Revista E | maio de 2024 nº 11 | ano 30
Alaíde Costa Cantora celebra consagração de carreira de sete décadas
Renan Quinalha Pesquisador faz um panorama sobre direitos LGBTI+ no país Comida de verdade Os dez anos do Guia alimentar para a população brasileira
Quase circo Criação de Carmela Gross inspira diálogo entre a arte e a cidade
00350
ancestralidade | tradições | heranças | narrativas | saberes | histórias
Ações dedicadas a valorizar, reconhecer e difundir a cultura negra. Em diversas unidades do Sesc São Paulo.
sescsp.org.br/ culturasnegras
22–26 /5 20 24
CAPA: Registro do espetáculo Calunga, da Cisne Negro Cia. de Dança. Com coreografia idealizada por Rui Moreira, a obra propõe um mergulho histórico e estético por tradições folclóricas brasileiras, como o maracatu, tendo como fonte inspiradora a composição musical de Francisco Mignone (1897-1986). Além de apresentar Calunga no Sesc 14 Bis, nos dias 4 e 5/5, a companhia de dança fundada por Hulda Bittencourt (1934-2021) também estreia seu novo trabalho, Crôa, que faz uma releitura coreográfica de festas populares maranhenses.
Crédito: Luiz Áureo
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Legendas Acessibilidade
Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.
A promoção do bem-estar dos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, e de seus familiares, está no cerne das ações do Sesc – Serviço Social do Comércio, entidade criada em 1946 por iniciativa do empresariado do setor. Inserida num mundo em constante transformação, a entidade expande e diversifica permanentemente seu alcance, construindo um sólido e longevo projeto que beneficia não apenas seu público prioritário, mas a sociedade como um todo.
No estado de São Paulo, mantém 40 centros culturais e esportivos, com uma vasta oferta de programações nos campos da cultura, lazer, esportes, turismo social, saúde e alimentação. São atividades que promovem qualidade de vida por meio de espetáculos de teatro, música e dança; cursos e vivências no âmbito físico-esportivo; oficinas voltadas às questões da sustentabilidade, dentre outras. Essas iniciativas contribuem para a troca de saberes, para o aprimoramento da formação e para o fortalecimento das relações interpessoais, tendo por base o mesmo compromisso que embasou a criação do Sesc há quase oito décadas: participar da construção de uma sociedade com mais equidade e oportunidade para todos.
Abram Szajman Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo
Alimentação diversa e saudável
Plantar, cultivar, colher, transportar, comercializar, preparar, servir. Da terra aos lares, da semente aos preparos, pensar o caminho do alimento que consumimos é, também, um modo de refletir sobre nossa própria identidade.
Afinal, nossas escolhas alimentares passam por saberes e sabores carregados de significados sociais, religiosos, econômicos e afetivos. É um legado transmitido de geração em geração, constituindo-se como um traço de pertencimento.
A alimentação é, portanto, um tema transversal que extrapola o campo da nutrição. Fazer escolhas conscientes nos permite uma alimentação mais adequada e saudável, possibilitando melhor aproveitamento da ampla oferta de que dispomos. Há dez anos, o lançamento do Guia alimentar para a população brasileira, pelo Ministério da Saúde, trouxe subsídios para ampliar nosso conhecimento sobre o tema, valorizando os alimentos in natura e alertando para os cuidados com os chamados ultraprocessados.
Reportagem desta edição da Revista E reflete sobre as contribuições desse documento que mudou os paradigmas da alimentação, influenciando nossas escolhas diárias e orientando políticas públicas em prol de promover a saúde e valorizando a preservação da biodiversidade e das culturas alimentares. Boa leitura!
Luiz Deoclecio Massaro Galina Diretor do Sesc São Paulo
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC
Administração Regional no Estado de São Paulo
Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho
CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO
Presidente: Abram Abe Szajman
Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina
Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair
Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik
Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.
Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.
REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL
Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano
Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho
CONSELHO EDITORIAL | Revista E
Adauto Fernando Perin, Affonso Lobo Chaves, Alessandra Galvão, Alessandra Gonçalves da Silva, Alexandre da Silva, Aline Ribenboim, Amanda Elias de Oliveira, Ana Paula Neves Cabral de Vasconcellos, André Venancio da Silva, Andrea Toledo Nascimento, Andreia Dorta Martins Castilho Grande, Andreia Pereira Lima, Andressa Kelly Ribeiro Ivo, Ariane Magalhães Campos, Barbara Duarte Camilotti, Bruna Zarnoviec Daniel, Carla Valeria N S Tureta, Carlos Augusto Rosa, Caroline Figueira Zeferino, Cibele Porzelt, Cinthya de Rezende Martins, Clivia Ramiro, Daniel Douek, Daniel Ramos da Silva Melo, Daniela Paiva Borges, Danilo Cymrot, Danny Abensur, Davi dos Santos Ferreira, Debora Cravo Domingues Freitas, Denise Miréle Kieling, Diego Polezel Zebele, Elaine Barros Martins, Elmo Sellitti Rangel, Eloá de Paula Cipriano, Fabiano Maranhão, Fabricio Floro, Felipe Campagna de Gaspari, Fernanda Gehrke, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Fernando Andrade de Oliveira, Flavio Aquistapace Martins, Francis Márcio Alves Manzoni, Francisca Meyre Martins Vitorino, Gabriela Camargo das Graças, Geraldo Soares Ramos Junior, Giulia Maria de Campos Manocchi, Glauco Gotardi, Henrique Vizeu Winkaler, Ivy Granata Delalibera, Jailton Nascimento Carvalho, Joana Carolina Teixeira Mota, Jose Eduardo da Silva
Ruiz, Juliana Neves dos Santos, Leandro Vicente, Leonardo Thomaz Pereira da Silva, Leticia Castilho Alvares, Ligia Azevedo Capuano, Lilian Vieira Ambar, Livia Giuliane da Silva, Livia Maria Brihi Badur, Luiz Eduardo Rodrigues Coelho, Marcel Antonio Verrumo, Marcia de Souza Lemos, Marcos Ramon Filho, Maria Elaine Andreoti, Maria
Emilia Carmineti, Mariana Lins Prado, Marina Borges Barroso, Marina Reis, Mateus de Oliveira Santos, Matheus Guilherme Paulino, Mauricio Albieri Pudenzi, Mayra Vergotti
Ferrigno, Milena Piva Carvalho, Monique Mendonça dos Santos, Nataly Callai, Olivia Tamie Botosso Okasima, Pablo Perez Sanches, Patricia Maciel da Silva, Paulo Robson
Dias, Rachel D Ipolitto de Oliveira Scire, Rafaela Ometto Berto, Raphael Cutis Dias, Rejane Pereira da Silva, Renata de Barros Corizola Yoshida, Rosana Abrunhosa de Souza, Sabrina da Paixão Brésio, Sandra Carla Sarde Mirabelli, Sandra Ribeiro Alves, Sara Regina Centofante, Simone Oliveira dos Santos, Sofia Calabria Y Carnero, Sofia Maria Barreto de Andrade, Stephany Tiveron Guerra, Talita Ferreira dos Santos, Tamara Demuner, Tatiana Busto Garcia, Tatiana Fukuhara Borges, Teresa Maria da Ponte Gutierrez, Thais Cristina Kruse, Thais Ferreira Rodrigues, Thamires Magalhães Motta, Thiago da Silva Costa, Thiago Fabril de Oliveira, Vivianne de Castro.
Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves
Coordenação-Executiva: Lígia Moreira Moreli e Silvio Basilio
Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Lígia Scalise, Luna D’Alama, Manuela Ferreira, Maria Júlia Lledó • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Edmar Júnior, Gabriela Amorim, Jefferson Santanielo, José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Alexandre Calderero
Lamonato, Cesar Albornoz, Humberto Mota, Leandro Henrique da Silva Vicente, Lourdes Teixeira Benedan e Walter Cruz • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli •
Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Lourdes Teixeira • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca
Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)
A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social
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Entre os destaques da programação de maio, Semana Mundial do Brincar oferece mais de 150 atividades lúdicas e educativas
Uma das vozes precursoras da bossa nova, Alaíde Costa relembra episódios da carreira e fala sobre o recente reconhecimento do seu protagonismo na música brasileira
Referência dentro e fora do país, Guia Alimentar para a População Brasileira completa dez anos e segue orientando a sociedade sobre comida saudável
Um passeio visual por obras da paulistana
Carmela Gross, que há mais de 60 anos provoca diálogos entre a criação artística e o espaço urbano
dossiê entrevista alimentação bio gráfica negritude
Crescente presença de intelectuais negros nas universidades brasileiras expande a produção de conhecimento para outras perspectivas de mundo, inspirando novas gerações de estudantes e pesquisadores
Ao orquestrar as contradições da existência humana no teatro e na TV, Antônio Abujamra fez da vida um palco para provocações
p.54 p.11 p.16 p.24 p.34 p.40
SUMÁRIO
Dani Sandrini (alimentação); José Sebastião Maria de Souza (bio); Sérgio Fernandes (gráfica)
Artigos de Elaynne Silva de Oliveira e Inaian Pignatti Teixeira discutem benefícios à saúde e políticas públicas voltadas à implementação de uma cidade ativa
Renan Quinalha
Carol Ito (HQ)
Diretora, dramaturga e atriz Grace Passô reflete sobre a coletividade que emerge da experiência teatral e revela o que atravessa sua constituição ancestral como artista
Descubra quatro curiosidades que aproximam o território paulista da cultura do chá, bebida de origem asiática que aportou por aqui influenciada por diversas tradições
Mário Antônio Alcântara Pereira
P.S. p.66 p.70 p.74 p.78 p.82
em pauta encontros inéditos depoimento almanaque
p.60
Fábio Audi (encontros); Filipe Redondo (almanaque)
A campanha chega à sua 30ª edição com o objetivo de promover a prática de atividades físicas para uma vida mais saudável.
Durante todo o dia, acontecem aulas especiais, vivências, passeios, torneios, palestras e apresentações esportivas em todas as unidades do Sesc São Paulo e em organizações parceiras.
sescsp.org.br/diadodesafio
COORDENAÇÃO NO CONTINENTE AMERICANO: INICIATIVA: REALIZAÇÃO: PREFEITURA MUNICIPAL APOIO:
Em Cabaré coragem, uma trupe envelhecida e decadente enfrenta os revezes do tempo, percorrendo o universo do cabaré numa viagem sonora e visual composta por músicas ao vivo, números de dança, fragmentos da obra de Bertolt Brecht (1898-1956) e cenas de dramaturgia própria. Dirigido por Júlio Maciel, o novo espetáculo do premiado Grupo Galpão, em cartaz no Sesc Belenzinho, alterna crítica social e política com o escracho de um cabaré e seu espírito libertário.
Bruna Damasceno 9 | e em cena
ARTES VISUAIS E TECNOLOGIAS, CINEMA, CIRCO, DANÇA, LITERATURA, MÚSICA E TEATRO
APOIO
SINDICATOS DO COMÉRCIO DE BENS, SERVIÇOS E TURISMO
PREFEITURAS MUNICIPAIS
REALIZAÇÃO
SESCSP.ORG.BR/CIRCUITOSESCDEARTES
DOSSIÊ
Vem pra roda!
Sesc São Paulo participa da Semana Mundial do Brincar com mais de 150 atividades lúdicas e educativas em todo o estado
A potência brincante da roda inspira a programação desta 15ª edição do projeto, com cantigas de roda, rodas de capoeira, brincadeiras de roda e outras atividades.
Para celebrar a importância do brincar e criar oportunidades para que as crianças vivenciem experiências lúdicas diversificadas, o Sesc São Paulo participa, de 25 de maio a 2 de junho, da Semana Mundial do Brincar. O projeto é uma iniciativa da Aliança pela Infância e acontece desde 2009, inspirado pelo Dia Mundial do Brincar, celebrado em 28/5. Com o tema “Vem pra roda – No ritmo do brincar”, a proposta desta 15ª edição é exaltar o que gira em torno da roda, símbolo dos movimentos cíclicos da vida, de ancestralidade e de intercâmbios geracionais.
Rosana Abrunhosa, técnica em infâncias e juventudes da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, conta que a potência brincante da roda inspirou a programação deste ano a propor ao público cantigas de roda, rodas de capoeira, brincadeiras de roda, rodas de
samba e rodas de conversa. “As ações têm a preocupação de nos reconectar aos saberes ancestrais e de fortalecer manifestações da cultura popular, por meio da valorização de nossas raízes indígenas e afrorreferenciadas, nas quais esse desenho circular é muito mais do que um símbolo geométrico; é um modo de se comunicar, de ser e estar no mundo, assim como o brincar é para bebês e crianças”, afirma Abrunhosa.
Parceiro da Aliança pela Infância há 11 anos, o Sesc São Paulo realiza mais de 150 atividades gratuitas espalhadas em unidades de todo o estado. Entre os destaques, a Ocupação Tupi Guarani Nhandewa, que foi pensada especialmente para bebês, acontece entre os dias 25/5 e 2/6, no Sesc 14 Bis. Também haverá apresentação do grupo Crescendo no Samba, formado por crianças e jovens de 8 a 16 anos, dia 1º/6, no Sesc 24 de Maio.
E no Espaço de Brincar do Sesc Casa Verde, a vivência CapueraAngola, Pequena Filha da Natureza, com a Cia. Quebrando a Cabaça Espalhando Sementes, de 23 a 31/5.
Conheça a programação completa do Sesc São Paulo na Semana Mundial do Brincar: sescsp.org. br/semanamundialdobrincar
As ações da Semana Mundial do Brincar têm a preocupação de nos reconectar aos saberes ancestrais e de fortalecer manifestações da cultura popular
Rosana Abrunhosa, técnica em infâncias e juventudes da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo
Sté Frateschi
11 | e
DOSSIÊ
10 anos de arte na ZL
Quatro artistas são convidados a ocupar os espaços do Sesc Itaquera entre os meses de maio e junho, na Residência Leste. Criada em 2015 para promover o contato do público com variados processos de criação, o programa de residência artística chega à sua décima edição em 2024. Os convidados deste ano são o artista plástico Ariel Spadari, a figurinista e mascareira Helô Cardoso e o ilustrador, performer e drag queen César Augusto. A artista gráfica Gabriela Esteves Ribeiro, que já participou da residência em 2021, está de volta, desta vez para documentar as ações. Os encontros acontecem ao longo de sete semanas, a partir de 16/5, sempre às quintas e sábados, das 10h às 16h. Às quintas, o público ainda é convidado a dividir o espaço com os artistas na programação Ateliê Aberto, no Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Itaquera. Saiba mais: sescsp.org.br/itaquera
SE JOGA!
Está chegando a 30ª edição do Dia do Desafio, campanha global de estímulo à adoção de hábitos saudáveis, coordenada pelo Sesc São Paulo no continente americano. Ao longo do dia 29/5, todas as unidades do Sesc, em parceria com outras organizações públicas e privadas, oferecem ações gratuitas de incentivo à prática regular de atividades físicas. Na programação, vivências com atletas,
apresentações, oficinas, aulas abertas e bate-papos. Com o tema “Se joga no desafio”, a campanha é uma iniciativa da Tafisa (The Association for International Sport for All), com apoio institucional da Isca (International Sport and Culture Association) e da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Participe: sescsp.org.br/diadodesafio
No dia 29/5, todas as unidades do Sesc São Paulo oferecem uma programação diversa voltada ao incentivo à prática regular de atividades físicas.
Neste mês, a escritora, encenadora e pesquisadora Deise Abreu Pacheco ministra curso sobre modelos narrativos da ficção LGBTQIA+.
ERA UMA VEZ...
O Sesc Santana oferece, neste mês, o curso Por novos laços: humor e empatia em narrativas LGBTQIA+, para refletir sobre outros modelos narrativos da ficção. Com destaque para a análise e produção de romances gráficos, histórias em quadrinho e séries de tirinhas, o curso propõe possibilidades narrativas baseadas no humor, na empatia com a diferença, na convivência e no afeto. As aulas serão realizadas entre 8 e 29/5, sempre às quartas, das 19h30 às 21h30, conduzidas pela escritora, dramaturgista, encenadora e pesquisadora Deise Abreu Pacheco. Garanta sua vaga: sescsp.org.br/santana
Evelson de Freitas (Dia do Desafio) / William Galvão (Narrativas LGBTQIA+)
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DOSSIÊ
SER É OUSAR SER
Uma das tragédias teatrais mais encenadas do ocidente acompanha a trama do assassinato de um irmão por outro motivado pela ambição pelo poder. A partir deste mês, a história de Hamlet, um dos mais clássicos textos do inglês
No alto: Ivan Vellame, como Horácio. Ao centro: André Hendges, como Laertes; João Attuy, Gabriel Sobreiro e Breno Manfredini, como atores; e Daniel Maia (músico). Embaixo: Claudio Fontana, como Rei Claudio; Chico Carvalho, como Príncipe Hamlet; Ciça de Carvalho, como Ofélia; Luciana Carnieli, como Rainha Gertrudes; e Elias Andreato, como Corambis.
William Shakespeare (1564-1616), ganha nova montagem dirigida por Gabriel Villela, produzida por Claudio Fontana e protagonizada por Chico Carvalho. O espetáculo Primeiro Hamlet, que estreia no dia 11/5 e fica em cartaz no teatro do Sesc Vila Mariana até
De 15 a 17 de maio, o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo realiza o seminário Fototeca brasileira: políticas para preservação da memória fotográfica, que visa debater a construção de uma política nacional para a fotografia e os processos de preservação da memória fotográfica no país. Organizado em cinco mesas de debate e quatro grupos de trabalho,
16/6, baseia-se na primeira versão da obra, escrita entre 1599 e 1601, texto que se desenrola rumo à vingança fraternal com mais ação e menos introspecção que as versões posteriores. Assista: sescsp.org.br/vilamariana
o seminário conta com a participação de Rosa Gauditano, João Kulcsár, Márcio Tavares, Maria Marighella, entre outros especialistas. Durante as atividades, o evento apresenta um panorama atual dos acervos de fotografia, destaca referências na gestão e conservação de arquivos e reflete sobre os impactos dessa proposta no mercado fotográfico brasileiro. Inscreva-se: sescsp.org.br/cpf
Foco na foto João Caldas
13 | e
FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA
Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.
PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).
A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.
Acesse o texto Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc
Sobre a Credencial Plena:
• É gratuita
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• Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil
• Prioriza os acessos às atividades do Sesc
• Oferece descontos nas atividades e serviços pagos
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Ricardo Ferreira
conheça a coleção
Escrito pela jornalista e pesquisadora Cris Fuscaldo, o livro Refazenda: o interior floresce na abertura da fase “Re” de Gilberto Gil é o mais novo título da coleção Discos da Música Brasileira.
Por meio de entrevistas com Gil e outros músicos e produtores, a publicação reconta histórias, memórias e experiências vividas na criação de um álbum clássico da música popular brasileira.
sescsp.org.br/edicoes
edicoessescsp
Tempo de consagração
Com sete décadas de carreira, cantora Alaíde Costa celebra o reconhecimento tardio de seu talento e se orgulha da coragem de nunca desistir
POR LÍGIA SCALISE
Oreconhecimento chegou tarde na carreira da cantora, compositora e atriz Alaíde Costa. No auge dos seus 88 anos de idade, sendo 70 deles dedicados ininterruptamente à música popular brasileira, ela comemora: “Se eu morrer hoje, morro muito feliz e grata”. Em plena atividade, com uma agenda repleta de shows, convites e projetos, seu nome vem estampando as páginas de jornais e revistas do Brasil. Foram necessárias décadas de dedicação e persistência da artista – enfrentando o preconceito e as tentativas de apagamento que ela sofreu como mulher negra – para que, enfim, o país ao qual ela dá voz, por meio de suas interpretações, prestasse homenagens e a incluísse na lista das grandes cantoras.
Hoje, ela se orgulha de nunca ter se curvado às condições impostas desde o começo de sua trajetória. “Paguei um preço bem caro por cantar do meu jeitinho, mas me considero uma mulher corajosa por nunca desistir”, disse em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, exibido em março. Quem primeiro reconheceu o talento de Alaíde foi seu irmão mais novo, Adilson. Quando ela tinha por volta de 11 anos, ele a inscreveu em um show de calouros no circo do bairro carioca de Água Santa, onde foi criada. A contragosto, Alaíde cantou e ganhou o prêmio – o primeiro de muitos. Dali em diante, a menina tímida e de voz doce, que queria ser professora, passou a cantar em shows de calouros, quase sempre ganhando as competições.
e | 16 entrevista
Murilo Alvesso
entrevista
Durante o Festival Universitário da Música Popular Brasileira, realizado no Teatro Tupi, em 1970, a cantora interpretou a canção "Novo Dia", que se classificou em segundo lugar.
O meu olhar mudou em relação à música quando comecei a escutar canções que tocavam o meu coração.
Ali, eu me encontrei.
Aos 13 anos, foi eleita a melhor cantora jovem no programa Sequência G3, da rádio Tupi. Aos 16, pela primeira vez, Alaíde se inscreveu para cantar no programa de Ary Barroso, Calouros em Desfile, também na Tupi. Com a canção “Noturno em Tempo de Samba”, de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy, conquistou a nota máxima.
Alaíde Costa assinou seu primeiro contrato profissional em 1955, com a casa noturna Dancing Avenida, na capital do Rio de Janeiro. Após um ano, gravou seu primeiro disco e, no ano seguinte, gravou o segundo compacto, pela Odeon. Foi justamente durante uma das gravações feitas nos estúdios que sua voz chamou a atenção do músico João Gilberto (1931-2019). Ele pediu ao produtor Aloysio de Oliveira (1914-1995) que convidasse Alaíde para uma reunião de jovens artistas na casa do pianista Bené Nunes (1920-1997), na zona Sul carioca, reconhecendo que o estilo da cantora tinha tudo a ver com as músicas que estavam compondo nos encontros – e que viriam a se tornar a bossa nova.
A cantora não só participou dos encontros, como ajudou a fundar a bossa nova. E, mesmo sendo uma das precursoras do gênero musical, seu nome nunca foi reconhecido pelos envolvidos. Tanto que em 1962, para o famoso show no Carnegie Hall, em Nova York, Estados Unidos, com João Gilberto, Tom Jobim, Sérgio Mendes, Carlos Lyra (1933-2023), Roberto Menescal e muitos outros, Alaíde não foi convidada.
Parte importante da reviravolta na carreira de Alaíde tem acontecido nos últimos anos. Em 2020, recebeu o troféu Kikito de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Cinema de Gramado, pelo filme Todos os mortos (2020), tornando-se a artista mais velha a ser laureada com o prêmio. Dois anos depois, ela recebeu o convite dos produtores Marcos Preto e Emicida para gravar o álbum O que os meus calos dizem sobre mim (Samba Rock, 2022). Os arranjos foram feitos especialmente para a voz da cantora. Por esse trabalho, eleito o melhor lançamento fonográfico de MPB pelo 30º Prêmio da Música Brasileira, em 2023, Alaíde Costa foi aplaudida de pé no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
A cantora anseia bons anos pela frente para cantar e saborear seus projetos. “Deus tarda, mas não falha, e ele não falhou comigo”, disse, poucas horas antes de subir ao palco do Sesc Pinheiros, em fevereiro passado, para participar do show de lançamento do CD Pérolas Negras Ao vivo (Companhia de Discos do Brasil e Nova Estação), ao lado de Zezé Motta, Eliana Pittman e participação especial de Rosa Marya Colin. Nesta Entrevista, Alaíde Costa reflete sobre os momentos mais marcantes de sua história e garante: “Tudo valeu a pena”.
Arquivo Público do Estado de São Paulo
Como foi o seu encontro com a música?
Minha mãe gostava muito de escutar rádio, e eu a acompanhava durante os meus afazeres domésticos.
Nunca pensei em ser cantora. Eu queria ser professora. Talvez pela minha timidez, não me via em cima de um palco. Foi meu irmão mais novo quem primeiro acreditou na minha voz. Eu tinha uns 11 anos quando ele me inscreveu em uma competição de show de calouros, num circo que montaram no nosso bairro, em Água Santa, subúrbio do Rio de Janeiro. Fiquei brava e disse que não ia participar da competição de jeito nenhum, mas acabei cedendo às chantagens dele, por medo de que a polícia fosse me prender, caso eu faltasse, como ele dizia. A primeira vez que cantei, voltei com o prêmio. Depois disso, incentivada pela minha família e vizinhos, cantei em outros programas de rádio. Mas era tudo sem querer, sabe? Eu não me via nem como cantora amadora. Apenas gostava de cantar.
Em que momento desejou ser uma cantora profissional?
O meu olhar mudou em relação à música quando comecei a escutar canções que tocavam o meu coração. Ali, eu me encontrei. Uma cantora chamada Neusa Maria [1928-2011] tinha um repertório bonito demais, por exemplo. Até que ouvi e me apaixonei por uma música chamada “Noturno em tempo de samba”, de Custódio Mesquita [1910-1945] e Evaldo Ruy [1913-1954], na voz de Silvio Caldas [1908-1998]. Quis muito cantar essa canção no programa de calouros do Ary Barroso, mesmo contrariando a opinião da minha família e de conhecidos. Eles achavam que eu devia cantar algo mais animadinho. Mas, assim foi: cantei e levei a nota máxima. Aí, fiquei achando que poderia ser uma cantora. E não foi fácil bancar essa decisão. Passei quase quatro anos cantando em programa de calouros, apresentando as músicas de que eu gostava, principalmente as canções de Johnny Alf [1929-2010], de quem fiquei muito fã. Desde o comecinho da minha carreira, eu só canto o que acho que tem a ver comigo.
Foi difícil se manter firme nas suas convicções e escolhas de repertório de discos e shows? Sim. Eu sempre digo que paguei um preço caríssimo por isso. Todos diziam que eu cantava músicas tristes ou difíceis e que deveria escolher um sambinha. Essa crítica me perseguiu durante toda minha carreira. É que eu gosto das músicas mais elaboradas mesmo. E aí, por ser convicta e firme, fui escanteada. A cada novo movimento que surgiu na época, as gravadoras queriam que eu entrasse, mas eles não tinham nada a ver comigo. O negócio foi tão drástico que recebi a proposta de gravar “Serenata
Ser cantora é uma missão que cumpri. Não foi fácil, mas eu viveria tudo de novo.
Alaíde Costa em apresentação do show Samba Só, no ano de 1964, no Teatro Oficina, na capital paulista.
Arquivo
Público do Estado de São Paulo
19 | e
Em 2023, no teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, Alaíde Costa participou do show de lançamento do disco Cataventos (Selo Sesc), uma homenagem aos 73 anos de carreira do poeta e compositor Hermínio Bello de Carvalho.
do adeus”, de Vinícius de Moraes, mas em ritmo de iê iê iê. Se eu aceitasse, teria jogado fora tudo o que fiz antes, mas não aceitei. Só agora, no final da vida, é que veio o reconhecimento pelas escolhas que fiz. Foi uma luta.
Quais os momentos que mais marcaram sua carreira?
Momentos difíceis foram vários, mas tenho preferido nem falar disso, sabia? Hoje eu gosto de lembrar dos momentos emocionantes. Um deles foi quando eu cantei no festival de universitários, no teatro Paramount, uma música chamada “Onde está você?”, de Oscar Castro Neves [1940-2013] e Luvercy Fiorini . Lembro direitinho que o Oscar me apresentou sua música e disse: “Eu gostaria que você a cantasse no próximo show que a gente fizer”, ao que respondi: “Ah, não vai ser no próximo show, não. Quero cantar nesse”. Eu aprendi a letra em dois dias – sempre tive a memória boa para decorar música – e ele fez um arranjo belíssimo para a canção. Foi um sucesso: no meio da minha apresentação, o público ficou de pé e começou a me aplaudir. Chorei, né? Cantei a primeira vez, pediram bis. Cantei a segunda, pediram bis. Cantei três vezes e fui ovacionada! Foi a partir dessa canção que comecei a ter mais chances na carreira.
Como foi participar do nascimento da bossa nova? Eu estava gravando o meu segundo álbum, 78 rotações, na Odeon, quando recebi o convite de João Gilberto, através do diretor artístico, o Aloysio de Oliveira, para participar de uma reunião com uns meninos da zona Sul. Nunca vou me esquecer dos olhares divertidos que vi, quando cheguei no endereço e perguntei por João Gilberto. Só depois é que soube que ele tinha a fama de combinar, mas nunca comparecer aos eventos. A turma toda estava lá: [Ronaldo] Bôscoli [1928-1994], Carlinhos Lyra, enfim,
todos, e eu me senti bem à vontade. Participei de várias reuniões dessas. Como eu já era uma cantora profissional, acho que isso foi importante para eles também. Bem, o resto da história todos já sabem. Depois que a bossa nova ficou famosa… eu fiquei de fora. Mas, fiz grandes amigos ao longo da minha carreira e não guardo mágoas do passado.
Entre tantos amigos, destacam-se Vinícius de Moraes e Milton Nascimento?
Sim, o Vinícius foi um amigo muito querido. Ele me deu um piano numa época em que eu não teria como comprar o instrumento. Recebi dele, também, duas músicas que ele gravou enquanto eu tocava, e coloquei os títulos: “Amigo, amado” e “Tudo que é meu”. Já o Milton foi uma pessoa muito importante por me convidar para cantar no seu álbum Clube da esquina [EMI-Odeon, 1972]. Ele me deu a chance de cantar “Me deixa em paz” do meu jeitinho. Inclusive, eu fui a única mulher que participou do álbum. Outra pessoa a quem eu faço questão de agradecer é o meu produtor, Tiago Marques Luiz, que acreditou no meu trabalho e está abrindo muitas portas nesses últimos anos. Fizemos muitas coisas boas juntos. É muito importante quando alguém reconhece o nosso trabalho, não é?
Falando em reconhecimento, o que representa essa reviravolta na sua carreira depois de tantos anos?
Não esperava por nada disso, e creio que muito do que estou vivendo hoje foi depois do disco O que os meus calos dizem sobre mim [Samba Rock, 2022]. Esses meninos –Emicida, Marcos Preto e Pupillo –, que poderiam ser meus filhos, fizeram um trabalho lindo para mim. Confesso que levei um susto quando o Marcos Preto disse que o Emicida queria fazer um projeto comigo. Ao mesmo tempo, confiei na inteligência dele. Lá no fundo, eu sabia que o Emicida
O nervosismo ainda existe todas as vezes que subo no palco e quando recebo aplausos. Isso nunca mudou.
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Ricardo Ferreira
entrevista
Mas, de tudo, o que me chama mais atenção e me deixa muito feliz, é ver tantos jovens na minha plateia. Estou sendo redescoberta depois dos 80 anos.
não iria me propor algo tão fora do que sou, né? Isso me aconteceu tantas vezes na vida... Mas, eu confiei e tudo tem sido muito legal. Acho importante falar também que fiz outros discos, como o que gravei com o Zé Miguel Wisnik [O Anel – Alaíde Costa canta José Miguel Wisnik, Selo Sesc, 2020] e o CD com o Eduardo Santana [Canções de amores paulistas, MCK, 2021], que também contribuíram para o retorno que estou recebendo do público. Mas, de tudo, o que me chama mais atenção e me deixa muito feliz, é ver tantos jovens na minha plateia. Estou sendo redescoberta depois dos 80 anos.
Sua agenda está repleta de shows pelo Brasil afora. Como fica o coração prestes a subir no palco?
Batendo forte. O nervosismo ainda existe todas as vezes que subo no palco e quando recebo aplausos. Isso nunca mudou. Nesse momento, estou muito feliz por ter tantos projetos. Agora mesmo vou lançar o CD Pérolas Negras Ao Vivo [Companhia de Discos do Brasil e Nova Estação, 2024], ao lado de grandes amigas [as cantoras
Zezé Motta e Eliane Pittman]. Sou a mais velha da turma, a mãe de todas! E quero ter saúde para fazer muitos shows pelo Brasil e no mundo. Nesse álbum, canto até um pagodinho, o “Recado a minha amada”, do Salgadinho, que eu gosto muito. Mas, eu canto do meu jeito né?
Tem ainda novos projetos que deseja realizar?
Sim. Se houver tempo, eu gostaria muito de gravar um álbum em homenagem a Dalva de Oliveira [1917-1972]. Ela foi uma cantora que me inspirou muito, porque me ensinou como cantar com emoção. Esse é o projeto que penso em fazer há muitos anos, espero que consiga.
Por fim, se pudesse apresentar quem é Alaíde Costa, o que diria?
Uma mulher que adora cantar e que adora desafios. Uma vez, eu disse que tive mais tristezas do que alegrias na minha profissão, mas, hoje, é só alegria. O reconhecimento chegou. Tarde, mas chegou. E isso é muito importante. Já pensou morrer levando uma tristeza? Ser cantora é uma missão que cumpri. Não foi fácil, mas eu viveria tudo de novo. Chegar a essa idade me apresentando e tendo o reconhecimento que não tive antes é muito gratificante. Tudo valeu a pena.
Assista ao vídeo com trechos da entrevista com a cantora Alaíde Costa, realizada no Sesc Pinheiros, em março de 2024.
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comida DE VERDADE
Guia alimentar para a população
brasileira celebra 10 anos e segue atual, inspirando comportamentos individuais e políticas públicas nacionais e estrangeiras
POR MARCEL VERRUMO
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Laura Camargo
urante anos, quem abrisse um livro escolar ou fosse a um(a) nutricionista poderia deparar-se com a famosa pirâmide alimentar. Criado na década de 1990 por pesquisadores dos Estados Unidos, o desenho orientava a composição de uma dieta saudável, dividindo os alimentos em grupos, de acordo com suas características nutricionais e as suas funções. Na base da pirâmide, ficavam cereais, tubérculos e raízes; imediatamente acima, hortaliças e frutas; na sequência, leite e produtos lácteos, carnes, ovos, leguminosas e oleaginosas; óleos, gorduras, açúcares e doces apareciam no topo da pirâmide. Ela recomendava que as pessoas deveriam privilegiar os itens da base da pirâmide e evitar aqueles do topo.
Essa proposta começou a mudar no início do século 21. O Brasil atravessava uma série de transformações sociais, marcada por mudanças demográficas, epidemiológicas e de produção e consumo de alimentos, como a ampliação da oferta dos industrializados. Pesquisas científicas divulgavam novos dados sobre a alimentação, bem como apresentavam diferentes modos de vida baseados em saberes sociais que revelavam outras interpretações sobre o ato de comer. A alimentação começava a ser vista para além da ingestão de nutrientes e a proposta da pirâmide alimentar já não dava conta da nova e complexa realidade do país. Era preciso um novo material para orientar a população.
Nesse contexto, foi lançado, em 2012, o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN), para traçar políticas públicas para essa área. Coube ao Ministério da Saúde atualizar os instrumentos de educação alimentar e nutricional, ou seja, criar ferramentas, metodologias e documentos para orientar os brasileiros sobre o que seria uma alimentação saudável.
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Dani Sandrini e | 26 alimentação
Com tal missão, o ministério iniciou um trabalho junto a pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e da Organização Pan-Americana da Saúde, escritório regional da Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS).
A parceria, que também abriu consultas públicas à sociedade, resultou em uma publicação lançada em 2014, material que revolucionou o entendimento sobre alimentação adequada e saudável no Brasil e introduziu novos conceitos à área. Uma década depois, o Guia alimentar para a população brasileira segue inspirando comportamentos e políticas públicas nacionais e internacionais, reafirmando sua relevância e atualidade.
ALÉM DOS NUTRIENTES
O Guia alimentar para a população brasileira é uma publicação com cerca de 150 páginas, linguagem precisa e acessível, e de acesso gratuito pela internet. Uma das principais novidades em seu conteúdo foi propor uma alimentação adequada e saudável a partir de uma nova classificação para os alimentos. Enquanto a pirâmide alimentar estava dividida segundo as características nutricionais de cada elemento, o guia passou a classificá-los a partir do seu nível de processamento.
“Observamos que outras características do que comemos eram igualmente importantes para a saúde, como sua capacidade de saciar o apetite e a presença de aditivos, características relacionadas ao processamento dos alimentos”, explica Carlos Monteiro, responsável pela elaboração técnica do Guia alimentar, e fundador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.
Por essa metodologia, os alimentos são divididos em: in natura, minimamente processados, ingredientes culinários, processados e ultraprocessados [Leia a definição e confira exemplos desses grupos em
Escolha locais que ofertem alimentos variados e saudáveis.
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Classificação dos alimentos]. Segundo o Guia alimentar, uma dieta saudável deve ser baseada em alimentos in natura e minimamente processados, majoritariamente de origem vegetal, além de limitar o consumo de processados e evitar os ultraprocessados. Em outras palavras, a alimentação cotidiana deve ter como base alimentos como arroz, feijão, ovos, frutas, legumes, verduras e carnes; reduzir a pequenas quantidades legumes em conserva, sardinha e atum enlatados, queijos e pães; e evitar biscoitos, salgadinhos “de pacote”, refrigerantes e macarrão instantâneo.
Por considerar o nível de processamento dos alimentos, a nova classificação proposta pelo guia é universal, ou seja, pode ser aplicada à alimentação de diferentes culturas, não só à brasileira. Na América Latina, outros cinco países – Uruguai, Equador, Peru, Chile e México – lançaram guias inspirados na metodologia brasileira, com recomendações para que as pessoas evitem ultraprocessados. A Colômbia, por sua vez, aumentou os impostos sobre os ultraprocessados. Em outros continentes, países como França, Israel e Malásia também promoveram mudanças em suas diretrizes alimentares. “O guia brasileiro é revolucionário, entre outros aspectos, porque é baseado na classificação que mudou os paradigmas da alimentação e nutrição em saúde”, defende Monteiro.
NO PRATO, A DIVERSIDADE
Durante o desenvolvimento do Guia alimentar para a população brasileira, além das discussões técnicas feitas por acadêmicos e gestores, foram realizadas consultas públicas na internet e reuniões em diversos estados brasileiros para ouvir diferentes setores da sociedade. Representantes da sociedade civil, profissionais ligados a instituições de ensino, secretarias, conselhos e entidades da área de alimentação e nutrição, indústrias, associações e sindicatos avaliaram e contribuíram com as versões preliminares do material.
A diversidade de saberes fez do guia uma publicação que considera a alimentação a partir de uma perspectiva complexa. Prova disso é que o documento valoriza a diversidade alimentar do país e está atento às diferentes culturas e ao tempo histórico da sociedade brasileira, recomendando alimentos e ingredientes regionais e sazonais (os da época).
Também há recomendações sobre o planejamento das compras, a aquisição e escolha dos ingredientes, o modo de preparo das refeições e sobre o próprio ato de comer. “É um documento que pode contribuir muito para a promoção da saúde e da educação alimentar e nutricional”, afirma Patrícia Jaime,
O GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA É REVOLUCIONÁRIO, ENTRE OUTROS ASPECTOS, PORQUE É BASEADO
NA CLASSIFICAÇÃO QUE MUDOU OS PARADIGMAS DA ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO EM SAÚDE
Carlos Monteiro, responsável pela elaboração técnica do guia e professor emérito da USP
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CLASSIFICAÇÃO DOS ALIMENTOS
O Guia alimentar para a população brasileira divide os alimentos segundo o nível de processamento
In natura PREFIRA
Alimentos obtidos diretamente de plantas e animais, e que não sofreram qualquer alteração após deixar a natureza. Exemplos: frutas (maçã, laranja, banana etc.), legumes e verduras (abóbora, beterraba, cenoura, brócolis, espinafre, couve etc.), raízes e tubérculos (batata, batata-doce, mandioca, mandioquinha etc.), ovos e água potável.
Minimamente processados PREFIRA
Alimentos in natura que foram submetidos a processamentos mínimos (limpeza, moagem, congelamento etc.). Exemplos: grãos empacotados ou moídos na forma de farinha, raízes e tubérculos fracionados, carne resfriada ou congelada e leite pasteurizado.
Ingredientes culinários
UTILIZE EM PEQUENAS QUANTIDADES
Produtos extraídos de alimentos in natura ou da natureza por processos como moagem, pulverização e refino. Usados para temperar e cozinhar alimentos no preparo de refeições. Exemplos: óleos (de soja, milho, girassol, oliva, dentre outros), açúcares, sal de cozinha refinado ou grosso.
Processados LIMITE
Produtos fabricados pela indústria com a adição de substâncias a alimentos in natura para torná-los mais duráveis ou saborosos. Exemplos: ervilhas e palmito preservados em solução de sal e vinagre; extrato de tomate; sardinha e atum enlatados; frutas em calda e cristalizadas; queijos; pães feitos com farinha de trigo, levedura, água e sal.
Ultraprocessados EVITE
Formulações industriais fabricadas a partir de diversas técnicas de processamento e ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial. Exemplos: refrigerantes, salgadinhos “de pacote”, biscoitos recheados, macarrão instantâneo e cereais açucarados.
Fonte: Guia alimentar para a população brasileira (2014).
Nortearia
coordenadora técnica geral do Guia alimentar para a população brasileira, coordenadora do Nupens e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.
O guia recomenda planejar a compra dos alimentos e definir o cardápio com antecedência, envolvendo todos os membros da casa nas atividades domésticas relacionadas às refeições. “Procure fazer compras de alimentos em mercados, feiras livres e feiras de produtores que comercializam variedades de alimentos in natura ou minimamente processados”, orienta o documento, sugerindo aqueles que são próprios da estação do ano ou cultivados localmente e, sempre que possível, os orgânicos e agroecológicos. A publicação também orienta a adoção de uma postura crítica quanto a informações e propagandas comerciais.
Cozinhar é uma prática indicada pelo guia por ser uma forma de adquirir autonomia no momento de escolha
e preparo daquilo que se come. Outra recomendação diz respeito à hora de se alimentar. É importante estar atento ao que se come, sem distrações, como mexer no celular ou realizar outra atividade ao mesmo tempo. Sempre que possível, deve-se comer em companhia, com familiares, amigos ou colegas de trabalho e da escola. E se for comer fora de casa, opte por locais que sirvam refeições feitas na hora, e que cobrem um preço justo, como restaurantes com comida caseira.
POLÍTICAS PÚBLICAS
Para além das escolhas individuais, o guia é um documento com diretrizes potencialmente capazes de fomentar a elaboração de políticas públicas voltadas para uma alimentação adequada e saudável, transformando o coletivo. “Ele deve ser uma inspiração para a construção de um
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É importante ter atenção ao que se come e, sempre que possível, estar na companhia de familiares, amigos ou colegas do trabalho ou da escola.
sistema agroalimentar saudável e sustentável, livre da monotonia alimentar, e promotor da saúde”, defende a pesquisadora Patrícia Jaime.
A nova composição da cesta básica nacional, instituída pelo governo federal em 5 de março de 2024, é um exemplo de política elaborada a partir do guia. Composta por alimentos in natura ou minimamente processados e ingredientes culinários, a nova cesta contempla feijões (leguminosas), cereais, raízes e tubérculos, legumes e verduras, frutas, castanhas e nozes (oleaginosas), carnes e ovos, leites e queijos, açúcares, sal, óleos e gorduras, café, chá, mate e especiarias. “O intuito é evitar a ingestão de alimentos ultraprocessados que, conforme apontam evidências científicas, aumentam a prevalência de doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade, hipertensão e diversos tipos de câncer”, destacou um comunicado do governo no lançamento da nova cesta básica.
Outro caso foi a proibição, pela prefeitura do Rio de Janeiro (RJ), da venda de bebidas e alimentos ultraprocessados nas cantinas e refeitórios das escolas públicas e privadas da cidade. A partir da sanção da lei, em 12 de julho de 2023, as escolas tiveram 180 dias para se adequarem às regras e, agora, a fiscalização multa os espaços que desrespeitarem a norma. “Devemos pensar no quanto o Sistema Único de Saúde (SUS) é sobrecarregado com doenças causadas pelo consumo de ultraprocessados. Nos últimos dez anos, as evidências científicas que comprovam os malefícios dos ultraprocessados exacerbaram ainda mais a importância do que o guia recomenda”, completa Patrícia Jaime, afirmando que o material deve ser utilizado não apenas por nutricionistas, mas por todo profissional da área da saúde (agentes comunitários, médicos, enfermeiros, assistentes sociais), profissionais que atuam em escolas dentre outros.
Na mesma linha, Monteiro cita um estudo recente, publicado na revista científica The BMJ, demonstrando que o consumo de ultraprocessados está associado a mais de 30 agravamentos à saúde, incluindo câncer, depressão, doenças cardíacas e pulmonares. “Além de interromper os subsídios aos ultraprocessados, devemos tributá-los. Também devemos criar políticas públicas para promover a agricultura familiar, restringir a publicidade de ultraprocessados, proibir seu consumo em todas as escolas e hospitais. Em âmbito global, defendemos que é hora da Organização das Nações Unidas (ONU) e seus Estados-membros desenvolverem uma Convenção-quadro sobre alimentos ultraprocessados, assim como fizeram com o controle de tabaco”, finaliza o pesquisador.
Quem também reconhece o potencial do guia para a transformação é Elisabetta Recine, professora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB), e presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
“O nosso Guia alimentar acumula uma trajetória virtuosa ao apresentar uma nova perspectiva. Ele é uma ferramenta prática para conceber as diretrizes alimentares e abrir o caminho para que, de fato,
Dani Sandrini
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alimentação
essas orientações pautem iniciativas não apenas do cuidado em saúde e nutrição, mas nas diferentes políticas e ações, como a alimentação escolar, a cesta básica, entre outras”, defende. Recine acrescenta que “o próximo passo é aprofundar e ampliar as conexões com as medidas de enfrentamento à crise climática para que tenhamos saúde e sustentabilidade para as pessoas e para o planeta.”
DIVULGADORES DA CIÊNCIA
Quando o Guia alimentar para a população brasileira foi lançado, em 2014, já havia outros documentos técnicos com orientações, porém, muitos tinham uma linguagem direcionada a especialistas. “Precisávamos de um guia que pudesse ser utilizado por todas as pessoas”, lembra Patrícia Jaime. A preocupação resultou em um material que traduz conceitos técnicos para uma linguagem cotidiana, aproximando os conhecimentos acadêmicos de públicos não especializados. O apoio de outros atores sociais também foi fundamental. A cozinheira e apresentadora Rita Lobo, por exemplo, foi uma das responsáveis por disseminar diretrizes da publicação em programas de televisão, internet e outras mídias. “O Guia alimentar foi uma revolução na saúde, com uma mensagem simples: coma comida de verdade, não imitação de comida. Ou seja, elimine os
produtos ultraprocessados, porque fazem mal à saúde. Eu tenho orgulho de ver que meu trabalho é citado no próprio guia como referência para colocar na prática essas orientações”, conta Rita Lobo, autora do livro Panelinha: receitas que funcionam (Senac, 2012), citado na publicação. Em relação às repercussões do material, ela celebra: “fico muito feliz de ver que o guia serviu de base para a seleção dos alimentos que compõem a nova cesta básica. Que forma genial de comemorar os dez anos dessa publicação que é tão importante para o Brasil e que inspirou tantos outros países".
Já o nutricionista José Carlos, criador do perfil no Instagram @onutrifavelado, utiliza das potencialidades da rede social, além de outros espaços, para chegar a mais pessoas, disseminando que o ato de comer bem pode ser acessível a todos. “Busco desmistificar as questões relacionadas à alimentação e o imaginário comum sobre o saudável, que muitas vezes está distante das recomendações da publicação”, conta ele. O influenciador reconhece que difundir os ensinamentos do guia é um processo desafiador, porém a tarefa é urgente e necessária. “Entendo que existem várias questões que podem dificultar uma alimentação saudável e busco conscientizar e empoderar as comunidades, trazer informações e ferramentas para que possam fazer escolhas alimentares conscientes dentro de suas realidades."
PARA ALÉM DE UM MANUAL ORIENTADOR DE PRÁTICAS DOS CIDADÃOS, O GUIA DEVE SER (E JÁ É) UM INDUTOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Patrícia Jaime, coordenadora técnica geral do Guia alimentar para a população brasileira e professora titular da USP
para ver no sesc / alimentação
GUIA COTIDIANO
Inspirado pelo Guia alimentar para a população brasileira, Sesc São Paulo realiza ações permanentes de promoção de uma alimentação adequada e saudável
Programas e projetos de alimentação realizados pelo Sesc no Estado de São Paulo fomentam, durante todo o ano, as diretrizes do Guia alimentar para a população brasileira. “Em nosso dia a dia, consideramos as recomendações da publicação para pensar as múltiplas e transversais dimensões da alimentação.
Valorizamos ingredientes in natura e minimamente processados, e estamos atentos a aspectos culturais, sociais, econômicos, ambientais e de saúde do comer, buscando fortalecer a promoção de uma alimentação adequada e saudável”, diz Mariana Meirelles Ruocco, gerente da Gerência
de Alimentação e Segurança Alimentar da instituição.
Na alimentação, por exemplo, as comedorias (restaurantes, cafeterias e cafés) das unidades do Sesc servem preparações e alimentos saudáveis, brasileiros e contemporâneos, valorizando itens à base de ingredientes in natura e minimamente processados, da safra e regionais. Outra iniciativa é o Sesc Mesa Brasil, programa de combate à fome e ao desperdício de alimentos, criado em 1994, que fomenta a alimentação adequada e saudável. Em 2023, 81,93% dos alimentos doados foram in natura e minimamente processados.
Além disso, o Sesc realiza permanentemente ações educativas, como palestras, oficinas, cursos e bate-papos, e projetos especiais como o Experimenta! Comida, Saúde e Cultura, em outubro, e o Do Peito Ao Prato, em agosto, nos quais as orientações do Guia alimentar são disseminadas aos frequentadores das unidades.
Acesse o Guia alimentar para a população brasileira na íntegra
Dani Sandrini
Os restaurantes e cafés do Sesc São Paulo valorizam ingredientes in natura e minimamente processados, além de alimentos regionais e sazonais.
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para sempre PROVOCADOR
A arte de instigar personificada na trajetória destemida do ator, diretor e apresentador Antônio Abujamra
POR MANUELA FERREIRA
Certa vez, enquanto servia como diplomata no consulado brasileiro na cidade de Marselha, na França, o poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) hospedou um jovem compatriota na faixa dos 20 anos, que batera à sua porta de repente, sem aviso e sem qualquer tostão. Aquele visitante era o então estudante de filosofia e jornalismo
Antônio Abujamra (1932-2015), que precisava de um abrigo. “Estava no meu período de vagabundagem. Passei pelo Norte da África, Líbano e, com dinheiro para apenas uma passagem de navio, desci em Marselha. Não tinha nada. Fui, evidentemente, procurar o consulado brasileiro e vi, no endereço, o nome do João Cabral, de quem tinha lido alguns poemas. Cheguei, ele me abriu a porta e disse ‘faça favor, a casa é sua’”, relembrou Abujamra, em 1989, em entrevista ao cartunista e escritor Ziraldo (1932-2024) para o programa O Papo, da TV Educativa do Rio de Janeiro.
O hóspede ficou 28 dias na companhia do autor de Morte e vida severina (1955). “Foi muito bonito (...) E foi ali, naquele período, que minha cabeça começou a dar uma mudada”, confidenciou Abu – como era carinhosamente chamado pelo público, imprensa e classe artística. A partir do encontro com João Cabral de Melo Neto, Abujamra adotaria uma das máximas cabralinas como seu lema pessoal: “É preciso não ter calos de vitórias. É preciso ser torcedor do América”. Abu dizia seguir essa ode ao destemor para jamais se apegar a reconhecimentos efêmeros. Assim, tomou fôlego para mergulhar, nos anos seguintes, no trabalho como diretor e encenador, tornando-se um dos principais nomes da revolução cênica produzida no país nos anos 1960 e 1970. Abujamra ainda ditou, na histórica conversa com Ziraldo, um conselho aos jovens: “Ponham a liberdade em ação. Enforquem-se na corda da liberdade. Não é impossível”.
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Em mais de seis décadas de carreira dedicada ao teatro, Abujamra dirigiu mais de 120 peças e, em muitas delas, também atuou. Na televisão, imprimiu suas inquietações em novelas e como apresentador do programa Provocações, da TV Cultura.
bio
José Sebastião Maria de Souza
TRAÇANDO O PORVIR
Nos anos 1980 e 1990, dedicou-se a espetáculos de viés crítico nos quais o bom-humor e o pessimismo coexistem, uma de suas maiores marcas. Foram mais de 120 peças sob sua assinatura em mais de seis décadas de carreira – e, em muitos espetáculos, também atuou. Também levou seu estilo ousado e inventivo para a televisão. A partir de 2000, e durante 15 anos, esteve à frente do programa de “não entrevistas” Provocações, da TV Cultura. No encerramento de cada conversa, lançava aos interlocutores uma mesma pergunta para a qual confessava que ele próprio seguia buscando uma resposta por meio do seu inesgotável fazer artístico: “O que é a vida?”.
Toda esta rica produção e trajetória profissional são celebradas no livro Antônio Abujamra: rigor e caos (2023), lançamento das Edições Sesc São Paulo. A organização do volume é da escritora, diretora e encenadora Marcia Abujamra, sobrinha do artista [Leia mais em A eterna procura pelo novo]. “Habitualmente, assim começava o longevo programa de entrevistas Provocações: com o recitar de excertos de poemas ou de textos de autores célebres. Tais palavras, proferidas por Antônio Abujamra, demonstravam tanto sua excelente interpretação e erudição, como a precisão das escolhas realizadas, desde o conteúdo abordado até a relação das declamações com seus convidados”, rememorou, em texto na apresentação da obra, o sociólogo e gestor cultural Danilo Santos de Miranda (1943-2023), diretor do Sesc São Paulo de 1984 a outubro de 2023.
Seu primeiro monólogo como ator foi em 1987, no espetáculo O contrabaixo, escrito pelo alemão Patrick Süskind.
bio
ABRAÇAR O SALTO
“Abu (...) portava-se como o grande incitador que foi, evidenciando características que moldavam sua persona pública: inteligência, sagacidade e humor peculiar”, destacou Santos de Miranda na publicação. Após a graduação em jornalismo, Abujamra iniciou a carreira como crítico teatral, mas suas primeiras incursões nos palcos aconteceram somente na segunda metade dos anos 1950, no Teatro Universitário de Porto Alegre (RS), com a adaptação de O marinheiro, de Fernando Pessoa (1888-1935), outra de suas paixões. Até que veio o primeiro voo mais distante para o jovem artista, um dos dez filhos de um comerciante e uma dona de casa, ambos de origem modesta: em 1959, Abu recebeu uma bolsa para estudar língua e literatura espanholas e partiu para a Europa.
Nas bases que estruturam o impacto e a relevância do seu trabalho como diretor, há dois marcos que datam desta época. O primeiro foi o estágio com o diretor francês Roger Planchon (1931-2009), com o qual acompanhou as montagens de Henrique IV, de William Shakespeare (1564-1616), e Almas mortas, de Nikolai Gogol (1809-1852). Outro momento que impulsionou o artista foi o período como aprendiz do diretor francês Jean Vilar (1912-1971), um dos nomes mais influentes do teatro contemporâneo, com quem pôde trabalhar na montagem de A resistível ascensão de Arturo Ui, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), encenado no Théâtre National Populaire, em Paris.
FÚRIA E CRIAÇÃO
Na volta ao Brasil, dirigiu, em sequência, Raízes, de Arnold Wesker (1932-2016) e José, do parto à sepultura, de Augusto Boal (1931-2009). Anos mais tarde, criou o Grupo Decisão – em sua companhia estavam os atores e diretores Antônio Ghigonetto (1930-2010) e Emilio Di Biasi (1939-2020). A intenção era disseminar o teatro de caráter político, em oposição e resistência aos tempos de repressão que se aproximavam. “Ainda em 1963, estreiam Terror e miséria do Terceiro Reich e Os fuzis da Sra. Carrar, ambos de Brecht, levando aos bairros periféricos de São Paulo um repertório voltado para a mobilização política e a discussão da realidade nacional. No ano seguinte, o grupo monta O inoportuno, de Harold Pinter (1930-2008), e transfere-se para o Rio de Janeiro, onde o espetáculo chama a atenção, abrindo portas para seus realizadores”, detalhou o crítico teatral, professor e pesquisador
Edélcio Mostaço em Antônio Abujamra: rigor e caos
Ai de mim... Tem que ter um gemido grego para começar esse programa. Provocações, provocações. Quase 11 anos idolatrando a dúvida. Bem, pode não ser uma janela aberta para o mundo, mas é um periscópio sobre o oceano do social. Antônio Abujamra no programa
Provocações, da TV Cultura, em 2011, em episódio com o teólogo e escritor Rubem Alves
Djalma Limonji Batista
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Seus questionamentos e bom-humor, por vezes corrosivo, revelavam uma constante busca pelo significado da vida humana.
“Agora radicado no Rio, o Grupo Decisão decide apresentar, com direção de Abujamra, em 1965, Electra, de Sófocles (497 a.C - 406 a.C), produção prestigiada pela crítica e pelo público, tendo como protagonista a atriz Glauce Rocha (1930-1971). Segundo o crítico Yan Michalski (1932-1990), as encenações de Abujamra são, nessa época, subversivas e apaixonadas”, escreveu Mostaço. Ao lado da atriz Nicette Bruno (1933-2020) e do ator Paulo Goulart (1933-2014), Abu dedicou-se também ao grupo Teatro Livre, realizando montagens como As Criadas (1968), de Jean Genet (1910-1986).
Mesmo experimentando sucessos comerciais, engajou-se no projeto para a recuperação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), até então um espaço abandonado na região central da capital paulista – em 2022, o Sesc São Paulo assumiu a administração do edifício, que sediará as futuras instalações da unidade Sesc TBC. Também capitaneou a abertura de novas salas e tomou a dianteira no movimento que traria novos autores e diretores para o TBC, entre eles o italiano Giovanni Testori (1923-1993), autor de Hamletto (1981).
EXPLOSÃO NAS TELAS
As passagens de Abujamra pela televisão também se notabilizam pela singularidade. Dirigiu especiais na extinta TV Tupi e, em 1975, comandou um icônico episódio do programa Ensaio, da TV Cultura, com a cantora e compositora Maysa (1936-1977), no qual a artista transcende em uma catártica apresentação intimista. Foi o mais popular dos personagens da novela Que rei sou eu?, criação de Cassiano Gabus Mendes (1927-1993), exibida pela TV Globo entre 1988 e 1989. Na pele do vilão Ravengar, um bruxo com sede de poder, deu mostras de uma interpretação tida como impecável. Já nas ruas, o doce e amigável Abujamra era mais adorado do que temido.
Antes, já havia conquistado os espectadores, em 1987, por sua estreia como ator no monólogo O Contrabaixo, de Patrick Süskind. Na década seguinte, fundou a companhia Os Fodidos Privilegiados, na qual primou pelo deboche e o exagero, e conquistou plateias – entre os sucessos do grupo estão os espetáculos Um certo Hamlet (1991) e O Casamento (1997). Para além dos sucessos, o encenador também nomeava seus fracassos de público, como as montagens de As fúrias (1996), de Rafael Alberti, e Tartufo (1966), do dramaturgo francês Molière (1622-1673) –considerava-os alguns de seus insucessos retumbantes, com os quais dizia, era também preciso saber conviver.
José Sebastião Maria de Souza
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para ver no sesc / bio
Fotografias, depoimentos de atores e diretores, além de análises de estudiosos compõem livro das Edições Sesc São Paulo que homenageia a profícua carreira de Antônio Abujamra.
A ETERNA PROCURA PELO NOVO
Antônio Abujamra: rigor e caos, das Edições Sesc São Paulo, reúne a contribuição corajosa de Abu para as artes do país
Em 2022, o Sesc Ipiranga recebeu a exposição Rigor e Caos – Antônio Abujamra, que percorria mais de cinco décadas de trajetória do artista através de extenso material audiovisual. Com o intuito de aprofundar análises sobre a obra do encenador, seus caminhos e marcas ganharam vida nas páginas de Antônio Abujamra: rigor e caos (2023), lançamento das Edições Sesc São Paulo. A obra lança luzes sobre a carreira de Abu, desde seus emblemáticos primeiros passos, enquanto ainda era estudante da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUC-RS), até desembocar na sua vertente mais popular, a do provocativo, mordaz e espirituoso apresentador televisivo.
A publicação é composta por artigos de especialistas que abordam os aspectos mais relevantes da produção de Abu. A obra também traz uma seleção de homenagens feitas por amigos, como o diretor José Celso Martinez Corrêa (1837-2023), o cineasta Ugo Giorgetti e o autor de telenovelas Silvio de Abreu. O livro reúne, ainda,
depoimentos de fôlego assinados por nomes que conviveram e atuaram com Abujamra, como as atrizes Claudia Abreu e Vera Holtz; a diretora e professora de teatro Johana Albuquerque; e os também encenadores Antunes Filho (1929-2019) e Felipe Hirsch.
EDIÇÕES SESC SÃO PAULO
Antônio Abujamra: rigor e caos (2023)
Organização de Marcia Abujamra. sescsp.org.br/edicoes
Cláudia Ribeiro
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GALPÃO-
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Matheus José Maria
PICADEIRO
Por mais de seis décadas, a artista visual Carmela Gross faz de sua criação o resultado do diálogo provocativo com o espaço urbano
POR LUNA D’ALAMA
Várias relações podem ser estabelecidas entre a arquitetura, o espaço urbano e as artes visuais. O Sesc Pompeia, na região Oeste de São Paulo, é um exemplo dessa convergência. Ocupando o espaço construído originalmente em 1938, nos moldes ingleses, para abrigar uma fábrica de tambores, o local serviu para a indústria de geladeiras nos anos 1940. Três décadas depois, foi transformado pelo Sesc São Paulo, a partir do trabalho realizado pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992), em um lugar que passou a congregar arte, cultura e convivência.
Essa fábrica requalificada, e consolidada como centro de lazer e difusão artístico-cultural e esportivo, torna-se um ambiente propício para dialogar com obras de artistas, como a paulistana Carmela Gross que, desde a década de 1960, atua com educação e lança um olhar incisivo e crítico para a cidade, em suas dimensões sociais e políticas. Por meio de performances, instalações, intervenções e vídeos, entre outras linguagens e suportes, Gross questiona as relações dialéticas entre obras artísticas e o espaço urbano.
Parte de sua produção dos últimos 34 anos (de 1990 a 2024) está, agora, reunida na exposição Quase Circo - Carmela Gross [Leia mais em Diálogo urbano], em cartaz até 25 de agosto, no Sesc Pompeia. A mostra oferece ao público uma leitura panorâmica da trajetória da artista, mestra e doutora em artes visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), onde também foi professora de 1972 a 2018.
GATO (2024). Instalação com 4 painéis luminosos (medidas variadas). Neste trabalho, a artista se inspira no desenho original do projeto arquitetônico do Sesc Pompeia, que imaginou uma cor para cada uma das passarelas que ligam as torres que compõem o Conjunto Esportivo.
“Todo o meu trabalho sempre teve um diálogo muito forte com a arquitetura e o espaço urbano. Essa exposição foi pensada não para ser uma retrospectiva da minha carreira, mas para agregar obras que conversam com a arquitetura da fábrica, com as intervenções que Lina fez neste local e com os restos de cidade que ela utilizou, que são os restos de um ciclo econômico e de um bairro operário”, explica Gross. Segundo a artista, a exposição é uma experiência fluida, em que o público pode andar em múltiplas direções, sem começo, meio ou fim. “Cada um constrói seu próprio itinerário”, destaca.
Sobre o título da mostra, Gross revela que se inspirou no circo por ser um ambiente mágico, onde tudo acontece, seja pelo lado do erro ou do acerto, do espetáculo, do riso, do equilíbrio. “O curador Paulo Miyada [diretor artístico do Instituto Tomie Ohtake] e eu queríamos, de alguma forma, fazer alusão a esse universo lúdico. Chamar a exposição apenas de Circo, porém, poderia causar algum mal-entendido, pois todos temos um estereótipo dele na cabeça, e a exposição subverte essa ideia. Então, colocamos o ‘quase’ como um anteparo”, elucida a artista. Nesse galpão-picadeiro que é o espaço expositivo, está contida a ideia de algo frágil, interativo, que faz conexão direta com o público e está montado provisoriamente sob uma lona. “É um lugar efêmero para ser usufruído enquanto estiver funcionando”, acrescenta Carmela Gross.
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Matheus José Maria
Matheus José Maria
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UMA CASA (2007). Obra composta por 22 tripés metálicos que sustentam 22 lâmpadas tubulares de cor rosa. Segundo a artista, a fragilidade dos apoios e um certo desalinho fazem com que todo o conjunto pareça flutuar.
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Matheus José Maria
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ROUGE (2018), batom e carrinho de pipoca. O corpo metálico, as pequenas portas, a capota, a caixa de vidro, a manopla e as rodas foram inteiramente recobertos com a massa colorida usada para a fabricação de batom.
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RIO MADEIRA (1990/2024). Instalação de sarrafos de madeira pintados. Obra exposta pela primeira vez em 1990, no Sesc Pompeia, na exposição Gente de fibra.
Ballardin
Everton
BANDO (2016/2024). Série de 78 desenhos, serigrafia sobre zinco. "As placas de zinco e as pranchas rosa de madeirite, que demarcam o corredor, levam-nos aos tapumes e ao arranjo precário de tantas construções, nos becos e terrenos baldios de nossas cidades" (Carmela Gross).
Matheus
José Maria
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RODA GIGANTE (2019/2024). Instalação com objetos e cordas. Trabalho composto por mais de 300 objetos: um televisor de tubo, máquinas de escrever e de costura, caixa registradora, balança de alimentos, pilhas de livros, malas de couro, botijões de gás, entre outros, todos amarrados por cordas.
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José Maria
ESTANDARTE VERMELHO (1999). Instalação composta por ferro e tecido. Obra em homenagem ao encenador e ator José Celso Martinez Corrêa, criador do Teatro Oficina Uzyna Uzona.
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Matheus José Maria
O FOTÓGRAFO (2001). Instalação composta por lâmpadas tubulares e cavaletes metálicos. Segundo a artista, esse "desenho-luz no espaço", esboça a figura reclinada de um homem.
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Sérgio Fernandes
ESCADAS VERMELHAS (2012/2024). Instalação com 13 escadas e lâmpadas tubulares vermelhas. Trabalho realizado e exposto pela primeira vez em 2012, no átrio do Sesc Belenzinho.
Sérgio Fernandes
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Sob curadoria de Paulo Miyada, a exposição Quase Circo - Carmela Gross convida o público a fazer seu próprio itinerário durante a visitação.
DIÁLOGO URBANO
Até 25 de agosto, Sesc Pompeia abriga exposição que reúne 13 obras em grande escala da artista visual Carmela Gross
para ver no sesc / gráfica
Criadora de trabalhos carregados de significados e simbolismos que dialogam com os lugares onde são expostos, a artista visual paulistana Carmela Gross reúne 13 obras em grande escala na exposição Quase Circo - Carmela Gross, em cartaz até 25 de agosto, no Sesc Pompeia. Entre obras luminosas, instalações, intervenções e vídeos espalhados pela unidade, Gross apresenta parte de sua produção dos últimos 34 anos.
Todas as 13 obras em grande escala foram criadas como site specific, isto é, especificamente para o local, sem salas, paredes ou outras demarcações. Além disso, quatro obras (UMA CASA, O FOTÓGRAFO, ESCADAS VERMELHAS e GATO, esta a única criada para essa mostra)
têm luzes de cores variadas, em referência aos famosos anúncios luminosos das cidades. “Trazem essa ideia de você ver algo de longe, a quilômetros de distância, e se sentir atraído(a)”, resume a artista.
Para o curador, Paulo Miyada, caminhar por toda a exposição é como se distrair e observar o circo durante o dia: com lona, terra, cordas. “Cada uma das obras é feita da junção de objetos, mas a mostra como um todo se torna uma grande instalação de obras que se encontram e se transformam na presença das demais”, explica.
Segundo Juliana Braga de Mattos, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, Carmela Gross é uma
artista de expressiva atuação na cena brasileira, provocando, com suas experimentações poético-espaciais, inovadoras acepções de objetos e materiais do mundo. “Quase Circo acaba por alinhavar, simultaneamente, muitos pontos da trajetória da artista à sua presença na história do próprio Sesc São Paulo”, finaliza.
POMPEIA
Quase Circo –Carmela Gross
Curadoria de Paulo Miyada. Até 25 de agosto. Terça a sábado, das 10h às 21h. Domingos e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS.
sescsp.org.br/quasecirco
Sérgio Fernandes
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SABERES atravessar
Ao longo da história do país, intelectuais negros e negras vêm exercendo papel fundamental na produção de conhecimento, inspirando novas gerações
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Ao ter sua matrícula rejeitada pelos gestores da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, atual Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na década de 1860, o abolicionista Luiz Gama (1830-1883) fez do conhecimento adquirido com sua persistência uma ferramenta para atuar na defesa jurídica de pessoas negras escravizadas. Cem anos depois, o geógrafo Milton Santos (1926-2001) também se interessaria pela formação acadêmica: entrou na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fez doutorado em geografia pela universidade francesa de Strasbourg, tornando-se um pensador mundialmente reconhecido pelas suas ideias a respeito da globalização. Em 2020, a biomédica, doutora em patologia humana e pesquisadora brasileira Jaqueline Goes de Jesus coordenou a equipe responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2, 48 horas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil. Em diferentes
tempos e contextos, mulheres e homens negros, nas áreas da saúde, física, direito, comunicação, letras e filosofia, entre outras, produziram e produzem conhecimento e sentidos de mundo para as próximas gerações.
“Meninas e meninos me falam em palestras de que participo: ‘Estou aqui porque você falou que eu podia’”, compartilha Sonia Guimarães, a primeira mulher negra doutora em física no Brasil, PhD na mesma área pela Universidade de Manchester (Reino Unido) e professora do Instituto de Tecnologia e Aeronáutica (ITA), desde 1993, quando o ITA ainda não aceitava mulheres entre seus alunos. Guimarães conta que atravessou a infância e a adolescência sem referências de professores ou cientistas negros.
Quando jovem, ela tinha apenas uma certeza: adorava matemática. Mas, depois de fazer um curso técnico de edificações no Liceu de Artes
e Ofícios de São Paulo, entrou em contato com outra área que definiria seu percurso: a física. No segundo ano da graduação na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), encantou-se pela física moderna. Nos anos 1970, ela aprendeu o que eram os semicondutores – materiais condutores ou isolantes de energia –, que viriam a revolucionar a tecnologia. “Hoje todos os dispositivos microeletrônicos no celular, na TV, no carro e até na máquina de lavar roupa têm um semicondutor fazendo alguma coisa fantástica”.
A partir daquele momento, os semicondutores tornaram-se objeto de pesquisa permanente na carreira da cientista. “Eu era a única mulher negra quando entrei na universidade. Éramos 1.500 estudantes. Atualmente, são cinco campi e 20 mil estudantes, dos quais 20%, negras e negros. De 1970 para cá, alguma coisa mudou. Existe
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uma luz no fim do túnel”, observa Sonia Guimarães, que também é membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).
O jornalista e professor Dennis de Oliveira recorda que, na infância, seu ídolo não era um jornalista, um professor ou mesmo um cientista negro. Seu exemplo era o Pelé. “Não tinha muitas opções. Era o Pelé e acabou. Como eu tinha esse espelho, eu queria ser que nem o Pelé, jogar futebol. Esse era o imaginário dos meninos negros da minha época”, recorda. Nascido na periferia da cidade de São Paulo, Oliveira foi um dos três estudantes negros de um total de 85 da sua turma na Escola de Comunicações e Arte (ECA/USP), na década de 1980.
Depois de formado, enveredou pela carreira acadêmica. Fez mestrado
e doutorado na mesma instituição, sempre dedicado à investigação de áreas como cultura, comunicação, movimentos sociais, relações étnico-raciais e teorias decoloniais. “O fato de chegar à USP e levar o debate racial de outra forma foi um desafio, assim como levantar esse debate, aproveitando das brechas que havia para se fazer isso. Embora ainda tenha muito que avançar, pelo menos hoje esse debate racial está acontecendo”, pondera Oliveira.
ROSTOS NEGROS
No caso de Bárbara Carine Soares Pinheiro, filósofa, escritora e professora do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), quando era estudante, poucos eram os rostos negros de colegas, tampouco o de um
professor, mesmo considerando que sua formação tenha acontecido mais recentemente, nos anos 2000. Essa realidade perdurou por duas graduações, um mestrado e um doutorado. “A minha construção subjetiva enquanto cientista, intelectual, pesquisadora e escritora, se deu a partir de um espelho quebrado. Eu me tornei a intelectual que eu não vi. Terminei meu doutorado sem ter lido um autor negro na universidade, uma autora negra. Isso é muito cruel”, conta.
Com o tempo, Pinheiro lembra que seu repertório cultural e acadêmico foi se compondo por nomes como Abdias do Nascimento (1914-2011), Lélia Gonzalez (1935-1994), Milton Santos, Maria Beatriz Nascimento (1942-1995), entre outros intelectuais negros. A presença dessas referências negras no campo
Primeira mulher negra doutora em física no Brasil, Sonia Guimarães conta que atravessou a infância e a adolescência sem referências de professores ou cientistas negros.
Mulheres Iluminando o Mundo, direção Gisela Arantes / Umiharu Produções Culturais e Cinematográficas / Foto: Diego Carvalho
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do conhecimento não se trata apenas de representatividade, mas de entendimento do que é ser humano, segundo Pinheiro que, por meio do perfil @uma_intelectual_diferentona, no Instagram, fala sobre letramento racial – conjunto de práticas pedagógicas que têm por objetivo conscientizar as pessoas sobre a estrutura e o funcionamento do racismo na sociedade.
DILATAR VISÕES
Ao trazer perspectivas, narrativas e outras questões, esses pesquisadores buscam derrubar muros erguidos por uma visão eurocêntrica e, portanto, restrita do conhecimento. Doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Cida Bento definiu esse muro como “pacto da branquitude”, um acordo não verbalizado de autopreservação que atende a interesses de determinados grupos de pessoas, restringindo outras.
Quem também reflete sobre esse movimento é a educadora e filósofa Sueli Carneiro, que faz da sua produção intelectual um questionamento a esse modus operandi que ainda inferioriza intelectualmente as pessoas negras, tentando anulá-las como sujeitos de conhecimento. Esse pensamento, aliás, se consolida em sua tese de doutorado, defendida em 2005, e publicada sob o título Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser (Zahar), em 2023.
Neste cenário, a descolonização da forma como pensamos o mundo é apontada como a principal ferramenta para o entrave à produção de conhecimento pela
Para o professor da USP
população negra, de acordo com Bárbara Carine Soares Pinheiro.
Autora de Descolonizando saberes: Mulheres negras na ciência (Livraria da Física, 2020), a especialista explica que, no século 19, a emergência da Europa por sua expansão colonialista a consolidou como “dominadora de povos a partir da dominação de todas as esferas qualitativas humanas, inclusive a da produção de conhecimento”. Dessa forma, reflete a pesquisadora, “a construção da narrativa criada precisou se vincular com uma perspectiva historiográfica – não quer dizer, necessariamente, que a civilização grega quisesse ser a gênese da história, mas isso foi imputado a eles posteriormente, para a construção de um mundo eurocentrado”.
Por desconsiderar a existência e a produção de conhecimento de outras civilizações para além da grega, e mesmo de épocas anteriores, a História passa a ser questionada em diferentes campos do saber e problematizada por intelectuais negros nas ciências humanas, biológicas e exatas.
Pensadores e pensadoras que crescem em número e que se tornam referências para uma geração que ocupa as universidades, neste século, a partir de ações afirmativas como a Lei de Cotas (2012). “As pessoas que entraram nas universidades querem falar sobre si, querem falar sobre suas dores, querem pesquisar suas questões. Essas temáticas passaram a estar mais em emergência na academia brasileira”, observa Pinheiro.
Para o professor Dennis de Oliveira, a presença de pesquisadores e professores negros nas universidades públicas encurta a distância entre os dilemas sociais e o pensamento produzido pela academia. “Com mais negros e negras, você populariza a universidade, democratiza o acesso e, também, aproxima os debates que ela realiza do que a gente precisa enquanto sociedade”.
Um resultado desse movimento, segundo Oliveira, é a Lei 10.639, de 2003, que estabeleceu a obrigatoriedade da inclusão da
Dennis Oliveira durante a gravação do Café Filosófico CPFL Expresso / Raava Audiovisual / Instituto CPFL
Dennis de Oliveira, a presença de pesquisadores e professores negros nas universidades públicas encurta a distância entre os dilemas sociais e o pensamento produzido pela academia.
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história e cultura afro-brasileira no currículo das escolas brasileiras. “O papel que educadores negros presentes nas universidades tiveram na construção dessa política pública foi fundamental. Além da questão da epistemologia, a presença negra na academia tem um lado prático: a argumentação de políticas públicas e a contaminação das bases institucionais”, destaca o professor, também autor de livros como Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Dandara, 2021).
AOS QUE VIRÃO
Depois de escrever um livro direcionado aos professores, Como ser um educador antirracista (Planeta, 2023), Bárbara Carine Soares Pinheiro acaba de lançar, pela mesma editora, Querido estudante negro. Nele, a autora compartilha momentos de sua vida como estudante. Como enredo, a
troca de cartas entre dois jovens negros que vivem situações socioeconômicas distintas. No último capítulo, Pinheiro deixa um recado àqueles e àquelas que, assim como ela, enfrentaram facetas do racismo no campo da educação. “A gente não veio desse lugar de escravidão que nos foi dito. A gente veio de um lugar de pioneirismo ancestral e é esse espelho que a gente deve mirar para se construir no dia de hoje”, defende.
Aos 66 anos, Sonia Guimarães confirma que os desafios ainda são muitos. Hoje, quando lhe perguntam como ocupar o espaço que ela conquistou, responde: “Não desistam, porque não vai ser fácil”. Acompanhada sempre pelo bom humor, ela dispara: “Fiquem surdos quando vocês ouvirem: ‘Você não vai conseguir’; ‘Isso é muito difícil’; ‘Você conhece algum preto ou uma preta que faça isso?’. Talvez até não exista mesmo,
ainda. Então, seja você o primeiro ou a primeira. Por que não?”.
Para Dennis de Oliveira, é notório o ganho de uma diversidade maior de professores e intelectuais negros e negras em diferentes campos de conhecimento. “Hoje você tem, por exemplo, o jurista Silvio de Almeida [ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil], e daí você pensa: ‘Olha, eu posso ser jurista’; tem a Maju Coutinho, como jornalista. Isso vai despertando nas crianças negras outras possibilidades – ela pode ser o que ela quiser, ela não limita seu sonho”, destaca. Também é importante lembrar, acrescenta Oliveira, que essa realidade é fruto de vitórias coletivas. “É legal ter as conquistas pessoais, mas nunca esquecer o seu vínculo coletivo. Nós temos um compromisso com a nossa comunidade, com a nossa população.”
Professora na UFBA e escritora, Bárbara Carine Soares Pinheiro ainda divulga saberes de personalidades negras em seu perfil no Instagram.
Se a presença desses pesquisadores e pesquisadoras impacta o ambiente universitário, para o educador Fabiano Maranhão, mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, o ambiente acadêmico se soma a tantos outros campos de saberes e, portanto, é mais um espaço de disputa de narrativas e de produção de conhecimento. “O reconhecimento da genialidade e visão de mundo das pessoas negras vem do saber da terra, das tradições religiosas, dos movimentos sociais. A universidade chancela, ecoa, visibiliza. Todavia, faz-se necessário reconhecer todo saber, toda ciência que os mestres e mestras tradicionais possuem”, conclui Maranhão, que também é técnico na área de diversidade cultural da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.
Gabriel Cerqueira
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FORÇA MOTRIZ
Espetáculos, rodas de conversa, vivências e outras atividades compõem o Festival Sesc Culturas Negras, realizado neste mês em 26 unidades do estado de SP
Dedicado à valorização, reconhecimento e difusão da cultura afro-diaspórica, o Festival Sesc Culturas Negras ocupa 26 unidades do Sesc no estado de São Paulo, de 22 a 26 de maio, com uma programação diversa que inclui apresentações, vivências, experimentações, rodas de conversa e outras atividades. As ações são marcadas pela pluralidade de formatos e participação de artistas, grupos, coletivos, lideranças comunitárias, mestres tradicionais, pesquisadoras e pesquisadores da arte e da cultura negra.
Em sua primeira edição, o festival parte da potencialidade como força motriz que busca evidenciar experiências em territórios de existência firmadas na ancestralidade, no encruzilhamento de possibilidades no qual passado, presente e futuro se atravessam, dialogam e se contaminam. “O Festival Sesc Culturas Negras vem neste lugar de reconhecimento, de exaltação de todo saber, de toda ciência, de toda filosofia, de toda ancestralidade viva e que sempre
esteve aqui. É mais uma oportunidade para a gente aprender, se fortalecer e acelerar essa pavimentação em direção a uma sociedade menos desigual”, explica Fabiano Maranhão, técnico em diversidade cultural da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, e um dos curadores do projeto.
Confira destaques da programação:
PINHEIROS
Ilê Aiyê
O primeiro bloco afro do Brasil, conhecido como "O Mais Belo dos Belos", Ilê Aiyê, completa seu cinquentenário e abre o Festival Sesc Culturas Negras. Dias 22 e 23/5, quarta e quinta, às 21h.
CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO
Nós por nós: Mídias Negras e comunicação antirracista O bate-papo reúne comunicadores negros para discutir jornalismo antirracista. Com Ana Flávia
Magalhães Pinto, Rosane Borges, Pedro Borges e Thais Bernardes.
Dia 23/5, quinta, às 16h.
Dia 24/5, sexta, às 15h30.
CASA VERDE
Prot{AGÔ}nistas –O movimento negro no picadeiro
25 artistas negros apresentam números de palhaçaria, tecido, trapézio, contorcionismo, perna de pau e dança acompanhados por músicas autorais. Dirigido por Ricardo Rodrigues.
Dia 24/5, sexta, às 13h.
Dias 25 e 26/5, sábado e domingo, às 16h. GRÁTIS.
INTERLAGOS
Encontro de blocos afro de São Paulo
Os grupos paulistanos Zumbiido Afropercussivo e Ilu Inã se reúnem para um cortejo pela alameda do Sesc Interlagos, saudando e homenageando as culturas e tradições dos povos pretos.
Dia 25/5, sábado, das 14h às 16h. GRÁTIS.
Saiba mais em sescsp.org.br/culturasnegras
Entre as atrações da programação, o Sesc Interlagos recebe o Encontro de blocos afro de São Paulo, no dia 25/5.
João Prehto
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Até 2030, cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo poderão desenvolver problemas cardíacos, obesidade, diabetes ou outras doenças não transmissíveis devido à falta de atividade física. Esse alerta, feito em 2022 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), desdobrou-se no Plano de Ação Global sobre Atividade Física 2018-2030, publicado no mesmo ano. Desde então, inúmeras discussões no âmbito científico e político visam pensar em estratégias de incentivo à prática de atividades físicas, principalmente em centros urbanos, onde concentra-se, a exemplo do Brasil, mais de 80% da população.
Um dos objetivos do plano de ação global da OMS é criar ambientes ativos nas cidades. Isso quer dizer: cidades bem planejadas que estimulem a caminhada, o ciclismo e o uso do transporte público, por exemplo, além de promover a saúde e o bem-estar da sociedade. A criação de espaços públicos abertos e de infraestrutura para práticas de atividades físicas, além do convite a esportes e à educação física em escolas, também pode tornar uma cidade ativa.
“Já é um consenso que o ambiente pode influenciar no estilo de vida das pessoas e no poder de
escolha por hábitos saudáveis. Os próximos passos podem estar centrados nas intervenções, avaliação e monitoramento de indicadores e nas políticas de planejamento que as cidades irão adotar. O Brasil já possui legislações importantes, como o Plano de Mobilidade Urbana, o Estatuto das Cidades e o Plano Diretor, que são ferramentas que ajudam na tomada de decisões”, ressalta Elaynne Silva de Oliveira, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Epidemiológicas em Atividade Física e Saúde da Universidade de São Paulo (GEPAF-USP).
Para a implementação dessas políticas públicas, Inaian Pignatti Teixeira, que também é pesquisador da GEPAF-USP, destaca a importância do envolvimento da população. “Como defende Jan Gehl, arquiteto e urbanista dinamarquês, as cidades são para pessoas, e a escala humana deve ser a prioridade. Portanto, façamos das nossas cidades um local melhor para nós e melhor para nossa saúde”, afirma. Neste Em Pauta, Oliveira e Teixeira, que participaram do ciclo de palestras Ambiente, atividade física e saúde, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, em 2023, refletem sobre as relações entre esses três pilares para o planejamento de uma cidade ativa.
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Ambiente, atividade física e saúde
POR ELAYNNE SILVA DE OLIVEIRA
Falar de ambiente, atividade física e saúde é se referir a três aspectos complexos, e por vezes indissociáveis, pois trata-se de temáticas que se atravessam. A saúde talvez seja a principal e mais importante das três. Historicamente, em meio aos processos de saúde-doença, tem-se a presença do ambiente e, quando nos referimos ao ambiente, estamos falando do ambiente construído representado pelas cidades e espaços urbanos.
Até o início do século 20, as principais causas de mortalidade no mundo possuíam relação com o ambiente, em que a ausência de saneamento básico, moradias inadequadas e trabalhos insalubres foram responsáveis por elevadas taxas de mortalidade por diarreia, varíola, peste, cólera e tuberculose, mesmo em países desenvolvidos. Com o avanço da medicina, a partir de 1940, e o aumento de evidências dos efeitos do comportamento individual sobre a saúde, houve um declínio nas causas de mortalidade pelo ambiente e um aumento no número de mortes por doenças relacionadas ao comportamento. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), estima-se que dois terços das mortes por doenças que podem ser prevenidas estão relacionadas à alimentação, inatividade física, tabagismo e consumo exagerado de bebidas alcoólicas. Se na atualidade o comportamento de pessoas e populações é um dos principais responsáveis por processos de saúde-doença, como o ambiente construído (as cidades) aparece nessa relação?
Historicamente, as cidades representam ambientes propícios à produção de iniquidades em saúde, que são socialmente produzidas, principalmente, entre populações de baixa renda que possuem maiores chances de terem taxas de mortalidade e morbidade para as principais doenças não transmissíveis.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), estima-se que, em 2050, a população mundial chegará a 10 bilhões de pessoas, com 70% delas vivendo em áreas urbanas.
Essa rápida urbanização tem se tornado um grande desafio. Um estudo publicado na revista The Lancet descreve os oito principais riscos ambientais, sociais e comportamentais influenciados pelo planejamento das cidades, aos quais as populações estão expostas. Desses, destacam-se o comportamento sedentário, exposição ao tráfego, segurança contra o crime, dietas não saudáveis e a inatividade física. Ou seja, a cidade não se dissocia da saúde e do bem-estar das pessoas. Mais do que nunca, o ambiente pode influenciar o comportamento e as escolhas dos grupos e populações.
Com base nessas evidências, as recomendações propostas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU reforçam a necessidade do planejamento de cidades mais saudáveis, inclusivas, sustentáveis e seguras para os seus residentes. Um dos principais fatores de risco para a morbidade e a mortalidade é a inatividade física, que pode ser descrita, na atualidade, como uma pandemia global e um fardo para a economia mundial.
Dados de uma pesquisa do sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) demonstram que, no Brasil, houve um aumento da prática de atividade física no lazer, variando de 30,3%, em 2009, para 36,7%, em 2021 (considerando adultos que praticam pelo menos 150 minutos semanais de atividade física no tempo livre). Essa é uma boa notícia, porém não suficiente, pois a prevalência de pessoas que alcançam as recomendações nacionais e internacionais para a prática de atividade física ainda é baixa.
O relatório do Vigitel também apresenta o percentual de adultos que praticam atividade física de deslocamento, como as caminhadas ou transporte por bicicleta para o trabalho, faculdade, casa, escola ou qualquer outro itinerário. Durante o período de 2009 e 2021, houve uma redução dessas práticas, variando de 17% para 10,4%. É importante destacar
É imprescindível avançar na discussão de políticas capazes de estimular e construir cidades saudáveis e sustentáveis
que, no Brasil, as pessoas realizam parte dos deslocamentos ativos por necessidade, e não por escolha. Existe vasta literatura que analisa os fatores que interferem e modificam os comportamentos relacionados à prática de atividade física. As principais teorias e intervenções ao longo do tempo foram realizadas levando-se em consideração características individuais, como influências psicológicas e sociais. No entanto, tais estratégias sozinhas não foram suficientes para explicar o comportamento social da prática de atividade física, o que levou a discussão de alguns modelos e teorias que tentam explicar de forma mais ampla esse comportamento.
Um dos exemplos é o modelo ecológico proposto pelo pesquisador James Sallis, que é abrangente e considera que o comportamento humano também é afetado por fatores externos ao indivíduo, como aspectos interpessoais, ambientais e políticos. Estudos baseados nesse modelo têm demonstrado que o planejamento urbano e a promoção de cidades caminháveis – mais conectadas e que facilitem a atividade física como parte das atividades da vida diária – podem promover a saúde e prevenir doenças crônicas não transmissíveis.
Um estudo epidemiológico longitudinal chamado ISA – Atividade Física e Ambiente, liderado pelo professor Alex Antonio Florindo, da Universidade de São Paulo (USP), tem buscado compreender a relação do ambiente construído com a atividade física e a saúde a partir do acompanhamento de adultos paulistanos. Os resultados de 2014 e 2015 demonstraram que adultos com acesso a dois ou mais tipos de espaços públicos abertos, como ciclovias, praças ou parques próximos às suas casas (até 500 metros de distância), tiveram mais chances de praticar caminhada no tem-
po de lazer em comparação com as pessoas que não tinham acesso a nenhum tipo desses espaços. Já a presença de estações de trem ou metrô, variedade de destinos (como padarias e unidades básicas de saúde) e alta densidade de supermercados dentro de buffers (áreas de influência ao redor de objetos geográficos) de 1000 metros está associada a maior incidência da prática cotidiana de caminhadas como forma de transporte. Os resultados mais recentes desse acompanhamento apontam que, entre 2014 e 2021, as pessoas que tiveram acesso ou mantiveram disponíveis os acessos a parques, praças e ciclovias distantes em até 500 metros de sua residência tiveram 44% mais chances de praticarem caminhadas no lazer.
O estudo também destaca que, nesse mesmo período, houve mudanças no ambiente construído na cidade de São Paulo. Foi observado, por exemplo, aumento da prática de atividade física nos horários livres em espaços como academias ao ar livre (+109,6%), ciclovias (+67,7%), estações de trem ou metrô e terminais de ônibus (+15,4%), instalações esportivas (+12%) e em praças públicas (+8,7%). Vale ressaltar que o aumento não foi igual para as regiões da cidade, tampouco para a renda do setor censitário e para a área de residência dos pesquisados. Já é consenso que o ambiente pode influenciar no estilo de vida das pessoas e no poder de escolha por hábitos saudáveis. Os próximos passos podem estar centrados nas intervenções, avaliação e monitoramento de indicadores e nas políticas de planejamento que as cidades irão adotar. O Brasil possui legislações importantes, como o Plano de Mobilidade Urbana, o Estatuto das Cidades e o Plano Diretor, ferramentas que ajudam na tomada de decisões. É imprescindível avançar na discussão de políticas capazes de estimular e construir cidades saudáveis e sustentáveis.
Elaynne Silva de Oliveira é graduada em educação física, professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Epidemiológicas em Atividade Física e Saúde da USP (GEPAF-USP).
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Quanto minha cidade está contribuindo (ou não) para eu ser mais saudável?
POR INAIAN PIGNATTI TEIXEIRA
A origem das cidades é um tema complexo e fascinante, que envolve aspectos históricos, geográficos, econômicos e sociais. Muito embora as primeiras cidades tenham surgido há pelo menos cinco mil anos, a sedentarização das populações só foi possível graças ao desenvolvimento da agricultura e da pecuária, que viabilizou o aumento da produção de alimentos. Muita coisa mudou de lá para cá, mas, no século 18, os adensamentos urbanos foram intensificados pela Revolução Industrial, atraindo a migração de pessoas do campo para as cidades, em busca de condições melhores de vida e trabalho.
Esse novo processo de urbanização trouxe vantagens e desvantagens. Se por um lado, viver nas cidades fomenta o desenvolvimento econômico, diversidade cultural, oferta de serviços e infraestrutura, e melhoria da educação e da saúde, por outro estimula a poluição, o congestionamento, a violência, a desigualdade social, a moradia precária, a perda de áreas verdes, entre outros.
Como a cidade onde vivemos hoje poderia contribuir ainda mais para nossa saúde? As principais desvantagens de se viver nas cidades são: a exposição à poluição do ar, da água e do solo pode causar doenças respiratórias, cardiovasculares, alérgicas, neurológicas e até câncer; a falta de saneamento básico, coleta de lixo e tratamento de resíduos pode favorecer a proliferação de agentes infecciosos e vetores de doenças, como mosquitos,
ratos e baratas; o estresse causado pelo trânsito, pelo barulho, pela violência, pela falta de tempo e, por que não, pela solidão, pode afetar a saúde mental e emocional, aumentando o risco de depressão, ansiedade, suicídio e outros transtornos; A obesidade e o sedentarismo podem ser favorecidos pelo consumo de alimentos industrializados, pela falta de espaços verdes e de lazer, pela insegurança e pela dependência de meios de transporte motorizados, o que pode levar a doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, doenças cardíacas, articulares e inúmeras outras. A desigualdade social e econômica pode gerar exclusão, discriminação, pobreza, fome, violação de direitos e falta de acesso a serviços de saúde, educação, cultura e cidadania, comprometendo a qualidade de vida e a dignidade das pessoas.
Ao olhar o lado bom da balança, é inegável que, em geral, a urbanização trouxe melhorias para as condições de saúde. Uma das formas de ver isso é analisar a longevidade, que tende a ser substancialmente maior na zona urbana do que na zona rural. Porém, ainda há muito a ser feito para que as cidades exerçam todo seu potencial na promoção de saúde para sua população. A saúde, aliás, não é, nem deveria ser considerada como apenas a ausência de doença, e sim um constructo muito mais complexo, que pode ser influenciado por vários fatores, como o ambiente, a genética, o estilo de vida, a educação, a cultura, a economia e a política.
Outro ponto: os impactos na saúde não são de responsabilidade única e exclusiva da pessoa. Sim, você e suas decisões têm um impacto muito importante na sua saúde. Contudo, o “fardo” de ser mais ou menos saudável não pode, e não deve, ser responsabilidade exclusiva da própria pessoa. Existe uma série de outros fatores ambientais e sociais, portanto, para além do indivíduo, que devem ser fomentados pela cidade, pois impactam a saúde. Ações interprofissionais, intrasetoriais e intersetoriais, no contexto urbano, são importantes para a promoção da saúde.
Nesse sentido, para uma promoção de saúde efetiva, as cidades devem garantir, por exemplo: acesso
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Pensar em uma “cidade saudável” significa adotar uma abordagem intersetorial e integrada, que envolva os diferentes setores da administração pública, o setor privado, as organizações da sociedade civil e os próprios cidadãos
integrado, e de qualidade, a serviços de saúde, educação, cultura, lazer, segurança, moradia, saneamento e a outros direitos básicos; mobilidade urbana eficiente e sustentável, que priorize os modos de transporte não motorizados, como caminhada e bicicleta, e modos de transporte coletivos. Além de acesso a espaços públicos de lazer, como parques, praças, quadras, pistas e academias ao ar livre, que sejam acessíveis, seguros, limpos e bem iluminados; gestão participativa e democrática, que envolva os cidadãos nas decisões e nas ações que afetam a cidade, promovendo a transparência, a responsabilidade e a inclusão social.
Também contribuem para a promoção de saúde nas cidades: a preservação e valorização do patrimônio natural e cultural que respeite a biodiversidade, os recursos hídricos, o clima e a paisagem, e que reconheça a diversidade e a identidade dos habitantes, suas histórias, tradições e expressões artísticas; inovação e criatividade, que estimule o desenvolvimento científico, tecnológico, econômico e social, buscando soluções para os problemas urbanos e para as demandas da população, gerando oportunidades e melhorias para os centros urbanos.
Pensar em uma “cidade saudável” significa adotar uma abordagem intersetorial e integrada, que envolva os diferentes setores da administração pública, setor privado, organizações da sociedade civil e os próprios cidadãos. Ao agir dessa forma ampla e estratégica, é possível cuidar da população e do território, harmonizar o desenvolvimento humano e o ambiental, valorizar a diversidade e a democracia, estimular a inovação e a criatividade, e assim promover a saúde em todas as políticas e em todos os níveis.
Por fim, é também fundamental que você – sim, você mesmo(a) – participe da gestão e do planejamento da sua cidade, exigindo dos governantes e dos empresários políticas públicas e ações que promovam saúde, sustentabilidade, equidade e democracia. Você já ouviu falar em Conselho Municipal de Saúde, por exemplo? E em Conselho Municipal de Educação? E de Assistência Social? Quais outros conselhos municipais existem nas cidades brasileiras? Em geral, esses conselhos são canais efetivos de participação popular, por meio dos quais a cidadania deixa de ser apenas um direito e passa a ser uma realidade transformadora.
Com a participação dos cidadãos na formulação e implementação de políticas públicas, incluindo aquelas com intersecção na saúde, aspectos relevantes para você, e para sua comunidade, deixam de ser sonhos e passam a ser factíveis. Como defende Jan Gehl, arquiteto e urbanista dinamarquês, as cidades são para pessoas e a escala humana deve ser a prioridade. Portanto, façamos das nossas cidades um local melhor para nós e melhor para nossa saúde.
Inaian Pignatti Teixeira é doutor em atividade física e saúde, com pós-doutorados pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP), Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP) e School of Geography and the Environment (University of Oxford). Docente da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), é também pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Epidemiológicas em Atividade Física e Saúde da USP (GEPAF-USP).
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LGBTI+ direitos
Professor de direito e escritor, Renan Quinalha traça um panorama histórico das lutas e conquistas deste movimento no Brasil
POR LUNA D’ALAMA
Asigla LGBTI+ abrange uma grande diversidade de pessoas no Brasil, com distintas realidades culturais e socioeconômicas. Essas diferenças têm impacto no exercício de cidadania dos indivíduos, como eles vivem, são reconhecidos e quais espaços podem ocupar. Nas últimas décadas, essa população tem conquistado, juridicamente, direitos civis como o reconhecimento da união estável homoafetiva, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, e a adoção.
Na esteira dos avanços recentes e da despatologização das sexualidades, a comunidade LGBTI+ também conquistou o direito de pessoas transgêneras poderem ir diretamente aos cartórios para alterar o primeiro nome e o sexo na documentação civil, o de homens gays poderem doar sangue, e o de se discutir gênero e sexualidade nas escolas.
Direitos como esses dependem de mobilização social para que sejam efetivos. No entanto, muitas pessoas no Brasil desconhecem o histórico de reivindicações, desde a década de 1960, do Movimento
Homossexual Brasileiro (MHB) e de outros grupos em defesa dos direitos da população LGBTI+. Ao longo de vários ciclos, a comunidade foi conquistando direitos, políticas públicas, ampliando suas demandas e aparecendo cada vez mais – e de forma positiva – na cena pública. Para traçar um panorama histórico dessas lutas, o advogado, professor de direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e escritor Renan Quinalha lança em breve, pelas Edições Sesc São Paulo, o livro Direitos LGBTI+: Novos rumos da proteção jurídica, organizado pelo autor em conjunto com Alexandre Bahia e Emerson Ramos. "Uso LGBTI+ porque tem sido a convenção adotada pelo movimento nos últimos encontros promovidos no Brasil", explica.
Quinalha também é autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias (Autêntica, 2022), vencedor do Prêmio Cidadania e Diversidade da Parada LGBT de São Paulo e finalista do Prêmio Jabuti, em 2023. Além disso, é editor e colunista da seção Livros e Livres, dedicada à literatura LGBTI+, na revista Quatro cinco um, e coordenador do Núcleo
TransUnifesp, na universidade em que leciona. Neste Encontros, o especialista aponta conquistas e desafios da população LGBTI+.
LUTA HISTÓRICA
Desde o fim dos anos 1970, durante a ditadura militar, já havia no Brasil um movimento político organizado, com iniciativas LGBTI+ acontecendo em vários lugares. Um movimento de resistências, de agenciamentos, de pessoas vivendo suas experiências – individuais e coletivas – de gênero, de sexualidade, de dissidência. Em meio ao processo de redemocratização e junto a uma série de outros movimentos sociais (feminista, sindical, estudantil e negro), surge o Movimento Homossexual Brasileiro (MHB). Seu primeiro desafio, naquele momento, era de fato a reconstrução democrática. Na virada da década, já havia cerca de 20 grupos ativos no MHB, num período em que vários coletivos da sociedade estavam se organizando e trazendo suas demandas para a cena pública. Todo esse processo desembocou nas Diretas Já [movimento popular que teve como objetivo a retomada
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das eleições diretas para o cargo de presidente da República] e na Constituinte de 1988.
DA EPIDEMIA À VISIBILIDADE
No meio do caminho dessa luta por direitos, nos anos 1980 e 1990, o movimento LGBTI+ enfrentou a epidemia de HIV/Aids, que abateu essa população (sobretudo homens gays, bissexuais e travestis) de uma maneira muito significativa e dramática. Hoje, o Sistema Único de Saúde (SUS) é um modelo mundial de prevenção e combate ao HIV, graças também à mobilização do movimento LGBTI+ organizado, que se engajou
nessa luta. Na década de 1990, com uma política de assistência de saúde mais estruturada, esse movimento conseguiu ter maior visibilidade e ocupar mais a cena pública, incluindo a realização das primeiras Paradas do Orgulho LGBTI+ [em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo].
A representatividade desses segmentos foi aparecendo cada vez mais na mídia e em uma série de outras frentes importantes, inclusive nas políticas públicas – como o Programa Nacional de Direitos Humanos, na gestão de Fernando Henrique Cardoso [1995-2002] –, trazendo avanços nas áreas de assistência social, saúde,
encontros
educação, trabalho e renda para essa população vulnerabilizada.
RECONHECIMENTO DE DIREITOS
A partir dos anos 2000, a população LGBTI+ vê, de fato, um avanço significativo do ponto de vista da cidadania, do reconhecimento de direitos [humanos e civis]. Apesar de ainda não termos uma lei específica de proteção à comunidade LGBTI+, há duas décadas começamos a ter uma série de decisões importantes no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Foram casos de repercussão geral, como o reconhecimento
Advogado e professor de direito da Unifesp, Renan Quinalha também é autor de livros que colocam em perspectiva a história e as iniciativas do movimento LGBTI+.
Audi
Fábio
da união estável homoafetiva em 2011; e o reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, em 2013. Dois anos depois, o STF reconheceu o direito de casais gays adotarem crianças sem restrições de idade ou sexo, garantindo a essa população o direito à parentalidade, à formação de famílias. Em 2018, pessoas trans conquistaram o direito à identidade de gênero, podendo ir diretamente aos cartórios para alterar o primeiro nome e o sexo na documentação civil, sem burocracia, necessidade de autorização judicial ou cirurgia de redesignação sexual. Em 2019, a LGBTfobia foi criminalizada e, em maio de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi obrigada, por decisão do STF, a aceitar a doação de sangue por homens gays e bissexuais. Além disso, o STF decidiu que discussões de gênero e sexualidade podem – e devem – acontecer nas escolas, pois dizem respeito a uma educação em direitos humanos.
PELA CIDADANIA
A gente ainda tem um déficit muito grande para a plena realização da cidadania LGBTI+
no Brasil. Isso porque há uma distância enorme entre o que dizem as decisões do STF ou leis regionais antidiscriminação e o que se vê na prática. Além disso, ainda não temos, em âmbito federal, nenhuma lei penal de proteção a essa população. O grande desafio, portanto, é tirar [propostas e] legislações do papel, tanto em relação à comunidade LGBTI+, quanto a vários outros grupos vulnerabilizados no país. Enfrentar esse desafio passa pela educação e pela cultura, por debates e conversas, pois o direito tem um limite até onde pode chegar, do ponto de vista da promoção de mudanças na sociedade. Acredito no direito como ferramenta de transformação social, de proteção dos direitos humanos, mas ele tem uma limitação sobre o quanto consegue sensibilizar as pessoas. Assim como o racismo, a LGBTfobia também é estrutural na sociedade. Há determinadas estruturas que nos precedem, nos atravessam, e a gente acaba reproduzindo-as, muitas vezes, inconscientemente. Com educação e cultura, podemos trazer outras versões sobre esses temas, qualificar o debate público, aprofundar as reflexões e sensibilizar as pessoas para a importância da desconstrução encontros
de preconceitos, a fim de que exista, finalmente, uma sociedade mais acolhedora e diversa.
IGUALDADE JURÍDICA
É muito importante que a gente tenha essa perspectiva de que, ao falar de direitos LGBTI+, não se está falando de privilégios, de querer um tratamento diferenciado do ponto de vista da legislação. O que se está buscando é igualdade de direitos. O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo não alterou em nada o casamento entre pessoas heterossexuais. Ou seja, você não precisa retirar direitos do outro para reconhecer direitos a um segmento da população. Não é um jogo de soma zero. Pelo contrário, é possível a extensão desses direitos, de modo a contemplar o modo como as pessoas se percebem e vivem em sociedade. Além disso, acredito que, em um país democrático, é perfeitamente possível ter liberdade de crença, de fé, de culto, ao mesmo tempo em que se respeita a diversidade de manifestações de identidade de gênero, de orientação sexual. Apesar dos avanços judiciais que se materializaram em direitos importantes, a gente
PRECISAM DE TRABALHO, RENDA, DIGNIDADE
E RECONHECIMENTO DE SUA CIDADANIA
ALÉM DOS DIREITOS CIVIS, PESSOAS LGBTI+
ainda não tem um estatuto antidiscriminação mais amplo ou uma lei civil de casamento, como a Argentina tem a lei do matrimônio igualitário. Uma lei específica criminalizando a LGBTfobia, por exemplo, daria maior solidez para o reconhecimento desses direitos do que uma decisão do STF.
NATURALIZAÇÃO DE VIOLÊNCIAS
Muitas vezes, as maiores violências contra a população LGBTI+ acontecem dentro dos ambientes familiares, lugares onde as pessoas esperam encontrar acolhimento, compreensão e carinho, mas que acabam sendo os primeiros locais de violação de direitos. Muitas crianças e adolescentes são expulsos de casa por conta de sua identidade de gênero ou orientação sexual. Além disso, ainda temos que lidar com formas cotidianas de violência, que aparecem como uma LGBTfobia cordial, uma “piadinha”, algo recreativo. Isso aparece em vários espaços que ocupamos, na forma de palavras que não teriam o intuito de ofender, desrespeitar ou agredir. Mas, tudo contribui para esse processo de naturalização da violência e de desumanização da população LGBTI+.
DIÁLOGO ENTRE MOVIMENTOS
Historicamente, no Brasil e no mundo, tem havido aproximações entre movimentos LGBTI+ e outros que lutam por direitos civis, como movimentos negros, de mulheres, trabalhadores e estudantes. Destaco os Estados Unidos, que são o país de mobilização mais importante e paradigmática da população LGBTI+. Nos anos 1950 e 1960, os movimentos pelos direitos
civis de pessoas negras e mulheres acabaram abrindo caminho para o LGBTI+. Em 1969, na cidade de Nova York, ocorreu a Revolta de Stonewall [série de protestos realizados pela comunidade LGBTI+ em reação a batidas policiais violentas no bar Stonewall Inn, com grande público gay, trans, negro e latino], marcando a data de 28 de junho como o Dia Internacional do Orgulho LGBTI+. No Brasil, essa interseccionalidade de agendas dos movimentos vem ganhando cada vez mais força. A gente precisa olhar para essa comunidade entendendo que as pessoas LGBTI+, muitas vezes, têm outros marcadores sociais de diferença [gênero, raça, classe social, idade e região geográfica]. É por isso que o diálogo dos movimentos é essencial para uma política de alianças e reivindicações. Se olharmos apenas para uma dimensão, a da diversidade sexual, não vamos resolver todas as vulnerabilidades a que essas pessoas estão sujeitas em suas vidas e em seus territórios.
MUDANÇAS PROFUNDAS
Por décadas, a gente viu representações negativas de pessoas LGBTI+ em vários tipos de produções culturais. Isso acabou estigmatizando essa população. Com o tempo, a percepção social da população LGBTI+ foi ganhando exemplos positivos na mídia, que abordam conteúdos dessas e de outras comunidades vulnerabilizadas. Reality shows como RuPaul's Drag Race e Queer Eye, por exemplo, têm uma audiência enorme para fora da comunidade LGBTI+. Ou seja, não é mais algo de nicho, mas algo visto de modo mais amplo por pessoas que se interessam pelo tema. Além
disso, os personagens LGBTI+ têm se tornado mais complexos em sua trajetória e identidade, o que ajuda a criar uma consciência mais elaborada sobre diversas questões. As mudanças trazidas com as lutas e conquistas dessa população passam, ainda, pelo mercado editorial, com cada vez mais publicações com temáticas sobre sexualidade e identidade de gênero. Muitas empresas também têm se dedicado a discussões sobre diversidade e inclusão, olhando para dentro de suas estruturas, e adotando uma postura proativa nesse sentido. Acho fundamental que se criem culturas organizacionais e ambientes de trabalho mais acolhedores, porque, a partir disso, conseguiremos fazer mudanças ainda maiores. Além dos direitos civis, pessoas LGBTI+ precisam de trabalho, renda, dignidade e reconhecimento de sua cidadania. A inclusão pelo trabalho faz uma diferença concreta na vida desses indivíduos. É preciso, portanto, pensar num compromisso efetivo que busque a contratação dessas pessoas e o treinamento dos demais funcionários, para que sejam respeitosos com todos.
Ouça, em formato de podcast, a conversa com o escritor, advogado e professor Renan Quinalha, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 21 de março de 2024. A mediação do bate-papo é de Francis Manzoni, gerente-adjunto das Edições Sesc São Paulo.
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Carol Ito é quadrinista e jornalista, cresceu em Marília (SP) e atualmente mora na capital. Trabalha com cartuns, tiras de humor e jornalismo em quadrinhos desde 2014, abordando temas ligados a comportamento, direitos humanos, direitos das mulheres e meio ambiente. É autora de três HQs, vencedora do prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e a primeira mulher a desenhar charges ao vivo no programa Roda Viva, da TV Cultura.
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COLETIVO consciente
Dramaturga, diretora e atriz, Grace Passô
inscreve, com vocabulário próprio, afetos, desigualdades e ancestralidade em produções para o teatro e o cinema
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Oteatro, para mim, tem muito a ver com o encontro, com as coisas que a nossa sociedade mais necessita no nosso tempo”, sintetiza a atriz e diretora Grace Passô. É uma frase que ecoa nas entrelinhas do mais recente espetáculo dirigido por ela, O fim é uma outra coisa, que passou pelo Sesc Avenida Paulista em abril. Ao celebrar o teatro como um espaço coletivo por princípio, a peça convida o espectador a fazer parte dessa comunidade, “comungando” de uma feijoada servida e preparada, em cena, pela atriz, pesquisadora e cozinheira Zora Santos. “Em nome da colher de pau, do louro e da cachaça…”, anuncia Santos, pouco antes de abrir a panela, combinando os saberes da culinária afro-mineira com histórias de muitas famílias negras brasileiras.
Nascida em Belo Horizonte (MG), filha de mãe baiana e pai mineiro, Passô guarda na lembrança os causos que sua família original de Pirapora, interior de Minas Gerais, costumava contar às margens do Rio São Francisco. A única dos seis irmãos a nascer na capital mineira, formou-se em teatro em 1999, pelo Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado, quando ainda não havia faculdades de artes cênicas na cidade. Ao longo de mais de duas décadas de carreira, foi premiada como dramaturga, diretora e atriz. É cofundadora do grupo Espanca!, com o qual passou a ser reconhecida nacionalmente pelo espetáculo Por Elise (2005), escrito e dirigido por ela, que também atuou na peça. Além de outras montagens com o grupo Espanca! – Amores Surdos (2006) e Marcha para Zenturo (2010) –,
também trabalhou com outros grupos teatrais brasileiros.
A artista também vem se destacando no cinema, e já recebeu prêmios por sua interpretação, a exemplo dos longas-metragens Praça Paris (2017), de Lucia Murat, Temporada (2018) e O dia que te Conheci (2023), ambos de André Novais Oliveira. Depois de codirigir uma adaptação para o audiovisual da sua peça Vaga Carne (2020), Passô dirigiu seu primeiro filme no ano passado. Ainda em fase de montagem, Amores 1500 é uma “reescritura”, como ela mesma nomeia, da peça Amores Surdos Rodado em Belo Horizonte, no Jardim da Inconfidência, bairro da zona periférica da cidade, o longa-metragem teve como locação a antiga casa da família da diretora. Neste Depoimento, Grace Passô fala sobre suas raízes
Luciana Barreto
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Reconhecida como importante nome da dramaturgia contemporânea, Grace Passô também leva suas leituras de mundo para a sétima arte.
ancestrais, além de refletir sobre inquietações e intencionalidades nas artes dos palcos e telas.
oralidade
As histórias da minha família vêm muito mais através da oralidade do que de registros fotográficos.
Muitas das histórias de onde eu vim, ou de onde os meus antecedentes vieram, nascem de testemunhos cotidianos e vão sendo passadas. Então, elas vêm muito menos por documentos oficiais, por registros fotográficos, e muito mais pelo contato com o que se viveu e o que se viu. Eu tenho o repertório de uma família que é parte baiana, no caso da minha mãe, e parte mineira, pelo meu pai, que são territórios ricos em termos de história. Eu ouvia e imaginava muito, assim como meus irmãos, só que tive a alegria, a possibilidade e, sobretudo, o desejo de entender como misturar essas histórias no meu trabalho de uma forma efetiva. Existem histórias que se repetem nas família negras brasileiras, famílias de trabalhadores, da negritude brasileira. Para essa família, imaginar a sua própria história faz parte do nosso repertório de vida e de sobrevivência. No meu caso, essa imaginação se canaliza através das expressões artísticas.
negritude
Meu mergulho nas artes negras é simultâneo ao processo de conscientização de minha negritude. Eu não sabia tocar no repertório da negrura porque antes não sabia o que fazer com os efeitos do silenciamento na minha história e na história das comunidades negras da qual faço parte. Então, ao longo da minha trajetória artística, fui uma consistência e uma intencionalidade em relação a fazer uma arte negra. Assim como
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eu também fui construindo a minha identidade, essas coisas foram acontecendo simultaneamente. O teatro e outras coisas que faço em arte dizem muito da minha vida e do meu pensamento ao longo do tempo. Eu acho que o mais importante em relação a entender o teatro negro tem a ver com a intencionalidade. Até para que a gente tenha a dimensão do trabalho, pesquisa e elaboração do teatro negro, além da dimensão do que isso significa. É importante entender que não basta ser uma pessoa negra para fazer um teatro negro. Isso tem a ver com a maneira como as pessoas negras lidam politicamente, artisticamente e esteticamente com questões que cercam nossas comunidades.
estereótipos
Quando algumas pessoas falam, por exemplo, que não gostam de ser taxadas como “arte negra”, ou algo do tipo, eu acho que isso
tem a ver com uma tentativa de escapar dessas armadilhas institucionais que colocam esses nomes em gavetas. Essas armadilhas dizem, por exemplo, que existe o teatro brasileiro e existe uma especificidade que se chama “teatro negro”. E, na verdade, essa armadilha só descortina o racismo nos circuitos artísticos brasileiros. Porque o teatro negro é teatro brasileiro. Ora, se a gente for cavucar ainda mais profundamente, não tem como a gente falar de teatro brasileiro sem falar das expressões negras. Mais importante do que discutir o que é, ou não, teatro negro, é entendê-lo como aquilo que revela uma brasilidade que deve nos interessar, por meio de histórias e expressões subjugadas por muito tempo. Esse teatro expressa a profundidade de nossa cultura e têm a potência de conversar com a sociedade em transformação. Me refiro à “sociedade em
transformação” e às possibilidades de hoje para agirmos contra alguns efeitos da colonização.
diversidade
Ao longo da minha carreira, fiz trabalhos de naturezas distintas. Hoje eles estão muito ligados a uma expressão evidentemente negra, mas isso também foi uma construção. Pensar o que é ser negro, pensar a negritude hoje no Brasil, é definitivamente indesviável. Não me interessa nenhuma discussão que não se interesse ou que não passe por isso, que não fale sobre a negritude, sobre os povos originários brasileiros, que não pense sobre formação desse país, que não reflita sobre o que é um “país”. Acho que num tempo em que esse tipo de reflexão é indesviável, como não se pensar um teatro negro. Como não querer tirá-lo da caixa fácil de diversidade? Sim, existe um conceito importantíssimo chamado “diversidade”, mas existe, também, um conforto capitalista de gerar pequeniníssimos espaços para essa diversidade ocupar.
códigos
Eu acho que quando se faz uma peça, a gente quer criar uma experiência. Sinto que, com o tempo, uma coisa que eu buscava lá no início da carreira, que eu ouvia muito de algumas pessoas com as quais eu trabalhei – e é uma coisa que eu continuo perseguindo –, é um pouco essa ideia de desvelar os códigos junto com o público. Me interessa muito pensar desde coisas muito simples, como quando ouvimos os três sinais e a gente sabe que [a peça] vai começar. Mas, às vezes, alguns códigos vão adormecendo as nossas expectativas com o tempo. A gente vai se relacionando com esses códigos como uma espécie
Jerê Nunes
Michael Yuri,Natalia Lima, Zora Santos (centro), Rubi Assumpção e Renato Ihu formam o elenco do espetáculo O fim é uma outra coisa, dirigido por Grace Passô, em cartaz no Sesc Avenida Paulista em abril.
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TEATRO É MINHA BASE, MINHA ESTRUTURA POLÍTICA NO SENTIDO QUE EU SEMPRE TIVE O TEATRO COMO AQUILO QUE JUNTA PESSOAS NUMA ESPÉCIE DE RITUAL, ONDE ESSAS PESSOAS CONSTROEM E COMPARTILHAM CÓDIGOS EM COMUM
de pensamento hegemônico. Então, para mim, tentar subverter alguns códigos, não só por subverter, mas para lembrar que existe sempre algo por trás, é mais importante do que esses acordos [oficiais]. Isso me interessa muito. No caso do espetáculo O fim é uma outra coisa, era nítido que, desde o início, eu teria que dialogar com a Zora Santos enquanto atriz e enquanto cozinheira. Eu teria que pensar no alimento enquanto memória e construção. Pensar a fome e a fartura, pensar a relação desse ato de alimentar com histórias que nos interessavam, e dentro dessas histórias, pensar a história do operariado e do povo negro brasileiro. Pensamos como entender isso numa certa interação com o público. E não existe interação mais evidente do que comer junto. Acho que [a peça] é uma espécie de meditação sobre o comer, sobre esse processo até que o alimento entre no nosso corpo. Sobre a história do alimento.
cinema
Reescrever para o cinema é uma possibilidade de pensar nos
elementos cinematográficos dessas histórias [escritas originalmente para o teatro]. O filme Amores 1500 está agora em fase de montagem e é uma reescritura de Amores Surdos, texto que escrevi, em 2005, para o grupo Espanca!. Essa reescritura foi de uma alegria imensa porque, de alguma forma, tive a oportunidade de atualizar as questões que permearam a minha construção identitária nos últimos 20 anos. Por exemplo, minha construção de identidade como mulher negra se deu intencionalmente nos últimos anos com muito envolvimento em circuitos, criações etc. Foi como poder chegar mais perto de uma digital de escrita e ver os caminhos que estavam lá dentro e que ainda não tinham se desenvolvido. Foi a oportunidade de me ver no passado e ver quem me tornei. E, claro, entender o processo artístico como um pensamento de sociedade – ele não para, é contínuo. Não tenho dúvidas de que é um filme muito aguardado por quem viu a peça. É uma história muito bonita, porque é a história de uma família negra brasileira.
presente
Sou profundamente grata a essa expressão que se chama teatro. Porque através dessa arte, eu tive noções de comunidade e de política. O teatro é minha base, minha formação política, minha estrutura política no sentido que eu sempre tive o teatro como aquilo que junta pessoas numa espécie de ritual, onde essas pessoas constroem e compartilham códigos em comum. Então, para mim, o teatro tem essa força transformadora tanto para quem faz quanto para quem assiste. Você constrói uma ética, e a ética dos lugares de teatro pelos quais percorri me formaram, me fazem ser um ser político. É pensar na própria ideia de arte como algo essencial. Pensar, também, sobre os sistemas econômicos que nos regem, sobre afeto, sobre como conviver em grupo. O teatro, para mim, tem muito a ver com o encontro, com as coisas que a nossa sociedade mais necessita no nosso tempo. De modo geral, tem a ver com comunidade, militância, alegria, festa, revolução, corpo, saúde.
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ALMANAQUE
SP, terra do chá
No mês em que se celebra o Dia Internacional do Chá, descubra quatro curiosidades que aproximam São Paulo dessa bebida milenar
POR GUILHERME BARRETO
Seja quente ou gelado, com ou sem leite, feito para acalmar ou estimular, o chá se mantém, há milênios, como uma das bebidas mais consumidas do planeta. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), ele só perde, em popularidade, para a água. Três bilhões de xícaras de chá são consumidas diariamente, o que movimenta um mercado de mais de 25 bilhões de dólares mundialmente. No Brasil, apesar de ainda tímido – cada brasileiro bebe dez xícaras por ano –, o consumo tende a aumentar na próxima década, de acordo com projeção do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). E o estado de São Paulo segue a tendência: ainda que conhecido por sua histórica ligação com a produção, comercialização e consumo de café, o território e a cultura paulistas mantêm relações cada vez mais próximas com essa bebida de origem asiática. No mês em que é celebrado o Dia Internacional do Chá (21 de maio) este Almanaque convida você a descobrir quatro motivos que aproximam o estado de São Paulo dessa infusão que faz parte de uma cultura milenar.
Plantação de chá na cidade de Registro (SP), que tem o título de Capital Estadual do Chá.
Filipe Redondo
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CULTIVO ORGÂNICO
O desenvolvimento econômico e cultural do Vale do Ribeira, que liga o sul do estado de São Paulo com o leste do Paraná, se confunde com a cultura do chá. Ocupada no século 20 por plantações de Camellia sinensis (popularmente conhecida como chá-da-Índia), a região chegou a reunir mais de 40 fábricas, o que a tornou grande exportadora do produto, além de dar a Registro, maior cidade do Vale, o título de Capital Estadual do Chá (lei nº 4.067, de 1984). Foi com a imigração japonesa que a história da região se encontrou com a tradição do chá. Depois de acolher a primeira colônia de imigrantes nipônicos no Brasil – a Katsura, fundada em Iguape (SP), no ano de 1913 –, o Vale do Ribeira foi aprendendo a plantar e a consumir a erva de origem asiática. Atualmente, o cultivo de chás na região se concentra em plantações especializadas em cultivo orgânico e com métodos agroflorestais. Duas delas estão nos sítios Shimada e Yamamaru, geridos por famílias de descendência japonesa responsáveis pelo cultivo da erva que, a partir
deste mês, compõe uma caixa de chá artesanal à venda nas Lojas Sesc de 34 unidades em todo o estado de São Paulo, a 160 reais. O lançamento tem como foco a valorização do trabalho de comunidades, técnicas artesanais e saberes tradicionais que compõem os diferentes territórios em que as unidades do Sesc estão inseridas. Saiba mais: sescsp.org.br/colheita-do-cha
Na caixa de chás à venda nas Lojas Sesc, um livreto com pesquisa e texto da jornalista Isabelle Moreira Lima e ilustrações de Carla Takushi, acompanham chás dos sítios Shimada e Yamamaru.
Filipe Redondo (acima); Thaís Ferreira (abaixo)
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Com influência da imigração japonesa, o Vale do Ribeira concentra plantações especializadas em cultivo orgânico e com métodos agroflorestais.
ALMANAQUE
RONCO DA GUAMPA
O consumo de bebidas geladas, como o tereré, é uma das maneiras de enfrentar o calor típico do Oeste paulista. Influenciada por um milenar costume guarani nos territórios paraguaio e pantaneiro, cidades como Presidente Prudente e Birigui mantém o costume de ingerir – com a ajuda de uma bomba (canudo) – a erva-mate socada em pilão e infusionada com água fria numa cuia ou guampa (recipiente de madeira ou chifre de boi). Reconhecido por seus efeitos refrescantes, diuréticos e estimulantes, o tereré, que na língua guarani significa “o som
produzido pelo ronco da guampa”, foi reconhecido, em 2020, como patrimônio cultural imaterial do Paraguai pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Introduzida no Brasil pelos povos Guarani e Kaiowá, pela fronteira paraguaia com o Mato Grosso do Sul e o Paraná, a bebida se popularizou em outras partes do território brasileiro, como o estado de São Paulo, que hoje é responsável por uma parte da produção nacional de mate e da preservação desse legado ancestral da cultura guarani.
Herança da cultura do povo guarani, a bebida gelada feita a partir de erva-mate é conhecida como tereré e consumida na região Sul do país, além do Oeste paulista.
VAI UM CHAI?
Gengibre, canela, folhas de chá preto, cardamomo, noz moscada, cravo-da-índia, cacau, laranja, açúcar e leite quente. Essa é uma das possíveis misturas que resultam no sabor complexo do masala chai, bebida indiana consumida há séculos no país asiático, geralmente após as refeições, e que vem se popularizando mundo afora pela sua riqueza aromática e suas propriedades expectorantes, digestivas e revitalizantes. Aqui no Brasil, por exemplo, já é possível encontrar a receita em dezenas de
endereços que preservam esse e outros costumes da cultura indiana. Segundo dados do Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra), vinculado à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), quase 25 mil imigrantes indianos entraram no país desde 2000, e desse total, 12 mil estão apenas no estado de São Paulo. Com eles, cores, aromas e hábitos aproximam os dois países, ensinando-nos a preservar a cultura do chá e outras tradições indianas.
Secular infusão indiana, o masala chai ganhou o mundo e, no Brasil, tem milhares de adeptos, além da população de indianos imigrantes.
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Freepik (ao lado); Sarkar Sayantan / Wikimedia Commons (abaixo)
No século 19, um dos viadutos mais emblemáticos da capital paulista recebeu o nome por estar ao lado do que já foi o Morro do Chá: conectando o lado moderno da cidade com a região onde se plantava a erva asiática.
NOME DE VIADUTO
Inaugurado há mais de 130 anos, o primeiro viaduto da capital paulista leva a palavra chá no nome por estar localizado ao lado do que era, até o século 19, chamado de Morro do Chá. O local foi ocupado por uma plantação de milhares de pés de chá preto (ou chá da Índia), numa área de propriedade da família do Barão de Itapetininga (1799-1876) que se estendia do Vale do Anhangabaú até a Avenida São João. Primeiramente construído em metal, e depois
alargado e reforçado com concreto – estrutura utilizada até hoje –, o Viaduto do Chá foi a solução encontrada pela cidade povoada, no final do século 19, por 65 mil pessoas, para cruzar o rio Anhangabaú. O viaduto conectava o Centro antigo (Sé) com o lado moderno da capital (atual bairro da República), onde se plantava a erva de origem asiática. Marco da expansão de São Paulo – de cidade colonial para potência
industrial –, o Viaduto do Chá segue como cartão postal da cidade. Tombada, em 2015, como símbolo do patrimônio histórico, arqueológico, artístico e turístico da capital, a construção é rodeada por edifícios emblemáticos, como a sede da prefeitura e o Theatro Municipal, além de sediar importantes atividades artístico-culturais, como os desfiles dos blocos carnavalescos de rua e a Virada Cultural.
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Guilherme Gaensly / Domínio público / Acervo Museu Paulista (USP)
Memórias alimentares
Pensar no meu envolvimento com a cozinha remete imediatamente à memória da minha avó. Maria José da Silva Custódio, mineira “muito raiz”, cozinhava com amor e gostava de ensinar a refogar o feijão, a preparar o arroz, o guisadinho de porco e a fazer cortes com abobrinha, chuchu e cenoura. Em sua simplicidade, fazia preparações que hoje são executadas nos restaurantes mais requintados do país, como o que chamamos de confit. Ela fritava as partes das carnes do porco em fogo baixo na própria gordura e deixava guardado por dias. Essa preparação vinha ressaltada de muito sabor e de um perfume sem igual na hora de servir. Fui criando, dessa forma, o prazer e o gosto por cozinhar.
A cozinha familiar de origem mineira traz muito afeto e lembranças de representatividade em toda minha história. Alimentos como quiabo, costelinha suína, mandioca, feijão, legumes refogados, guisados de porco e o tradicional angu não podiam faltar na mesa. Também estavam presentes o feijão com cortes suínos e muito coentro, comida com “sustância”, como dizia minha avó, sempre acompanhada de alguns docinhos e bala de coco caseira, que ficavam em potes no armário da cozinha.
Quando criança, vivendo no bairro Vila Matilde, na zona Leste de São Paulo, eu tinha energia de sobra e curiosidade para experimentar novas receitas, mesmo aquelas mais simples, que vinham em embalagens nos saquinhos de arroz e nas latas de leite condensado. Um dia, quando todos foram à igreja, eu preparei meu primeiro doce sozinho, que nada mais era do que um pé de moleque. Para mim, foi meu auge na cozinha, pois a receita eu havia tirado do pacote de açúcar.
Eu me formei no Ensino Médio e fiz um curso de artes gráficas. Trabalhei por alguns anos como impressor, mas o que eu queria mesmo era atuar numa cozinha. Então, resolvi largar tudo, para correr atrás desse sonho. Um dia, fui até o Centro de São Paulo à procura de uma cozinha onde eu pudesse aprender. Encontrei um senhor com um cartaz que dizia: “Precisa-se de auxiliar de restaurante” e, como não precisava de experiência, agarrei a oportunidade. Foi a partir desse trabalho que consegui pagar um curso de confeitaria e iniciei minha trajetória profissional na cozinha, ingressando no Sesc Itaquera em 2005.
Hoje, posso dizer que atuar no setor de alimentação exige dedicação, estudo e, principalmente, comprometimento. Nem sempre é o glamour que se mostra nos programas de televisão. Ser líder é ser resiliente, é ter disciplina para enfrentar as surpresas do dia a dia. Afinal, quem não tem nada para resolver, não tem histórias para contar.
Mário Antônio Alcântara Pereira é formado em gastronomia e atua como líder de produção na equipe de alimentação do Sesc Carmo.
Nortearia / Midjourney
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