Revista E | junho de 2024 nº 12 | ano 30
Efeitos extremos
Como as mudanças climáticas espelham desigualdades sociais
Lélia Gonzalez
A inestimável contribuição da pensadora para a luta antirracista
Foco nas infâncias
Beth Carmona reflete sobre produção audiovisual para crianças
Rita von Hunty
Drag queen usa descontração para ensinar sobre temas sociais
00351
6–16 de junho 2024
A quinta edição do Festival reúne músicos do Brasil, Bolívia, Holanda, Inglaterra, Argentina, Suécia e Estados Unidos, com elenco diverso e programas originais interpretados por cantores e instrumentistas.
26 concertos, sendo 1 ópera infantojuvenil + Seminário • Bate-papo • Palestra Vivência para crianças
Nas Unidades: Bom Retiro, Consolação, Jundiaí, Sorocaba e Centro de Pesquisa e Formação.
Curadoria
Claudia Toni, Cristian Budu e Ricardo Ballestero
Ingressos à venda
sescsp.org.br/ musicadecamara
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Legendas Acessibilidade
Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.
CAPA: Obra inédita Dança da Fartura (2024), da artista visual Aline Bispo, aplicada em pintura no reservatório de água do Sesc Campo Limpo. Conhecida pela exposição de sua arte em espaços urbanos, especialmente em empenas de prédios, Aline Bispo retorna ao território onde nasceu e viveu para desenvolver esse projeto que se inspira no poema homônimo de Reginaldo Prandi, presente no livro Mitologia dos Orixás (2020).
Crédito: Aline Bispo
Transformar e permanecer
Ao longo de quase oito décadas de existência, o Sesc – Serviço Social do Comércio vem participando de uma sociedade em profundas e constantes transformações. Se em 1946, ano de criação da entidade – por iniciativa do empresariado do comércio de bens, serviços e turismo –, o Brasil dava largos passos no processo de urbanização, hoje temos uma população que vive majoritariamente em cidades, impulsionadas pelo ritmo de uma intensa e variada oferta de produtos e serviços.
A essência da atuação da entidade, no entanto, segue inalterada: promover o bem-estar dos trabalhadores desse setor, de seus familiares e da comunidade como um todo.
Instalado em todo o estado de São Paulo, com seus centros culturais e esportivos, o Sesc realiza, hoje, uma ação permanente de promoção da qualidade de vida e do desenvolvimento interpessoal por meio de programações nos campos do lazer, esportes, cultura, turismo social, saúde e alimentação. Além disso, atua na promoção da saúde, dispondo, por exemplo, de serviço odontológico por meio de 147 consultórios equipados com tecnologia de ponta. Segue, assim, atuante na vida social do estado de São Paulo de modo relevante, adaptando-se às mudanças socioculturais para se manter presente na vida de todas as pessoas.
Abram Szajman
Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo
Somos os protagonistas da mudança
A temática ambiental está cada vez mais presente no debate público, denotando a urgência e a importância do assunto como um dos paradigmas contemporâneos. As notáveis mudanças climáticas impactam a vida cotidiana, em especial nos grandes centros urbanos, onde as consequências são sentidas com mais frequência, e de maneira catastrófica, a exemplo do ocorrido recentemente no estado do Rio Grande do Sul.
Se as alterações no clima são resultantes da ação humana, é também por interferência das pessoas que surgem iniciativas em resposta a esses desastres, a exemplo da rede de solidariedade que foi mobilizada, em âmbito nacional, para amparar e atender as necessidades dos que foram diretamente prejudicados pelas fortes chuvas.
É também por meio da ação coletiva, organizada e intencional, que novos caminhos são trilhados, aproximando-nos de modelos mais sustentáveis e mudando a rota das nossas atitudes. Cabe a nós, enquanto comunidade, pensar, planejar, assumir e cobrar que a sociedade, como um todo, compreenda o progresso e o desenvolvimento a partir de parâmetros de preservação ambiental, visando o equilíbrio do planeta. Desde nossas escolhas individuais até a elaboração de políticas públicas, somos todos protagonistas na busca por soluções.
Neste mês de junho, em que se celebra, no dia 5, o Dia Mundial do Meio Ambiente, a Revista E nos convida, em reportagem, a refletir sobre esse tema central na vida de todos nós. Boa leitura!
Luiz Deoclecio Massaro Galina Diretor do Sesc São Paulo
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC
Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho
CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO
Presidente: Abram Abe Szajman
Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina
Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.
Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.
REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL
Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano
Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho
CONSELHO EDITORIAL | Revista E Ademar Vieira Rodrigues Junior, Adriana Martins Dias, Alan Dias Fernandes, Alessandra Gonçalves da Silva, Aline Braguim Galcino, Aline Carvalho Silva, Aline Ribenboim, Ana Carolina Rodrigues, Ana Lúcia de la Veja, Ana Paula Martins Vicentin, Ana Paula Verissimo Souza, André Luiz Santos Silva, Andrea de Oliveira Rodrigues, Andrea Toledo Nascimento, Andreia do Vale Rufato, Andressa Kelly Ribeiro Ivo, Angela Vieira Vasconcelos, Angelo José Domingues de Moraes, Ariane Magalhães Campos, Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves, Barbara Duarte Camilotti, Betina de Tella, Bruna Tibolla, Camile Lopes Magalhães, Carolina Balza, Caroline Figueira Zeferino, Caue Colodro Botelho, Chiara Regina Peixe, Christi Lafalce, Cinthya de Rezende Martins, Claudia Regina de Souza, Cleber de Lima Franco Tasquin, Clovis Ribeiro de Carvalho, Corina de Assis Maria, Cristiane Toshie Komesu, Cristina Berti Ribeiro, Danielle Simas, Danny Abensur, Denise Ramos da Fonseca, Diana Gama Santos, Diego Vinicius Teixeira Ferreira, Doracy Feliciano Teixeira, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Elmo Sellitti Rangel, Eloá de Paula Cipriano, Emiliana Pinheiro Rodrigues, Enio Rodrigo Barbosa Silva, Felipe Campagna de Gaspari, Fernanda Gehrke, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Fernando Amodeo Tuacek, Flavia Teixeira S Coelho, Flavio Aquistapace Martins, Gabriela Camargo das Graças, Gabriela Carraro Dias, Gabriela Grande Amorim, Gislene Lopes Oliveira, Guilherme Luiz de Carvalho Souza, Indiara Fernanda da Cunha Duarte, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Ivy Granata Delalibera, Jade Stella Martins, Jane Eyre Piego, Joana Carolina Teixeira Mota, João Paulo Leite Guadanucci, José Gonçalves da Silva Junior, José Mauricio Rodrigues Lima, Juci Fernandes de Oliveira, Jucimara Serra, Juliana Neves dos Santos, Juliana Viana Barbosa, Juranir Maria de Oliveira, Jussara das Neves Vilaça, Karen Cristine Pimentel dos Santos, Karina Alves de Oliveira, Karina Solidade de Oliveira, Kelly dos Santos, Larissa Brugnetti Simione, Lirian dos Santos Luiz, Luana Ligero Greve, Luciano Domingos da Silva, Madalice Alves Jorge, Marcel Antonio Verrumo, Marcos Afonso Schiavon Falsier, Maria Emilia Carmineti, Maria Luisa Lima Barbosa, Maria Lygia R. Marques de Oliveira, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Mariana Lins Prado, Marina Borges Barroso, Marina Reis, Mauro Marçal do Carmo, Mayra Claudia Gregorio dos Santos, Mirele Carolina Ribeiro Correa, Mirella Ghiraldi de Castro, Monique Mendonça dos Santos, Naiara Candido Sacilotto, Natalia de Souza Freitas, Natalia Lemes Araujo, Nilton Andrade Bergamini, Olivia Tamie Botosso Okasima, Pablo Perez Sanches, Patricia Maciel da Silva, Patricia Moraes Piazzo, Paulo H Souza Cavalcante, Priscila dos Santos Dias, Rachel D Ipolitto de Oliveira Scire, Rafael Lima Peixoto, Rafaela Ometto Berto, Renata Barros da Silva, Renata Crivoi de Castro, Ricardo Carrero da Costa, Rogeria Gonçalves da Cunha Vallim, Ronaldo Domingues de Araujo, Rosana Abrunhosa de Souza, Sandra Ribeiro Alves, Sara Maria da Silva, Sheila de Sá Budney, Silvia Aguilhar da Cruz, Sonoe Juliana Ono Fonseca, Stephany Tiveron Guerra, Talita Ferreira dos Santos, Tamara Demuner, Tamy de Souza Ferigatto, Tatiana Fujimori, Tatiana Fukuhara Borges, Teresa Maria da Ponte Gutierrez, Thais Cristina Kruse, Thais Ferreira Rodrigues, Thiago da Silva Costa, Thiago Fabril de Oliveira, Tina Carvalho da Silva, Vanessa Helena Guilherme Machado, Vinicius da Silva Souza, Vinicius Pereira de Oliveira, Viviane Alves Ramos Lourenço, Vivianne de Castro, Willian Galvão de Souza.
Coordenação-Geral: Ricardo Gentil
Coordenação-Executiva: Lígia Moreira Moreli e Silvio Basilio
Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira, Matheus Lopes Quirino, Maria Júlia Lledó • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Edmar Júnior, Gabriela Amorim, Jefferson Santanielo, José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Alexandre Amaral, César Albornoz, Elisa Riemer, Ian Herman, Leandro Vicente e Pablo Sanches • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Lourdes Teixeira Benedan • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca
Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)
A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social
Distribuição gratuita Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios
Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp. org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).
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Entre os destaques da programação de junho, o Festival Sesc de Música de Câmara reúne atrações brasileiras e internacionais em quatro unidades do Sesc São Paulo
Referência em produção audiovisual infantojuvenil, Beth Carmona analisa a atual programação dedicada a esse público nas telas e na internet
Mudanças climáticas refletem e intensificam desigualdades sociais, raciais, étnicas, de gênero e geracionais, mobilizando iniciativas de conscientização e mitigação
dossiê entrevista sustentabilidade
A produção de conhecimento, atuações e presença política de Lélia Gonzalez, uma das principais pensadoras do país
O inventivo alfabeto sonoro-visual de Hermeto Pascoal extrapola o mundo dos sons e se estende para o campo das artes plásticas, habitando chapéus e outros objetos Entre efeitos especiais, desenhos e personagens fantásticos, o universo geek é um espaço de fantasia, lazer, sociabilização, pertencimento e aprendizagem
gráfica juventudes
bio
p.54 p.11 p.16 p.24 p.34 p.40
SUMÁRIO
Instituto Memorial Lélia GonzalezIMELG (Bio); Fernando Carvalho (Juventudes)
Rita von Hunty
Artigos de Michel Carvalho da Silva e Luís Mauro
Sá Martino alertam para as consequências da infoxicação, que se refere ao consumo excessivo de informações na era digital
Cristhiano Aguiar (conto) Amanda Miranda (ilustração)
em pauta encontros inéditos
Músico, pesquisador e professor, Tiganá Santana dedica-se à poesia de sonoridades que atravessam ancestralidades
Conheça cinco novos moradores de parques e áreas de conservação da cidade de São Paulo, reconhecidos e identificados pelo Inventário da Fauna Silvestre
Carlos Eduardo de Souza Lobo
depoimento almanaque P.S. p.66 p.70 p.74 p.78 p.82
p.60
Leo Fagherazzi (Encontros); Adriana Vichi (Depoimento)
Em cartaz no Sesc Vila Mariana até dia 16/6, o espetáculo Primeiro Hamlet, com direção de Gabriel Villela, acompanha a trama de assassinato de um irmão por outro motivado pela ambição pelo poder. A montagem é baseada no clássico do inglês William Shakespeare (1564-1616), considerada uma das tragédias mais encenadas do ocidente.
Matheus José Maria 9 | e
em cena
Cuidado em Comunidade 11 – 16 junho 2024
A Campanha promove reflexões sobre questões ligadas ao Cuidado como forma de prevenção da violência.
Bate-Papos | Cursos | Oficinas | Intervenções Artísticas
Nas unidades da capital, grande São Paulo, interior e litoral.
sescsp.org.br/ contraviolencia
DOSSIÊ
Música de concerto para celebrar
De 6 a 16 de junho, quinta edição do Festival Sesc de Música de Câmara reúne apresentações de artistas nacionais e internacionais em quatro unidades do Sesc São Paulo
Caracterizada por apresentar um repertório clássico executado em formações de pequenos grupos de instrumentos ou vozes, a música de câmara é celebrada pelo Sesc São Paulo, neste mês, na quinta edição do Festival Sesc de Música de Câmara. De 6 a 16/6, o evento oferece concertos e atividades educativas para públicos diversos, incluindo crianças, com uma programação marcada por estreias de conjuntos no Brasil, obras exclusivas e arranjos inéditos.
Com curadoria de Claudia Toni, Cristian Budu e Ricardo Ballestero, a edição deste ano contempla a diversidade na escolha de compositores e intérpretes da Argentina, Bolívia, Brasil, Estados Unidos, Holanda, Inglaterra e Suécia, incluindo jovens músicos. Ao todo, 26 concertos serão apresentados em quatro unidades do SescBom Retiro, Consolação, Jundiaí e Sorocaba -, além de apresentações gratuitas na Catedral Evangélica de São Paulo e Paróquia Nossa Senhora da Paz, ambas na capital, e na Catedral Nossa Senhora do Desterro, em Jundiaí. Também serão realizadas atividades formativas voltadas à reflexão sobre os modos de pensar, criar e executar música de concerto.
Para Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo, a realização de um projeto como esse configura o compromisso
La Sociedad Boliviana de Música de Cámara é uma das atrações do festival neste ano.
da instituição para a ampliação das pesquisas, referências e especulações sobre os modos de se conceber, hoje, esse tipo de música. "O festival comparece como segmento afim aos valores cultivados pelo Sesc, sobretudo no quesito da democratização do acesso ao universo dos concertos instrumentais e vocais, tanto do ponto de vista da recepção quanto da perspectiva do fazer.”
Entre formações com trio de violino, violoncelo e violão, além
de conjuntos de câmara com solistas e coro, há também uma ópera para soprano e percussão baseada em um conto dos Irmãos Grimm escrita especialmente para o público infantojuvenil e famílias. Assim, o festival convida o público a se aproximar de um repertório renovado, com temas da contemporaneidade, e prestigiar, ainda, a produção camerística atual.
Consulte informações em sescsp.org.br/musicadecamara
Facundo Dasio / Hidalgo Tours
11 | e
DOSSIÊ
Agir para prevenir
Celebrado em 24/6, o Dia Mundial de Prevenção de Quedas em Pessoas Idosas inspira o Sesc São Paulo a realizar, neste mês, ações gratuitas que destacam a importância de cuidados integrados e de atenção primária para sensibilizar e evitar a ocorrência de quedas em pessoas acima de 60 anos de idade. Em consonância com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Década do Envelhecimento Saudável (2021-2030), neste ano a programação da campanha foca no tema “Saúde mental e suas
relações com as quedas de pessoas idosas”. Entre as atividades, estão a aula aberta Coordenação, interação e motivação, dia 24/6, no Sesc Carmo; e o encontro Saúde mental e prevenção de quedas, dia 27/6, no Sesc Itaquera, com a participação de Sérgio Paschoal, Cecilia Galetti e Lilian Liang. A campanha conta com a parceria da Secretaria de Estado da Saúde, Secretaria Municipal de Esporte e Lazer de São Paulo e o Centro de Referência do Idoso – CRI Norte. Participe: sescsp.org.br/prevencaodequedas
As Edições Sesc São Paulo marcam presença n'A
LITERATURA A CÉU ABERTO
Um festival ao ar livre, que tem como pilares a bibliodiversidade e o pluralismo, e que ocupa a frente do Estádio do Pacaembu com uma programação diversificada. Essa é A Feira do Livro, que acontece de 29/6 a 7/7, e conta com a presença de mais de cem instituições ligadas ao livro e à leitura. Uma delas é o Sesc
São Paulo que, pelas Edições Sesc, marca presença com boa parte do seu catálogo. Grandes nomes da literatura nacional e estrangeira, como Maria Adelaide Amaral, Natalia Timerman, Jamaica Kincaid, Stênio Gardel, Vera Iaconelli, dentre outros, participam de bate-papos com o público em dois palcos diferentes.
A programação também conta com oficinas e atividades para todas as idades, transformando A Feira em uma verdadeira aldeia literária. Com realização da Associação Quatro Cinco Um e da Maré Produções, a terceira edição do evento é gratuita e aberta ao público. Saiba mais em instagram.com/afeiradolivro
Feira do Livro, de 29/6 a 7/7, em frente ao Estádio do Pacaembu.
Matheus José Maria
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DOSSIÊ
ENCONTRO DE GIGANTES
A grande dama do teatro brasileiro sobe ao palco do Teatro Raul Cortez, no Sesc 14 Bis, pelo projeto Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir. Aos 94 anos, a premiada atriz dirige e apresenta uma leitura dramática de trechos da obra A Cerimônia do Adeus, na qual a filósofa feminista Simone de Beauvoir (1908-1986) narra seus anseios existencialistas durante os últimos anos da vida de seu
companheiro Jean-Paul Sartre (1905-1980). A trajetória de Fernanda com a obra de Beauvoir é uma oportunidade, segundo a atriz, para que o público tenha contato com “a paixão, a energia, a audácia e as contradições humanas de uma das pensadoras mais influentes do século 20”. As apresentações acontecem entre os dias 20/6 e 21/7, de quinta a domingo. Saiba mais em sescsp.org.br/14bis
Fernanda Montenegro sobe ao palco do Sesc 14 Bis com a leitura de uma obra que reflete sobre a finitude humana.
Depois do terceiro sinal
Variadas expressões das artes cênicas ocupam espaços do Sesc São Paulo neste mês. Na unidade de Mogi das Cruzes (SP), o projeto Um no mundo: Mostra de solos teatrais convida um elenco de artistas para interpretar monólogos que marcaram suas carreiras. Entre 28 e 30/6, histórias sobre solidão, poder e transgeneridade são interpretadas nos espetáculos gratuitos: Parto Pavilhão, com Aysha Nascimento e direção de Naruna Costa (28/6, às 20h); Hamlet Cancelado, com atuação e direção de Vinicius Piedade (29/6, às 19h), entre outros. Após cada apresentação, haverá bate-papo com artistas e público, mediado pela diretora e pesquisadora Tiche Vianna. Já no Sesc Pinheiros, as atrizes Silvia Buarque e Guida Viana encenam a estreia de A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe, dirigida por Leonardo Netto, e que fica em cartaz entre 20/6 e 27/7, de quinta a sábado, sempre às 20h. Saiba mais sobre os espetáculos em sescsp.org.br/ mogidascruzes e sescsp.org.br/pinheiros
Retratos do real
Ao registrar em imagens os dramas, mobilizações e anseios sociais, o cinema documentário torna-se um dos meios mais eficazes para que grupos e movimentos organizados se expressem e lutem por avanços. Neste mês, dois cursos celebram a potência social desse gênero. No Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, o documentarista e psicólogo Lucca Messer conduz o curso Desenvolvendo documentários de temáticas sociais, entre os dias 11/6 e 2/7 (terças, das 15h às 17h), no qual capacita, de forma introdutória, cineastas estreantes interessados em produzir filmes de temática social, com ênfase na pesquisa, direção, roteiro e distribuição. Já no Sesc Consolação, o curso O documentário como meio de mobilização e luta social propõe uma introdução a técnicas para a produção de obras documentais de impacto social. Quem conduz a ação formativa – entre os dias 13/6 e 4/7 (quintas, das 19h30 às 21h30) – é o antropólogo e documentarista Alexandre Kishimoto. Inscreva-se em sescsp. org.br/cpf e sescsp.org.br/consolacao
Trígonos Produções Culturais
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Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.
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Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).
A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.
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Ricardo Ferreira
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DEVOTOS, gravado em 2022 no Sesc Avenida Paulista. Formado em 1988 e ícone do punk rock e hardcore brasileiro, o grupo foi recentemente designado como Patrimônio Cultural Imaterial da cidade de Recife
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10.9.22
Olhar para as infâncias
Com mais de 30 anos de experiência no audiovisual infantojuvenil, Beth Carmona reflete sobre qualidade, educação midiática e investimentos em produções nacionais para TV, internet e cinema
POR LUNA D’ALAMA FOTOS ADRIANA VICHI
Nos anos 1980 e 1990, décadas em que a programação infantil da TV Cultura se destacou com produções prestigiadas, como Mundo da Lua, Rá-Tim-Bum, Castelo Rá-Tim-Bum, Cocoricó, entre outros, Beth Carmona exerceu as funções de gerente de programação e diretora geral da emissora paulista. Nos 12 anos em que trabalhou no canal público, a profissional – formada em rádio e televisão pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) – estabeleceu um conceito no qual cultura e educação caminhavam juntas dentro da programação, boa parte dela dedicada às crianças. Foi naquela época, também, que a TV Cultura estreou programas voltados aos públicos jovem e adulto, como Matéria-Prima (com Serginho Groisman) e Roda Viva, que está no ar até hoje.
Antes de sua passagem pelo canal, Beth Carmona acumulou experiências em rádio, no ambiente acadêmico – com pesquisas sobre a história do rádio e da televisão –, em sala de aula e em assessoria de imprensa. “Mudei da Rádio Cultura para a TV. E, de assessora que escrevia sobre a programação, comecei a fazer a programação”, conta a especialista.
Após sua saída da emissora, e com a expansão dos canais por assinatura, Beth foi convidada para trabalhar no grupo Discovery, em Miami (EUA), representando o Brasil numa equipe multicultural que atuou em canais como Discovery Kids e Animal Planet. Ao voltar para cá, foi contratada pelo Disney Channel. Ficou alguns meses no cargo, até assumir a presidência da TV Educativa (TVE), no Rio de Janeiro, mantida pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto. Em paralelo a isso, em 2002, Beth Carmona fundou o Midiativa – Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes. Inspirou-se em órgãos e referências mundiais que defendem a qualidade da programação audiovisual infantojuvenil. Hoje, o Midiativa promove
e | 16 entrevista
Considerada uma das maiores especialistas em programação audiovisual infantojuvenil no país, Beth Carmona fundou e está à frente do Midiativa – Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes.
o festival comKids, em parceria com o Sesc São Paulo, o Instituto Goethe, o Itaú Cultural e Centros Educacionais Unificados (CEUs). Nesta Entrevista, Beth Carmona fala sobre qualidade na cena audiovisual, educação midiática, produções latino-americanas e a necessidade de cotas e investimentos em obras nacionais para televisão, internet e cinema.
Depois do auge da programação infantil na TV Cultura, nos anos 1980 e 1990, como você avalia aquele momento do audiovisual infantojuvenil na TV aberta?
Aquele foi o momento certo, no qual a TV Cultura tinha condições muito propícias para que as coisas acontecessem.
Uma equipe competente, uma direção que entendia o papel da televisão, novas tecnologias, condições de produção, investimentos públicos com parcerias privadas. A gente conseguiu estabelecer um pensamento de qualidade, entendendo a programação infantil para diferentes faixas etárias, e para além das manhãs. Nessa época, a televisão por assinatura ainda estava começando no Brasil, e a TV Cultura se consolidou como uma alternativa para crianças e adolescentes, que ainda estavam desassistidos pela TV aberta. Claro que havia Xuxa, Manchete, Globo, mas tudo numa linha mais comercial, com desenhos animados comprados no exterior. A Cultura, por outro lado, apostou numa linha formativa, que trouxesse benefícios culturais e explorasse a curiosidade dos
pequenos. Uma TV mais preocupada com os cidadãos. Nos inspiramos em diferentes modelos internacionais, da Austrália, Japão, Estados Unidos, Canadá e de países da Europa. Queríamos representar o Brasil e a criatividade brasileira também no conteúdo, em aspectos regionais. A audiência foi, então, respondendo a essa programação, que atendeu também às necessidades dos pais. Mundo da Lua, por exemplo, chegou a dar 12 pontos no Ibope, segundo lugar no horário nobre. A Cultura acabou ocupando um espaço nacional, e tendo expressão inclusive no exterior, mesmo sendo uma emissora paulista. Foi uma efervescência, um período em que aprendemos muito.
Quais fatores fizeram a programação infantil praticamente desaparecer da TV aberta? É preciso analisar esse contexto com muito cuidado, porque não houve um único fator, mas vários. Em um primeiro momento, sem dúvida, foi o impacto da TV por assinatura. Hoje temos pelo menos 12 canais pagos que estão 24 horas dedicados exclusivamente às crianças. A concorrência ficou enorme, e a programação começou a ter nichos: para pré-escolares, para quem só queria ver desenhos animados, para meninas etc. Esses nichos fizeram parte também da evolução das tecnologias a partir dos anos 2000. Aquele momento coincidiu, ainda, com um ativismo saudável de vários institutos e grupos, culminando na Resolução 163/2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que passou a proibir propaganda direcionada diretamente para as crianças, do tipo: “Peça para a mamãe comprar”. A mensagem deveria ser destinada aos adultos. Esse tipo de legislação foi uma conquista, a gente aplaudiu, porque realmente havia um abuso. Como a TV aberta se sustenta comercialmente de publicidade, esse cenário reduziu a programação infantil nesses canais. Já no ambiente da TV a cabo, via satélite ou
fibra ótica, além dos anunciantes, há os assinantes. Mas, o reinado da televisão por assinatura também acabou em função da chegada do streaming, do desenvolvimento da internet e das múltiplas telas. Esse cenário transformou completamente o universo da comunicação e da produção dos canais de TV. Hoje as programações estão pulverizadas. Podemos acessar conteúdos onde e quando quisermos, seja em casa, no ônibus, na rua ou num centro cultural.
Falando do meio digital, como você avalia essa profusão de canais e de influenciadores no YouTube e em plataformas de streaming dedicadas a crianças e adolescentes?
As crianças que nascem hoje já têm outro tipo de interação com as telas e celulares. Elas dominam esses aparatos a partir de uma facilidade incrível. Para quem trabalha com audiovisual para o público infantil, portanto, há uma necessidade constante de atualização, porque as coisas têm mudado muito rapidamente, sobretudo nas últimas duas décadas. Dentro do streaming, há os canais estabelecidos e grandes grupos de comunicação, como Disney, Netflix, Amazon e Warner – que comprou o Discovery em 2022. Já no YouTube, existe a possibilidade de cada um ter o seu próprio canal, e foi aí que surgiram os youtubers e influenciadores infantis. Hoje há desde influenciadores adultos [como Luccas Neto, Brancoala e Ronaldo Azevedo Souza, o Gato Galáctico], até as próprias crianças com seus canais [como Maria Clara e JP, e Lucas Vasconcelos], muitas delas incentivadas ou acompanhadas pelos pais. Isso virou uma fonte de renda para diversas famílias. Alguns canais têm uma vida mais longa, mas muitos são efêmeros, começam e acabam rápido. A internet é um oceano, então, é difícil ser visto e reconhecido por milhões de pessoas. Por isso que ali vale tudo, não tem A qualidade hoje passa pelo conteúdo,
em
entrevista
pela estética, pelos jeitos de contar, pelo contexto, pela diversidade, pelas abordagens. E pela criança,
primeiro lugar, como protagonista.
Eu sempre acreditei que a criança tem que se ver na TV, na obra audiovisual. A criança brasileira precisa se enxergar e também ver o mundo, mas principalmente o que está ao seu redor, seus vizinhos.
regulamentação. Neste momento, em vários países, há uma discussão sobre a regulamentação do streaming e da internet, tanto de conteúdo para crianças quanto para adultos. O Brasil, infelizmente, está muito atrasado nessa questão, exposto a fake news e a conteúdos inapropriados.
E quais são os critérios e limites desejáveis para conteúdos infantojuvenis, seja na internet ou fora dela?
A internet se comporta como uma rua. Se você está na rua, tudo pode acontecer. Você conhece pessoas, se relaciona com elas, está exposto a riscos. No mundo virtual, você não sabe bem o que acontece do lado de lá. Temos, portanto, que nos educar digitalmente, midiaticamente, para saber também educar nossas crianças dentro desses limites. Toda a sociedade precisa de uma educação midiática para que os indivíduos não sejam roubados, abusados etc. Seja em qualquer tela ou aparato, num aplicativo, num jogo de videogame, num livro, num e-book, na TV ou no cinema, as crianças precisam saber o que estão assistindo. Se você tem filho/a(s), discuta isso com ele/a(s), converse, pergunte por que ele/a(s) gosta(m) daquilo, veja junto, jogue junto. Não adianta simplesmente proibi-los(as) de assistir ou jogar. Histórias audiovisuais também podem ajudar a promover conversas em família sobre os mais diferentes assuntos, como racismo, pedofilia, bullying, medo, educação sexual etc. Assim, será mais fácil debater com seu(s)/sua(s) filho(s), a partir de um momento de entretenimento.
O que pode ser considerada uma produção de qualidade voltada para o público infantil?
“Qualidade” é uma palavra muito subjetiva, por isso é tão difícil defini-la. Houve uma época em que qualidade se aplicava a muita coisa, como conceito. Há 20 anos, fizemos uma pesquisa no Midiativa para entender o que era qualidade no audiovisual e na televisão para pais
e filhos. Realizamos um estudo sério, financiado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em que levantamos dez pontos do que poderia significar qualidade em um conteúdo. Nesses “dez mandamentos” da qualidade foram citados: o conteúdo não ser apelativo, gerar curiosidade, ser atraente, confirmar valores, ter fantasia, gerar identificação, mostrar a realidade, despertar o senso crítico, incentivar a autoestima e preparar para a vida. Muitos dos itens mencionados ainda continuam válidos, embora tenha havido grandes mudanças no mundo contemporâneo, com diferentes questões que afligem ou são importantes para as infâncias neste momento. Digo infâncias, no plural, porque devemos considerar as crianças indígenas, afro-americanas, quilombolas, as que vivem no interior, no litoral, nas capitais, em comunidades nas florestas. As infâncias são muitas. Por isso, ao pensar na qualidade de um produto, precisamos observar a diversidade entre esses públicos, a representatividade e, também, a variedade de gêneros e técnicas. Falar de temas atuais da maneira correta, pôr as questões em contexto histórico. Por isso, o audiovisual é tão forte e tão potente. Você trabalha imagens, narrativas e emoções – as emoções nos impactam e, ao nos impactar, ensinam. Nos fazem ver as coisas de outra forma. Em resumo, a qualidade hoje passa por conteúdo, estética, jeitos de contar, contexto, diversidade, abordagens. E pela criança, em primeiro lugar, como protagonista.
De que forma o contato com esses programas audiovisuais ao longo da infância pode interferir na formação de uma identidade sociocultural? Eu sempre acreditei que a criança tem que se ver na TV, na obra audiovisual. A criança brasileira precisa se enxergar e também ver o mundo, mas principalmente o que está ao seu redor, seus vizinhos. A escola onde se passava Mundo da Lua, por exemplo, era uma unidade do Serviço
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Social da Indústria (Sesi). Nós, brasileiros, reconhecíamos aquela escola, não era um colégio norte-americano, com todos os seus estereótipos. Acho importante termos essa representatividade, principalmente do que está no nosso quintal e no dos nossos vizinhos latino-americanos. As crianças não são uma massa única, e não se pode dizer que as faixas etárias são estanques, que aos três anos todas vão se comportar de uma determinada maneira. O desenvolvimento infantil é dinâmico, e a evolução da humanidade acompanha esse dinamismo.
Você representa o pensamento latino-americano na Fundação Prix Jeunesse International, que trabalha globalmente pela excelência dos conteúdos infantis. Como avalia a produção audiovisual latina para crianças e adolescentes hoje?
É muito boa. Há histórias, projetos e produtos maravilhosos. O Brasil já ocupou um posto-chave, de cabeça da produção audiovisual latina para crianças e adolescentes, principalmente por causa da TV Cultura. Infelizmente, nosso país foi mudando, outras preocupações surgiram, a programação infantil passou a receber menos dinheiro e menos atenção, e retrocedemos. Por outro lado, em outros países da América Latina, talvez pelo impulso da própria TV Cultura, o cenário avançou. O canal argentino Pakapaka, por exemplo, é direcionado à infância e tem alto nível, com produções excelentes. Representa não só as crianças portenhas, nascidas em Buenos Aires, mas também as do interior, de norte a sul. Além disso, eles trabalham bem o conceito de edutainment, que é mesclar educação com entretenimento para ajudar na formação das crianças. O Pakapaka tem séries de animação e uma postura invejável, que serviu de modelo para muitos outros países latinos.
E que outros países são polos importantes na América Latina? Colômbia (Mi Señal e Eureka), Chile (NTV) e Cuba (Rede UNIAL). O Chile, inclusive, exporta diretores e animações, e tem um prêmio anual de fomento, que reconhece produções infantojuvenis. É um país para nos espelharmos. E Cuba, mesmo com toda a sua dificuldade, nunca parou. É um país com tradição no audiovisual. Somos uma rede, conversamos e trocamos formas de produzir, de pensar. É muito bacana saber que uma criança brasileira pode ver uma produção em que a protagonista seja uma criança argentina ou colombiana. Temos muito em comum: nossas cores, maneiras de viver, nossas culturas, nossa proximidade geográfica. O Canal Futura, por exemplo, exibe muita produção latino-americana atualmente.
Hoje o Brasil também produz diversos desenhos e séries nacionais bem populares entre as crianças, como Irmão do Jorel, O Show da Luna, Galinha Pintadinha, Mundo Bita, Peixonauta, Meu AmigãoZão e Detetives do Prédio Azul Estamos nos aprimorando nesse campo?
A Lei do Cabo (nº 8.977/1995) propiciou que parte do lucro vindo da programação de canais estrangeiros fosse direcionada à produção nacional. Assim, a produção audiovisual brasileira voltada ao público infantojuvenil cresceu, e é por isso que existem esses programas atualmente. Eles têm cumprido cota, na última década e meia, em canais como Cartoon Network e Discovery Kids. Foi por meio desse fomento, desse dinheiro, que houve um boom na animação brasileira. Eu, inclusive, participei do pitching [apresentação de um projeto a um canal de TV] do Irmão do Jorel para o Cartoon, há mais de uma década. Já O Show da Luna, feito pela produtora de animação brasileira Pinguim Content [que também produziu Tarsilinha, desenho inspirado na pintora Tarsila do Amaral], já está presente em mais de 120 países, com oito temporadas e mais de 200 episódios. Alguns da equipe começaram no Rá-Tim-Bum, da TV Cultura. É ciência pura.
Quais fatores, então, ainda impedem ou dificultam que o Brasil desponte como uma indústria do audiovisual destinada a crianças e adolescentes?
Nós temos excelentes roteiristas, produtores e diretores. O problema é que, para fazer audiovisual para crianças, até acertar, você precisa treinar muito, realizar muito. E, ao longo da nossa história, toda hora acontece alguma interrupção. Agora mesmo, por exemplo, os canais por assinatura atravessam um momento de crise, e eles também contribuíam com as produções nacionais, investiam dinheiro. Então, hoje ficou muito mais difícil emplacar uma produção brasileira em um canal por assinatura. O momento é outro, o número de assinantes caiu. O streaming chegou com tudo. Esses altos e baixos e essa descontinuidade atrapalham, interrompem projetos. Por isso é tão difícil profissionais independentes sobreviverem nesse meio. A indústria de animação no Brasil só não morre porque nossos animadores são muito bons e continuam sendo contratados em projetos do exterior, podendo trabalhar à distância. É preciso que os governos no Brasil tenham mais visão e reconheçam a importância das produções audiovisuais para crianças e adolescentes, do ponto de vista da educação e da formação cidadã.
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Seja exibido na plataforma que for, o audiovisual infantojuvenil merece mais atenção e investimentos, porque o retorno vem lá na frente, quando as crianças crescem
De que maneira festivais brasileiros, como o comKids, cumprem o papel de fomentar essas produções audiovisuais?
O comKids nasceu há mais de 15 anos, como um selo do Midiativa. Veio de uma herança chilena, o Festival Prix Jeunesse Iberoamericano, realizado na América Latina desde 2003, atualmente em São Paulo. Quando o Chile deixou de promover esse festival, eu o abracei, tinha acabado de sair da TV Cultura. O comKids forma produtores e, também, audiências. Premia o que há de melhor na produção latino-americana, troca informações, realiza exibições – para crianças e adultos – e debates francos sobre os conteúdos apresentados, com a participação de produtores, diretores e roteiristas. No Sesc São Paulo, por exemplo, há todo um trabalho de educação audiovisual: os participantes do Curumim fazem parte do júri infantil, selecionam os melhores filmes na opinião deles, premiam, sobem ao palco. É lindo de ver.
Nos cinemas brasileiros, tivemos, nos últimos anos, diversos lançamentos infantojuvenis, como Perlimps (2023), O Menino e o Mundo (2013) os filmes da Turma da Mônica (Laços [2019], Lições [2021] e Reflexos do Medo [2023]), Pluft, o Fantasminha (2022) etc. Isso sem contar os filmes do Luccas Neto, do Gato Galáctico, da Maísa e da Larissa Manoela. Como você vê o cinema brasileiro para crianças e adolescentes na atualidade?
As crianças não vão sozinhas ao cinema. Em geral, são levadas pela família. Muitas dessas produções nacionais têm temáticas de aventura, de maneira que os pais também se divirtam juntos. Na história do cinema infantil no Brasil,
temos números fantásticos, a exemplo dos filmes dos Trapalhões e da Xuxa. Quando exploramos os universos dos livros infantis, das histórias em quadrinhos, e os levamos para o cinema ou para a televisão, como agora temos Franjinha e Milena: Em busca da ciência no Discovery Kids, o retorno costuma ser muito bom. Turma da Mônica: Laços, do universo Mauricio de Sousa, levou mais de 2 milhões de espectadores aos cinemas e arrecadou mais de R$ 30 milhões em bilheteria, segundo dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Até o fim deste ano, deve estrear Chico Bento e a goiabeira maraviosa, de Fernando Fraiha. Os filmes do Alê Abreu [Perlimps e O Menino e o Mundo] são claramente viagens familiares, obras poéticas belíssimas, em que tanto as crianças quanto os pais aproveitam muito. Também temos os filmes baseados na obra do Ziraldo, além da série Marcelo, Marmelo, Martelo (2023), adaptada do clássico de Ruth Rocha, que estreou na Paramount+. Esse é um setor que, na minha opinião, deveria ser tratado de maneira prioritária, pois é na infância que se começam tantas coisas, inclusive o hábito de consumir obras audiovisuais. Seja exibido na plataforma que for, o audiovisual infantojuvenil merece mais atenção e investimentos, porque o retorno vem lá na frente, quando as crianças crescem.
Assista ao vídeo com trechos da entrevista com Beth Carmona, realizada no Sesc Vila Mariana, em abril de 2024.
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EM CLIMA DE MUDANÇA
4 a 23 de junho de 2024
Programação que apresenta práticas para a redução e adaptação às mudanças climáticas, a partir da troca de experiências com integrantes de iniciativas socioambientais.
Encontros, cursos, oficinas, vivências, espetáculos, exibições, performances, passeios e feiras em 31 unidades da capital, grande São Paulo, interior e litoral.
sescsp.org.br/ideiaseacoes
Mudanças climáticas refletem e intensificam desigualdades sociais, raciais, étnicas, de gênero e geracionais
POR LUNA D’ALAMA
efeitos EXTREMOS
O desmatamento da Amazônia e outras ações humanas que impactam negativamente os biomas brasileiros vêm provocando períodos de seca e de chuva cada vez mais intensos.
Ana Cotta / Creative Commons
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Tragédias climáticas, como a que o Rio Grande do Sul enfrenta desde o fim de abril, não são apenas desastres naturais, mas eventos também causados pela intervenção humana, cada vez mais frequentes. Um dos estados mais ricos do Brasil foi parcialmente destruído por uma enchente histórica e um deslocamento sem precedentes, que atingiu mais de dois milhões de gaúchos e desabrigou ou desalojou mais de 77 mil pessoas, na capital e em mais de 450 municípios. Os impactos desses eventos ambientais extremos têm sido ainda maiores sobre as populações mais vulneráveis, como indivíduos pobres, negros, mulheres, crianças e idosos, comunidades indígenas, quilombolas, pescadores, agricultores familiares e quem vive em áreas de risco. Segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), mais de 80 comunidades tradicionais têm sofrido as consequências das inundações no Sul, impactando oito mil indígenas das etnias Guarani Mbya, Kaingang, Xokleng e Charrua, em cerca de 50 municípios.
Houve, ainda, denúncias de tentativa de estupro, abuso de vulneráveis e importunação sexual contra mulheres e crianças que haviam sido levadas para abrigos no Rio Grande do Sul. De acordo com pronunciamento de Reem Alsalem, relatora especial sobre violência contra mulheres e meninas da Organização das Nações Unidas (ONU), feito em 2022, “a mudança climática não é só uma crise ecológica, mas fundamentalmente uma questão de justiça, prosperidade e igualdade de gênero intrinsicamente ligada e influenciada pela desigualdade e discriminação estruturais”. Em meio a desastres ambientais, mulheres estão mais expostas a violações, como tráfico e exploração sexual, além de terem 14 vezes mais chances de morrer em comparação aos homens.
Em todo o Brasil, de acordo com dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), 80 milhões de pessoas em 1.942 cidades vivem expostas a eventos climáticos extremos. O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima trabalha agora em um plano de prevenção chamado pela ministra Marina Silva de “UTI climática”. Além disso, o sexto relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em 2023 pela ONU, revela que as pessoas mais atingidas pela crise ambiental são as que
menos contribuem para o aquecimento do planeta. “Porém, nas regiões mais pobres e marginalizadas, o número de mortes por calor, secas, enchentes e tempestades foi 15 vezes maior, na última década, do que nas regiões com mais infraestrutura”, aponta a jornalista e ativista ambiental Mariana Belmont. “Não é mais aceitável que haja mobilização dos governantes apenas nos momentos de tragédias. Políticas públicas de adaptação, mitigação e reparação climática devem ser tratadas como prioridade no orçamento da União, de estados e municípios, priorizando as áreas de risco e os direitos humanos”, defende.
Para o enfrentamento de desigualdades sociais, raciais, étnicas, de gênero e geracionais durante a crise climática, Belmont destaca, ainda, a necessidade de se criar e implementar políticas de longo prazo para democratização do acesso à terra, além de políticas habitacionais, de urbanização e regularização fundiária destinadas às populações negras e periféricas.
“Também precisamos lembrar que atividades empresariais contribuem, significativamente, para eventos climáticos extremos. As empresas, portanto, devem ser chamadas à ação”, reforça. A jornalista também pontua a parcela de responsabilidade e
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O Sesc Interlagos, em parceria com o projeto Menin@s da Billings, realizou a atividade Navegação a barco e à vela pela ação Nós – Criação, Trabalho e Cidadania, em abril passado.
O projeto Reciclorgânico, braço do Movimento de Defesa das Favelas (MDF), atua na região de São Mateus, zona Leste da capital paulista, com ações em defesa do meio ambiente, como oficinas sobre reciclagem, hortas e construção de cisternas caseiras, com o objetivo de conscientizar a população de baixa renda sobre as mudanças climáticas, seus impactos e como podemos contribuir para a mitigação e adaptação a esses fenômenos.
Rejane Pereira (acima) e Getúlio Carvalho (foto da compostagem)
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ação que cada um de nós deve ter nesse contexto, seja com a questão do lixo, da alimentação ou da tomada de consciência. “É fundamental entendermos nossa vida real e como esse cotidiano está conectado aos estragos nas cidades”, ressalta.
A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), concorda que as recentes transformações do clima têm incidido com maior força sobre populações e moradias vulneráveis, localizadas em morros sujeitos a deslizamentos ou em construções às margens de córregos ou rios. “Esse processo está diretamente relacionado à concentração de renda e, sobretudo, a um modelo de desenvolvimento urbano que jamais acolheu as necessidades habitacionais dos mais pobres. Não por acaso, essas áreas consideradas de risco reúnem populações predominantemente não brancas, que muitas vezes são removidas de seus lares sem compensações financeiras e sem garantia de acesso a locais adequados e seguros”, explica Rolnik. Esse ciclo acaba gerando, portanto, novas ocupações vulneráveis a eventos extremos.
A professora da FAU-USP recorda as tragédias de Angra dos Reis (RJ), em 2002; do Morro do Bumba, em Niterói (RJ), em 2010; de Petrópolis
(RJ), em 2011; e de São Sebastião (SP), que deixou 65 mortos em 2023. “Pessoas atingidas por essas catástrofes estão esperando até hoje por soluções definitivas de moradia. Diante do enorme desafio das mudanças climáticas, o modelo brasileiro de urbanismo, com favelas e comunidades inteiras sem recursos financeiros e de infraestrutura, continua reproduzindo desigualdades”, afirma. Após o temporal e deslizamentos de terra em São Sebastião, no litoral norte paulista, por exemplo, os mais ricos saíram da região de helicóptero, pagando até R$ 30 mil pelo transporte. “Enquanto isso, as pessoas mais atingidas e prejudicadas foram os moradores dos morros, que acabaram, inclusive, sendo culpabilizados pela situação que os atingiu”, lembra.
RACISMO AMBIENTAL
Organizadora do livro Racismo ambiental e emergências climáticas no Brasil (Oralituras, 2023), a jornalista Mariana Belmont conta que o termo “racismo ambiental” foi cunhado na década de 1980, pelo ativista afro-americano Benjamin Franklin Chavis Jr., durante protestos por justiça ambiental na Carolina do Norte (EUA). Os manifestantes eram contrários à instalação de um aterro sanitário para resíduos tóxicos em um
DIANTE DO ENORME DESAFIO DAS MUDANÇAS
CLIMÁTICAS, O MODELO BRASILEIRO DE URBANISMO, COM FAVELAS E COMUNIDADES
INTEIRAS SEM RECURSOS FINANCEIROS
E DE INFRAESTRUTURA, CONTINUA REPRODUZINDO DESIGUALDADES
Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista
território majoritariamente negro. “O racismo ambiental é reflexo da violação histórica de um povo escravizado por mais de 300 anos nas Américas e de uma sociedade encabeçada por uma elite branca e supremacista que se organizou para manter esses corpos à margem. É uma discriminação institucionalizada, que diferencia indivíduos, grupos e comunidades com base na raça e na cor da pele”, explica Belmont.
Segundo a ativista, não são apenas pessoas pretas e pardas as atingidas pelo racismo ambiental, mas também as de ascendência asiática, povos indígenas, quilombolas, ciganos, refugiados, migrantes, apátridas e outros grupos marginalizados por raça ou etnia. “A crise climática é também humanitária, e tem impacto direto na vida dessas populações. Negar o racismo ambiental, em um país com quase 54% de pessoas pretas e pardas, é negar a realidade nas periferias das grandes cidades, a história de urbanização do Brasil e suas profundas desigualdades territoriais”, analisa.
Na visão de Belmont, o racismo ambiental e as injustiças que ele acarreta privam as populações periféricas e marginalizadas de humanidade e de direitos básicos. “O racismo ambiental evidencia uma construção social que determina como alguns grupos são mais relevantes que outros para a ciência e para as políticas públicas”, pontua. A jornalista cita a Rede por Adaptação Antirracista, formada por organizações da sociedade civil, movimentos negros, ambientalistas, periféricos e de direitos humanos, como um bastião na luta pela revisão urgente do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima e por mais políticas públicas nesse sentido.
Outra voz ativa no combate ao racismo ambiental é Amanda Costa, diretora executiva do Instituto Perifa Sustentável, conselheira do Pacto Global da ONU e integrante da Rede Vozes Negras pelo Clima, coletivo nacional formado por 11 mulheres em defesa do meio ambiente e dos territórios. “Sou uma mulher preta da periferia, moradora da Brasilândia, zona Norte de São Paulo, e decidi atuar como porta-voz da minha comunidade e da juventude brasileira. As mudanças climáticas são uma realidade em todo o mundo, ainda mais visível entre os empobrecidos e marginalizados. Falar desse tema, portanto, é lutar pelo meu presente, pelo meu futuro e pelo daqueles que represento”, diz Costa, formada em relações internacionais. Quando era pequena, a ativista morava em um puxadinho na casa da avó, e a cozinha inundava sempre que chovia muito.
Citada na lista Forbes Under 30 em 2020/21, a conselheira do Pacto Global da ONU destaca que os bairros periféricos da capital paulista carecem de mais vegetação e, por conta dessa ausência de áreas verdes, as temperaturas sobem mais (até 12º C, segundo pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisas EspaciaisInpe) que em regiões arborizadas, como Pinheiros, Jardins, Higienópolis e Morumbi. “As mudanças climáticas também impactam nossa saúde de forma geral. Sofremos mais com doenças respiratórias, por conta da poluição e das ondas de calor. Isso sem falar nas doenças, como dengue, febre amarela e hepatite A.
Além disso, muitos idosos acabam morrendo em decorrência do excesso de calor, e nos atestados de óbito são descritas outras causas”, alerta Costa. De acordo com a diretora executiva do Instituto Perifa Sustentável, quando se olha para questões estruturais de raça, gênero e classe, fica muito evidente e tangível o racismo ambiental. A ativista lembra que a Rede Nossa São Paulo publica anualmente, desde 2012, o Mapa da Desigualdade, com dados dos 96 distritos da capital. Na edição de 2023, Alto de Pinheiros, na zona Oeste, ficou com a maior pontuação, e Capão Redondo, na zona Sul, com a menor.
Desde 2017, Costa já rodou o mundo para discutir a agenda climática global. Viajou para países como Estados Unidos, Alemanha, Polônia, Egito, Escócia, Inglaterra, Chile e Emirados Árabes Unidos, para trocar conhecimentos com outras lideranças jovens que têm tido ideias e projetos para transformar suas comunidades. “Sempre sonhei em fazer a ponte entre o global e o local – como diz a ONU: 'pense globalmente e aja localmente' – e democratizar a pauta climática. Dou palestras, crio conteúdos, faço formações online e projetos de educomunicação, pois acredito que não dá para enfrentar a crise climática sem o protagonismo das mulheres pretas, indígenas e quilombolas. Esse é um debate decolonial, precisamos de soluções que venham da base, dos territórios, dos que sofrem os piores impactos e as consequências das mudanças climáticas”, reflete.
A jovem ainda é colunista de veículos como Nós, Mulheres da Periferia, Um Só Planeta e Agência Jovem de Notícias. “A Brasilândia, por exemplo, quase não é falada na mídia, mas tem cerca de 300 mil habitantes. Ainda assim, é um dos distritos mais sub-representados na Câmara Municipal. Quero continuar morando nesse lugar, e que as políticas públicas cheguem até
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ele. É o território onde nasci, cresci, onde vive minha família. Quero desenvolver e transformar minha região, enquanto as demais pessoas – sobretudo, brancas –precisam reconhecer sua responsabilidade nessa luta e entender que esse processo de exclusão, marginalização e silenciamento é histórico e estrutural”, conclui.
DESAFIOS URBANOS
Segundo a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, o grande desafio das cidades e dos governantes, daqui para a frente, é garantir moradias adequadas e seguras para todos. “Isso implica repensar o modo de organizar os centros urbanos, o modelo carbocêntrico (centrado na emissão de carbono) e rodoviarista dos transportes que utilizam combustíveis fósseis. Nosso padrão de produção é ainda muito carregado
de emissões de carbono (em São Paulo, 61% vêm do transporte), e para transformar esse cenário temos que repensá-lo”, afirma. É preciso rever, ainda, a relação das cidades com a natureza, com a geografia preexistente, aponta Rolnik. “Devemos buscar soluções baseadas na própria natureza. Em vez de canalizar um rio e construir uma avenida por cima, a gente deve pensar que o espaço do rio tem que continuar existindo”, considera.
Questões como o desmatamento de vegetações nativas, a destruição de biomas e a poluição de rios e do ar também precisam ser consideradas para conter o avanço de eventos climáticos extremos. Outro ponto a ser reconsiderado, de acordo com Rolnik, é o energético. “Com as altas temperaturas, que não se restringem mais aos verões, nossa arquitetura se tornou dependente de aparelhos de
Varre
Vila / Divulgação
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O projeto Varre Vila atua no distrito de São Miguel Paulista, extremo leste da capital paulista, com ações de limpeza e manutenção de ruas, praças e quadras comunitárias.
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ar-condicionado, gastando enormes quantidades de energia elétrica. Precisamos apostar numa arquitetura que não demande tanta energia, que a conserve. E investir em fontes renováveis. Infelizmente, a gente mal começou a discutir isso”, avalia.
PROJETOS INSPIRADORES
Várias iniciativas na capital paulista buscam ajudar o meio ambiente e, assim, frear os impactos desiguais dos eventos climáticos extremos. Um desses projetos é o Menin@s da Billings, que iniciou suas atividades em 2014, na região da represa Billings, no extremo sul de São Paulo. A ONG oferece passeios e atividades de sensibilização ambiental às margens da represa. O educador ambiental Will Silva, vice-presidente da entidade, conta que o Menin@s da Billings utiliza a estrutura do Parque Linear Cantinho do Céu, no Grajaú, para desenvolver mutirões de limpeza mensais, plantio comunitário de espécies nativas da Mata Atlântica (como jatobá, manacá-da-serra e mulungu), construção de lixeiras sustentáveis, embalagens para as mudas e pranchas de surfe ecológicas (com garrafas PET e canos de PVC).
“Estamos falando da maior represa urbana do planeta, que atravessa sete municípios ao longo de 127 quilômetros quadrados. Já chegamos a recolher 600 kg de resíduos em uma única ação, incluindo fraldas, animais mortos, louças de banheiro, entulhos de obras e plásticos”, enumera Silva. A ONG também possui um barco-escola, com o qual realiza trabalhos de educação ambiental com estudantes, influenciadores digitais e turistas. “As pessoas tomam consciência, passam a ter atitudes diferentes, aprendem sobre a importância de separar o lixo, reduzir o consumo em geral, inclusive o de água, e de não descartar materiais poluentes nas ruas. Além de melhorar a qualidade de vida, ativamos o turismo de base comunitária na região”, completa. Mudar a mentalidade, porém, é um trabalho de formiguinha, um processo de construção gradual para esta e as próximas gerações, segundo Silva.
Outros dois projetos atuam na zona Leste de São Paulo com resíduos orgânicos. O Movimento de Defesa das Favelas (MDF), por exemplo, tem um braço ambiental que abrange a ação Reciclorgânico, no distrito de São Mateus. Segundo Getúlio Mendes de Carvalho, educador socioambiental do MDF, a pauta ambiental entrou no radar do movimento há mais de uma década, mas tem ganhado protagonismo nos últimos anos com a
incidência cada vez maior de ondas de calor, temporais e enchentes atingindo as 100 famílias nas três favelas que o projeto atende. “O Reciclorgânico envolve a coleta de resíduos orgânicos (sobras de vegetais e animais) e a transformação deles em adubo e compostagem, com foco na educação ambiental. Fazemos formação porta a porta, e deixamos baldes de 20 litros, semanalmente, com instruções para separação. Temos oito composteiras, na região de Ribeirão Preto (SP), para onde vai todo esse lixo”, explica Carvalho.
De acordo com o educador, a coleta de lixo orgânico e a seletiva não passam de maneira adequada nessas regiões periféricas. O resultado são vielas e córregos cheios de resíduos, que são revirados por cachorros e que também favorecem a proliferação de doenças como a dengue. “Na capital, 50% de todo o lixo doméstico é orgânico. Se o destinarmos corretamente, já resolvemos a metade do problema. Cerca de 30% é reciclável e 20% são rejeitos que realmente devem ir para os aterros sanitários”, detalha.
Já o projeto Varre Vila atua no distrito de São Miguel Paulista, extremo leste da capital, com limpeza e manutenção de ruas, praças e quadras comunitárias. De acordo com Sergio Gomes Correia, assistente social, coordenador e articulador local do Varre Vila, antes da iniciativa havia pontos viciados de descarte irregular, com caçambas acumulando entulhos, madeiras, sofás, carcaças de animais, e muitas moscas ao redor. “Há 12 anos, iniciamos os mutirões de limpeza na cidade, e já retiramos mais de 60 caçambas cheias. Também apresentamos o projeto no interior do estado e em capitais como Curitiba, Maceió e Aracaju”, revela Correia.
O importante, segundo o assistente social, é repensar como gostaríamos que fossem nossos territórios e, a partir daí, fazer uma mobilização coletiva para trazer mais qualidade de vida a pessoas e ambientes abandonados pelo poder público. “Oferecemos também palestras em escolas e em Unidades Básicas de Saúde (UBS), pois onde tem lixo tem bicho (como o mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, e ratos transmissores de leptospirose). Não podemos naturalizar essas situações, deixar os terrenos baldios acumulando entulhos. Em um único mutirão no Itaim Paulista, chegamos a retirar 13 toneladas de descartes. Nosso slogan é 5 minutos podem mudar uma vila/vida, pois não aceitamos mais ser exterminados diariamente nessa guerra”, finaliza o coordenador do Varre Vila.
sustentabilidade / para ver no sesc
no Sesc Itaquera, dia 4/6, o Laboratório cidadão: resíduos e justiça climática - Compostagem comunitária convida o público a vivenciar a prática de coleta dos resíduos orgânicos na comunidade de Vergueirinho/Divineia.
CLIMA DE MUDANÇA
De 4 a 23 de junho, Sesc São Paulo realiza nova edição do projeto Ideias e Ações para um Novo Tempo, voltado a iniciativas socioambientais com impactos positivos nos territórios
Criado em 2012, o projeto Ideias e Ações para um Novo Tempo é realizado de 4 a 23 de junho, em 31 unidades do Sesc na capital paulista, Grande São Paulo, interior e litoral. Essa ação tem como objetivo identificar iniciativas socioambientais nos territórios onde as unidades estão presentes, além de promover atividades e conteúdos educativos que reúnam experiências
transformadoras da realidade, numa perspectiva ética e sustentável.
Com o tema “Em clima de mudança”, esta edição evidencia mobilizações coletivas com resultados positivos nos locais em que atuam. A programação inclui cerca de 160 atividades inspiradoras (entre oficinas, cursos, bate-papos e encontros presenciais e online),
que buscam ajudar a combater efeitos climáticos e orientar o público sobre soluções possíveis para obter mais qualidade de vida e bem-estar em seus territórios.
Segundo Denise Baena, gerente da Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo, a forma cada vez mais intensa e constante com
Gustavo Faria
Realizado
que as mudanças climáticas se impõem sobre a vida das pessoas, especialmente aquelas que vivem em situação de vulnerabilidade social, torna urgente o debate e a proposição de medidas concretas de adaptação, mitigação e reparação de impactos ambientais.
“O Sesc São Paulo quer somar essa a inúmeras outras iniciativas já em curso. Ideias e Ações para um Novo Tempo destaca o protagonismo de agentes e projetos socioambientais na construção da agenda positiva do clima”, ressalta.
Confira alguns destaques da programação:
IPIRANGA
Captação de água de baixo custo
Oficina de construção de cisterna doméstica para armazenar água das chuvas a partir de materiais acessíveis, com Florar – Educação para Sustentabilidade.
Dia 9/6, domingo, às 14h. GRÁTIS.
14 BIS
Na feira também tem! Agroecologia e impactos das mudanças climáticas
Pequenos agricultores(as) compartilham seus saberes no cultivo de alimentos.
Dia 16/6, domingo, das 10h às 15h. GRÁTIS.
para ver no sesc / sustentabilidade
JUNDIAÍ
No clima das abelhas sem ferrão
Oficina com Eduardo Prata, da Ibi – Abelhas do Brasil, na qual os participantes exploram aspectos da vida desses polinizadores.
Dias 16/6, domingo, e 22/6, sábado, das 14h às 16h. GRÁTIS.
SANTO ANDRÉ
Produções e práticas do comum: América Latina, entre extrativismos e resistências
Os participantes compartilham estratégias para aproximar diferentes práticas em torno de temas comuns que envolvem conflitos socioambientais
no nosso continente. Dias 18, 19, 20, 21 e 25/6, terça a terça, das 19h às 21h. GRÁTIS.
SANTOS
Ativismo climático – Protagonismo das juventudes
Oficina com Paulo Galvão, do Engajamundo, para construir, coletivamente, possíveis caminhos e soluções para o enfrentamento das mudanças climáticas.
Dia 19/6, quarta, das 10h às 12h e das 15h às 17h, e dia 20/6, quinta, das 9h às 11h. GRÁTIS.
Mais informações em sescsp.org.br/ideiaseacoes
Conduzida por grupos de pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP, a atividade Horta: Bem-estar, alimentação e mudança climática, dia 22/6, no Sesc Avenida Paulista, propõe aos participantes o manejo da horta local, entre outras ações.
Marcos Santos
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Filha do do ferroviário Acacio Serafim e da empregada doméstica Urcinda d'Almeida, Lélia nasceu em Belo Horizonte, em 1935.
ancestral VOZ
As inestimáveis contribuições do legado de Lélia Gonzalez para o pensamento brasileiro e a luta antirracista
POR MANUELA FERREIRA
Entre as referências mundiais em estudos de gênero, raça e classe, um nome se destaca e segue, há décadas, promovendo reflexões com seu legado: a brasileira Lélia Gonzalez (1935-1994). Ativista, antropóloga, filósofa, professora e uma das principais autoras do feminismo negro no país, coube a esta mineira de Belo Horizonte ser uma das precursoras nas pesquisas sobre as culturas negras e perspectivas interseccionais. Seus saberes a levaram a produzir uma obra de impacto dentro e fora da academia, além de ser notória sua intensa atuação política contra o sexismo e o racismo. Cofundadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPCN-RJ), do Coletivo de Mulheres Negras N'Zinga e do Movimento Negro Unificado (MNU), a pensadora é, sobretudo, uma das maiores intérpretes do Brasil.
A relevância do seu legado é tamanha que este chegou a ser enaltecido, em público e em diferentes ocasiões, pela filósofa e ativista estadunidense Angela Davis. Em 2019, durante conferência no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros, por exemplo, Davis declarou: “Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam
aprender comigo”. A partir deste mês, a trajetória da intelectual brasileira é revisitada pela exposição inédita Lélia em nós: festas populares e amefricanidade, no Sesc Vila Mariana [leia mais em Corpos que celebram].
BASES FORTES
Décima sétima filha do ferroviário Acacio Serafim e da empregada doméstica Urcinda d'Almeida, Lélia Gonzalez migrou para o Rio de Janeiro (RJ) menina, quando um dos irmãos, o futebolista Jaime de Almeida (1920-1973), foi convidado a jogar pelo time do Flamengo. Na capital fluminense, a família, de origem pobre, encontrou condições melhores de vida e viu a garota concluir os estudos para, em seguida, ingressar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Antes, entretanto, quase percorreu a mesma trajetória vivida pelos outros irmãos e irmãs, que começaram a trabalhar na infância.
Em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1986, Lélia Gonzalez rememorou a situação. “Quando criança, eu fui babá de filhinho de madame. Você sabe que criança negra começa
Acervo Instituto Moreira Salles (IMS) / Foto: Januário Garcia
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Quanto a nós, negros, como podemos atingir uma consciência efetiva de nós mesmos enquanto descendentes de africanos se permanecemos prisioneiros, 'cativos de uma linguagem' racista?
Por isso mesmo, em contraposição aos termos supracitados, eu proponho o de amefricanos ("amefricans") para designar a todos nós.
Por um feminismo afro-latino-americano, de Lélia Gonzalez
(Zahar, 2020, organização de Flávia Rios e Márcia Lima)
a trabalhar muito cedo. Teve um diretor do Flamengo que queria que eu fosse para a casa dele ser uma empregadinha, daquelas que viram cria da casa. Eu reagi muito contra isso, então, o pessoal terminou me trazendo de volta para casa”, contou. A escritora se graduou em história, geografia e filosofia e, à medida em que obtinha os títulos de mestre e doutora, atuou como professora em instituições de ensino nas redes pública e privada. Chefiou o departamento de sociologia e de política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), além de integrar o corpo de docentes da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.
CAMINHOS E DESCAMINHOS
Foi mergulhando nos estudos acadêmicos que Lélia buscou entender as contradições e as marcas da branquitude na sociedade brasileira. Em depoimento publicado no livro Patrulhas ideológicas (1980), de Heloísa Buarque de Holanda, ela recorda: “Passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico brasileiro, porque na medida em que aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra (...). Na faculdade, eu já era uma pessoa de cuca perfeitamente embranquecida, dentro do sistema. Eu fiz filosofia e história. E, a partir daí, começaram as contradições”.
Um importante ponto de inflexão na vida da escritora aconteceu em 1964, enquanto estava na universidade e se casou com o espanhol Luiz Carlos Gonzalez, amigo de faculdade. Durante o breve casamento com o rapaz, branco, viu a tensão provocada pela questão racial tomar grandes proporções. Em artigo publicado em 2021 na revista O Público e o Privado, do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), as pesquisadoras Nilma Alves Adriano e Ana Paula Pires Lourenço analisaram o episódio: “(...) A autora percebeu que, enquanto eles apenas namoravam, a família não problematizava tanto o relacionamento, mas a partir do momento em que Luiz decide assumi-la como sua esposa, o olhar deles para com Lélia mudara de maneira que a família interferiu na relação quando descobriu o casamento, e o casal precisou, então, se afastar mais tarde pela não aceitação dessa união”, escreveram as pesquisadoras.
O LUTO E A LUTA
Com a morte de Luiz Carlos Gonzalez, que tirou a própria vida um ano depois do casamento, deprimido pela rejeição familiar vivida pela esposa, Lélia adotou definitivamente seu sobrenome de casada, como uma última homenagem ao amado. “Após o trágico fim de Luiz Carlos, a intelectual se retirou para um tempo de luto em Minas Gerais. Ao
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final da década, casou-se novamente, mas essa união também não durou muito tempo. Foi nesse contexto de dor causada pelo racismo que a intelectual negra começou a querer compreender com mais profundidade as implicações da questão étnico-racial na vida, e os desdobramentos disso nas variadas relações sociais. Lélia, antes de conhecer Luiz Carlos, não se interessava por política e vivia afastada dos debates sobre os quais passaria a estudar”, descreveram Adriano e Lourenço.
Não demorou para que Lélia Gonzalez integrasse a resistência à ditadura militar (1964-1985). Como consequência, teve suas atividades acompanhadas pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Além disso, organizou protestos de civis contra o apartheid, regime de segregação racial instaurado na África do Sul de 1948 a 1994; atuou em mobilizações pela Constituinte de 1988; e integrou, entre 1985 e 1989, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) – primeiro conselho da condição feminina do Brasil. Nos anos 1980, a pensadora publicou os livros Lugar de negro (1982), em parceria com o escritor argentino Carlos Hasenbalg (1942-2014), e Festas populares no Brasil (1987), além de inúmeros ensaios, artigos, resenhas e reportagens.
À FRENTE, SEMPRE
“Lélia Gonzalez não hierarquizava ações políticas e culturais. Segundo ela, ambas eram relevantes para a transformação social. Em sua trajetória são fartas as experiências e colaborações com grupos culturais, artísticos e intelectuais”, apontou a socióloga e pesquisadora Flávia Rios, em artigo publicado na Enciclopédia Mulheres na Filosofia, projeto da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela explica, no mesmo verbete, que nos anos 1970, por exemplo, Lélia colaborou com o Grêmio Recreativo de Arte Negra e com a Escola de Samba Quilombo, ambos do Rio de Janeiro. A escritora também prestou consultoria para obras teatrais, cinematográficas e celebrou, de perto, a consolidação da cena dos blocos afros e afoxés de Salvador (BA). Além disso, também participou da formação do Colégio Freudiano no Rio de Janeiro e estudou psicanálise, aprofundando-se no pensamento do médico e psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981).
Lélia Gonzalez ainda fez parte do grupo de intelectuais e artistas negros que se reuniam no teatro Opinião, em Copacabana, no Rio de Janeiro, para protestar contra o fechamento dos Centros Populares de Cultura da União
Lélia (à esquerda) em uma de suas viagens ao continente africano, em 1982, no Senegal.
Instituto Memorial Lélia Gonzalez (IMELG)
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Nacional dos Estudantes (UNE). Na mesma década, escreveu tanto para grandes veículos quanto para a imprensa alternativa. Foi uma época de profunda contestação do processo de embranquecimento vivido décadas antes, que a levou a abraçar, também, o candomblé.
Na busca por inserir a cultura negra como elemento central de conscientização política, Lélia também foi candidata a deputada estadual pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Mesmo não eleita, o debate estava dado, com a questão racial ocupando espaço no âmbito partidário, ao passo que as questões de gênero também dialogavam com o movimento negro. Nos fundamentos de sua prática, estava o conceito que seria chamado, anos mais tarde, de interseccionalidade, uma das maiores contribuições de seu legado intelectual e cultural para a luta antirracista.
Instituto Memorial
Lélia Gonzalez (IMELG)
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Em 1979, na cidade de Nairóbi, no Quênia.
O legado da mineira
Lélia Gonzalez é celebrado em exposição inédita que revisita momentos marcantes de uma das maiores pensadoras do país.
para ver no sesc / bio
CORPOS QUE CELEBRAM
Em cartaz no Sesc Vila Mariana, exposição Lélia em nós: festas populares e amefricanidade exalta trajetória da intelectual antirracista
No artigo "Beleza negra, ou: Ora-yê-yê-ô!", de 1982, Lélia Gonzalez escreveu sobre as expressões populares no carnaval de rua baiano. “E são as jovens negras desses blocos e afoxés que organizam suas respectivas festas, convidando, de preferência, pessoas da comunidade negra que elas consideram credenciadas para escolher, dentre elas, a mais digna representante da beleza negra”. E a própria beleza negra é um dos cinco eixos da exposição Lélia em nós: festas populares e amefricanidade, que abre neste mês e fica em cartaz até novembro, no Sesc Vila Mariana.
Pensada a partir do livro homônimo da autora, relançado pela editora Boitempo para recordar os 30 anos de morte de Lélia Gonzalez, a mostra revisita aspectos marcantes de sua trajetória, a partir de obras de artistas visuais contemporâneos, cujos trabalhos convergem e dialogam com seu pensamento. Com curadoria de Raquel Barreto e Glaucea Britto, a exposição é dividida pelos núcleos “Festas populares”, “Peles negras”, “Máscaras negras”, “Racismo e sexismo na cultura” e “De Palmares às escolas de samba, estamos aí”. O projeto expográfico reúne, ainda, obras de artistas contemporâneos,
cujos trabalhos convergem com o pensamento de Lélia.
VILA MARIANA
Lélia em nós: festas populares e amefricanidade
Curadoria de Raquel Barreto e Glaucea Britto
De 26 de junho a 3 de novembro. Terça a sexta, das 10h às 21h. Sábados, das 10h às 20h. Domingos e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS.
sescsp.org.br/vilamariana
Acervo Instituto Moreira Salles (IMS) / Foto: Januário Garcia
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BRUXO DAS ARTES
gráfica
Reconhecido mundo afora pelas experimentações sonoras, Hermeto Pascoal transpõe a música para o território das artes visuais
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Capas de caderno. Desenho sobre papel com espiral de plástico.
Everton Ballardin 41 | e
Foi no pequeno município alagoano de Lagoa da Canoa que há exatos 88 anos nascia o “bruxo dos sons” Hermeto Pascoal. Autodidata, o multi-instrumentista e compositor aprendeu, primeiro, os acordes da natureza, de tanto ouvir pássaros, sapos e outros bichos do agreste. Depois, passou a tocar sanfona com um olho no pai e outro na própria intuição, o que lhe rendeu reconhecimento mundial por suas partituras e interpretações com tantos instrumentos musicais, convencionais ou nem tanto – piscina de borracha, bomba de encher pneu de bicicleta, brinquedos de plástico, chaleira, xícara, entre outros.
Dessa mesma força motriz chamada música, transcenderam obras no campo das artes visuais. “As pinturas que faço são como fazer as linhas da música. Nos meus cadernos, a linha que eu faço treme igual. E eu deixo, que acho bonito”, compartilhou o artista em entrevista ao site especializado em música Farofafá. Das imagens que costuma criar mentalmente ao observar nuvens no horizonte às livres e coloridas associações que desenha no papel, a exemplo da capa do disco Cérebro magnético (1980), a expressão criativa de Hermeto Pascoal ultrapassa qualquer fronteira entre as linguagens da música e das artes visuais. Tal como celebra Caetano Veloso na canção “Podres Poderes” (1984), os “sons e dons geniais" do artista alagoano seguem ecoando em “mil tons” de “hermetismos pascoais”.
Tendo em vista essa faceta ainda pouco conhecida do artista, a exposição Ars Sonora – Hermeto Pascoal, em cartaz no Sesc Bom Retiro [leia mais em Universo hermetiano], reúne desenhos, pinturas, objetos e instrumentos do cotidiano transfigurados a partir do alfabeto sonoro-visual de Hermeto Pascoal. A mostra tem curadoria de Adolfo Montejo Navas, poeta e crítico espanhol que conheceu o músico em 1990, no Festival de Jazz de Vitoria-Gasteiz, na Espanha. Desde então, Navas vem incentivando Hermeto Pascoal a expor suas obras. A primeira vez foi na mostra coletiva Sinais da pista, no Museu de Petrópolis (RJ), em 2006. Na segunda, levou uma outra versão do projeto Ars sonora – Hermeto Pascoal à Bienal de Curitiba de 2019, da qual Navas também fez parte da curadoria.
No Sesc Bom Retiro, a exposição Ars sonora – Hermeto Pascoal apresenta novas dimensões do cosmos hermetiano, mais experiências sonoro-visuais e elementos interativos, além de trabalhos recentes. Organizada como um “arquipélago ou galáxia”, como descreve Navas, a mostra é dividida em núcleos sobre diferentes campos de experimentação do artista, cada qual guiando a navegação do público. “Ars sonora oferece várias vias para conhecer a obra plural do músico e compositor: sua relação com a visualidade, as imagens, além de outras fronteiras experimentais com o som, da relação arte e som. Também permite contextualizar uma obra pioneira em coordenadas mais amplas das artes plásticas e da música”, resume o curador.
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Everton Ballardin
Chapéu 5. Palha e caneta.
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Guardanapos e Pano de prato. Tecido e caneta.
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Chaleira branca de alumínio. Caneta sobre alumínio pintado.
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Avental. Caneta sobre plástico.
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Everton Ballardin (nesta e na próxima página)
Tampa de vaso sanitário branca. Caneta sobre plástico.
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Próxima página: desenho Mundo Lindo. Lápis de cor, caneta e papel.
Boné. Tecido e caneta.
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Caixa branca de papelão com alça. Caneta sobre cartão.
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Sacola amarela. Papel e caneta.
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Everton Ballardin
Everton Ballardin
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Toga com chapéu em cabideiro de madeira. Pintura sobre tecido.
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UNIVERSO HERMETIANO
Desenhos, pinturas e objetos criados a partir da fluência sonoro-visual de Hermeto Pascoal compõem exposição no Sesc Bom Retiro
Nome consagrado na história da música mundial, Hermeto Pascoal é reconhecido pela inovação e inventividade em seu trabalho artístico. Multi-instrumentista, compositor e produtor musical, é também dono de um extenso repertório de criações no campo das artes plásticas - faceta que, no entanto, ainda é pouco conhecida do público. Pioneira ao propor um passeio visual por uma coleção de desenhos, pinturas e objetos, a exposição Ars Sonora – Hermeto Pascoal, em cartaz no Sesc Bom Retiro, convida o visitante a imergir no universo criativo desse artista autodidata e performer experimental que,
aos 88 anos (completados no dia 22 de junho), segue exercendo um papel importante na educação musical ao integrar, entre outros multitalentos, saberes e fazeres na criação de instrumentos.
Reunindo nove diferentes vertentes, a exposição está configurada em um conjunto de núcleos em torno de sua poética artística. Como ponto de partida, “Música da Aura" reúne experiências sonoras realizadas com o som da voz de pessoas e a sua natureza tonal. Entre outros núcleos, “Pinturas Caligráficas” reúne partituras feitas em guardanapos, convites, toalha de mesa, brinquedos,
para ver no sesc / gráfica
Reconhecido mundialmente pelas experimentações sonoras, o multi-instrumentista Hermeto Pascoal completa 88 anos de idade neste mês.
jogos americanos, cardápios de restaurantes e até em papel higiênico e tampa de privada. Já “Brincando de Corpo e Alma”, ação performática de 2012, é apresentada em registro audiovisual de captações sonoro-visuais do artista, produzindo diferentes sons no próprio corpo.
Segundo Ana Luisa Sirota, gerente adjunta do Sesc Bom Retiro, a exposição oferece perspectivas diferentes da obra de Hermeto Pascoal, sobretudo ao evidenciar a conexão entre arte e vida que há nela. “Com inventividade e bom humor, Hermeto se apropria dos mais diversos materiais e suportes, quebrando hierarquias da mesma forma como faz com gêneros musicais, e oferece uma experiência que nos provoca a pensar nos mecanismos da própria criação, prato cheio para a ação educativa da exposição”, explica. Ainda neste mês, o músico lança o álbum Pra Você, Ilza, em shows entre os dias 21 e 23/6, no Sesc Vila Mariana.
BOM RETIRO
Ars Sonora –Hermeto Pascoal Curadoria de Adolfo Montejo Navas Até 3 de novembro de 2024. Terça a sexta, das 9h às 20h; sábados, das 10h às 20h; domingos e feriados, das 10h às 18h.
sescsp.org.br/bomretiro
Beto Assem
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Cosplayer do personagem Homem-Aranha, super-herói do quadrinho publicado pela Marvel Comics, posa para foto no palco da Geekar, encontro geek realizado pelo Sesc Araraquara - que neste ano acontece nos dias 7 e 8 de setembro.
FANTASIA em ação
Formado por fãs de animes, mangás, quadrinhos e outros elementos da cultura pop, universo geek é espaço para sociabilizar, trocar conhecimentos e construir identidades
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Marcela Campos
Primeiro, os geeks foram chamados de “esquisitos”, “antissociais” e até de “estranhos” – criado no século 19, o termo geek vem de geck, palavra de origem alemã que significa “bobo”. Nomes pejorativos que em nada correspondem ao público diversificado, expressivo e antenado de seguidores da cultura pop que ocupam diferentes espaços das cidades nos dias de hoje. Formado por entusiastas de todas as idades, ávidos por animes, mangás e doramas, além de games, quadrinhos, séries e animações, o universo geek atravessa gerações, transformando-se continuamente.
Apesar de cativar um público que viveu a infância e a juventude na era analógica, o mundo geek está profundamente ligado ao desenvolvimento tecnológico, conectando-se com as juventudes devido à rapidez e constantes inovações da era digital. É o que afirma Sabrina da Paixão Brésio, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, “essa cultura não é uniforme ou consensual, e agrega grupos de interesse que se intercruzam e movimentam toda uma cadeia produtiva e criativa”, acrescenta.
Mas, por que a cultura geek é tão atraente para tantas pessoas? Uma das motivações pode ser explicada pelo fato de que somos seres que gostam de jogar, de brincar e do faz de conta, como defendeu o historiador e linguista holandês Johan Huizinga em Homo Ludens, obra publicada originalmente em 1938, praticamente quatro décadas antes do primeiro joystick ser disputado por irmãos, e mais de um século depois da criação dos primeiros mangás no Japão. “Fabulamos e simbolizamos como forma de imbuir sentido ao vivido, interpretar o que nos acontece e estabelecer contato com os demais”, explica Sabrina Brésio.
É também no campo da fantasia que se torna possível testar, tensionar, experimentar e especular sobre modos de viver e de conviver socialmente, analisa a professora. “O chamado faz de conta é imprescindível na formação da pessoa e da sua relação com a coletividade, e permanece presente nas práticas dos brincantes e dos festejos populares. Como sugere Huizinga, somos homo ludens, ou seja, seres lúdicos: aprendemos e
nos relacionamos em uma dinâmica lúdica, a qual percebemos nas interações de bebês e crianças, e que se complexifica ao longo da juventude”, complementa.
CRIAR LAÇOS
Mais de cem mil fãs de animes e mangás seguem o perfil de João Saito no Instagram (@orewakou).
Assim como seus seguidores, Kou, como é conhecido, sabe cantarolar a abertura de vários animes, reconhece cada mangá pela capa e sabe de trás para frente as falas dos filmes do estúdio japonês Ghibli [a exemplo das animações A viagem de Chihiro (2003) e O Menino e a Garça (2023)]. É que na infância, Kou teve o primeiro contato e tomou gosto pelos mangás por influência paterna, além de ter começado a assistir a animes e doramas [séries audiovisuais asiáticas], este último por causa do avô.
A conexão com essas expressões da cultura geek – assunto que Kou debate em seu conteúdo nas redes sociais – se intensificou depois que a família do influenciador teve de se mudar por um ano para Camaçari (BA). Com apenas nove anos, ele não conseguia fazer amigos na escola da nova cidade. “Eu ia todo dia chorando e falando para minha mãe que não queria ficar lá porque não conseguia me enturmar de jeito nenhum”, recorda. Até que nos últimos dois meses na Bahia, finalmente conseguiu sociabilizar. “Fiz esses dois amigos, que eram de uma outra sala, quando eu vi que estavam com uma bandana do Naruto [protagonista da série homônima de mangá e anime japonesa]. Ou seja, foi por conta de Naruto, Dragon Ball-Z [série de
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anime japonesa] e Grand Chase, um jogo da época, que eu não estava mais sozinho na escola”, relembra.
Hoje, aos 27 anos, Kou tem o próprio perfil no Instagram para reunir outras pessoas que, assim como ele, já se viram sozinhas. Encorajado por amigos, ele criou o espaço virtual em 2022 e, desde então, dá dicas de animes, promove concursos e encontros com o público, além de falar sobre mangás. “Eu cresci grande parte da minha adolescência vendo youtubers. Quero falar sobre esse universo, indicar coisas que eu gosto como se estivesse falando para novos amigos”, explica o criador de conteúdo digital.
Nos eventos que participa, Kou observa não só a nostalgia como elemento recorrente do universo geek – “vejo vários cosplayers de Os Cavaleiros do Zodíaco, um anime de quando eu era criança, então acho que também tem disso, de buscar sua criança interior no cosplay”. Mas tem também, segundo o influenciador, um movimento que aproxima gerações. “Nos vídeos que eu faço, converso com uma pessoa de 40 anos, e logo depois com uma pessoa de 16. Provavelmente, se essa pessoa de 40 tiver filhos, ela vai passar esse gosto por mangás e animes, assim como fez meu pai”, vislumbra.
GEEK DA QUEBRADA
Ao juntar grupos de diferentes territórios, origens e idades, eventos que celebram a cultura geek podem ser considerados espaços para criação de laços sociais e nutrir o sentimento de pertencimento. “Artistas e fãs questionam mais abertamente
a normatividade recorrente, até então, nas produções midiáticas e nos eventos”, observa a professora Sabrina da Paixão Brésio. Em São Paulo, por exemplo, iniciativas como a feira de quadrinhos e artes gráficas POC CON, protagonizada por artistas LGBTQIA+, e a Perifacon, conhecida como a primeira convenção nerd das favelas, furam a bolha do lugar-comum.
“A Perifacon descentraliza os eventos pop para as periferias e garante acesso ao público mediante gratuidade, além de ser um espaço preferencial para artistas das quebradas”, exemplifica Brésio. Criada por sete amigos, esta é uma iniciativa de amantes de quadrinhos, livros, desenhos e cultura pop que cresceram nas periferias paulistanas, como explica uma de suas fundadoras, Andreza Delgado: “A gente quer trazer outra perspectiva sobre a quebrada: essa quebrada que quer ter acesso à tecnologia e que está produzindo cultura é que quer democratizar a cultura nerd e geek. Então, a Perifacon nasce desse desejo inconsciente, eu diria, de democratizar a cultura nerd/geek no país”.
Da primeira edição, em 2019, no Capão Redondo, à terceira, em 2023, na Brasilândia, o público do Perifacon passou de 4 mil para 13 mil pessoas. Neste ano, a iniciativa estima 15 mil visitantes nos dias 27 e 28 de julho, na Fábrica de Cultura de Diadema, zona Sul da cidade. Na programação, painéis, bate-papos, oficinas, concurso de cosplay e outras atividades, além da participação de artistas das periferias e do mainstream. “A gente quer o baile funk, a gente quer a roda de samba, mas a gente quer
o evento geek também, porque quer quebrar a expectativa desse preconceito de que a gente cabe nas caixinhas”, defende Delgado.
Ao longo dos anos, a fundadora da Perifacon conta que a iniciativa também se entendeu enquanto um braço educacional. “Depois de cinco anos, posso dizer que não somos só um evento.” Hoje, nas escolas, a Perifacon realiza um trabalho junto a professores e estudantes. “A gente foi percebendo que precisa estar muito conectado com o território que vai nos receber. É muito importante estar dentro da sala de aula porque a gente troca com os estudantes. Fala sobre quem quer ilustrar, quem quer
O pôster da 4ª edição da Perifacon foi criado pela ilustradora/quadrinista Jeygglypuff, que já realizou trabalhos para a Marvel, representando o Brasil.
Nunes (jeygglypuff)
Jeyce
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produzir seu próprio game, traz outras possibilidades de coisas que, por exemplo, para mim ia ser muito legal ter ouvido”, acrescenta.
EXPANDIR TEMAS
Somada a iniciativas como a da Perifacon, que amplia o raio de atuação de produtores e consumidores da cultura geek, empresas como a Game Arte olham para os jogos como uma possibilidade de crianças, adolescentes e jovens aprenderem novos conhecimentos. Atriz e roteirista de jogos, Tainá Félix, junto ao sócio Jaderson Souza, criou a empresa há 13 anos. “Eu entrei nesse universo pelo viés da educação, entendendo que o videogame é um espaço de cultura, um objeto da cultura e um recurso interessante para pensar espaços de aprendizagem”, recorda.
No começo, Félix e Souza dedicavam-se a atividades socioeducativas com videogame em bibliotecas, fábricas de cultura e escolas até investirem, também, na possibilidade de outra contribuição dentro desse universo: o desenvolvimento de jogos com um recorte racial e de valorização da cultura nacional e das culturas negras. Da formação em teatro e experiência na criação de personagens, Félix passou, nos últimos sete anos, a roteirizar esses enredos digitais. O primeiro game lançado foi A Nova Califórnia (2017), baseado em conto homônimo do escritor Lima Barreto (1881-1922). “A gente levou o Lima Barreto para ser jogado em um zilhão de lugares diferentes – ele foi baixado em mais de 70 países –, isso é muito importante”, comemora a roteirista.
O segundo jogo, Amora (2018), conta em versos a história de uma vampirinha, com a mesma dinâmica do Pac-Man [famoso jogo eletrônico dos anos 1980]. Já a trilogia Sankofa Arcade faz parte de um universo afrofuturista no qual o primeiro jogo se chama É Doce! (2022), o segundo, Ilê (2023), e o terceiro, que será lançado neste ano, Ore, e fazem uma referência à Sankofa, filosofia africana da circularidade do tempo. "Quase todos os personagens dos jogos AAA (mainstream), ao representarem personagens brasileiros, fazem referência a samba, futebol ou capoeira. Mas, a gente tem muitas outras formas de representar corpos diversos
e precisa disso para que consiga gerar essa identificação", defende.
Diante da vastidão de possibilidades deste universo, a professora Sabrina da Paixão Brésio recomenda cuidado ao delimitar os potenciais da cultura geek. “Reconhecê-la como um conjunto de culturas, sempre no plural, organizadas em comunidades, com linguagens, costumes e mobilizações simbólicas próprias, é dar um passo a mais para se aproximar da riqueza artística e social que permeia nosso cotidiano. Mais do que conhecer, o convite é re-conhecer o quanto cada um e uma de nós já está imerso neste caldo cultural, e nos permitir fruir, se divertir, questionar e criar junto às juventudes”, conclui.
Amanda Policarpo
O influenciador João Saito compartilha em seu perfil no Instagram, @orewakou, dicas de animes e mangás.
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CULTURA GEEK
Sesc São Paulo realiza diversas ações dedicadas a games, mangás, cosplay, animes e quadrinhos
Entre os dias 7 e 9 de junho, o Sesc Rio Preto, no noroeste paulista, é ocupado por milhares de gamers, kpoppers, otakus, cosplayers e outras tantas tribos que povoam o universo geek. O Animerp, é uma das atividades realizadas pelo Sesc São Paulo em celebração a esse universo criativo. Ao longo do ano, unidades do Sesc em todo o estado oferecem encontros, feiras, bate-papos, vivências e cursos que convidam o público a experimentar esse diversificado universo, atraindo diferentes idades.
Para Flávia Carvalho, gerente da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, “por meio da interação com a cultura geek, o público juvenil impulsiona uma riqueza de experiências, que transcendem fronteiras e épocas", explica. Pensando nisso, "o programa Juventudes do Sesc São Paulo ressoa como um farol de valorização e incentivo à produção cultural juvenil, que acolhe expressões artísticas e formas criativas de manifestação, como este universo geek, que se mescla com a diversidade que compõe a sociedade, e une entusiastas de todas as origens e idades na celebração de afinidades comuns", acrescenta Carvalho.
De acordo com Juliana Braga de Mattos, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, “O programa de Tecnologias e Artes do Sesc São Paulo tem em sua vocação o desenvolvimento artístico, de potência criadora,
sendo, portanto, natural que os ETAs – Espaços de Tecnologias e Artes –sejam um terreno fértil e acolhedor para as expressões das comunidades nerds e geeks. Não por acaso existem na instituição projetos longevos voltados a esses ‘multiversos’, como são @Geek e NerdCon, e temos visto, ano a ano, novas iniciativas florescerem na relação entre unidades e seus territórios”, pontua.
Confira destaques deste e dos próximos meses:
RIO PRETO
Animerp
Evento reúne ícones do universo geek com elementos das culturas orientais. De 7 a 9/6, sexta a domingo. GRÁTIS.
GUARULHOS
GuaruGeek
A unidade da Grande São Paulo estreia seu evento geek. Dias 20 e 21/7, sábado e domingo. GRÁTIS.
RIBEIRÃO PRETO
@Geek
Ponto de encontro e de difusão da cultura geek, com oficinas, vivências e apresentações. Dias 20 e 21/7, sábado e domingo. GRÁTIS.
Um dos maiores eventos de cultura pop no interior paulista, o Animerp acontece no Sesc Rio Preto nos dias 7, 8 e 9 de junho.
REGISTRO
FicFan
A região do Vale do Ribeira celebra a cultura geek em evento para todas as idades. Dias 24 e 25/8, sábado e domingo. GRÁTIS.
ARARAQUARA
Geekarr
Segunda edição com ações de cultura pop, maker, artes e tecnologias. Dias 7 e 8/9, sábado e domingo. GRÁTIS.
CATANDUVA
Jovem On
Dois dias para celebrar a cultura diversa dos animes, quadrinhos, cosplays e mangás. De 25 a 27/10, sexta, sábado e domingo. GRÁTIS.
Fernando Carvalho
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no sesc / juventudes
LANÇAMENTO
capa disponível em quatro cores.
Ensaios de pesquisadores e ativistas dos direitos humanos apresentam um balanço crítico dos direitos conquistados pelas pessoas LGBTI+ e dos desafios futuros para garantir a elas uma existência digna e cidadã.
ERA DA infoxicação
Diariamente, consumimos em nossos celulares – conscientemente ou não –, uma abundância de posts e vídeos que transitam entre o cômico e o trágico, entre o que é notícia e o que é desinformação. Desde vídeos engraçados de cachorros e gatos a denúncias de injustiças; do último lançamento de filme ou de série em plataformas de streaming a discursos de ódio. Nessa rotina de conteúdos que parecem “rolar” infinitamente, fica em xeque o desafio de selecionar conteúdos, distinguir fake news e até de elaborar uma montanha-russa de emoções que atravessam quem está atrás da tela. Por isso, pesquisadores alertam para os efeitos da “infoxicação” – termo cunhado pelo físico espanhol Alfons Cornella, na última década do século 20 –, esse excesso de informações que está contribuindo para uma sociedade cada vez mais desinformada, ansiosa e cansada.
Segundo o diretor-adjunto da Associação Brasileira de Comunicação Pública, Michel Carvalho da Silva, doutor em ciências humanas e sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC), nesse cenário de hiperestimulação sensorial, quem não sabe discernir qualidade e quantidade de informação está mais propenso a ficar “infoxicado”. “Até porque as
mentes humanas possuem capacidade limitada de atenção e sofrem com tantos dados e notícias. Daí a preocupação com as campanhas de desinformação que, valendo-se dessa fadiga informativa generalizada, propaga crenças equivocadas, geralmente embaladas numa linguagem simples e direta, como observamos em alguns memes ou em vídeos engraçadinhos”, explica Silva, que ministrou o curso
A era da infoxicação: a produção da ignorância em ambientes hiperconectados, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo.
Sem vilanizar os celulares ou as mídias sociais, a questão por trás desse fenômeno é a consciência e o bom uso do tempo gasto nas redes, de acordo com o professor da pós-graduação em comunicação da Faculdade Cásper Líbero Luís Mauro Sá Martino, doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Cada postagem, cada troca de mensagens, tem um conteúdo. E, para dar conta disso, precisamos de tempo. Esse é o problema do excesso de informações consumidas em alta velocidade: não há como, de maneira instantânea, dar conta dessa quantidade de dados”, pondera. Afinal, como traçar caminhos para evitar a infoxicação? Neste Em Pauta, Silva e Martino levantam reflexões e sugestões para lidar com esse cenário.
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O excesso informativo produz ignorância?
POR MICHEL CARVALHO DA SILVA
Se para você o cansaço de ficar no celular, atualizando o feed de notícias a todo momento, é equiparado ao de treinar na academia sem sair do lugar, talvez você esteja ficando infoxicado. O neologismo “infoxicação”, criado pelo físico espanhol Alfons Cornella em 1995, tem relação com o consumo desmedido de informações – de todo tipo e qualidade –, que pode afetar o bem-estar, a saúde emocional e até mesmo a qualidade do tempo das pessoas no dia a dia. Para o autor, esse fenômeno é consequência de um mundo onde a exaustividade (“tudo sobre”) prevalece sobre a relevância (“a coisa mais importante”).
No atual ecossistema comunicativo – hiperconectado e caótico –, somos inundados por dados e mensagens, produzidos tanto por profissionais da comunicação quanto por amadores, tanto por humanos quanto por dispositivos automatizados. A abundância de informações – verdadeiras ou não –torna complexa a busca por fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa, como se verificou durante os períodos mais críticos da pandemia da Covid-19. Esse cenário de excesso informativo favorece a infoxicação, de tal modo que as pessoas não conseguem se fixar naquilo que é importante e pode impactar a sua vida e de seu entorno.
Numa analogia simples, o excesso informativo é como estar num rodízio de pizza. Quando ainda nem terminamos de digerir a primeira fatia, já chega outro sabor. No caso da dieta midiática, mal atualizamos o feed de notícias e já somos notificados por mais uma mensagem, num processo de retroalimentação, dado o grau de centralidade das mídias em nossas vidas. Nesse cenário de hiperesti-
mulação sensorial, aqueles que confundem quantidade de informação com qualidade são os mais propensos a ficarem infoxicados. Até porque as mentes humanas possuem capacidade limitada de atenção e sofrem com tantos dados e notícias. Daí a preocupação com as campanhas de desinformação que, valendo-se dessa fadiga informativa generalizada, propagam crenças equivocadas, geralmente embaladas numa linguagem simples e direta.
Diante desse contexto de sobrecarga informacional, crescem as preocupações acerca dos potenciais danos da infoxicação ao ser humano, que vão desde a ansiedade e estresse, até sintomas somáticos que prejudicam a concentração e o pensamento crítico. O excesso de trabalho cognitivo, que envolve a assimilação de mais informações do que a capacidade do ser humano permite, provoca fraturas no sono e impede o repouso. Ao criticar o caráter inexorável do regime 24/7, Jonathan Crary afirma que “o tempo para descanso e regeneração dos seres humanos é caro demais e não é estruturalmente possível no capitalismo contemporâneo”, em 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono (Ubu, 2016).
A infoxicação dialoga com a patologia FOMO, uma sigla em inglês para fear of missing out, que, traduzida para o português, significa “medo de ficar de fora” do que está acontecendo, principalmente no ecossistema digital. A FOMO é caracterizada por uma ansiedade relacionada ao exagerado uso de celulares e de plataformas digitais. Essa sensação de medo produz um ritual de checagem constante de aplicativos, em que o sujeito sente necessidade de ficar olhando o tempo todo o feed de notícias e, quando não consegue, como no trânsito ou no trabalho, pode sentir irritação.
A chamada “era da infoxicação” contribui para a produção sistemática da ignorância, isto é, do “não saber” ou da “privação de conhecimento”. Em Homo Deus (Companhia das Letras, 2016), Yuval Noah Harari argumenta que, antigamente, a censura oficial funcionava bloqueando o fluxo de informação. Já no século 21, ela o faz inundando as pessoas de informações irrelevantes. O autor chama a atenção para o fato de que hoje não sabemos mais no que
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A questão não é simplesmente de fluência, mas de capacidade analítica para selecionar, distinguir e hierarquizar as informações
prestar atenção e, na maior parte do tempo, passamos o dia discutindo questões secundárias. “Em tempos antigos, ter poder significava ter acesso a dados. Atualmente, ter poder significa saber o que ignorar”, sustenta Harari.
De fato, ambientes infoxicados favorecem campanhas de desinformação, que corroem o tecido social e geram um sentimento de ceticismo generalizado em relação às instituições tradicionais de construção e validação do conhecimento, como o Estado, a imprensa profissional e, sobretudo, a ciência. A agnotologia, conceito difundido por Robert Proctor para indicar o estudo da promoção da ignorância e da incerteza em campos nos quais o consenso científico está bem estabelecido, chama a atenção para técnicas desenvolvidas por agentes políticos e econômicos a fim de confundir grupos de interesse acerca da realidade em que vivem.
Pioneira na produção deliberada de ignorância, a indústria do tabaco investiu pesado em sua campanha, por décadas na mídia, para desacreditar as pesquisas que relacionavam o consumo de cigarro ao câncer de pulmão. Hoje, o negacionismo climático conta com alguns influenciadores digitais para contrapor a tese de que a temperatura do planeta está aumentando e que essa escalada é produto da ação humana. Mais do que propagar desinformação, os produtores de ignorância têm o objetivo de gerar controvérsias, como o movimento antivacina ou os grupos de extrema-direita no Brasil, que questionam a integridade das urnas eletrônicas.
Evidentemente, todos somos ignorantes em algum grau e em determinados assuntos. Proctor explica que existem diferentes modalidades de ignorância: a passiva (omissão, lacuna); a seletiva (por hierarquização, ao focarmos nisso ao invés daquilo); e a ativa
(por decisão consciente). Também existe a chamada ignorância virtuosa, que se apresenta como resistência a um saber indesejado ou perigoso. Quem nunca escutou a frase: “Não sei nem quero saber e tenho raiva de quem sabe”? Sem dúvida, desconhecer certos fatos nos traz conforto. No entanto, para viver em sociedade é preciso ter uma compreensão compartilhada da realidade. Por isso, a produção deliberada de ignorância é um problema para a gestão pública, principalmente quando, por exemplo, se tenta mitigar os danos de uma pandemia.
No final dos anos 1990, os “ciberotimistas” acreditavam que a expansão da internet representaria um salto no desenvolvimento humano. Pensava-se que, de posse de dispositivos digitais, as pessoas teriam acesso a um grande repositório de conhecimento, materializando o mito do sujeito iluminista bem-informado, que se guia pela razão. Porém, o que verificamos hoje é uma parcela significativa da sociedade que se orienta por informações sem lastro com a realidade ou por teorias conspiratórias. A questão não é simplesmente de fluência, mas de capacidade analítica para selecionar, distinguir e hierarquizar as informações em circulação no ecossistema midiático. Para isso, é preciso ter momentos de desconexão, repouso e ócio, o que paradoxalmente contraria esse sujeito neoliberal, que opera sob a égide do imperativo contemporâneo da atualização e não tem tempo para refletir sobre o que consome nas redes sociais.
Michel Carvalho da Silva é doutor em ciências humanas e sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e diretor-adjunto da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) em São Paulo.
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O que fica depois de ver mil posts?
POR LUÍS MAURO SÁ MARTINO
Você já esteve em algum lugar com barulho, muito barulho, a ponto de não mais conseguir distinguir cada um dos sons? Há vários ambientes onde isso pode acontecer, seja nas ruas de uma cidade em dia de congestionamento, em uma reunião de trabalho mais acalorada, ou mesmo em um bar com música ao vivo e um sistema de som particularmente desregulado. Depois de um tempo, por maior que seja o esforço, todos os sons se misturam transformados em ruído. É impossível encontrar qualquer sentido e, depois de um tempo, é comum a pessoa se sentir atordoada.
Em música, esse tipo de agrupamento sonoro às vezes é chamado de cluster, ou “aglomerado”. É o que acontece se você apertar várias teclas juntas de um piano com a palma da mão. Não é possível distinguir o som de cada nota, e a impressão é mais de um ruído do que de música. É quase um paradoxo: há muitos sons ao mesmo tempo e, por conta disso, não é possível distinguir – ou entender – nenhum. Essa é a conexão para entender um fenômeno contemporâneo poderoso, mas quase invisível: o cansaço decorrente do excesso de informações. Existe um termo para isso, criado pelo físico espanhol Alfons Cornella: infoxicação, resultado de “informação” e “intoxicação”. Assim como em um cluster musical, você está ouvindo muitos sons, porém, não consegue distinguir nenhum, o excesso de informação pode resultar, paradoxalmente, em informação nenhuma.
“Que mal há nisso?”, você pode perguntar. A rigor, nenhum. Pode ser entediante esperar na fila do ônibus ou ficar sem fazer nada durante um percurso urbano de transporte público. Redes digitais oferecem entretenimento rápido e aparentemente sem custo (a discussão do “aparentemente” é longa, por isso fica para outro dia). Também faço isso às vezes – ultimamente tenho acompanhado posts
de filhotes de tartaruga e capivaras. Mas há efeitos colaterais, e precisamos saber o que estamos fazendo. Esse cenário pode estar contribuindo para criar pessoas cansadas, ansiosas e desinformadas.
Logo nas primeiras horas da manhã, uma pessoa conectada em qualquer rede social já teve acesso a centenas de posts. Nos ônibus e trens de qualquer grande cidade, a imagem de pessoas olhando para a tela de seus celulares, passando o dedo na tela para ver a próxima postagem é comum. Se você prestar atenção – nas pessoas, não na tela – e observar a velocidade do movimento, vai notar que os olhos não param mais do que um segundo em cada post. Raramente algo merece mais tempo, dez ou 12 segundos.
Essa quantidade de informação vai além de nossa capacidade cerebral. Nossa atenção, até onde podemos saber, é limitada. Diante de um nível muito alto de dados, nossa capacidade de gravar e absorver se dilui. Em situações nas quais você precisa mesmo manter a concentração horas a fio em uma tarefa, o resultado é um esgotamento mental, às vezes mais difícil de resolver do que o cansaço físico. Nas redes digitais, como não há essa obrigação, o resultado é o oposto – uma intensa dispersão.
Cada post chama a atenção durante um tempo mínimo, causa um efeito igualmente mínimo e é arrastado para cima, substituído pelo próximo e recomeçando a cadeia. Depois de algumas horas, você viu centenas de informações, vídeos, letras coloridas, danças, anúncios – lembra-se do “aparentemente” sem custo? – e pode se perguntar: quanto disso você reteve? Seus olhos provavelmente estarão cansados da luminosidade da tela, sua mente recebeu milhões de bits de informação e o resultado, exceto por alguns posts compartilhados, talvez seja nenhum.
Nosso cérebro, continuamente estimulado, é sempre convocado para ficar em estado de alerta. Nossa sociedade parece ter perdido a ideia de “tempo livre”, e qualquer segundo sem atividade é imediatamente preenchido por informações, seja a troca de mensagens, seja o post na mídia digital ou conferindo alguma coisa do trabalho no aplicativo de produ-
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Nossa sociedade parece ter perdido a ideia de “tempo livre”, e qualquer segundo sem atividade é imediatamente preenchido por informações
tividade. A próxima postagem pode ser sensacional, trazer a recompensa que estamos esperando, ou o alerta do grupo da família ou do trabalho pode significar uma demanda imediata.
A velocidade do humano parece estar cada dia mais ligada aos ritmos do digital, no qual tudo é instantâneo – ao que parece. O instante se tornou a medida de tempo predominante no mundo contemporâneo. Um dos resultados possíveis desse cenário pode ser a ansiedade decorrente dessa expectativa em relação às trocas de mensagens e às interações em redes digitais.
Até aqui falamos das questões técnicas e de forma. Mas, cada postagem, cada troca de mensagens, tem um conteúdo. E, para dar conta disso, precisamos de tempo. Esse é o problema do excesso de informações consumidas em alta velocidade: não há como, de maneira instantânea, dar conta dessa quantidade de dados. Pode ser um pouco contra intuitivo, porém, em quantidades muito altas, informação pode gerar desinformação.
Sem dúvida, a informação é importante. Como professor, seria a última pessoa a falar o contrário. No entanto, ela não basta. É necessário transformá-la em conhecimento, e isso leva tempo – exatamente o que não temos. Para isso, você precisa contrastar esse dado novo com todo um repertório anterior, formado de outros saberes, experiências de vida. É necessário recorrer à memória e, por que não, à imaginação. Isso demanda um período de reflexão sobre o que está na tela, diante de nossos olhos. Quando isso não acontece, há o risco de você tomar a informação por seu valor nominal, fora de con-
texto, distante de suas implicações. E, na velocidade das mídias digitais, antes de passar para o próximo post, existe um risco ainda maior – o de você acreditar nessa informação sem maiores cuidados.
"Então, é só acabar com as redes e tudo bem?”, alguém pode perguntar. Evidentemente que não. Seria o mesmo que propor acabar com os instrumentos musicais porque, quando mal tocados, podem fazer barulho. Antes de levantar um dedo acusador contra os smartphones e as mídias sociais, vale lembrar também seu potencial de conexão entre pessoas, a visibilidade conquistada por vários grupos sociais e as possibilidades de trocas de informações importantes. O potencial das redes digitais e a necessidade de informação para agir estão ligados, e seus resultados para a cidadania são expressivos.
Qual a diferença? O direcionamento da informação. Para manter a comparação com a música, a rolagem infinita da tela do smartphone na expectativa do próximo post poderia estar perto do cluster, em uma infoxicação; no caso das conexões voltadas para alguma finalidade, é como se você estivesse ouvindo música e distinguindo os sons, a letra, a melodia e assim por diante. Ela faz sentido. Essa, talvez, seja a melhor conexão.
Luís Mauro Sá Martino é doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros livros, de Teoria das mídias digitais (2016) e Sem tempo para nada (2022), ambos editados pela Vozes.
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Reconhecida em debates públicos sobre política, gênero e ciências sociais, a persona drag criada por Guilherme Terreri Lima Pereira comanda o canal Tempero Drag, no YouTube, há quase 10 anos.
quem tem medo de
RITA VON HUNTY?
Drag queen criada pelo ator e professor Guilherme Terreri usa humor e arte para refletir sobre temas sociais e políticos
POR LUNA D’ALAMA
Além de estampar características clássicas de uma drag queen, como perucas, maquiagem, acessórios e roupas coloridas, Rita von Hunty também tem postura e conteúdo típicos de uma professora. Há mais de uma década, essa figura exuberante e carismática trata, com desenvoltura, de temas como estudos culturais, literatura, política, filosofia e sociologia. Seu sotaque de tia do interior paulista (com o “t” no céu da boca) vem da ascendência italiana, sempre vibrando o “r” no início das palavras. O nome é composto por uma miscelânea de inspirações: Rita homenageia a diva do cinema hollywoodiano Rita Hayworth (1918-1987); o estilo pin-up e a preposição “von” vêm da dançarina burlesca estadunidense Dita von Teese; e “hunty” é uma gíria usada entre drag queens nos Estados Unidos para demonstrar carinho ou admiração.
Toda essa mistura de referências ganhou, também, o seu canal no YouTube, Tempero Drag, que conta com 1,2 milhão de inscritos e, desde 2015, já publicou mais de 320 vídeos que abordam, sempre com bom humor, questões sociais, políticas, identidade de gênero, sexualidade e estereótipos LGBTQIA+, entre outras. Além disso, desde 2021, Rita assina uma
coluna na revista Carta Capital, na qual explora assuntos relacionados à comunidade LGBTQIA+, corpos e modos de vida diversos.
A personagem foi criada como uma brincadeira, no Carnaval de 2013, pelo ator e professor Guilherme Terreri Lima Pereira. Natural de Ribeirão Preto (SP), Terreri é formado em artes cênicas e em língua e literatura inglesa. Sua drag queen politizada acredita – assim como ele – na educação como ferramenta emancipadora. Neste Encontros, ele dá vida e voz à sua criação mais famosa, que compartilha reflexões, inquietações e provocações sobre temas urgentes na sociedade contemporânea.
DRAG: UM DUPLO
Quando encarno uma personagem drag queen, sustento uma duplicidade. Carrego meu duplo para onde for. Então, existe uma dualidade que precisa ser mantida. Todas as pessoas que estão vivas nesta era digital também têm um duplo de alguma forma, dão corpo a esse impossível. A pessoa que sustentamos em público – ética e moralmente – convive e pode existir com outra pessoa que não fazemos questão de ser em público, ou que não podemos ser.
Segundo Judith Butler [filósofa estadunidense e uma das principais pesquisadoras do feminismo e da teoria queer], se tivéssemos acesso às fantasias sexuais de todas as pessoas, não haveria esfera pública como a gente entende na democracia. Como é que nós respeitaríamos as autoridades sabendo de suas fantasias eróticas? Como estabelecer relações de impessoalidade assim? Em suma, Rita von Hunty é, indissociavelmente, o duplo que Guilherme Terreri sustenta neste espaço e tempo. Então, querendo ou não, tenho que dar cabo da Rita na minha análise, e provavelmente a Rita teria que dar cabo do Guilherme na análise dela.
ATRIBUTOS DO SUJEITO
Segundo prega o pós-estruturalismo [corrente filosófica surgida na França, nos anos 1960, que descarta a interpretação do mundo dentro de estruturas preestabelecidas e socialmente construídas], o corpo é presente da linguagem. Quem cunhou essa ideia foi o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981). E o que significa isso? Que, a cada tempo histórico, a gente aprende e desaprende formas de enunciar, de imaginar, de nomear esse pedaço de carne que carregamos conosco. A cientista
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SOU CONSIDERADA, POR MUITOS, UMA AMEAÇA PORQUE COLOCO EM XEQUE A MANUTENÇÃO, A ESTABILIDADE DAS COISAS. POR QUE SERÁ QUE FIGURAS
INSURGENTES COMO EU CAUSAM TANTO FRISSON?
política e quadrinista sueca Liv Strömquist aborda esse tema. Em seu livro A origem do mundo, a autora conta que, até o século 19, não havia nome para o órgão genital feminino. Aliás, ele não era visto como um órgão, mas como a ausência de pênis e testículos. Grandes lábios, pequenos lábios, clitóris, vagina e vulva: nada disso existia para a medicina até dois séculos atrás. Essas partes não eram nomeadas; portanto, eram desconhecidas, não existiam. Já a filósofa estadunidense Nancy Fraser se opõe aos usos do lacanismo pela teoria feminista, e acredita que o corpo e a linguagem são atributos do sujeito. Isso porque, para ela, existe um polo produtor de linguagem, e esse polo não está interessado em produzir linguagem sobre algo que não o valida. A partir daí, há todo um campo em disputa.
LINGUAGEM NEUTRA
Temos visto grupos sociais lutando por tímidas mudanças na língua portuguesa. E do coração de outros grupos – que imaginamos eruditos, interessados e abertos ao debate – nasce o reacionarismo.
Dizem: “Vocês estão destruindo a língua, inventando termos”. Na sala de aula, eu brinco: “Claro, porque proparoxítona veio de uma bromélia. Feminicídio estava na terra. Alguém bateu uma enxada e a palavra saiu”. Toda palavra é inventada. A linguagem busca incessantemente estabelecer bordas para o real, para os corpos. A questão que fica escondida nesse ódio conservador é qual grupo pode inventar e qual não pode. Temos pessoas lutando socialmente para dar voz ao próprio corpo, dizendo que não respondem à desinência e gênero “o” nem “a”. No sentido contrário, há grupos falando: “Cale o seu corpo. A estrutura da gramática normativa importa mais que a sua vida”. O que nos move na educação é repensar as perguntas.
RUMOS DOS FEMINISMOS
Esta é uma batalha do aqui e agora. Judith Butler, por exemplo, acaba de publicar no Brasil Quem tem medo do gênero? (Boitempo, 2024). Já a Silvia Federici [filósofa e feminista italiana radicada
nos Estados Unidos] publicou, no fim do ano passado, o livro
Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo (Elefante, 2023).
E a Nancy Fraser debate o tema na obra Destinos do feminismo: do capitalismo administrado pelo Estado à crise neoliberal (Boitempo, 2024). Estamos enfrentando um movimento feminista de extrema direita, de tradwives, esposas tradicionais. Em abril, por exemplo, uma deputada estadual defendeu, em plenário, que “o homem é a cabeça da família” e que “a mulher deve ser submissa ao marido”. Sobre o assunto, a professora de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carla Rodrigues [e Sônia Corrêa] publicou em 2023, nos Cadernos Pagu, o artigo Apresentando "Apresentando 'Terfs, movimentos críticos do gênero e feminismos pós-fascistas'”. É um dossiê sobre o avanço de movimentos trans-excludentes, e o que isso nos informa sobre para onde estamos indo. Essas correntes que falam da mulher “natural”, da mulher “de verdade”, da mulher tradicional, jogam fora pelo menos dois séculos
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de luta feminista. É um discurso que começa a ser produzido para justificar, nas diferenças morfológicas, as diferenças sociais. É perigosíssimo e temos que combatê-lo.
VIP DA HUMANIDADE
Em 2021, publiquei um vídeo no canal Tempero Drag chamado "Humanidade, sei...". Explico que, mesmo na tentativa de rebeldia, de furar o imaginário social, existe uma barreira da inteligibilidade do corpo. “Olha, você até pode existir, reivindicar acesso à universidade, pleitear uma barra acessível no banheiro, uma sinalização no chão, um sinal auditivo no trânsito, desde que seu corpo possa ser entendido numa determinada particularidade." Ailton Krenak [líder indígena, filósofo e imortal da Academia Brasileira de Letras] fala sobre quais são os corpos que podem acessar o VIP da humanidade. Sujeitos merecedores de receber o selo de ser humano. A gente continua produzindo esse modelo que almeja a existência de um cidadão universal. E aceita que corpos fora do padrão sejam deixados para trás. Podemos chamar uma pessoa LGBTQIA+, mas só no mês de junho, do orgulho LGBTQIA+. Em paralelo, quem será que continua falando sobre política habitacional, taxa Selic, dívida pública? Enquanto os grupos minoritários são entretidos nos debates que tangem, que pautam, que montam suas diferenças, quais são os corpos autorizados a falar em nome da universalidade? Existe algo muito perigoso e nocivo no fato de a gente ser
capaz de pensar a identidade dos sujeitos, mas não a atribuição social que os torna sujeitos ou objetos. É um discurso libertário dentro de um sistema de controle.
VÉSPERA DO FIM
Uma questão que tem me rodeado agora é: “De que adianta educar às vésperas do fim do mundo?”. Estou às voltas com isso desde que a crise climática global chegou à beira de seu ponto de inflexão, ou seja, de uma mudança irreversível. Segundo o chefe do clima da Organização das Nações Unidas (ONU), Simon Stiell, a humanidade tem dois anos para reverter o quadro de destruição do planeta ou abraçá-lo. E abraçá-lo significa entender que está dada nossa possibilidade de existência dessa outra forma, em um mundo apocalíptico. Essa tem sido uma grande angústia do Guilherme e da Rita. Para usar uma formulação cara ao filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995): “O que pode um(a) educador(a) frente ao fim do mundo?”. Ailton Krenak talvez nos dissesse que a gente pode retardar, adiar o fim do mundo. Ou que, no fim do mundo, a gente pode dançar, dada sua inevitabilidade. Nossa postura final talvez seja decidir como enfrentar essa situação. Precisamos pensar numa pedagogia ancestral para o fim do mundo, pois o mundo dos povos originários – tal qual eles o conheciam – já acabou há 524 anos.
JEITO CERTO?
Há alguns anos, dei uma aula intitulada "Quem tem medo de Cassandra Rios?". Cassandra Rios (1932-2002) foi a autora de literatura mais censurada pela
ditadura civil-militar brasileira. Conhecida como Safo de Perdizes, ela escrevia sobre lesbiandade e sua literatura flertava, muitas vezes, com o erótico. Essa minha aula, porém, não era sobre a escritora nem sobre a sua obra, e sim sobre as estruturas que tremem quando os temas gênero e sexualidade são chamados à baila. Este, aliás, é um dos meus interesses de pesquisa: “Quem tem medo de drag queen? Quem tem medo de Rita von Hunty?”. Essas perguntas dão pano para manga, pois confrontam dimensões como a performance de gênero, a construção do corpo, da personalidade, dos trejeitos, da voz. Sou considerada, por muitos, uma ameaça porque coloco em xeque a manutenção, a estabilidade das coisas. Por que será que figuras insurgentes como eu causam tanto frisson? O conservadorismo e o reacionarismo não são exclusivos da direita ou da extrema direita. Quando brigamos com alguém pelo jeito “certo” de arrumar um travesseiro, ou discutimos se o feijão vai em cima ou embaixo do arroz, entre muitos outros exemplos da vida cotidiana, estamos dando voz aos pequenos conservadores que habitam em nós.
Ouça a íntegra da conversa com Rita von Hunty, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 24 de abril de 2024. A mediação do bate-papo é de Emilia Carmineti, psicóloga e assistente de gênero e sexualidade na Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.
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ANUNCIAÇÃO
POR CRISTHIANO AGUIAR
ILUSTRAÇÕES AMANDA MIRANDA
Quando Márcia, ensanguentada, sair da capela, ela terá dúvidas se de fato existiu o fantasma da Sinhá Torta.
Mas antes é preciso retroceder vários passos, é preciso entender, em primeiro lugar, a escada em espiral do seu coração.
– Nada mais precioso do que ter paz de espírito...
A frase ela soltou enquanto o carro sacolejava pela estrada, horas antes de chegar ao engenho arruinado.
Foi dita num tom de distração – a porta esquecida entreaberta e pela qual o gato da casa foge.
Márcia, porém, não gosta que nada escape de suas mãos. Seu mundo tem muito das muralhas de um castelo, com as ondas do mar espancando as pedras de dentro para fora. Pouco antes da frase, ela cochilava no banco do passageiro, enquanto seu boy dirigia com atenção máxima por causa da chuva. Tinha sonhado com árvores cujas folhas eram fumaça e sangue: um desmantelo dos flamboyants na tarde, como já cantava Alceu Valença.
– Tu acha que a gente consegue ver... a coisa? – Perguntou o ficante, enquanto fazia mais uma ultrapassagem.
A pergunta lhe parecia completamente sem propósito. O máximo de sobrenatural para Márcia consistia em admirar como a paisagem das plantações de cana de açúcar, dos dois lados da estrada, se dissolvia nos vidros ensopados do carro. O cheiro da cana e da terra molhada enchia o veículo. Para Márcia, essa mística bastava.
O ficante se chamava Honório, só que morria de vergonha do próprio nome. Por isso, assinava como H’n. Ele era redator de uma agência em ascensão no Recife e se via como um artista. Grafitava, fazia origamis, escrevia poemas “de subversidade” (sic). Atualmente, H’n buscava respostas nas verdades simples do campo. Viajava nos finais de semana de folga para plantar ou colher vegetais em sítios ou ecovilas dos amigos. Márcia não pegava o que ela classificava como “caras meio viajados”. Mas, diante das circunstâncias do recente fim do seu namoro, H’n era o que tinha pra hoje.
O fim foi triste, como deve ser. Terminado o namoro, ela ficou com o quinhão da culpa; o ex, com o quinhão da mágoa. Talvez eu esteja quebrada?, ela se perguntava. Porque de novo ela tinha entrado numa relação com um plano de fuga. Na noite do término, na sala do apartamento
dela, no bairro do Pina, ele reclamou de frieza e rejeições. Ela não entendia: ainda continuavam transando e fazendo coisas ok juntos! A iniciativa do término foi dele. Após refletir um pouco, Márcia aceitou que deveriam acabar. Ela não derramou lágrimas – quando ele partiu do apartamento dela, Márcia sentiu, em meio ao peso do rompimento, o velho sentimento de libertação.
Como também Alceu cantaria, Márcia, na primeira manhã após o término, acordou mais cansada do que sozinha. Trocaram mensagens respeitosas, desculpas pelas palavras afiadas e, nos dias seguintes, os objetos pessoais de cada um foram deixados nos respectivos apartamentos. Márcia pensou como tudo é literatura. A cada minuto, casais trocam juras de amor, ou os objetos do fim. A cada minuto, cada casal enamorado é o mesmo casal, cujos prazeres, tormentos e desfechos formam um círculo desde os primórdios dos tempos.
Era insuportável ficar as noites em casa. Nem ousava retomar, por exemplo, o rascunho do seu segundo romance. Precisava se esquecer nos corpos dos homens. Para isso quase qualquer um servia. E, sim, o sexo pode curar, porque ele é uma das necessidades puras. As noites com H’n a distraíam? Com certeza, ela responderia. Ao mesmo tempo, a cada encontro, ela o repelia mais e mais e mais.
– Tamo chegando. A galera já está lá. Bom que tá estiando. Vai ser ar-re-pi-an-te.
Márcia suspirou – vamos lá.
*
O engenho em ruínas, há uns 40 minutos do Recife, tinha um nome oficial em homenagem a algum santo ou santa, mas o seu nome real era este: Engenho Três Mortes. O tempo esquecera quais mortes foram aquelas. Mas não esquecera da Sinhá Torta, uma das assombrações mais famosas do estado, suposta habitante do engenho. Havia curtas, webcomics, peças de teatro e romances sobre a misteriosa aparição. Há tempos
Márcia desejava visitar o lugar para fazer pesquisa para seu novo romance de terror. Logo, se tivesse que aguentar H’n mais um pouco naquele dia, paciência. Suportava os sábados menos do que a companhia dele.
A agência de H’n planejava usar o engenho mal-assombrado para uma campanha de uma marca de sabonetes. Márcia não tinha ideia como é que um
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sabonete e uma assombração poderiam combinar, mas aí é que entra a magia da publicidade, não é mesmo? Seu ficante claramente estava feliz que ela o acompanhava – isso a lisonjeou. Ao chegarem no lugar, a apresentou aos colegas de agência que lá estavam com pose de namorado – e aí foi menos interessante. Márcia sentiu desconforto ao descobrir ser a única mulher do grupo. Por fim, chamou sua atenção o incômodo que todos os rapazes da agência expressavam por estarem ali.
- Tu não sente uns calafrio?
Ela não sentia, porém mentiu e disse que sim.
H’n a cercava demais, sem dúvidas. Cometeu a burrada de dizer que estava menstruada: o cara começou a tratá-la como uma boneca de porcelana. Márcia amava carinho, atenção, gentilezas. Porém seu parceiro sugava todo o ar à sua volta e, além disso, impaciência era sua atual condição de sobrevivência.
A tarde caía rápido e não chovia mais.
Feita a social com todo mundo, a escritora garantiu logo um espaço para si, usando como desculpas o fato de que não queria atrapalhar o trabalho de pesquisa deles. Sozinha, vagou pelas ruínas, tomando um caminho sempre oposto ao grupo dos homens, que falavam alto, gritavam coisas, riam e gesticulavam.
A terra estava impregnada dos sons da mata e de umidade – goteiras e lama se espalhavam por todo canto. Insetos e morcegos saíam de suas tocas e tomavam conta da noite. Inundavam os ares com seus sons característicos e com movimentos que lembravam uma natureza embriagada.
O que restara do incêndio que há décadas destruiu o engenho era basicamente as estruturas arruinadas da casa-grande, bem como da capela colada à casa. Todo o resto ruíra, ou tinha sido roubado, ou engolido.
Quando deu por si, se encontrava dentro da capela.
Era quase-noite. Tudo pingava. Fungos recobriam tocos de madeira apodrecida; musgo e ervas daninhas nasciam de cada reentrância das pedras da edificação. Não havia espaço para o vazio, ali – tudo fervilhava de uma vida parasitária e vigorosa; cheia de microrganismos, cheia de insetos, de aranhas e de fezes de animais. Márcia passou um bom tempo perdida na observação não da capela – a capela não mais existia – e sim daquelas vidas ocultas dentro da ruína. Apagada, a sua própria muralha. Bem como todos os nomes. Mergulhada, veio a vertigem.
Como fumaça, fumaça nascida de catástrofes, a entidade tomou uma forma de mulher. A entidade a observava de dentro do que era uma mancha na capela – antecipação da noite. O fantasma – forma móvel, feminina – a encarava com olhos em brasa, véus densos entrelaçados.
O susto da aparição foi como um atropelamento. Márcia achou que desmaiaria. Era real o que presenciava, o que sentia? Porque suas pernas diziam CORRA, contudo outra emoção exigia que permanecesse.
Permaneceu. Atraída, seus passos se aprofundaram na noite da capela. Quem assombrava e quem tinha medo? Porque a Sinhá Torta, se uma Sinhá Torta fosse, se retraía e se agitava. Ao olhar pra baixo, Márcia viu escorpiões correndo pelo chão. Dos seus olhos e ouvidos escorreram filetes de sangue. Sangue, também, jorrava pelas suas pernas. Seguiu.
Ao esticar a mão, ao tocar a Sinhá Torta, dois fios se ataram. Camadas de emoções a invadiram e contaram a história de uma mulher: abandono, frio, esperanças, amor, clausura, fuga. Paixão e incompletude.
Salvação e queda repousavam nos seus lábios. Minha nossa, pensou. Quem é você, que sangra e ama? Abandonada nas encruzilhadas, largada pelas ruínas?
Márcia sussurrou:
- Madalena? Teu nome era... Madalena?
Ao ouvir a pergunta, a presença finalmente partiu.
Do lado de fora da capela, ela se via em estado de risco pela primeira vez em muito tempo. Se sentia tão pequena, um grão naquele mundo largo, onde cabelos de sangue e fogo se agitavam... Márcia continuava a viver a dor. Mas e o fio reatado?
Olhou para a capela – tinha vivido um pesadelo acordado? Havia a evidência do sangue, viscoso e com cheiro forte, por todo seu corpo. Márcia escorria pelo rosto, Márcia escorria pelas pernas.
Noite estrelada. Ouviu ao longe vozes masculinas, preocupadas, que a chamavam. Sentiu gosto metálico na boca – sentiu o próprio gosto. Sim, é possível, pensou. Naquela noite, era Márcia que também escapava.
Cristhiano Aguiar é escritor, crítico literário e professor paraibano. É autor dos livros Narrativas e espaços ficcionais: uma introdução (Mackenzie, 2017), Na outra margem, o Leviatã (Lote 42, 2018) e Gótico nordestino (Alfaguara, 2022), vencedor do Prêmio Clarice Lispector de melhor livro de contos.
Amanda Miranda é artista gráfica, diretora de arte e autora de histórias em quadrinhos. Suas produções abordam temas como feminilidade, sexualidade, violência e caos. Já conquistou diversos prêmios, como o CCXP Awards, HQMix e o Prêmio GRAMPO.
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MERGULHO NO desconhecido
Músico e pesquisador, Tiganá Santana faz da experimentação sonora a marca de seus projetos e reverencia Milton Nascimento em releitura do álbum Milagre dos Peixes
POR MATHEUS LOPES QUIRINO FOTOS ADRIANA VICHI
Acuriosidade pelo não convencional marca a trajetória do cantor, compositor e pesquisador Tiganá Santana. O interesse por investigar sonoridade, poesia e percussão, além de realizar experimentos com as linguagens do som, é um marco de toda sua carreira. Essa vocação fica evidente desde o lançamento de seu primeiro álbum, em 2010, Maçalê, palavra que quer dizer “você é um com a sua essência”, em iorubá. “Sou muito interessado no desconhecido”, afirma o músico, que ouve desde kangen, tradicional gênero instrumental japonês, a clássicos da MPB.
Tiganá Santana não esconde a admiração que tem por Milton Nascimento, com quem teve a oportunidade de se encontrar numa festa na própria casa do cantor do Clube da Esquina. “Como nós dois somos tímidos, nem houve muita conversa, mas foi inesquecível”, recorda. Na ocasião, Santana havia feito uma releitura do icônico álbum Milagre dos Peixes, de 1974, considerado o mais experimental de Nascimento, tendo oito faixas
Músico e poeta, o artista baiano também é curador da exposição Línguas africanas que fazem o Brasil, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa.
censuradas pela ditadura militar, na época. Intitulado Milagres, o trabalho de Tiganá, em parceria com Sebastian Notini, foi lançado em 2020, em plena pandemia de Covid-19. Um tributo ao mestre, aclamado pela crítica especializada.
Formado em filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Tiganá Santana foi iniciado no universo da música ainda menino, pelo avô. Experimentação é algo presente em seus processos criativos: adaptou um violão para combinar com seus tons vocais altos e foi o primeiro compositor brasileiro a compor um álbum com canções em línguas africanas.
Em mais de duas décadas de carreira, o artista baiano construiu um repertório eclético em que trabalha com kimbundu e kikongo, idiomas de Angola e do Congo, respectivamente. Seu trabalho é reconhecido no exterior, tendo participado de diversas residências e programas culturais em países dos continentes africano e europeu. Em 2019, foi eleito um dos dez músicos em destaque da cena artística brasileira atual, pela revista britânica Songlines. Neste Depoimento, Tiganá Santana compartilha suas impressões e memórias sobre música, carreira, letras e linguagens presentes em seu repertório.
babel
Ainda criança, frequentei, com a minha mãe, o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), na Universidade Federal da Bahia. O lugar foi fundado no final dos anos 1950 pelo humanista português Agostinho Silva (19061994), exilado no Brasil pela ditadura de Salazar [regime que vigorou em Portugal entre os anos de 1933 e 1974]. O Ceao se transformou em um grande espaço de diálogo entre a universidade e a sociedade. Ali, minha mãe fazia um curso de kikongo, língua africana do tronco linguístico banto e iorubá, que influenciou muito o português brasileiro. Eu devia ter cinco anos de idade. Era a única criança que frequentava o curso. Quando chegávamos em casa, eu dizia à minha mãe exatamente o que tinha acontecido na aula. Um dia, o professor me ditou um texto para eu memorizar. Eu estava perto de aprender a ler. Não entendi muita coisa, mas me empenhei na tarefa. Para mim, aquelas línguas todas eram um saber entre outros tantos saberes. E me deixavam curioso.
Os terreiros de candomblé também me fizeram crer na presença de outras línguas. De algum modo, fui desenvolvendo uma relação particular com a língua portuguesa. De modo a perceber
ilê
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depoimento
OS SONS ME DESPERTAM COISAS MISTERIOSAS.
SÃO TERRITÓRIOS MUSICAIS QUE ME EMOCIONAM.
que falar português implicava ter porosidade para receber outros sons linguísticos. Ouvia sons que não se aprendiam na escola. Foi no Ilê Aiyê [primeiro bloco afro do Brasil, que em 2024 completa 50 anos] onde aprendi que havia possibilidade de falar coisas em português e em línguas africanas. E percebi isso pela própria relação do Ilê com o candomblé. É um bloco afro que surge em um terreiro [da líder religiosa Hilda Dias dos Santos]. Então, a inserção de alguns cânticos da liturgia está junto de canções, de ritmos de Carnaval. São temas relativos à nossa história, às histórias negras da diáspora no continente africano. De algum modo, isso tudo estava no meu ethos [em grego, conjunto de hábitos e comportamentos que definem a identidade de uma coletividade]. E quando a gente vai criar, a gente se utiliza do repertório que tem. Quando comecei a compor, havia uma necessidade estética de caminhar pelas línguas africanas nessas composições. instrumental Eu tenho um avô que é músico. Ele toca clarinete e saxofone e hoje tem 99 anos de idade. Foi ele quem me ensinou a ouvir música instrumental. Com ele, estabeleci uma relação com o choro. Sou uma pessoa muito mais influenciada
pela música instrumental. Escuto muita coisa de lugares diferentes. Ouço música instrumental do Japão, do Benin, da Etiópia, do Congo, da Escandinávia, dos Estados Unidos, só para citar alguns exemplos. Os sons me despertam coisas misteriosas. São territórios musicais que me emocionam.
intuição
Eu gosto muito mais de ouvir música do que de fazer. Eu faço por algum tipo de consequência. Não tenho rotina, nem método. Eventualmente, me vem uma ideia, sobretudo melódica. E é por aí que eu começo a criar. Sigo minha intuição. Eu começo e vou experimentando. Sou interessado em modos distintos de pensar, e em línguas. Eu me pergunto: que tipo de frequência certos instrumentos podem trazer? E como posso receber essas frequências culturais, essas linguagens musicais de outros lugares? Escuto muitos territórios musicais, mas fico com o que me emociona. Na escuta existe alguém que, antes de mais nada, está na música porque curte música.
frequência
Já criei música com e sem instrumentos. A criação não depende, necessariamente, do instrumento. Eventualmente me vem uma ideia, sobretudo, de melodia, e eu digo: “Ali tem um
caminho”. Trabalho muito com o violão, que é meu instrumento original. O que eu chamo de violão tambor é também um violão, só que com uma corda a menos. Esse instrumento que adaptei me obriga a percutir um pouco mais. E em uma das cordas, que seria mais aguda, solto uma grave. A afinação da corda aguda faz com que o violão tambor se torne um instrumento médio/grave que, por sua vez, habita a mesma região da frequência da minha voz.
bituca
Uma voz importante para mim é a de Milton Nascimento. O álbum Milagres [de 2020] partiu de um convite da [gravadora alemã] Martin Rosemar para revisitar este álbum emblemático do Bituca [Milagre dos Peixes, 1974]. Me interessou ter esse espaço para poder fazer outras coisas, percorrer outros caminhos, experimentar. Ao longo do processo do disco [lançado no auge da pandemia de Covid-19], percebi que falar de 50 anos atrás é falar do agora. Porque o álbum do Milton Nascimento foi um marco e foi censurado. É chocante pensar que algo do gênero pode acontecer com o trabalho de um artista. E essa violência mostra como o fascismo está presente [na história] do Brasil. Quando falo de fascismo,
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falo de uma série de outras questões urgentes que estão na pauta de hoje, como o racismo.
ferida
O racismo forma o Brasil em todas as relações. É a grande questão do país, a grande ferida da nação. A primeira vez que sofri racismo, e que me marcou na pele, foi aos 13 anos. Naquela época, eu ainda não tinha letramento suficiente para compreender o quão complexo era aquilo e dar uma resposta certeira. Cheguei na sala de aula e meus colegas estavam lendo piadas racistas. Quando escutei aquilo, soube que era algo inegociável. Fui à diretoria da escola e denunciei. Avisei que, se não tomassem providências, eu iria à imprensa. Devo muito essa percepção aos meus pais. Eles foram fundadores
do Movimento Negro Unificado em Salvador (de 1978). É sempre um baque. E reagir frontalmente foi aplicar o que aprendi em casa. A luta antirracista deveria ser de todo mundo. Ninguém deveria ter coragem de pronunciar a palavra democracia sem colocar a questão racial no centro dessa história.
professor
Escuto muito e leio muito porque isso faz parte do meu próprio ofício. Hoje sou professor do Instituto de Humanidades da Universidade Federal da Bahia. Vou do texto literário ao acadêmico, passando pela não ficção. E me demoro na filosofia. Sou formado em filosofia. Eu demorei um pouco para me tornar professor porque acho que é a coisa mais elevada que um homem pode ser. Dou aula
na graduação, então ainda estou aprendendo. Gosto muito de estar ali, no tête-à-tête com as pessoas. Ouvir os alunos, sobretudo. Nessa relação, não tem palco, não tem cenário, não tem luz que ofusca. Ali é a palo seco, é a vida.
Assista ao vídeo com trechos da entrevista com o músico Tiganá Santana, gravada em março, no Sesc Belenzinho.
Tiganá Santana durante o show Milagres, em março, no Sesc Belenzinho: na ocasião, a escritora Conceição Evaristo fez uma participação especial.
77 | e depoimento
ALMANAQUE
Novos moradores de São Paulo
Inventário da Fauna Silvestre identifica 22 espécies de animais que, desde o ano passado, passaram a habitar parques e áreas de conservação na capital paulista
POR LUNA D’ALAMA
ODia Mundial do Meio Ambiente é celebrado em 5/6 e, neste ano, a capital paulista tem um motivo a mais para comemorálo: 22 espécies de animais foram identificadas pela primeira vez na cidade de São Paulo, no fim de 2023. São insetos, anfíbios, répteis, aves e mamíferos, além de seis novas espécies de peixes, catalogados por biólogos em parques urbanos e áreas de conservação, como o Horto Florestal e o Refúgio de Vida Silvestre Anhanguera, ambos na zona Norte, e o Parque Ibirapuera, na zona Sul.
Os novos moradores da capital foram incluídos no Inventário e Monitoramento da Fauna Silvestre , trabalho realizado pela Divisão
da Fauna Silvestre da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da Prefeitura de São Paulo. O primeiro levantamento foi feito em 1993, e o projeto se tornou anual a partir de 2021. Desde o início, já foram catalogadas 1.354 espécies, sendo 830 de vertebrados e 524 de invertebrados – como a mais recente, a borboleta skipper ( Cogia crameri ). Também já foram contabilizadas 172 espécies ameaçadas de extinção, o que representa 12,7% do total – evidenciando a necessidade de se reforçarem ações e políticas públicas para conservação da biodiversidade.
Na próxima edição do inventário, em 2024, a expectativa dos
biólogos e pesquisadores é de que sejam identificadas outras espécies inéditas na cidade. Neste Almanaque, listamos cinco animais silvestres que passaram a habitar a natureza paulistana e aparecem na lista mais recente.
Acesse a edição 2023 do Inventário e Monitoramento da Fauna Silvestre do Município de São Paulo
(perereca-verde) / Renato Augusto Martins (catita-cinza) e | 78
Lucas Rosado
MAMÍFERO
CATITA-CINZA
Esse pequeno marsupial da espécie Marmosa paraguayana é chamado de cuíca, mas também conhecido como catita-cinza, jupati, chichica ou guaiquica. Nativo das florestas costeiras do Brasil, do sul da Bahia ao Rio Grande do Sul, também vive em países como Venezuela, Argentina e Paraguai – daí o nome da espécie. Em São Paulo, a cuíca foi localizada no Parque Natural Varginha, na zona Sul. Da família Didelphidae, alimenta-se de animais de pequeno porte, além de frutos, flores e insetos. Mede cerca de 20 centímetros, pesa 130 gramas e possui hábitos diurnos. Tem tido seu habitat (todos os biomas, exceto a Caatinga) reduzido por conta da urbanização, da monocultura e de desmatamentos. Prefere locais úmidos, árvores, e um de seus predadores é o lobo-guará. Escaladora ágil, solitária e notívaga, a cuíca tem cauda preênsil (que se agarra a galhos), polegar opositor, dorso cinza ou marrom-acinzentado, e um ventre mais claro. Vive até um ano e meio, com período de gestação de apenas 13 dias. Pode transmitir zoonoses como toxoplasmose, leishmaniose e giardíase.
ANFÍBIO PERERECA-VERDE
Da família Hylidae e espécie Aplastodiscus arildae, essa perereca é nativa do Brasil, sendo encontrada nas regiões da Serra do Mar, Serra da Mantiqueira e Serra do Espinhaço, entre os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Com apenas quatro centímetros de comprimento, possui pontos brancos e marrons na região dorsal, tem hábitos noturnos e florestais, e se alimenta de pequenos animais invertebrados. Sua reprodução ocorre às margens de riachos, onde deposita os ovos em ninhos aquáticos subterrâneos – escavados pelos machos. Os espécimes masculinos, aliás, coaxam o ano todo e atraem as fêmeas por meio desses sons.
Nativa do Brasil, a perereca-verde tem hábitos noturnos e sua reprodução se dá às margens de riachos.
Pequeno marsupial também conhecido como cuíca, esta espécie tem a extensão de seu habitat cada vez mais reduzida pelo avanço da urbanização.
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ALMANAQUE
RÉPTIL
COBRA-CIPÓ
A Chironius exoletus é uma das quatro novas espécies de répteis identificadas na capital paulista – incluindo outra cobra-cipó, a Philodryas mattogrossensis No Brasil, vive nos biomas do Cerrado, Caatinga, Pantanal e Mata Atlântica. Também pode ser vista em outros países da América do Sul, como Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia e Equador. Animal ovíparo (põe ovos), a cobra-cipó come pequenos anfíbios e lagartos. Da família Colubridae, trata-se de uma serpente fina e ágil, de coloração verde ou marrom, e olhos grandes com pupilas redondas. Não é venenosa e tem porte pequeno: chega a, no máximo, um metro de comprimento – sendo a fêmea maior que o macho. Além disso, possui hábitos diurnos e terrestres, vive em florestas, montanhas e altitudes elevadas, refugiando-se em árvores, arbustos, rios e pedras. AVE
GAVIÃO-DA-MATA
Com nome científico Urubitinga urubitinga – que na língua tupi significa grande ave ("uru") preta ("bu") e branca ("tinga") –, o gavião-da-mata tem plumagem negra com uma barra branca na cauda, além de bico e patas com tons amarelados. Essa ave de rapina habita todo o Brasil e é encontrada desde a Argentina até o México. Pode passar de 60 centímetros de comprimento e pesar 1,3 quilo. O primeiro gavião-preto avistado por biólogos na cidade de São Paulo sobrevoou a região do rio Juqueri, afluente do Tietê. Da família Accipitridae, esses animais gostam de ficar próximos a cursos d’água e caçam répteis, anfíbios, insetos e peixes, além de comerem ovos de outras aves, frutas e carniça. Fazem ninhos perto de rios e pântanos, no alto das árvores. Vivem solitários, aos pares ou em grupos pequenos. São conhecidos em outras regiões brasileiras como cauã, gavião-caipira e gavião-fumaça.
Na língua tupi, o nome cientifíco do gavião-da-mata é Urubitinga urubitinga, que significa grande ave (uru) preta (bu) e branca (tinga).
Fina, ágil e de pequeno porte, a cobra-cipó tem coloração verde ou marrom, olhos grandes e não é venenosa.
Bernard
/
Dupont (gavião-da-mata)
Daniel Vásquez-Restrepo (cobra-cipó)
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INSETO
BESOURO-DAS-FLORES
A textura aveludada das asas deste animal, pertencente à espécie Gymnetis sp, faz com que ele seja conhecido como besouro-camurça. Também chamado de besouro-das-flores, esse escaravelho de cor marrom pode apresentar manchas zebradas pelo corpo ou pintas semelhantes às de
uma onça. Seu ciclo de vida entre o ovo e a fase adulta leva seis meses, o que na biologia é considerado um período longo – o mosquito Aedes aegypti (transmissor da dengue), por exemplo, completa essas fases em apenas dez dias. As larvas do besouro-camurça se alimentam de raízes de plantas, material em
decomposição e até fezes de animais, enquanto os adultos têm uma dieta à base de plantas, pólen e frutos. Integrantes da família Cetoniidae já foram registrados em todos os continentes e reúnem cerca de quatro mil espécies catalogadas, sendo 72 delas identificadas no Brasil.
com
André Ganzarolli Martins
Conhecido como besouro-camurça por ter asas
uma textura aveludada, essa espécie tem um ciclo de vida de seis meses.
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Adentrar a mata: a retomada da floresta que nos habita
Gosto de pensar que, para cuidarmos de algo, é necessário ao mesmo tempo consciência e encantamento, para que o pensar consiga alcançar o coração, enraizando e fortalecendo propósitos. O meu amor pela natureza, por exemplo, se construiu em afeto desde a minha tenra infância em Pernambuco, onde nasci e sempre busquei retornar, mesmo que em memória. Seja colhendo fruta no quintal de “vóinha”, nadando na praia, me aventurando pelos mangues, vivenciando a mata branca da Caatinga ou o que sobrou da Mata Atlântica pernambucana. No imaginário, perduram memórias que confluem rios, praias, mangues e matas. Na cabeça de uma criança, pés de pitanga, caju, manga, pitomba e araçá, contando histórias e narrando memórias da abundância que busco, agora, reconstruir em minha vida. Ou pelo menos sonhar, diante de tantos horizontes cinzas e monoculturais que nos atravessam a todo momento.
Embora seja mais fácil imaginar horizontes distópicos, como esses narrados em inúmeros filmes e séries da indústria cultural, mais frutífero é pensar novas utopias que nos façam caminhar em sua direção. A floresta e toda a sociobiodiversidade que a compõe, em íntima e entrelaçada relação, constituem, para mim, esse grande horizonte de ensinamento e esperança, mostrando que é necessário e urgente imaginarmos outros futuros possíveis.
As ideias de “sankofa” e de “futuro ancestral”, por exemplo, evidenciam a sabedoria da retomada. Falam sobre esse aprender com os mais velhos, que pisavam e ainda pisam de forma mais leve sobre a Terra. Povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras e tantos outros existem e resistem nos ensinando sobre relações comunitárias, diversidade, união, resiliência, floresta em pé e construção de territórios que estejam mais preparados para lidar com o que está por vir. Como aponta Davi Kopenawa, trabalhamos para a queda do céu, no dito “desenvolvimento” do povo da mercadoria. O que estamos fazendo com o nosso planeta, nossa única casa? E qual será nosso legado individual e coletivo para
as próximas gerações? Questionamentos importantes que não devem gerar paralisia, mas movimento.
Nessa busca por ideias e ações para um novo tempo, o cenário de emergência climática nos convoca ao envolvimento, no sentido dado pelos mestres Nego Bispo e Ailton Krenak. Com escuta atenta, esse envolvimento se faz colocando o corpo em movimento, os pés no chão, as mãos na terra, adentrando a mata. Cada pessoa deve refletir sobre essas questões fundamentais e como pode se engajar em alguma dessas lutas, como um compromisso de vida. Tantas pessoas antes de nós vieram e outras tantas virão com essa tarefa coletiva em comum. Não estamos e nem estaremos sós.
Vivenciar o território, compartilhar ideias e construir ações transformadoras onde quer que se esteja. Fazer é a melhor maneira de dizer: lutar pela conservação das florestas que resistem; reflorestar o quanto for possível; transformar uma área que antes era lixão em uma linda agrofloresta comunitária; consumir alimentos saudáveis vindos de produções agroecológicas; diminuir consumo e geração de resíduos; propor uma educação socioambiental crítica e emancipadora; lutar por políticas públicas efetivas para combate das desigualdades e acesso a direitos; cultivar relações comunitárias, entre tantas outras ações que podem e devem somar esforços na transição para um modelo de sociedade que adie o fim do mundo, em direção ao bem-viver das diferentes formas de vida na Terra. Vamos em frente, semeando e cultivando esse novo mundo. Nosso tempo é hoje!
Carlos Eduardo de Souza Lobo é graduado em gestão ambiental e mestre em mudanças sociais e participação política pela Universidade São Paulo (USP). Atua como agente de educação ambiental no Sesc Thermas de Presidente Prudente.
Nortearia / Midjourney
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