos McCoy. Numa estação de trem, um vigarista troca com Carol as chaves do armário de bagagem, sem que ela perceba, e rouba a sacola de dinheiro. Doc o persegue dentro de um trem e o força a devolver o que roubou. O ladrão, machucado, junto com outras testemunhas, é levado a uma delegacia, onde reconhece Doc a partir de fotos de vários suspeitos. Carol compra um carro, enquanto Doc rouba uma espingarda, o que os coloca em vários confrontos com a polícia, entre tiroteios e perseguições. Eles acabam escapando ao se esconderem em uma enorme caçamba de lixo, que os joga dentro de um caminhão de lixo e os leva até um aterro sanitário. Imundos e frustrados, os dois repensam se devem continuar juntos ou seguir cada um o seu caminho. Enquanto isso, Rudy e Cully continuam, cada um à sua maneira, a perseguir o casal.

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Empresa produtora: Metro-Goldwyn-Mayer Primeira exibição: Nova York, 23 de maio de 1973 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: Rudy Wurlitzer Produção: Gordon Carroll Direção de fotografia: John Coquillon Montagem: David Berlatsky, Garth Craven, Tony De Zarraga, Richard Halsey, Roger Spottiswoode e Robert L. Wolfe Direção de arte: Ted Haworth Música: Bob Dylan Elenco: James Coburn, Kris Kristofferson, Richard Jaeckel, Katy Jurado, Chill Wills, Barry Sullivan, Jason Robards, Bob Dylan, R. G. Armstrong, Luke Askew, John Beck, Richard Bright

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Pat Garrett & Billy the Kid Pat Garrett & Billy the Kid EUA, 1973, Cor, 122 min

Em 1881, no Novo México, o bandido Billy the Kid passa o tempo com seus amigos atirando em galinhas. Um velho amigo de Billy, Pat Garrett, chega à cidade com o subxerife J.W. Bell e se junta ao grupo. Mais tarde, quando estão bebendo juntos, Garrett informa a Billy que os políticos da cidade querem que ele saia do país e que, em cinco dias, quando se tornar o xerife do Condado de Lincoln, ele o obrigará a ir embora. Seis dias depois, Garrett e seus policiais cercam a pequena chácara onde Billy e sua gangue estão escondidos. No tiroteio que se segue, muitos homens são mortos, de ambos os lados, e Billy acaba sendo preso. Aguardando sua execução, Billy é provocado e espancado pelo moralista xerife Bob Ollinger, enquanto, do lado de fora, sua forca está sendo construída. Quando J. W. Bell chega, Ollinger sai para pegar uma bebida. Billy encontra então uma arma escondida para ele no alpendre e surpreende Bell, atirando nele pelas costas. Ele rouba a espingarda de Ollinger, carregada com “16 moedas finas”, e mata Ollinger na rua. Depois que Garrett recruta um novo xerife chamado Alamosa Bill Kermit, ele cavalga até Santa Fé para se encontrar com o governador Lew Wallace, que o apresenta a dois homens poderosos. Eles oferecem US$ 1,000 pela captura de Billy the Kid, mas Garrett rejeita o dinheiro, dizendo que vai trazê-lo de qualquer maneira. Billy retorna para sua gangue em Old Fort Sumner, onde decide se recolher por alguns dias. Lá, ele é confrontado por três desconhecidos que tentam matá-lo, mas todos os três são mortos em um tiroteio, que contou com a ajuda de outro estranho, chamado Alias, que mata um dos homens cortando seu pescoço. Inicia-se assim a perseguição de Pat Garrett a Billy the Kid, dois homens que já estiveram do mesmo lado, mas que agora lutam em frentes opostas.

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Empresa produtora: United Artists Primeira exibição: Nova York, 14 de agosto de 1974 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: Sam Peckinpah e Gordon Dawson Produção: Martin Baum Produção executiva: Helmut Dantine Direção de fotografia: Álex Phillips Jr. Montagem: Dennis E. Dolan, Sergio Ortega e Robbe Roberts Direção de arte: Agustín Ituarte Música: Jerry Fielding Elenco: Warren Oates, Isela Veja, Robert Webber, Gig Young, Helmut Dantine, Emilio Fernández, Kris Kristofferson, Chano Urueta, Donny Fritts, Jorge Russek, Chalo González, Don Levy

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Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia

Bring Me the Head of Alfredo Garcia EUA/México, 1974, Cor, 112 min

Teresa, a filha adolescente de um homem poderoso conhecido apenas como El Jefe (O Chefe) está grávida. Ela é chamada perante seu pai e interrogada sobre a identidade do pai de seu filho por nascer. Sob tortura, ela identifica-o como Alfredo Garcia, o homem que El Jefe vinha preparando para ser seu sucessor. Enfurecido, El Jefe oferece uma recompensa de um milhão de dólares para quem o trouxer a cabeça de Alfredo Garcia. Na Cidade do México, dois dos capangas de El Jefe, uma dupla de almofadinhas desprovida de emoções, Sappensly e Quill, entram em um saloon, onde encontram Bennie, um oficial aposentado do exército dos Estados Unidos que ganha a vida com dificuldade como pianista e gerente do bar. Os dois homens perguntam sobre Garcia, acreditando que terão mais sorte em obter respostas com um colega norte-americano. Bennie se faz de bobo, dizendo que o nome lhe é familiar, mas que não sabe quem é. Acontece que todos no bar sabem quem é Garcia, eles apenas não sabem onde ele está. Bennie vai ao encontro de sua namorada, Elita, uma prostituta, em um bordel. Elita admite ter traído Bennie com Garcia, que havia assumido seu amor por ela, algo que Bennie se recusava a fazer. Ela lhe informa que Garcia morreu em um acidente de carro na semana anterior. Bennie se anima com a possibilidade de ganhar dinheiro por apenas desenterrar o corpo. Ele vai ao encontro de Sappensly e Quill e negocia receber US$ 10,000 pela cabeça de Garcia. Bennie convence Elita a pegar a estrada com ele e visitar o túmulo de Garcia, alegando que só quer uma prova de que Garcia está de fato morto e não é mais uma ameaça ao seu relacionamento. No caminho, Bennie pede Elita em casamento, prometendo que seu futuro vai mudar em breve e ela poderá se aposentar. Mas Elita é cautelosa e adverte Bennie sobre os perigos de se perturbar o status quo. A trama caminha para um desenlace sangrento.

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Empresa produtora: Exeter Associates Primeira exibição: Nova York, 17 de dezembro de 1975 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: Marc Norman e Stirling Silliphant Produção: Martin Baum e Arthur Lewis Produção executiva: Helmut Dantine Direção de fotografia: Philip Lathrop Montagem: Tony De Zarraga e Monte Hellman Direção de arte: Ted Haworth Figurino: Ray Summers Música: Jerry Fielding Elenco: James Caan, Robert Duvall, Arthur Hill, Bo Hopkins, Mako, Burt Young, Gig Young, Tom Clancy, Tiana Alexandra, Walter Kelley, Kate Heflin, Sondra Blake

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Elite de assassinos The Killer Elite

EUA, 1975, Cor, 122 min

Mike Locken e George Hansen são melhores amigos e prestam serviços particulares a uma agência de inteligência privada, a Communications Integrity ou ComTeg, que faz trabalhos secretos para a CIA. Locken e Hansen estão ajudando um desertor do Leste Europeu,Vorodny, a fugir. Depois de entregar o desertor a agentes da ComTeg, eles dão uma festa muito animada a fim de relaxar. No dia seguinte, porém, seguem para um esconderijo seguro da empresa a fim de render os agentes que vigiam Vorodny. É quando Hansen, tendo sido contratado por um grupo rival desconhecido, assassina Vorodny e fere seriamente Locken no joelho e no cotovelo, dizendo que ele “acaba de ser aposentado”. Ao saber que ficará inválido para o resto da vida e que sua carreira aparentemente acabou, Locken passa por um longo período de recuperação, até que é contatado novamente por Cap Colis, seu elo de ligação com a ComTeg. Ele lhe oferece uma nova tarefa: proteger um cliente asiático, Yuen Chung. A tarefa também lhe dá a chance de buscar vingança contra Hansen, que faz parte da equipe contratada para assassinar Chung. Locken, tendo se especializado em artes marciais, se utilizando de sua bengala durante a reabilitação, recruta dois ex-associados da ComTeg para o ajudarem: Mac, um ciclista, e Miller, um especialista em armas. No entanto, a missão acaba se revelando uma elaborada armação, parte de uma briga interna pelo poder entre diretores rivais da ComTeg, Collis e seu superior, Lawrence Weybourne. Até que, em uma tentativa de assassinar Chung, Hansen tem Locken em sua mira, mas é baleado e morto por Miller antes que possa apertar o gatilho. Um confronto final entre os rivais asiáticos ocorre a bordo de um navio da marinha na frota de reserva em Suisun Bay, Califórnia, com Locken e Mac envolvidos na briga. É quando eles poderão confrontar Collis uma última vez.

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Empresas produtoras: Anglo-EMI Productions, Rapid Film e Terra-Filmkunst Primeira exibição: Alemanha, 28 de janeiro de 1977 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: Julius J. Epstein, Walter Kelley e James Hamilton Produção: Wolf C. Hartwig Direção de fotografia: John Coquillon Montagem: Michael Ellis e Tony Lawson Direção de arte: Brian Ackland Snow e Ted Haworth Música: Ernest Gold Elenco: James Coburn, Maximilian Schell, James Mason, David Warner, Klaus Löwitsch,Vadim Glowna, Roger Fritz, Dieter Schidor, Burkhard Driest, Fred Stillkrauth, Michael Nowka,Véronique Vendell

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Cruz de Ferro Cross of Iron

Reino Unido/Alemanha Ocidental, 1977, Cor, 132 min

Durante a Segunda Guerra, um pelotão alemão liderado pelo cabo Rolf Steiner invade um posto avançado da frente russa e captura um jovem soldado, ainda menino. Um oficial da Prússia, o capitão Stransky, chega para ser o novo comandante do batalhão. Stransky conta com orgulho ao comandante anterior, o coronel Brandt, que pediu transferência da França ocupada para a linha de frente na Rússia a fim de conseguir ganhar a Cruz de Ferro, alta condecoração. Quando Stransky encontra Steiner pela primeira vez, ele lhe ordena que mate o menino russo, mas Steiner se recusa e Stransky se prepara para matá-lo ele mesmo. No último momento, porém, Reisenauer, um soldado raso, salva o menino se oferecendo para matá-lo. Mais tarde, Stransky informa Steiner que ele foi promovido a sargento e fica intrigado com sua reação indiferente. Stransky também descobre que seu ajudante, o tenente Triebig, é um homossexual enrustido quando o vê acariciando o rosto de um rapaz que acaba de se alistar. Enquanto espera por um ataque antecipado, Steiner liberta o menino russo, que acaba sendo morto por engano pelas tropas soviéticas. Stransky se recolhe em seu paiol, enquanto o tenente Meyer, respeitado líder da companhia de Steiner, é morto enquanto comandava um bem-sucedido contra-ataque. Steiner é ferido na mesma batalha ao tentar resgatar um soldado alemão e é enviado a um hospital militar. Lá, ele é assombrado pelos rostos dos homens mortos e do menino e desenvolve laços amorosos com sua enfermeira. Depois de se recuperar, Steiner tem a opção de voltar para casa, mas decide retornar ao campo de batalha. Quando chega, é informado que Stransky relatou às autoridades que ele liderou o contra-ataque bem-sucedido, e não Meyer, e que ele foi indicado para receber a Cruz de Ferro. Stransky nomeia como testemunhas Triebig (chantageando-o com a sua homossexualidade) e o próprio Steiner. Stransky tenta convencer Steiner a corroborar sua história, com a promessa de cuidar dele após a guerra.

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Empresa produtora: EMI Films Primeira exibição: Japão, 10 de junho de 1978 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: B. W. L. Norton Produção: Robert M. Sherman Produção executiva: Michael Deeley e Barry Spikings Direção de fotografia: Harry Stradling Jr. Montagem: Garth Craven e John Wright Direção de arte: Fernando Carrere Música: Chip Davis Elenco: Kris Kristofferson, Ali MacGraw, Ernest Borgnine, Burt Young, Madge Sinclair, Franklyn Ajaye, Brian Davies, Seymour Cassel, Cassie Yates, Walter Kelley, J. D. Kane

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Comboio

Convoy

EUA/Reino Unido, 1978, Cor, 105 min

O caminhoneiro Martin Penwald – também conhecido pelo apelido Rubber Duck – está cruzando o deserto do Arizona na companhia de seus companheiros, também caminhoneiros, Pig Pen e Spider Mike. É quando o grupo cai numa armadilha do inescrupuloso xerife Lyle “Cottonmouth”Wallace, que se utiliza de uma preciosa ferramenta de comunicação no mundo dos caminhões: o rádio cidadão. Rubber Duck e Cottonmouth têm um antigo histórico de rivalidade. Mais tarde, quando esse embate se transforma em um confronto físico, Cottonmouth ameaça a vida de Spider Mike, um homem que só quer chegar em casa e reencontrar sua esposa grávida. Rubber Duck e os outros caminhoneiros envolvidos, incluindo Spider Mike, Pig Pen e Widow Woman, decidem fugir para o Novo México a fim de evitar que sejam processados. Junta-se ao grupo a jovem Melissa, uma bela fotógrafa que só queria uma carona até o aeroporto. Como a notícia do que aconteceu se espalha pelas ondas de rádio, outros caminhoneiros se juntam ao comboio em uma demonstração de apoio. Cottonmouth consegue a ajuda de outros agentes da lei em todo o sudoeste, que logo descobrem que parar Rubber Duck não será assim tão fácil, já que eles não podem atirar em seu caminhão devido a seu carregamento altamente explosivo. À medida que o impasse se agrava, o governador do Novo México, Jerry Haskins, se junta à briga, pensando em capitalizar em cima do forte apoio popular que os caminhoneiros recebem.

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© Foto: Divulgação

Empresa produtora: Osterman Weekend Associates Primeira exibição: EUA, 14 de outubro de 1983 Direção: Sam Peckinpah Roteiro: Ian Masters e Alan Sharp Produção: Peter S. Davis e William N. Panzer Produção executiva: Guy Collins, Larry Jones, Michael Timothy Murphy e Marc W. Zavat Direção de fotografia: John Coquillon Montagem: Edward Abroms e David Rawlins Direção de arte: Robb Wilson King Música: Lalo Schifrin Elenco: Rutger Hauer, John Hurt, Craig T. Nelson, Dennis Hopper, Chris Sarandon, Meg Foster, Helen Shaver, Cassie Yates, Sandy McPeak, Christopher Starr, Burt Lancaster, Maxwell Danforth, Cheryl Carter Único filme de Sam Peckinpah não exibido nos cinemas brasileiros. O título nacional é do lançamento em vídeo em 1987.

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O casal Osterman The Osterman Weekend EUA, 1983, Cor, 103 min)

Maxwell Danforth, diretor da CIA, assiste a uma gravação do agente Laurence Fassett e sua esposa fazendo amor. Quando Fassett vai tomar um banho, dois assassinos entram no quarto e matam sua esposa, segurando-a e injetando veneno em sua narina com uma seringa. A mulher era inocente, sacrificada por Danforth como um dano colateral. Fassett, sem saber do envolvimento de seu patrão, fica transtornado de dor e raiva e vai atrás dos assassinos, descobrindo uma rede de espionagem soviética conhecida como Omega. Fassett se reúne com o diretor e diz que quer trazer alguns dos agentes da Omega para o lado do Ocidente. Ele tem a oportunidade perfeita em John Tanner, um controverso jornalista televisivo, altamente crítico dos abusos de poder do governo. Fassett explica que os amigos mais próximos de Tanner são agentes Omega. Ele acredita que o jornalista poderia convencer os espiões soviéticos a desertar. Como prova, ele oferece um vídeo de amigos de Tanner discutindo questões financeiras com um homem russo, que Fassett identifica como agente da KGB. Os espiões são Bernard Osterman, um produtor de televisão, e dois outros: Richard Tremayne, um cirurgião plástico, e Joseph Cardone, um negociante da bolsa de valores.Tanner concorda, mas com a condição de que alguém da CIA apareça como convidado em seu programa. Danforth aceita a condição. Tanner pede que sua esposa viaje com seu filho no fim de semana seguinte, pois não quer envolvê-los no que está para acontecer. Quando Tanner está levando sua família ao aeroporto, o carro é emboscado e a mulher e o menino são sequestrados. Com a intervenção de Fassett, eles são resgatados sem ferimentos e o sequestrador é morto a tiros. Nesse meio tempo, a casa de Tanner foi coberta por extenso equipamento de vídeo, para que Fassett possa reunir mais provas.

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Meu ódio será sua herança: um álbum em montagem Wild Bunch: An Album In Montage EUA, 1996, Cor/P&B, 34 min Empresa produtora: Tyrus Entertainment Direção e montagem: Paul Seydor Produção: Nick Redman e Paul Seydor

Este documentário nasceu a partir da descoberta de 72 minutos de imagens, em 16 mm, sem som e em preto e branco, de Sam Peckinpah e sua equipe em locação no norte do México durante as filmagens de Meu ódio será sua herança. O crítico Todd McCarthy descreveu a descoberta como “um documento único e completamente inesperado sobre a realização de uma das obras fundamentais do cinema moderno”. Michael Sragow escreveu que o documentário é “uma maravilhosa introdução ao filme de Peckinpah, uma obra radicalmente detalhista em sua reconstrução histórica sobre bandidos americanos no México revolucionário – uma obra-prima que é parte balé em ritmo de tiros, parte réquiem para a amizade no Velho Oeste, e parte explosão existencial”.

© Warner Brothers

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© Warner Brothers

Uma simples história de aventura: Sam Peckinpah, México e Meu ódio será sua herança A Simple Adventure Story: Sam Peckinpah, Mexico and The Wild Bunch EUA, 2005, Cor, 24 min Direção e roteiro: Nick Redman Empresa produtora: Warner Bros. Produção: Jonathan Redman, Nick Redman e Vince Stancarone Direção de fotografia: Jonathan Redman Montagem:Vince Stancarone

Concebido como uma sequência de Meu ódio será sua herança: um álbum em montagem, este filme revela uma outra descoberta notável nos cofres da Warner Bros., um tesouro em Technicolor e Techniscope: cenas nunca antes vistas das filmagens de Meu ódio será sua herança no norte do México. O filme alterna este material raro com imagens de uma viagem às locações originais, feita pela equipe em companhia da filha de Sam Peckinpah, Lupita, em abril de 2004. O filme mostra o efeito que uma obra de arte pode ter quando atinge em cheio o coração de pessoas em idade impressionável, com suas lembranças deixando marcas por toda a vida.

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Autores Gérard Camy – Historiador, crítico e professor de cinema, presidente da Cannes Cinéma, organização que promove eventos naquela cidade francesa. Julie Kirgo – Escritora e roteirista, com especial interesse em música de cinema, redigiu notas para incontáveis encartes de CDs, assim como os ensaios que acompanham todas as edições em DVD e Blu-ray do selo Twilight Time. Contribui frequentemente com comentários de áudio para edições especiais de filmes em DVD e Blu-ray. Nick Redman – Um dos principais produtores de música de cinema de Hollywood, além de premiado documentarista. Foi indicado ao Oscar como produtor do documentário Meu ódio será sua herança: um álbum em montagem (1996) e escreveu, produziu e dirigiu A Turning of the Earth: John Ford, John Wayne and The Searchers (1998), premiado em vários festivais. Em 2007, produziu e dirigiu Becoming John Ford, documentário cuja estreia se deu no Festival de Veneza. Como consultor da divisão de clássicos da Fox Music Group, Redman desenvolveu e supervisiona o mais completo trabalho de restauração de música de cinema já empreendido em Hollywood. Seu nome aparece como produtor em mais de 500 CDs de trilhas sonoras. Historiador de cinema renomado, Redman contribuiu com comentários de áudio para dezenas de DVDs e Blu-rays. Como produtor e diretor criou, também, documentários para numerosos DVDs, incluindo a coleção Sam Peckinpah’s Legendary Westerns, escolhido pela revista Entertainment Weekly como o melhor DVD de 2006. Em 2011, criou o selo independente Twilight Time, destinado inicialmente a lançar 100 títulos dos acervos da Twentieth Century Fox e Columbia/Sony em edições limitadas em DVD e Blu-ray. O sucesso da empreitada fez com que a Twilight Time aumentasse consideravelmente o número de seus lançamentos em 2014, adicionando filmes da MGM ao seu catálogo. Paul Seydor – Professor universitário e montador de cinema, autor do livro Peckinpah: The Western Films (posteriormente expandido e republicado como Peckinpah: The Western Films - A Reconsideration). Escreveu, dirigiu e montou Meu ódio será sua herança: um álbum em montagem (1996), indicado ao Oscar de documentário de curta-metragem. Em 2005 preparou uma montagem especial de Pat Garrett & Billy the Kid para edição em DVD. Cordell Strug – Pastor Luterano, estudou filosofia na Purdue University.

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Críticas dos filmes O HOMEM QUE EU DEVIA ODIAR Valério Andrade, Correio da Manhã, 15 de setembro de 1962 .................................... 170 Luiz Carlos Merten, O Estado de São Paulo, 8 de junho de 1991 ............................... 171 PISTOLEIROS DO ENTARDECER Claudio Mello e Souza, Jornal do Brasil, 6 de março de 1963 .................................... 174 G. & R. Santos Pereira, Diário Carioca, 1º de março de 1963 .................................... 174 Sérgio Augusto, Correio da Manhã, 6 de março de 1963 ............................................ 175 JURAMENTO DE VINGANÇA Antonio Moniz Vianna, Correio da Manhã, 18 de janeiro de 1966 ............................. 178 Alex Viany, Última Hora, 5 de janeiro de 1966 .......................................................... 178 Fernando Ferreira, O Globo, 30 de dezembro de 1965 ............................................. 179 Paulo Perdigão, Diário de Notícias, 4 de janeiro de 1966 ........................................... 179 A MORTE NÃO MANDA RECADO Ida Laura, O Estado de São Paulo, 26 de março de 1971 ............................................ 184 Ely Azeredo, Jornal do Brasil, 8 de abril de 1971 ........................................................ 184 José Carlos Monteiro, O Globo, 8 de abril de 1971 ................................................... 185 SOB O DOMÍNIO DO MEDO Pola Vartuck, O Estado de São Paulo, 13 de maio de 1972 ......................................... 188 Paulo Perdigão, Correio da Manhã, 1º de setembro de 1972 ....................................... 188 Fernando Ferreira, O Globo, 30 de agosto de 1972 .................................................. 189 Ely Azeredo, Jornal do Brasil, 31 de agosto de 1972 ................................................... 189 DEZ SEGUNDOS DE PERIGO José Carlos Monteiro, O Globo, 25 de abril de 1973 ................................................. 192 Pola Vartuck, O Estado de São Paulo, 16 de março de 1973 ........................................ 193 OS IMPLACÁVEIS Pola Vartuck, O Estado de São Paulo, 26 de setembro de 1973 ................................... 196 Ely Azeredo, Jornal do Brasil, 11 de julho de 1973 ..................................................... 197 PAT GARRETT & BILLY THE KID Fernando Ferreira, O Globo, 30 de novembro de 1974 .............................................. 201 Ely Azeredo, Jornal do Brasil, 04 de dezembro de 1974 .............................................. 200 TRAGAM-ME A CABEÇA DE ALFREDO GARCIA Fernando Ferreira, O Globo, 13 de agosto de 1975 ................................................... 204 Ely Azeredo, Jornal do Brasil, 14 de agosto de 1975 ................................................... 205 ELITE DE ASSASSINOS Salvyano Cavalcanti de Paiva, O Globo, 4 de agosto de 1976 .................................... 208 Tom Figueiredo, O Estado de São Paulo, 2 de setembro de 1976 ............................... 209 CRUZ DE FERRO Miriam Alencar, Jornal do Brasil, 14 de abril de 1978 ................................................ 212 Fernando Ferreira, O Globo, 12 de abril de 1978 ..................................................... 213 COMBOIO Miguel Pereira, O Globo, 15 de novembro de 1978 .................................................. 216 Flávio R. Tambellini, Jornal do Brasil, 17 de novembro de 1978 ................................. 216 Pola Vartuck, O Estado de São Paulo, 12 de dezembro de 1978 .................................. 217


Créditos dos textos

Entrevista da Playboy (Sam Peckinpah), agosto 1972. Autor:William Murray. Pu-

blicada em: The Playboy Interview: Men of Letters, Playboy Enterprises, 2012. Aurora e crepúsculo (Dawn and Dusk). Autor: Gérard Camy. Publicado em: Peckinpah Today: New Essays on the Films of Sam Peckinpah, Board of Trustees, Southern Illinois University, 2012. Juramento de vingança (Major Dundee). Autora: Julie Kirgo, 2013. A morte não manda recado (The Ballad of Cable Hogue).Autor: Nick Redman, 2002. Sob o domínio do medo (The Straw Dogs). Autor: Nick Redman, 2010. “Sam era uma mulher”: um argumento contra a misoginia de Sam Peckinpah (“Sam Was a Woman”: Arguing Against the Misogyny of Sam Peckinpah). Autora: Julie Kirgo. Inédito, primeira publicação neste catálogo. Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia). Autora: Julie Kirgo, 2014. A morte autêntica e a controversa vida após a morte de Pat Garrett & Billy the Kid: as várias versões do último faroeste de Peckinpah (The Authentic Death and Con-

tentious Afterlife of Pat Garrett and Billy the Kid: The Several Versions of Peckinpah’s Last Western). Autor: Paul Seydor. Publicado em: Peckinpah Today: New Essays on the Films of Sam Peckinpah, Board of Trustees, Southern Illinois University, 2012. Esforço humano, batalha humana: Sam Peckinpah e a jornada da alma (Human Striving, Human Strife: Sam Peckinpah and the Journey of the Soul). Autor: Cordell Strug. Publicado em: Peckinpah Today: New Essays on the Films of Sam Peckinpah, Board of Trustees, Southern Illinois University, 2012.


SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO

Administração Regional no Estado de São Paulo PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDÊNCIAS TÉCNICO-SOCIAL Joel Naimayer Padula COMUNICAÇÃO SOCIAL Ivan Paulo Giannini ADMINISTRAÇÃO Luiz Deoclécio Massaro Galina ASSESSORIA TÉCNICA E DE PLANEJAMENTO Sérgio José Battistelli GERÊNCIAS AÇÃO CULTURAL Rosana Paulo da Cunha ADJUNTA Kelly Adriano ASSISTENTE Rodrigo Gerace ARTES GRÁFICAS Hélcio Magalhães ADJUNTA Karina C. L. Musumeci ASSISTENTES Rogério Ianelli e Gabriela Borsoi DIFUSÃO E PROMOÇÃO Marcos Carvalho ADJUNTO Fernando Fialho ESTUDOS E DESENVOLVIMENTO Marta Colabone ADJUNTO Iã Paulo Ribeiro CINESESC GERENTE Gilson Packer ADJUNTA Simone Yunes COORDENADORES Maria Ap. O. Tavares Leopoldo, Renata Wagner, Solange Nascimento EQUIPE Kátia Caliendo, Amanda Zacarkim,Viviane Cardoso


RETROSPECTIVA SAM PECKINPAH PRODUTORA Zipper Produções IDEALIZAÇÃO Ilda Santiago, Sérgio Leemann CURADORIA Sérgio Leemann PRODUÇÃO EXECUTIVA Arndt Roskens COORDENAÇÃO GERAL Gustavo Scofano, Arndt Roskens CONSULTORIA Nick Redman Julie Kirgo PRODUÇÃO LOCAL Renata da Costa DESIGN E COORDENAÇÃO GRÁFICA Cristiano Terto ASSISTENTE DE DESIGN Daniel Araújo EDIÇÃO DO CATÁLOGO Sérgio Leemann TRADUÇÃO DE TEXTOS João Cândido Zacharias, Rachel Ades, Sérgio Leemann SINOPSES João Cândido Zacharias ARQUIVO CRÍTICAS Hernani Heffner / Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro REVISÃO DE TEXTOS Rachel Ades



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