Revista E - setembro/23

Page 1

FAÇA DESSE MOVIMENTO UM HÁBITO!

23/SET – 1/OUT 2023

PROGRAMAÇÃO GRATUITA

EM TODAS AS UNIDADES.

Aulas abertas, treinos, torneios, bate-papos, corridas, atividades aquáticas e experimentações de diversas modalidades esportivas.

Confira a programação:

semanamove.com #semanamove APOIO:

INICIATIVA: REALIZAÇÃO: APOIO: INICIATIVA: REALIZAÇÃO:
INICIATIVA:
COORDENAÇÃO: APOIO:

CAPA: Obra Masques de l'Opéra de Pékin, Facing Designs et réalité augmenté nº10, da série Self-hybridations (2014), da francesa ORLAN. Reconhecida por questionar padrões de beleza e utilizar o próprio corpo como ferramenta de arte, a artista é tema de exposição inédita no Sesc Avenida Paulista e de um livro autobiográfico, lançado pelas Edições Sesc São Paulo.

Crédito: ORLAN STUDIO

Compromisso com o bem-estar

Leia também a revista em versão digital na sua plataforma favorita:

Portal do Sesc (QR Code ao lado)

Setembro é um mês de celebração no Sesc – Serviço Social do Comércio. Há 77 anos, no dia 13, a entidade era criada por iniciativa do empresariado do setor, no intuito de promover o bem-estar dos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, de seus familiares, bem como de toda a comunidade. Oportunidade, portanto, para comemorar essa longeva ação de caráter educativo e emancipador, de reconhecido impacto em prol da qualidade de vida da população.

Ao longo dessas décadas, o Sesc tem ampliado sua presença no estado de São Paulo, hoje somando 40 centros culturais e esportivos, que oferecem uma diversificada programação nos campos da cultura, lazer, esportes, turismo, saúde e alimentação. São atividades como apresentações artísticas, cursos, oficinas e vivências que ampliam o repertório dos públicos frequentadores, promovendo o encontro e a troca de saberes.

Legendas Acessibilidade

O Sesc também está presente no ambiente digital, com uma ampla produção de textos, vídeos, imagens e cursos de educação a distância, ampliando suas fronteiras de atuação e universalizando o acesso irrestrito aos bens culturais. Por meio do Mesa Brasil Sesc, atua no combate à fome e ao desperdício de alimentos, neste programa que é referência no Brasil e no exterior, envolvendo conceitos como solidariedade e sustentabilidade.

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Ao celebrar quase oito décadas de existência, o Sesc reafirma e renova seu compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e com mais equidade para todos.

APP Sesc São Paulo para tablets e celulares

Tempo que nos transborda

A máxima de que começamos a envelhecer desde o momento em que nascemos não é o bastante para fazer com que pensemos, com maior frequência, sobre a passagem do tempo. Afinal, a consciência de que a longevidade é inerente ao próprio viver traz consigo também a ideia da finitude, algo que nem sempre assimilamos sem dor ou inquietação.

São as efemérides, as celebrações em datas “redondas” que, em muitas ocasiões, provocam a reflexão sobre a velhice. Como os meus 80 anos completados neste 2023, ano que também marca as seis décadas do Trabalho Social com Idosos (TSI), programa criado e mantido pelo Sesc São Paulo.

É em situações celebrativas como essas que mais nos permitimos o mergulho no pensar (filosófico) sobre o tempo e nos convidamos a uma retrospectiva de ordem íntima sobre passado, presente e futuro. É quando nos damos conta de que aquilo que somos é fruto e resultado de nossas escolhas e abdicações.

O caminho se constrói no caminhar e são os encontros diversos com outros seres viventes, mais jovens ou mais velhos do que nós, que nos afetam e nos transformam. É o tempo que nos transborda o que mais interessa, aquele da ancestralidade constituída pelos que vieram antes de nós, a quem saudamos e honramos, e aquele que permanecerá quando não estivermos mais por aqui. E a que chamamos de legado.

Convido a todos para essa reflexão nesta edição da Revista E. Boa leitura!

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo

Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor Regional: Danilo Santos de Miranda

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marco Antonio Melchior, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano

Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Adenor Serrano Domiense, Adriano Ladeira Vannucchi, Alessandra Gonçalves da Silva, Aline Ribenboim, Ana Paula Verissimo Souza, André Luiz Santos Silva, Andreia Dorta Martins Castilho Grande, Angélica Cristine de Paula, Anna Clara Monteiro Hokama, Camila Ribeiro Castro, Carolina Balza, Caroline Souza de Freitas, Cauê Colodro Botelho, Christi Lafalce, Cinthya de Rezende Martins, Claudia Cassia de Campos, Cristiane Pereira Isidio Di Berardini, Dalmir Ribeiro Lima, Daniel Ramos da Silva Melo, Danilo Cymrot, Danny Abensur, Davi dos Santos Ferreira, Denise Minnicelli Marson, Diego Polezel Zebele, Douglas Augusto Ceneme Ferraz Leite, Eduardo Garcia de Almeida, Eduardo Santana Freitas, Elaine Barros Martins, Emerson Luis Costa, Fabricio Leonardo Ribeiro, Felipe Campagna de Gaspari, Fernanda Porta Nova F. Silva, Gabriela Grande Amorim, Gislene Lopes Oliveira, Giulia Maria de Campos Manocchi, Guilherme Luiz De Carvalho Souza, Ivan Lucas Araújo Rolfsen, Ivanildo Rodrigues Da Hora, Ivy Granata Delalibera, Jacy Helena Almeida Silva, José de Andrade Sandim Neto, José Gonçalves da Silva Junior, Jose Mauricio Rodrigues Lima, Juci Fernandes de Oliveira, Juliana Neves dos Santos, Juliana Okuda Campaneli, Jusileia Rocha de Oliveira, Karen Cristine Pimentel dos Santos, Kelly dos Santos, Lucas Matos Santana, Luiz Guilherme Lupinacci Barreto, Maite Neris de Lacerda Soares, Marcelo de Jesus Araujo, Mariana Gulin da Cunha, Mariana Lins Prado, Marina Maria Magalhães, Mario Augusto Silveira, Mário Fernandes da Silva, Melina Izar Marson, Mirele Carolina Ribeiro Corrêa, Monique Mendonça dos Santos, Natalia de Souza Freitas, Patricia Maciel da Silva, Priscila dos Santos Dias, Regiane Gomes da Conceição, Renan Cantuário Pereira, Renata Barros da Silva, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Rodrigo Augusto C. Souza, Romeu Marinho C. Ubeda, Silas Storion Santos, Silvia Gomes, Silvio de Assis Gomes Basilio, Sofia Calabria y Carnero, Stephany Tiveron Guerra, Talita Rebizzi, Tamara Demuner, Thais Cristina Kruse, Thaís Ferreira Rodrigues, Thiago Barbosa Aoki, Thiago da Silva Costa, Tommy Ferrari Della Pietra, Valéria Boa Sorte Amorim, Vinicius Pereira de Oliveira, Vitor Alves Bento de Lima, Viviane Machado Lemos, Wagner Linares da Silva Junior, Yolanda Silva Reis.

Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Cláudio Leite • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Júlia Lledó • Coordenação-Executiva: Lígia Moreira Moreli • Coordenação Editorial Revista

E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Ariane Ramos de Azevedo, Alexandre Calderero, Pedro Meneses, Giuliano Almeida Ziviani e Márcio Rocha • Supervisão

Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Lourdes Teixeira • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca

Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).

Fale conosco: revistae@sescsp.org.br

Confira os destaques da programação do mês, entre eles a exposição Tornar-se ORLAN, no Sesc Avenida Paulista

Ex-jogador da NBA, Mahmoud Abdul-Rauf fala sobre a paixão pelo basquete e o papel dos atletas contra a discriminação social, racial e religiosa

Enquanto a ciência estuda os genes do envelhecimento saudável, octogenários, nonagenários e centenários contam como mantêm a alegria de viver

Passeio visual por obras de arte que apontam para a centralidade do corpo humano como sujeito de quebra de tabus e investigação sobre feminismos e ancestralidades

dossiê entrevista pessoas idosas bio gráfica dança

Saberes e memórias ancestrais atravessam movimentos da dança contemporânea, que vem construindo pontes entre passado, presente e futuro p.54 p.11 p.16 p.22 p.32 p.40

Poeta, diretor e dramaturgo, Zé Celso Martinez Corrêa mantém-se vivo em legado revolucionário de resistência do teatro brasileiro

SUMÁRIO
Full Circle Vision (Entrevista); Jennifer Glass (Bio); Corpografias do pixo, Gê Viana e Márcia de Aquino / Foto: Caio Silva (Dança)

Viaje por sabores e expressões culturais de quatro continentes sem sair de São Paulo

Artigos de Issaaf Karhawi e Tarcízio Silva analisam a lógica dos algoritmos e como eles influenciam comportamentos, relações e leituras de mundo

Marcelo Maluf e Tainan Rocha

Na televisão, no cinema ou nos palcos do teatro, Camila Morgado veste-se de personagens que desafiam o ordinário

em pauta encontros inéditos depoimento almanaque P.S.

p.60

p.66 p.70 p.74 p.78 p.82

Alessandro Marson Danilo Santos de Miranda Tainan Rocha (Inéditos); Adriana Vichi (Almanaque)

11 DIAS 9 PAÍSES

Confira a programação completa e venda de ingressos em sescsp.org.br/bienaldedanca

SECRETARIA DE CULTURA E TURISMO
MAIS DE 60 ESPETÁCULOS, PERFORMANCES, INSTALAÇÕES E AÇÕES FORMATIVAS

Gilsons se apresentaram no palco do Theatro Pedro II, em agosto, durante a FIL – Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto. O trio formado por um dos filhos (José) e dois netos de Gilberto Gil (João e Francisco) fez show no primeiro fim de semana da feira literária, que neste ano chegou à sua 22ª edição. Parceiro da Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto na realização da FIL, o Sesc São Paulo esteve presente com espetáculos, bate-papos, vivências e oficinas. O diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, foi homenageado como patrono desta edição do evento.

9 | e em
Matheus José Maria
cena

Je suis ORLAN

Obra da artista francesa reconhecida pelas autohibridizações e por “operações cirúrgicas performativas” é tema de exposição inédita e livro autobiográfico

Depois de dedicar quase seis décadas à produção de arte contemporânea, a francesa ORLAN – que ficou famosa mundo afora pelo uso do próprio corpo como obra – é celebrada em duas programações do Sesc São Paulo: uma mostra de arte e o lançamento de uma autobiografia. Disponíveis ao público a partir deste mês, ambos os projetos destacam a força criativa de uma artista cujo repertório questiona padrões de beleza e tem como temas o feminino, as hibridizações, DNA, biotecnologias, inteligência artificial e robótica.

A exposição Tornar-se ORLAN, em cartaz no Sesc Avenida Paulista de 2 de setembro de 2023 a 28 de janeiro de 2024, apresenta uma retrospectiva da vasta e variada carreira da artista, cuja primeira criação data de 1964. Inédita na América do Sul, a mostra, com curadoria de Alain Quemin e Ana

Paula C. Simioni, reúne obras fotográficas, além de vídeos e esculturas que revelam a íntima ligação da potência artística com

Neste mês, as Edições Sesc São Paulo lançam a autobiografia Orlan - Striptease: tudo sobre minha vida, tudo sobre minha arte (2023), na qual a artista francesa desvela episódios íntimos e bastidores da carreira.

o processo de empoderamento de ORLAN. É também a primeira vez que a obra L'ORLANoïde (2018) – um robô com aparência meio humana, meio máquina, e desenvolvido com inteligência artificial – será exposta fora da França.

Laís Jesus, técnica de programação do Sesc Avenida Paulista, conta que a obra de ORLAN “é importante para gerações de artistas da performance e das artes do corpo desde os anos 1960, pessoas que se influenciam pela sua irreverência, provocatividade e tensionamento dos limites artísticos, morais e fundamentalmente do corpo pela perspectiva do gênero".

Para conhecer a trajetória de ORLAN, as Edições Sesc São Paulo lançam, dia 6 de setembro, o livro autobiográfico ORLAN – Striptease: tudo sobre minha vida, tudo sobre minha arte (2023). A partir de um relato pessoal, uma confissão generosa, a artista francesa desnuda a própria vida, contando histórias desde sua infância em Saint-Étienne, seus amores, dissabores, traumas e os bastidores da carreira, tanto na cena francesa quanto internacionalmente.

Saiba mais sobre a exposição em sescsp.org.br/avenidapaulista e conheça a autobiografia de ORLAN em sescsp.org.br/edicoes

Laís Jesus, técnica de programação do Sesc Avenida Paulista

“A obra de ORLAN é importante (...) pela sua irreverência, provocatividade e tensionamento dos limites artísticos, morais e fundamentalmente do corpo pela perspectiva do gênero"
Divulgação
11 | e DOSSIÊ

CINEMA CONTINENTAL

Neste mês, o CineSesc celebra a diversidade dos povos árabes e dos países africanos por meio de suas produções audiovisuais. Em parceria com o Instituto da Cultura Árabe – ICArabe, a 18ª edição da Mostra Mundo Árabe de Cinema exibe, até dia 6/9, produções inéditas que tratam de temas contemporâneos, como a busca por direitos civis, políticos e sociais. Entre os destaques da programação está o drama franco-argelino A Última Rainha (2023), de Adila Bendimerad e Damien Ounouri, que resgata a lenda do rei Argel e de sua esposa, Zaphira, no ano de 1516. Também neste mês, a Mostra de Cinemas Africanos apresenta, entre 6 e 13/9, quase 30 filmes, entre longas e curtas-metragens, de 12 países, com vários títulos inéditos no Brasil. Entre as atrações, o drama fantástico Mami Wata (2023), do nigeriano C.J. Obasi, baseado num mito do oeste africano. Consulte a programação completa: sescsp.org.br/cinesesc

Espaços dedicados à criança

Pela primeira vez na América Latina, o Brasil recebe a Conferência Internacional Espaços Naturalizados para as Infâncias, parceria entre a Aliança Internacional de Espaços Escolares (International School Grounds Alliance – Isga), Instituto Alana, e o Sesc São Paulo. O encontro, que acontece no Sesc Vila Mariana a partir de 20/9, reúne estudiosos da educação, arquitetura, saúde e artes, com o objetivo de refletir sobre a aprendizagem ao ar livre e fomentar o movimento por espaços educativos formais e não formais com mais natureza. Saiba mais: sescsp.org.br/vilamariana

No dia 24/9, curso de impressão botânica no Sesc Interlagos integra a programação da 13ª edição da Virada Sustentável.

FOCO NA SUSTENTABILIDADE

Entre os dias 16 e 24/9, o Sesc São Paulo participa da 13ª edição da Virada Sustentável, movimento de mobilização que, a partir de uma visão inspiradora sobre sustentabilidade, busca melhorias sociais pela consciência ambiental. Pautada nos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) para o cumprimento da Agenda 2030 da ONU, a Virada envolve organizações da sociedade civil, órgãos públicos, movimentos sociais e culturais, escolas e universidades.

O Sesc São Paulo, como parceiro da Virada, oferece atividades em diversas unidades, entre elas uma mostra agroecológica no Sesc Itaquera (16 e 17/9), um curso de horta e qualidade de vida no Sesc Ipiranga (de 19 a 22/9), uma oficina de infografia, design, jornalismo e meio ambiente no Sesc Belenzinho (19/9) e de impressão botânica no Sesc Interlagos (24/9), além da exibição de filmes no SescTV, de 20 a 23/9. Acesse a programação: sescsp.org.br/viradasustentavel

Cena de A Última Rainha (2023), drama franco-argelino que integra a Mostra Mundo Árabe de Cinema, no CineSesc. Patricia Muniz (Foco na sustentabilidade); Divulgação (Cinema continental)
e | 12 DOSSIÊ

FERIADO MUSICAL

O dia 7 de setembro será embalado por shows gratuitos de ritmos diversos nas unidades do Sesc São Paulo. Desde sons latinos, como salsa e reggaeton, passando pelo rap, samba, música caipira e o funk dos bailes black, a programação do feriado oferece apresentações para todos os gostos. A banda A Lo Cubano toca seu repertório

Educação para todos

de música latina no Sesc Avenida Paulista; o palco do Sesc Bom Retiro conecta a música caipira com a indígena no show do violeiro Ivan Vilela e da artista Tainara Takua; BNegão, um dos maiores nomes do hip-hop nacional, apresenta-se no Sesc Campo Limpo, junto de sua banda Seletores de Frequência, em show comemorativo do disco

Sintoniza Lá, de 2012; a unidade de Itaquera recebe o samba de Teresa Cristina, que mostra o álbum Um sorriso negro; e Pinheiros convida a banda Tifunk, do rapper Arnaldo Tifu, em parceria com a cantora Ieda Hills, programação integrada à exposição Retratistas do Morro Confira outros destaques do feriado: sescsp.org.br

Para refletir sobre as transformações sociais, políticas e econômicas geradas pela introdução de ações afirmativas no ensino superior brasileiro, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo recebe, neste mês, o Seminário Caleidoscópio das Ações Afirmativas. O evento é realizado num momento importante para a área da educação: acaba de ser aprovada, pelo Congresso Nacional, uma revisão da Lei de Cotas (2012), maior símbolo da política de ações afirmativas no país e iniciativa responsável pelo aumento do acesso de populações historicamente minorizadas ao ensino superior – segundo levantamento do Consórcio de Acompanhamento das Ações

Afirmativas (CAA), a presença de pretos, pardos, indígenas, estudantes de baixa renda e pessoas com deficiência nas universidades públicas passou de 31% em 2001 para 52% em 2020. Com a recente atualização, a Lei de Cotas passa a incluir estudantes quilombolas entre os beneficiários. Este e outros desdobramentos das ações afirmativas serão discutidos no seminário gratuito realizado pelo Sesc São Paulo, que reúne, entre 19 e 21/9, educadores de todo o país, como Kabengele Munanga (USP), Luciana Mello (UFRGS), Paulo Neves (UFABC), Isabel Taukane (UnB) e Matilde Ribeiro, ex-ministra da Igualdade Racial (Unilab). Inscreva-se: centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br

Uma das atrações do feriado (7/9), no Sesc Campo Limpo, o músico BNegão e a banda Seletores de Frequência fazem show comemorativo do disco Sintoniza Lá (2012).
Felipe Diniz (Feriado musical)
13 | e DOSSIÊ

FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

Sobre a Credencial Plena:

• É gratuita

• Tem validade de até dois anos

• Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil

• Prioriza os acessos às atividades do Sesc

• Oferece descontos nas atividades e serviços pagos

Acesse o texto Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc

Faça a sua Credencial Plena online! Baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento. sescsp.org.br

PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
e | 14
Ricardo Ferreira

Bola pra frente

Ao driblar o racismo e a intolerância religiosa, ex-NBA Mahmoud Abdul-Rauf imprime sua história no basquete como atleta e ativista pela equidade social

Nascido no Mississippi, estado norte-americano onde o racismo é frequentemente manchete na mídia, Mahmoud Abdul-Rauf – nome que Chris Wayne Jackson adotou após se converter ao islamismo – enfrentou a pobreza e o diagnóstico de síndrome de Tourette [transtorno neuropsiquiátrico caracterizado por tiques motores, como atos impulsivos e repetitivos].

Movido pela paixão pelo basquete desde a infância, e pela convicção de que trilhar o caminho do esporte seria a solução para prover melhores condições de vida à sua família, Mahmoud subverteu as estatísticas e consagrouse como uma das estrelas da NBA (National Basketball Association). Apesar dos obstáculos, o ex-atleta fez história no terceiro esporte mais popular do mundo, dividindo a quadra com outras estrelas como Michael Jordan e Shaquille O’Neal, com a camisa do Denver Nuggets.

Entre treinos e competições ao longo das décadas de 1990 e o início dos anos 2000, Mahmoud abraçou o ativismo contra o preconceito social, racial e religioso. Seus princípios seguem inspirando outros atletas a mudar as regras do jogo. Em 1996, por exemplo, ao recusar-se a cantar o hino nacional norte-americano numa partida – uma reação à opressão e aos crimes cometidos no país contra a população negra –, Mahmoud foi retirado dos torneios.

As corajosas manifestações políticas de Mahmoud Abdul-Rauf são posteriores às reivindicações de outros esportistas, como o pugilista Muhammad Ali-Haj (1942-2016), e inspiraram atletas de gerações mais recentes, como é o caso de Colin Kaepernick, astro

do futebol americano que também protestou contra o racismo durante uma competição. O ativismo de Abdul-Rauf soma-se, ainda, a um cenário no qual cada vez mais atletas se posicionam contra injustiças.

Neste ano, o documentário Stand (2023) – ainda inédito no Brasil – traz a público o depoimento do ex-jogador de basquete sobre sua carreira, bem como relatos de outros atletas, técnicos e comentaristas esportivos que o acompanharam nas quadras e no movimento antirracista. “Estou animado para ver e ouvir o que o público brasileiro achou do filme. Depois de assistir ao documentário, gostaria que as pessoas se motivassem pelo que elas sentiram para inspirar suas próprias jornadas de vida. A força da fé e da convicção, o amor à família, o amor à justiça, a importância de lutar contra a tentação e a covardia de se calar sobre os assuntos que importam”, conta Abdul-Rauf, que neste mês vem ao Brasil para participar da Semana Move [Leia mais em Convite ao movimento], compartilhando suas vivências como atleta e ativista, em diversas unidades do Sesc São Paulo. Nesta Entrevista, o ex-jogador de basquete, hoje com 53 anos, fala sobre os desafios que experimentou ao longo da vida, como o preconceito, o racismo e a intolerância religiosa, além de refletir sobre a importância da saúde física, mental e espiritual dentro e fora das quadras.

Sua mãe criou você e seus irmãos com muitas dificuldades financeiras. Como foi esse período e de que forma você encontrou um caminho para enfrentar essa situação?

Foi muito difícil para mim assistir à minha mãe, dia após dia, forçando um sorriso e, ao mesmo tempo, esforçando-se para lutar contra o cansaço, o estresse e

e | 16
entrevista
Full Circle Vision

a ansiedade de “viver para trabalhar”, e não “trabalhar para viver”. Ver a minha mãe se sacrificar tanto para que pudéssemos ter abrigo, roupas, comida e educação incutiu em mim o desejo de fazer sacrifícios semelhantes para ter sucesso, me esforçar ainda mais porque eu queria que minha mãe tivesse uma vida melhor.

No Brasil, muitas crianças que nascem em situações de extrema pobreza e em ambientes onde predominam situações de violência têm no esporte a oportunidade de se reinventar e prover melhores oportunidades para si e suas famílias. No seu caso, como surgiu a consciência de que o esporte poderia mudar sua vida?

Eu tinha cerca de 10 anos quando decidi me dedicar ao basquete. Embora eu flertasse com outros esportes, e fosse abençoado por ser bom neles, o basquete parecia se encaixar mais no meu espírito e eu tinha um amor genuíno por esse esporte. Por isso, pensei que, por causa desse amor, aumentariam as minhas chances de ter mais êxito na prática.

E o que levou você a se tornar um atleta profissional do basquete?

Eu tomei a decisão de seguir o basquete como uma escolha de carreira com a intenção de ser o melhor do mundo. Minha mente e meu coração não se contentariam com menos. Eu discutia com meu primo, que dizia que eu poderia ser apenas um dos melhores, mas eu dizia para ele que eu queria ser o melhor. Isso para vocês entenderem o quão sério eu já era aos 10 anos de idade, a ponto de acordar às quatro da manhã e entrar na quadra de basquete às cinco, apesar de trovões e relâmpagos, frio congelante etc.

Quando diagnosticado com a síndrome de Tourette, você sentiu que a sua condição o faria abandonar a carreira no basquete?

Eu estava no 11º ano na época do diagnóstico [1º ou 2º ano do ensino médio, na comparação com o Brasil]. Foi aí que eu finalmente descobri que havia um nome para o que estava acontecendo comigo, e isso me deu uma sensação de alívio mental. Porque antes, eu não conseguia explicar exatamente o que estava acontecendo. Foi, e é, muito difícil navegar nesta vida com Tourette, mas eu sabia, antes do diagnóstico, que ele também estava me proporcionando muitas coisas positivas. A síndrome me empurrou para onde eu mesmo não teria ido sem ela.

É comum que atletas se forcem a buscar perfeição em sua atuação esportiva. No entanto, o público raramente sabe das dificuldades atravessadas para atingir as metas – como crises de ansiedade, depressão e outros quadros de saúde mental. Como você lidou com essa pressão? Buscar a perfeição é como uma droga. Você luta porque nunca está satisfeito e sempre sente que falhou e que poderia fazer mais. Eu tinha que ficar relembrando a todo momento que não sou perfeito e que a vida acontece, e todos nós temos nossos dias, bons e maus. E a vida é sobre fluxos e refluxos, altos e baixos, e esses desafios não podem desmoralizá-lo ou desumanizá-lo. Pelo contrário, o destino dos desafios é manter você humilde e eleválo. Todas as dificuldades me ensinaram a aproveitar os momentos em que as coisas não funcionam da maneira que gostaríamos e, em vez de nos afogarmos em tristezas e decepções, devemos nos lembrar sempre de que “estradas retas não produzem motoristas habilidosos”.

Você acredita que hoje os atletas têm mais espaço para falar sobre esse assunto?

São as conversas, a consciência e a compreensão que tornam mais aceitável e fácil para os atletas compartilharem suas dificuldades e fraquezas. E

São as conversas, a consciência e a compreensão que tornam mais aceitável e fácil para os atletas compartilharem suas dificuldades e fraquezas
e | 18

a nossa força aumenta, consequentemente, quando percebemos que mais pessoas estão passando pelas mesmas coisas que nós estamos passando.

Várias pesquisas nos ajudam a entender que a prática regular de atividades físicas e esportivas é um importante remédio para a saúde física e mental. No entanto, as facilidades do mundo digital e a quantidade de horas que dedicamos às telas têm feito com que uma boa parte das pessoas coloquem a atividade física de lado. Como podemos mudar essa situação?

A resposta é simples. Primeiro, educar-se sobre os perigos potenciais que essas atividades extracurriculares têm, não apenas em sua saúde física, mas também em seu bem-estar mental e espiritual. Não é fácil, já que estamos constantemente sendo impactados com todas as distrações, chamados para várias direções. Mas também temos que continuar, repetidamente, a ter essas conversas e nos colocar nesses grupos que estão fisicamente ativos, porque em algum momento, a ficha cai. Muitos estudos [neurológicos e psicológicos] dizem que quando você não está “em forma” [física e mentalmente], ficar perto de pessoas que estão traz benefícios. Ou seja, se você quer se sentir “inteligente”, fique perto de pessoas inteligentes, se você quer ser um ativista, fique perto de ativistas. Essa proximidade aumenta suas chances de aprender essas características. E quanto mais você está associado a essas pessoas, maior a chance de se inspirar.

Você sempre falou publicamente sobre o racismo e a discriminação contra o islamismo, preconceitos que você viveu e ainda vive. Você

acredita que no esporte esses preconceitos se perpetuam ou estamos mais conscientes e combativos? Algo mudou desde que você começou sua carreira no basquete?

O racismo e a discriminação são tóxicos por natureza e, portanto, sempre serão difíceis de lidar, e impossíveis de aceitar se você for um ser humano pensante, compassivo e atencioso. Infelizmente, sempre haverá pessoas neste mundo que destilarão a ignorância que produz o racismo e a discriminação doentia. Eu não acho que muita coisa mudou, mas talvez tenha assumido uma faceta distinta. No entanto, o racismo e a discriminação estão aqui para ficar. Assim como a morte – sabemos que não podemos evitá-la. Isso não significa que tenhamos que parar de viver.

No documentário Stand (2023), com direção de Joslyn Rose Lyons, você conta a sua história e desfaz nós provocados pela mídia. O que você gostaria que os espectadores deste filme compreendessem sobre sua trajetória? Estou animado para ver e ouvir o que o público brasileiro achou do filme. Depois de assistir ao documentário, gostaria que as pessoas se motivassem pelo que elas sentiram para inspirar suas próprias jornadas de vida. A força da fé e da convicção, o amor à família, o amor à justiça, a importância de lutar contra a tentação e a covardia de se calar sobre os assuntos que importam. Ser um pouco altruísta ao se colocarem a serviço dos outros. Que sentissem a importância de lutar arduamente para que se eduquem e que não permitam que a percepção negativa de outros sobre você torne-se sua realidade.

A vida é sobre fluxos e refluxos, altos e baixos, e esses desafios não podem desmoralizá-lo ou desumanizá-lo. Pelo contrário, o destino dos desafios é manter você humilde e elevá-lo
entrevista

entrevista / para ver no sesc

CONVITE AO MOVIMENTO

Com mais de 250 atividades gratuitas, Semana Move, que começa dia 23/9, estimula a prática de atividades físicas para a conquista de uma vida mais ativa e saudável

Mahmoud Abdul-Rauf, Daniel Dias, Rogerinho R9, Sandro Dias, Antônio Tenório, Terezinha Silva, Evelyn Larissa. Esses e outros nomes dos esportes vêm a São Paulo para participar da 11ª edição da Semana Move, que entre os dias 23 de setembro e 1º de outubro, ocupa todas as unidades do Sesc ao redor do estado com mais de 250 atividades gratuitas. A campanha, iniciativa da dinamarquesa Isca (International Sport and Culture Association) e coordenada pelo Sesc São Paulo no continente americano, surgiu para promover a prática de esportes e atividades físicas em busca de uma rotina mais saudável para públicos de diversas faixas etárias e estratos sociais.

Com o lema Faça desse movimento um hábito, a edição 2023 da Semana Move mira estimular reflexões e estratégias para que cada indivíduo,

considerando seu contexto social, crie o hábito da prática de atividades físicas. A campanha, cuja programação abrange seis blocos temáticos – Move Academia, Move Esportes, Move Água, Move Criança, Move Zen e Move Empresa – busca, ainda, promover a saúde física e mental dos participantes.

Outra entidade apoiadora da Semana Move é a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) que, junto ao Sesc, estimula o engajamento de uma rede de países, cidades, instituições, escolas e clubes nas atividades da campanha. Por conta desse apoio, as atividades da Semana Move devem ocupar, nesta e nas próximas duas edições (2024 e 2025), outros espaços para além das unidades do Sesc São Paulo. Com isso, a ideia é criar experiências que possibilitem a

continuidade, na prática cotidiana, da missão da Semana Move, e assim estimular o estreitamento das relações da campanha com outras instituições públicas e privadas. Para marcar o lançamento desta edição da Semana Move, o Sesc São Paulo realiza, em 16/9, a Pedalada Noturna, num percurso de 20 quilômetros com largada e chegada em frente ao Sesc Pinheiros. Voltada a praticantes de ciclismo e interessados na modalidade, o objetivo da atividade é dar o pontapé inicial à Semana Move, além de apresentar a capital paulista como uma possibilidade de lazer e cultura a partir da perspectiva do ciclista.

Confira destaque da programação:

VÁRIAS UNIDADES

Mahmoud Abdul-Rauf

Clínica esportiva em que o exatleta de basquete, que foi jogador da NBA nos anos 1990, conta sua trajetória no esporte e na militância contra o racismo, a discriminação e a intolerância religiosa.

Dia 23/9. Sábado, das 10h30 às 12h30 (Sesc Ipiranga) e das 14h45 às 17h (Sesc Itaquera).

Dia 24/9. Domingo, das 10h30 às 12h30 (Sesc Rio Preto) e das 15h às 17h (Sesc Catanduva).

Dia 26/9. Terça, das 18h30 às 21h (Sesc Araraquara). Dia

27/9. Quarta, das 19h às 21h30 (Ginásio Poliesportivo Pedro Morilla Fuentes, em Franca).

Dia 28/9. Quinta, das 19h às 21h30 (Sesc Pinheiros). Dia

29/9. Sexta, das 19h30 às 21h20 (Sesc Consolação). GRÁTIS.

Programação completa: sescsp.org.br/semanamove

e | 20
Renata Teixeira

Nesta autobiografia, ORLAN, artista francesa feminista reconhecida no mundo todo, aborda sua trajetória pessoal, desde seu nascimento em Saint-Étienne num meio operário, seus amores, seus dissabores, seus traumas e sua vida de artista na cena francesa e internacional, na qual se aproximou de grandes nomes da arte.

apoio realização

pessoas idosas

Aprendizados, alegrias, descobertas e recomeços dão o tom à rotina da população com mais de oitenta anos

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

LONGA

Como estamos envelhecendo
/
Foto: Matheus José Maria

é a vida

Rumo aos 80 anos, a atriz e cantora Zezé Motta diz que o segredo para uma velhice saudável é se manter sempre em movimento.

pessoas idosas

Pelas mãos de Ricardina Pereira da Silva, cada uma das louças moldadas do barro carrega as vivências da mais antiga ceramista brasileira em atividade. Aos 103 anos, Dona Cadu – como é popularmente conhecida –ora está na palhoça de trabalhar em Coqueiros, povoado da cidade baiana de Maragogipe, ora está num avião, rumo a cidades desejosas de ouvi-la e aprender sua arte e ofício. “Eu tenho que trabalhar. Isso aqui significa muita coisa. É disso que eu vivo”, disse ao público que compareceu, ao Sesc 24 de Maio, na capital paulista, para o Encontro de louceiras: modelando gerações, no qual foi homenageada. Para Dona Cadu, não existe tempo para envelhecer quando se tem barro para criar histórias.

Cada vez em maior número, homens e mulheres acima dos 80 anos seguem ativos, produzindo intelectualmente e criando vida. A exemplo do poeta e compositor Hermínio Bello de Carvalho que acaba de lançar seu último trabalho, Cataventos (Selo Sesc), aos 87 anos de idade. Com casos como o dele, estamos acompanhando outros desenhos das velhices na contemporaneidade. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população de idosos no país é de 31,2 milhões de habitantes. E estimativas do Ministério da Saúde apontam que, em 2030, o número de pessoas acima dos 60 anos deve ultrapassar o total de brasileiros de até 14 anos em aproximadamente 2,28 milhões.

Para Alexandre Kalache, médico especialista em envelhecimento, a geração de 1968 não vai chegar à terceira (ou quarta) idade como seus pais ou avós. “Pergunte se vou arrastar chinelo para ler o jornal na varanda. Não vou. Já sou mais velho que meus avós quando eles morreram, e eles morreram bem velhinhos”, compartilhou Kalache em entrevista à Revista E, em 2018. Kalache destaca que existe uma importante fase de transição da idade adulta para a velhice passível de comparação com a própria adolescência. “Com uma diferença: a adolescência dura cinco ou dez anos, e essa outra passagem pode ir dos 55 aos 80. Ou seja, muito mais tempo para se reinventar, descobrir novos interesses, namorar e fazer uma porção de coisas que não se podia fazer e que agora é possível por obter mais tempo e, talvez, mais recursos”, constata o especialista, que dirigiu por 14 anos o Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Nas redes sociais, por exemplo, são muitos os casos de octogenários e nonagenários que compartilham conteúdos sobre amizade, trabalho, sexo, relacionamentos, autonomia e outros assuntos. Exemplo do perfil do ator Ary Fontoura, de 90 anos, no Instagram, criado em 2017, e que hoje já soma mais de cinco milhões de seguidores. Ou do canal Avós da Razão, no YouTube, que estreou em 2018, com as amigas Helena Wiechmann, 95 anos, Sonia Massara, 85, e Gilda Bandeira de Mello, 81, trocando ideias sobre as dores e as delícias da velhice, como se estivessem num bar, espaço onde a amizade do trio se forjou ao longo de muitos anos... e copos de cerveja.

e | 24
Rodrigo West
Mais antiga ceramista brasileira em atividade, a baiana Dona Cadu chega aos 103 anos de idade criando panelas, pratos e outras peças moldadas com barro, além de ser rezadeira e sambadeira.

pessoas idosas

Neste ano, inclusive, as amigas lançaram o livro Avós da razão – Quebrando a cristaleira! (Editora Planeta), em coautoria com o escritor Ygor Kassab. “As Avós [da Razão] representam uma parcela de idosos ativos que cresce cada vez mais. Elas trabalham, saem com as amigas, paqueram, transam, têm desejos e sofrimentos como qualquer pessoa. E o vital: elas sonham. Como elas dizem no canal, ‘se você acha que ao completar 60 anos, sua vida acabou, você vai perder pelo menos uns 20 anos de vida inteligente pela frente’. Isso é potente”, acredita Kassab.

Fora das redes sociais, basta olharmos para o lado para percebermos outras pessoas com mais de 80 anos que decidiram não “pendurar as chuteiras”, e

seguem trabalhando, frequentando teatros, cinemas, fazendo novos cursos e exercitando a criatividade. Mas qual seria o segredo de pessoas com idades entre oitenta e cem anos que impressionam pela agilidade mental e disposição física? Diretora do Centro de Pesquisas em Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP), Mayana Zatz investiga os componentes genéticos que estariam protegendo essas pessoas de doenças graves, proporcionando-lhes saúde nessa fase da vida. Segundo a geneticista, para a maioria das pessoas, o envelhecimento saudável depende 80% do ambiente – “receita conhecida por todos: comida saudável, exercício físico, não ter sobrepeso e, se possível,

e | 26
Ricardo Ferreira

SE VOCÊ ESTÁ SEMPRE NA ATIVIDADE, E TEM UMA VIDA DINÂMICA, NÃO DÁ TEMPO PARA FICAR VELHO

Zezé Motta, atriz e cantora

pouco estresse” – e 20% da genética. Entretanto, ressalta Zatz, a partir dos 90 anos, e principalmente em centenários, a genética tem um papel cada vez mais importante. “Por isso estamos estudando centenários saudáveis. Queremos descobrir quais são os seus genes protetores, como eles agem para poder, a partir desse conhecimento, ajudar todos que não tiveram a sorte de herdar esses genes”, explica.

ALEGRIA DE VIVER

No livro O legado dos genes: o que a ciência pode nos ensinar sobre o envelhecimento (Companhia das Letras, 2021), Mayana Zatz e a jornalista Martha San Juan França compartilham histórias de octogenários, nonagenários e alguns centenários que participaram do projeto 80+, realizado pelo Centro de Pesquisas em Genoma Humano e Células-Tronco da USP. Pessoas que, segundo a pesquisadora, confirmam que “relações sociais são importantes, dentre outros

O poeta e compositor Hermínio Bello de Carvalho, que já assinou parcerias musicais com nomes como Cartola, Pixinguinha e Dona Ivone Lara, segue produzindo aos 87 anos: ele acaba de lançar mais um trabalho, o álbum Cataventos (Selo Sesc, 2023).

pessoas idosas

EXISTE UMA EXPRESSÃO EM FRANCÊS, JOIE DE VIVRE, OU “ALEGRIA DE VIVER”. ISSO É UMA OBSERVAÇÃO CONSTANTE NAS NOSSAS ENTREVISTAS COM CENTENÁRIOS

Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisas em Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP)

fatores como nutrição e exercício físico, para ajudar no envelhecimento saudável”. A especialista observou ainda outro ingrediente fundamental nesta etapa da vida. “Existe uma expressão em francês, joie de vivre, ou “alegria de viver”. Isso é uma observação constante nas nossas entrevistas com centenários”, conclui.

Separadas por pouco mais de 80 quilômetros, a costureira Maria Aparecida Fernandes de Souza, 82 anos, e a professora aposentada Lília Sampaio de Souza Pinto, que completará um século de vida em novembro, não se conhecem, mas compartilham da mesma disposição, saúde e joie de vivre. Nascida e criada no bairro do Ipiranga, na zona sul de São Paulo, Dona Cida, como é chamada, não dispensa o preparo das suas refeições, nem pestaneja se o quintal estiver precisando de uma faxina. Tampouco dá descanso à máquina de costura, “porque se eu parar de costurar, eu pifo”, ela brinca. Bem-humorada, a costureira acredita que o segredo para uma velhice saudável é estar em paz com filhos e netos, manter boas amizades e “não fazer extravagâncias”, aconselha.

Frequentadora do Sesc Santos, na cidade onde mora desde 2000, Lília nasceu, cresceu, se formou, casou-se e teve filhos em Araraquara (SP). Orgulhosa dos 11 netos e 10 bisnetos, ela só torce o nariz quando tentam lhe convencer a diminuir o ritmo. Curiosa, aprendeu a arte da compra e venda de imóveis, quando tinha um apartamento financiado

a duras penas com o salário de professora. Mas foi desse aprendizado que construiu o patrimônio da família, e até hoje brinca que “a formiguinha da compra e venda do negócio continua”.

Em permanente processo de reinvenção, Lília também atua como conselheira titular do Conselho Municipal do Idoso de Santos e é colaboradora da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa na OAB – Santos, para a qual está escrevendo o manual Conviver com o Idoso, a ser publicado ainda este ano. “Para mim, o homem não nasceu para morrer. Ele nasceu com um equipamento para se regenerar sempre. E o envelhecimento é uma educação que começa cedo. A criança nasce e já começa a envelhecer. Ou seja, a infância é a base da longevidade”, acredita Lília.

Para a cantora e atriz Zezé Motta, que em junho passado celebrou 79 anos, o segredo para se viver com qualidade a passagem dos anos é não se permitir envelhecer por dentro. “Se você está sempre na atividade, e tem uma vida dinâmica, não dá tempo para ficar velho. Eu aprendi isso com minha mãe. Ela morreu aos 95 anos, mas muito bem, graças a Deus. Me lembro das pessoas perguntando para ela: ‘Dona Maria, a senhora não vai ficar velha, não?’. E ela respondia: ‘Não tenho tempo, minha filha’. Eu estou seguindo essa linha, que é produzir muito, sonhar muito, me apaixonar sempre pela vida, pelas pessoas e pela arte. Estou sempre em movimento”, arremata.

Adriana Vichi
e | 28
29 | e
A costureira Cida Fernandes de Souza, que acaba de completar 82 anos de idade, prepara suas próprias refeições, cuida dos afazeres da casa e cultiva relações interpessoais.

pessoas idosas / para ver no sesc

IDADE, LONGE VÁ!

Iniciativa pioneira no Brasil, Trabalho Social com Idosos, do Sesc São Paulo, celebra 60 anos de ações permanentes

No dia 26 de setembro de 1963, um grupo de 12 aposentados se reuniu pela primeira vez no Centro Social Mário França de Azevedo – hoje Sesc Carmo – a convite de uma equipe do Sesc que buscava promover a sociabilização e estimular o protagonismo das pessoas com mais de 60 anos. Naquele primeiro momento, o Trabalho Social com Idosos (TSI) pretendia incentivar a convivência, promover atividades de lazer e orientar para a autoorganização, com a participação direta dos idosos, que podiam sugerir programações de seu interesse, cabendo ao Sesc o suporte estrutural e técnico.

Mais tarde, com o crescente interesse e participação desse público nas ações da instituição, foram sendo criados diversos núcleos nas unidades do interior de São Paulo, e o programa foi se ampliando e sistematizando reflexões e práticas em ações de longo prazo, numa iniciativa pioneira no país. De lá para cá, o TSI atualizase constantemente para dar conta das questões e necessidades das pessoas com mais de 60 anos –população que, de acordo com o IBGE, deve ultrapassar em 2035 – pela primeira vez na história –, o número de crianças (17,16% contra 16,76%, respectivamente).

Para Flávia Carvalho, gerente da Gerência de Estudos e Programas

Sociais do Sesc São Paulo, “é condição essencial que as ações propostas à pessoa idosa possam, ao mesmo tempo, dar conta da realidade presente e antecipar necessidades futuras”. Atualmente, segundo a gerente, o TSI tem, entre seus objetivos, incentivar a sociabilização, construir conhecimentos, desconstruir estereótipos, promover saúde e fomentar reflexões sobre envelhecimento e longevidade, além de estimular o protagonismo e as relações intergeracionais.

“Focar na atualização das ações permanentes do Trabalho Social com Idosos tem sido um exercício constante do Sesc, há seis décadas”, complementa Flávia.

Confira algumas das ações do Trabalho Social com Idosos do Sesc São Paulo:

BERTIOGA

Festival da Integração

Reunião de pessoas idosas, frequentadoras das unidades do Sesc São Paulo, com o objetivo de consolidar as ações desenvolvidas pelo TSI ao longo do ano. O festival contempla ações esportivas, de lazer e artísticas. De 13 a 17/9 e de 20 a 24/9.

Informações: sescsp.org.br/bertioga

SESCTV Envelhecer

Dirigida por Claudia Erthal e Paulo Markun, esta série lançada em 2020 é composta por 13 episódios e levanta reflexões sobre envelhecer no século 21, a partir de depoimentos sobre o processo de envelhecimento, os problemas econômicos e os desafios desta fase da vida. Assista em: sesctv.org.br

e | 30

SESC DIGITAL

Como estamos envelhecendo?

Em seis aulas, o curso apresentado por Zezé Motta convida a uma reflexão sobre a cultura da longevidade e o envelhecimento ativo, desmistificando estereótipos ligados à velhice e apontando-a como uma fase de novas experiências. O curso conta ainda com uma entrevista com

a atriz Eva Wilma (1933-2021) e depoimentos de Alexandre Kalache, Claudia Fló e Diego Miguel. Inscreva-se: ead.sesc. digital/cursos

REVISTA MAIS 60

Resultado de um trabalho iniciado em 1977 com os Cadernos da Terceira Idade, a Revista Mais 60 é uma das primeiras publicações

para ver no sesc / pessoas idosas

brasileiras do gênero. De periodicidade quadrimestral, seu conteúdo é voltado a pesquisas no campo da gerontologia e das áreas do envelhecimento e da longevidade. Todas as edições podem ser acessadas em: sescsp.org.br/mais60

Saiba mais sobre o Trabalho Social com Idosos do Sesc São Paulo em: sescsp.org.br/tsi

Guilherme Gargantini, série Envelhecer, episódio Velhice Hoje / Reprodução
31 | e
Cada vez em maior número, a população acima dos oitenta anos segue produzindo ativamente e se transformando a cada dia. Zé Celso na montagem de O Rei da Vela, texto de Oswald de Andrade, encenada em 2017, no Teatro Oficina.
e | 32
Jennifer Glass

Evoé,ZÉ!

A intensa e vibrante vida de José Celso Martinez Corrêa, que

Uma festiva celebração ao amor, em forma de cerimônia artística e ecumênica, foi um dos últimos atos da vida do dramaturgo, encenador, diretor e ator José Celso Martinez Corrêa (1935-2023). Aos 86 anos, cercado por amigos, familiares, artistas e intelectuais, ele trocou alianças com o ator Marcelo Drummond na noite do último 6 de junho. A união, que já durava 37 anos, foi formalizada no palco do Teatro Oficina Uzyna Uzona, sede da histórica companhia teatral liderada por Zé Celso desde 1958. No “templo dionisíaco de todos os santos”, como descrito no convite do casamento, os noivos, vestidos de branco, sorriram, de mãos dadas, enquanto a atriz Leona Cavalli abençoou o matrimônio, consagrado também no candomblé, pelo pai de santo Márcio Telles, e no rito indígena, por representantes do povo Guarani.

sai de cena deixando um legado de arte e revolução para a cultura brasileira
POR MANUELA FERREIRA
33 | e bio

Depois de uma chuva de pétalas brancas, o beijo do casal selou a união, e o ritual apoteótico que começou ao som da Bachiana Brasileira Nº 5, de Heitor VillaLobos (1887-1959), avançou noite adentro com os ritmistas da bateria da Escola de Samba Vai-Vai. Zé Celso, radiante, levantava os braços ao bradar a palavra símbolo da sua existência: “Evoé!”.

Para muitos dos convidados, no entanto, a celebração também significou um inesperado adeus ao encenador, que morreu um mês depois, em consequência de um incêndio em seu apartamento. E o Teatro Oficina, novamente, se encheu – o velório foi transformado em noite de festejos, canto e dança. Em um dos momentos de catarse, fãs, amigos e artistas de várias gerações entoaram os versos de um dos hinos do Oficina: o samba Meu cavalo tá pesado, gravado pelo trio Revista do Samba – formado por Letícia Coura, Beto Bianchi e Vitor da Trindade – no álbum Revista Bixiga Oficina do Samba (2006).

A música marcou a temporada da primeira parte da trilogia de Os Sertões: A Terra (2001), lendária encenação da companhia. Era com essa canção que Zé, na pele do líder religioso Antônio Conselheiro (1830-1897), conduzia o público ao início do espetáculo. Diz a letra: “Meu cavalo tá pesado / meu cavalo quer voar / atuar, atuar / atuar pra poder voar”. Assim como sua longeva trajetória pessoal e profissional, o ato final de Zé Celso será lembrado pela festa e música, elementos que regem os ciclos vitais, conforme dita a mitologia grega. Porque na vida e na morte, na gênese e em seu epílogo, a alegria era sempre a resposta deste homem que foi arte e revolução, até o fim.

“Precisamos inventar expressões para dar conta de alguém que era pura invenção. Nesse sentido, [Zé Celso]

dá continuidade a uma tradição bem nossa, que remonta à antropofagia de Oswald de Andrade (1890-1954), na qual o mundo inteiro é matéria-prima para a criação. Relembro a energia de Zé Celso ao navegar em mares sem fronteiras, de Bertolt Brecht (1898-1956) a Euclides da Cunha (1866-1909), de Antonin Artaud (1896-1948) a Nelson Rodrigues (1912-1980), de Tchekhov (1860-1904) à Cacilda Becker (1921-1969). Fronteiras não fazem o menor sentido em sua cartografia. Suas encenações atraíram pessoas de identidades as mais variadas: verdadeiros rituais de encontro e ousadia poética”, escreveu o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, em publicação no Instagram dedicada ao dramaturgo. Danilo foi um dos padrinhos de casamento do fundador do Oficina, de quem era amigo há mais de três décadas.

O DEUS DA REVOLUÇÃO

Nascido em Araraquara, interior do estado de São Paulo, Zé Celso estudou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Durante o período universitário, fundou o Grupo de Teatro Amador Oficina, junto aos atores Renato Borghi e Amir Haddad, colegas de curso. Na época, o teatro brasileiro estava polarizado entre produções que seguiam um modelo europeu – a exemplo do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) – ou um viés mais nacionalista, como o Teatro de Arena. As primeiras encenações do Oficina, Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e A Incubadeira/As Moscas (1959), são autobiográficas.

À medida em que se profissionalizou, no começo dos anos 1960, o grupo passou a se dedicar a montagens de teor mais realista, como Pequenos Burgueses (1902), do russo Máximo Gorki (1868-1936) e Um Bonde Chamado

Zé é sem dúvidas o Exu das artes, do teatro. Não sei falar de Zé Celso no passado porque seu legado é presente
e | 34
Paula Mares, cenógrafa

Desejo (1947), do norte-americano Tennessee Williams (1922-1983). Com o golpe civil-militar de 1964, o Oficina aprofundou suas buscas por uma linguagem cênica tendo como base uma perspectiva política, o que culmina na antológica montagem, em 1967, de O Rei da Vela (1933), escrita por Oswald de Andrade. A encenação é tida como a síntese de um teatro antropofágico – e Zé Celso foi alçado como o espírito da contracultura no país e representante do movimento Tropicália no tablado.

SER INFINITO

Já em 1968, com Roda Viva, de Chico Buarque, o diretor entrou de vez no alvo dos militares: o espetáculo, montado poucos meses antes da instauração do Ato

Institucional nº 5 (AI-5) – que deu início ao período de maior repressão da ditadura – seria censurado, considerado subversivo e, posteriormente, proibido. A peça seria novamente encenada em 2018, no Sesc Pompeia [Leia mais em Zé Céu Sol]. Após a estreia do espetáculo, no Rio de Janeiro, grupos conservadores agrediram os artistas. Meses depois, em São Paulo, integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiram o Teatro Ruth Escobar e destruíram cenários, poltronas e camarim. Novamente, o elenco foi agredido – entre as vítimas estava a atriz Marília Pêra (1943-2015).

Com Galileu Galilei (1943), de Brecht, encenado pelo Oficina ainda em 1968, o grupo aprimorou as buscas por um teatro mais sensório e ritualístico, influenciado pelo dramaturgo Antonin Artaud. Em 1974, Zé Celso foi detido

Adriana Vichi 35 | e bio
Zé Celso no papel de Antonio Conselheiro na montagem de Os Sertões, em 2004.

e, após 20 dias encarcerado e torturado, buscou exílio em Portugal, fechando as portas do teatro. A soltura teria sido fruto de uma ideia do cineasta Glauber Rocha (19391981), que falsificou um telegrama “assinado” por artistas como Marlon Brando (1904-2004), Orson Welles (19151985), Sophia Loren e Jane Fonda, exigindo a libertação do grupo. No país lusitano, Zé Celso filmou, em parceria com o cineasta Celso Lucas, o média-metragem O Parto (1975), sobre a Revolução dos Cravos, que colocou fim aos 48 anos da ditadura portuguesa. Em 1976, eles partiram para Moçambique, onde filmaram o documentário 25 (1977), sobre os movimentos anticolonialistas que levaram à independência do país africano.

CANTAR A TRAGÉDIA

“Em 31 minutos, a dupla registra um parto e o florescer da Revolução dos Cravos, a libertação das colônias de ultramar e a chegada do socialismo ao mundo de fala lusitana. Com a libertação de Moçambique, em 1975, Zé Celso e Celso Lucas tomariam os rumos do país africano para realizar um alucinante e frenético registro das transformações provocadas pela Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), comandada por Samora Machel (1933-1986)”, detalhou a jornalista e crítica de cinema Maria do Rosário Caetano, em artigo publicado no portal da Revista de Cinema, em 6 de julho de 2023.

A jornalista ressalta que, depois do retorno ao Brasil, Zé Celso continuou sua carreira cinematográfica em duas frentes: “No resgate dos registros da peça O Rei da Vela e sua transformação em um longa-metragem, e na função de ator em filmes de terceiros. Cumprido o desejo de transformar a montagem da peça de Oswald de Andrade em um filme, Zé Celso transformouse em requisitado ator de participações especiais em muitas produções — apesar disso, só chegaria a protagonista aos 84 anos, em Horácio (2019), longa de Mathias Mangin”, relatou Maria do Rosário Caetano.

Nesse novo ciclo, o Teatro Oficina experimentou diferentes gestões administrativas que interromperam, na década de 1980, a apresentação de espetáculos na Rua Jaceguai, 520, no bairro do Bixiga, no Centro de São Paulo. Além disso, o espaço cênico, cujo projeto arquitetônico é assinado por Lina Bo Bardi (1914-1992), ainda que tombado como

Zé Celso em cena como o profeta Tirésias, na peça As Bacantes, no Teatro Oficina, em 2017.
e | 36 bio
Jennifer Glass

Não existe educação sem cultura. Com a educação, você pode criar um rebanho, mas com a cultura é impossível, porque a cultura desperta o espírito crítico, desperta o utópico, desperta o sonho, a poesia, a liberdade, e faz você entender através das máscaras sociais. Você passa a entender o coletivo. Você não vai ficar vendo só do ponto de vista da sua categoria, da sua classe. Você começa a ver as coisas de outra maneira.

José Celso Martinez Corrêa em entrevista ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em 2013

bio 37 | e

patrimônio cultural de São Paulo em 1982, passou a ser motivo de uma mobilização que se estende até hoje: o grupo comercial que é proprietário de vários terrenos da região, inclusive da área onde está construído o teatro, reivindica o espaço para a construção de um shopping center.

TUDO SE RENOVA

Nos anos 1990, rebatizada como Companhia de Teatro Oficina Uzyna Uzona, a trupe de Zé Celso ganhou novo fôlego na busca da chamada “tragicomediorgia” como linguagem artística. Tais inovações resultaram em espetáculos transgressores, de alto teor contestatório e provocativo e que marcaram época nas artes cênicas do país, como As Boas (1991), Hamlet (1993), Para Dar um Fim no Juízo de Deus (1996), As Bacantes (1996) e Esperando Godot (2001).

Era 1998 quando as atrizes Bete Coelho e Giulia Gam dividiram o papel da atriz Cacilda Becker na montagem de Cacilda!. “O Zé era fascinante. Eu olhava nos olhos dele e tinha uma conexão: ficava apaixonada, encantada. Ele era teatro puro, era liberdade pura. Eu fiz Cacilda! com ele e a leitura de mesa era uma coisa que eu nunca tinha feito, de se sentar à mesa, ler o texto, compreender o texto – foi aí que eu vi que ele tinha uma cultura enorme, que ele conhecia altamente os atores, os autores”, recorda Giulia Gam.

Entre os anos 2002 e 2007, a companhia levaria para os palcos seu projeto teatral mais ousado até então: a transposição do romance Os Sertões, publicado em 1902 pelo escritor e jornalista Euclides da Cunha (1866-1909). A adaptação foi dividida em cinco espetáculos. Envolvido com o projeto desde a sua criação, Tommy Della Pietra, atualmente assistente de teatro da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo, trabalhou com Zé Celso por 15 anos. Ele destaca que Os Sertões marcou, na história do teatro brasileiro, o retorno do público para dentro da cena.

“Foi uma grande revolução. Os espectadores que haviam voltado ao Oficina entre 1996 e 1998 eram majoritariamente das classes médias paulistas, gente de teatro, acadêmicos; com Os Sertões, trabalhamos com crianças do bairro do Bixiga, do [antigo projeto comunitário chamado] Bixigão. Essas crianças entraram como coro para a peça e para as produções. Isso abriu o caminho para um novo público, mais diverso, e daí surgiu algo que eu não tinha visto até então: a tecnologia da inclusão do público em grande quantidade. Eram massas dançando, cantando, e o público que repetidamente comparecia foi, aos poucos, aprendendo. Algo incrível”, lembra Della Pietra.

Os cenários também eram outro idioma nas obras do Teatro Oficina, com um vocábulo próprio e suas idiossincrasias, como explica a cenógrafa Paula Mares. “Trabalhar com o Zé foi uma experiência linda. Ver como tudo é inspiração para dar forma a uma ideia, para materializar um pensamento, nada passa desapercebido. Ele não cansa de tentar outra vez, e não permite que a ideia se encerre nela mesma. O resultado que ele busca é sempre gancho para um novo pensamento, um novo caminho. Zé é, sem dúvidas, o Exu das artes, do teatro. Não sei falar de Zé Celso no passado porque seu legado é presente”, compartilha.

Verbo no infinitivo, Zé Celso era afeito a “reexistir” –como ele mesmo disse em entrevista à Revista SescTV, ao completar 80 anos – e assim o fez inúmeras vezes ao longo da vida. “Zé Celso criou muito mais do que uma companhia, um prédio onde se faz peças, uma forma de atuação. Ele, como muitos dos grandes artistas, criou uma forma de se ver o mundo. Não é exagero quando Camila Mota, atriz da companhia, fala nos eventos que vem acontecendo depois da sua ethernidade, que Zé era um xamã, um poeta, um dramaturgo, um arquiteto, um urbanista, um sociólogo. A arte que ele criou extrapola barreiras e rótulos”, arremata o ator Cyro Morais.

e | 38
Zé era um xamã, um poeta, um dramaturgo, um arquiteto, um urbanista, um sociólogo. A arte que ele criou extrapola barreiras e rótulos Cyro Morais, ator

para ver no sesc / bio

ZÉ CÉU SOL

Muitos dos rituais artísticos liderados por José Celso Martinez Corrêa aconteceram em espaços do Sesc que se transformavam em “solo sagrado-profano”, segundo Danilo Santos de Miranda, diretor da instituição no estado de São Paulo. “Era onde a trupe catalisada por Zé Celso experimentava inéditas liturgias. E o ser-teatro torna-se ser-mundo”, escreveu Danilo em suas redes sociais, na homenagem que fez ao amigo de longa data. Neste ano, inclusive, o Sesc Pompeia receberia o espetáculo em que Zé Celso estava trabalhando nos últimos meses, antes de sair de cena. Trata-se de A Queda do Céu, baseado no livro homônimo do escritor e xamã Davi Kopenawa Yanomami e do antropólogo Bruce Albert, publicado pela editora Companhia das Letras em 2015.

Zé Celso conduziu três leituras públicas no local, nos meses de abril, maio e junho, com parte do elenco, público e convidados. Dizia que este era o projeto mais importante de sua existência. A ideia do encenador era realizar uma montagem imponente, que reunisse um elenco formado, em sua maioria, por artistas indígenas

– profundamente ligado à causa, Zé vivia um período de preocupação com a questão do marco temporal e a demarcação dos territórios indígenas. A companhia dará continuidade ao sonho do diretor, com estreia prevista para 2024.

Foi também no Sesc Pompeia que a companhia apresentou os espetáculos O Bailado do Deus Morto, neste ano, Esperando Godot (2022), Roda Viva (2018), As Bacantes (2016) e a trilogia de Os Sertões (2004). Uma das últimas montagens do grupo, Fausto (2022), com codireção de Fernando de Carvalho, estreou no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, ano passado. Já o Sesc Araraquara, no interior de São Paulo e cidade natal do diretor, foi palco de Macumba Antropofágica e da segunda montagem de Cacilda!, ambas em 2013.

“Zé Celso operou, como poucos, a metamorfose de expansão que transita do corpo individual para o corpo coletivo, deste para o espaço teatral – ah, o Teatro Oficina! –, do espaço teatral para o bairro do Bixiga, e daí para a cidade, para o país, para todo o planeta. Nessa dilatação que une arte e política, teatro e urbanismo, ele se envolveu em debates que dizem respeito à própria lógica de funcionamento da cidade. Falar mais parece ocioso, já que não é possível dar conta desse fenômeno que pudemos seguir de perto”, concluiu Danilo Santos de Miranda.

SESC DIGITAL

Assista a uma série de vídeos dedicada à trajetória do diretor: sesc.digital

A Queda do Céu, nova montagem do Teatro Oficina que deve estrear em 2024, é parte da histórica ligação da companhia com o Sesc São Paulo
O encenador e diretor durante a leitura de A Queda do Céu, no teatro do Sesc Pompeia, em abril deste ano. Alexandre Leopoldino
39 | e
© The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC Courtesy Galerie Lelong & Co. Licensed by Artist Rights Society, New York / AUTVIS Untitled: Silueta Series (1979), de Ana Mendieta. Color photograph.

ARTES DO CORPO

De objeto a sujeito da produção artística, centralidade do corpo humano vem sendo usada para quebrar tabus e investigar feminismos e ancestralidades

41 | e gráfica

gráfica

Até o século 19, as artes visuais – como pintura, escultura e fotografia – usavam o corpo humano como objeto de representação, especialmente em (auto)retratos e nus femininos. A partir do século 20, porém, o corpo passou de objeto a sujeito, tornando-se a própria obra de arte e incluindo a constituição física da(o) artista como suporte, meio de expressão e lugar das experiências e intervenções estéticas. É na materialidade do corpo que, segundo a especialista em semiótica Lucia Santaella, fundem-se o orgânico e o mecânico, a natureza e a cultura, o original e o simulacro, a realidade social e a ficção científica.

Em meio ao auge dos movimentos feministas dos anos 1960 e 1970, também emergiu, nos Estados Unidos e na Europa, a body art. Essa vertente da arte contemporânea pressupõe que o corpo em si não é tão importante quanto o que é feito com ele, e silhuetas ou simples funções fisiológicas – como a respiração ou um espirro – podem virar obras, performances, instalações ou videoarte. No livro Culturas e artes do pós-humano – Da cultura das mídias à cibercultura (Paulus, 2003), Santaella defende que o conteúdo da body art é autobiográfico, e os trabalhos coincidem com o ser carnal do(a) artista. Assim, pela primeira vez na história da arte, “a nudez e o abjeto [passaram a ser construídos] sob o ponto de vista da ação e do olhar femininos”, quebrando-se tabus.

A artista cubana Ana Mendieta (1948-1985), que aos 12 anos migrou para os Estados Unidos como refugiada política, é uma das precursoras do movimento da body art e do uso do próprio corpo como sujeito e objeto de trabalho. Pertenceu a um coletivo de artistas feministas e, para documentar e perpetuar suas obras efêmeras – performances em que seu corpo nu se fundia a elementos da natureza, como água, neve, terra, lama, areia, folhas e flores –, Mendieta utilizava fotografias

e vídeos. Sua história de vida e seus traumas, assim como a violência sofrida por mulheres racializadas em território norte-americano, também reverberaram nas produções da artista, que voltou sete vezes a Havana, capital de Cuba, até morrer precocemente, aos 36 anos.

Mendieta ganhou a primeira retrospectiva póstuma em 1987, no New Museum, em Nova York (EUA). A partir da década de 1990, sua obra foi celebrada em outras exposições, principalmente nos Estados Unidos, no México e na Europa. Hoje, sua produção é pesquisada em vários campos das artes e da cultura, e seu legado serve de referência e inspiração para jovens artistas contemporâneas.

É nesse contexto que o Sesc Pompeia apresenta, a partir de 19/9, a exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, primeira mostra abrangente da obra da artista cubana na América Latina. Segundo a curadora Daniela Labra, o título surgiu a partir dos trabalhos de Mendieta com silhuetas e com o elemento fogo, que aparece em seis dos 21 vídeos que serão exibidos. Para Labra, a artista é pioneira em relacionar temáticas como corpo, ecologia, feminilidade, fertilidade, ancestralidade, cura, crítica e performance. “Sua poética visual, original e contundente consolidase em diferentes suportes, mídias e linguagens, como desenhos, esculturas, fotografias, Super-8 e intervenções”, explica. Fundindo mundos e buscando origens, a artista se debruçou sobre a dicotomia morte-vida e sobre religiosidades indígenas e afrolatinas. “Nessa retrospectiva, apresentamos um recorte da linguagem visual e de fronteira da artista, exploradora singular de diversas cosmogonias, tanto de seu tempo quanto de eras ancestrais”. O nome de Mendieta, finaliza a curadora, “é fundamental para compreendermos a arte contemporânea do final do século 20, por seu trabalho transcultural, visceral, atemporal e, essencialmente, político."

e | 42
© The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC Courtesy Galerie Lelong & Co. Licensed by Artist Rights Society, New York / AUTVIS
43 | e gráfica
Black Angel (1975), de Ana Mendieta. Super-8mm film, color, silent.
/ AUTVIS
© The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC Courtesy Galerie Lelong & Co. Licensed by Artist Rights Society, New York
1. Creek (1974), de Ana Mendieta. Super-8mm film, color, silent. 2. Alma, Silueta en Fuego (1975), de Ana Mendieta. Super-8mm film, color, silent. 4. Butterfly (1975), de Ana Mendieta. Super-8mm film, color, silent. 3. Anima, Silueta de Cohetes (Firework Piece) (1976), de Ana Mendieta. Super-8mm film, color, silent.
© The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC Courtesy Galerie Lelong & Co. Licensed by Artist Rights Society, New York / AUTVIS 45 | e
Volcán (1979), de Ana Mendieta. Super-8mm film, color, silent.
gráfica
© The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC Courtesy Galerie Lelong & Co. Licensed by Artist Rights Society, New York / AUTVIS
e | 46
Itiba Cahubaba (Esculturas Rupestres) [Old Mother Blood (Rupestrian Sculptures), 1981], de Ana Mendieta. Black and white photograph.
gráfica

ABRINDO CAMINHOS

Em conjunto com a exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, o Sesc Pompeia também apresenta, a partir deste mês, terra abrecaminhos, mostra que aproxima a obra de Mendieta – seus aspectos arquetípicos, culturais, políticos e espirituais – com a de outras 30 pessoas representantes das artes contemporâneas. A abordagem inclui representatividade e feminismos negros, decoloniais, chicanos e ecotransfeministas, reunindo nomes como os da artista estadunidense Carolee Schneemann (1939-2019), primeira a incorporar seu corpo nu em um trabalho, Celeida Tostes (1929-1995), Laura Aguilar (1959-2018) e Márcia X. (1959-2005). Há também expoentes das artes ainda em atividade, como Suzana Queiroga, Ricca Lee, Cecilia Vicuña, Regina José Galindo, Yara Pina e a travesti Vulcanica Pokaropa.

De acordo com Hilda de Paulo, curadora da mostra, artistas de diferentes gerações, filhas da diáspora amefricana, mestiza e de fronteira, compõem essa exposição coletiva. Diversas pensadoras também embasam o discurso conceitual do trabalho, como Gloria Anzaldúa (1942-2004), bell hooks (19512021), Donna Haraway, Denise Ferreira da Silva, além de Paul B. Preciado. Hilda conta que terra abrecaminhos traz artistas de vários estados

brasileiros, além de Cuba, Estados Unidos, Costa Rica, Chile, e brasileiras que migraram para a Europa e outras regiões. “A questão da imigração é central para nós. Essa não é uma exposição sobre mulheres ou uma tentativa de afirmação da categoria, mas sobre lugar de fala, alianças e régua de experiência – que mede as vivências de cada pessoa –, temas que são atravessados por marcadores como gênero, raça e classe”, destaca a curadora, que é doutoranda em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos pela Universidade do Porto, em Portugal.

O título de terra abrecaminhos tem, ainda, influências das epistemologias de terreiro, do candomblé e das encruzilhadas – a partir de Exu, orixá que abre os caminhos. A mostra também propõe como recorte questões ligadas às (tr)ancestralidades, aos sonhos e aos apagamentos sistêmicos. A assistente de curadoria, Maíra Freitas, defende que a mostra é uma espécie de cápsula do tempo ao estabelecer pontes entre pensamentos sobre o corpo, mulheridades, solidariedade e práticas políticas em diferentes épocas e regiões. “Gostamos muito do poema Semente, da chilena Cecilia Vicuña, que diz: ‘Só um gesto coletivo de amor poderia parar a destruição’. A exposição é sobre isto: o poder dos afetos como ferramenta de resistência”, complementa Freitas, que também é artista, pesquisadora e arte-educadora.

Cortesia Galeria Superfície
47 | e
Passagem (1979/2021), de Celeida Tostes. Gabi Carrera
e | 48 gráfica
Santa Suzana (1998), de Suzana Queiroga. a situação DA brasileira (2016), de Grasiele Sousa a.k.a. Cabelódroma.
49 | e gráfica
Cortesia Grasiele Sousa
Cortesia Swivel Gallery
A Curio (2022), de Amy Bravo.
Camila Tuon
51 | e
O Mesmo Sal (2023), de Larissa de Souza.
gráfica

gráfica

DESCOLONIZAR O OLHAR

Ao debater os diversos tipos de feminismos, exposições

Ana Mendieta: Silhueta em Fogo e terra abrecaminhos ocupam Sesc Pompeia com retrospectiva inédita

A partir do dia 19/9, a Área de Convivência do Sesc Pompeia se divide ao meio para receber as exposições Ana Mendieta: Silhueta em Fogo e terra abrecaminhos. A primeira apresenta um recorte da obra da artista cubana, como fotografias e 21 filmes – incluindo material inéditofeitos por Mendieta entre 1973 e 1981. Em terra abrecaminhos, o público passeia por pinturas, esculturas, desenhos, instalações, performances, vídeos, fotografias e outras obras que celebram a representatividade e feminismos negros, decoloniais, chicanos e ecotransfeministas de artistas de diversos países.

Em cartaz até janeiro de 2024, a programação oferece, ainda, uma série de atividades paralelas previstas para ampliar os debates suscitados pelas exposições, como ciclos de performances ao vivo, exibição de filmes, plenárias e concertos.

“Ana Mendieta foi pioneira nos processos de investigação do corpo e das questões de gênero, ancestralidade e natureza. A relevância dessa exposição se dá não apenas pelo ineditismo no

Brasil, mas também por realçar o protagonismo de uma artista latino-americana que, por meio da performance em diversos suportes, lança luz a questões relacionadas à liberdade das mulheres”, destaca Monica Carnieto, gerente do Sesc Pompeia. Ela segue afirmando que a atualidade e a relevância do fazer artístico de Mendieta “são evidenciadas a partir dos diálogos possíveis com a produção de outras artistas contemporâneas que estão em terra abrecaminhos”.

POMPEIA

Ana Mendieta: Silhueta em Fogo | terra abrecaminhos Exposição coletiva com curadoria de Daniela Labra e Hilda de Paulo. Assistência de curadoria: Maíra Freitas. De 19 de setembro de 2023 a 21 de janeiro de 2024. Terça a sábado, das 10h às 22h. Domingos e feriados, das 10h às 19h. GRÁTIS. sescsp.org.br/pompeia

e | 52
Bruxonas (2020), de Puta da Silva.

para ver no sesc / gráfica

Cortesia Puta da Silva 53 | e

Omovimento está em todo canto, mas, no corpo, ele ganha formas, traduz pensamentos, sentimentos e ideias. Há muitas maneiras de dançar, como aquelas que vêm das tradições indígenas ou que nascem nos terreiros das religiões afro-brasileiras. É na pluralidade de corpos e de intencionalidades que o movimento se expressa, funde-se com o tempo e desloca o mundo de quem dança e de quem é impactado por esta linguagem artística.

Ao evocar o passado e vislumbrar possibilidades de futuro em cada passo, a dança contemporânea

vem mostrando sua potência ao usar o movimento para catalisar existências, resgatar saberes e guardar memórias ancestrais, como é o caso de várias propostas selecionadas para se apresentarem durante a Bienal Sesc de Dança, que acontece neste mês, em Campinas (SP) [Saiba mais em Dançar pontes]

Adnã Ionara, pesquisadora e artista da dança, entende o corpo como uma máquina do tempo, um lugar que, ao se movimentar, guarda as memórias ancestrais.

Na coreografia de C A C U N D A, Adnã volta às suas origens,

buscando inspirações a partir do que chama de “sabências da avó”. “Minha proposta é entender essa encruzilhada em que começo, meio e continuidade habitam o mesmo momento. De que maneira a gente corporaliza o tempo? Como a gente pode entender esse corpo funcionando como uma máquina do tempo – esse corpo que carrega e traz memórias de nossos ancestrais?”, questiona a artista.

A palavra cacunda é uma metáfora da passagem do tempo, é a imagem do corpo que vai se abaulando com o decorrer dos anos. Na tradição da umbanda

John Hogg
e | 54

– religião afro-brasileira e fonte de inspiração para a pesquisa cênica de Adnã –, “a cacunda vai se formando a partir do tanto de experiências que a gente carrega, do tanto que se vive. É o acúmulo de histórias e trajetórias”, explica.

“A cacunda acomete, também, pessoas que fazem o bem, mas que pelas costas rogam pragas.”

Entre os vários significados da cacunda, a coreógrafa buscou a imagem de uma das entidades mais antigas do culto da umbanda: a Cacurucaia, uma pomba-gira capaz de circular por várias giras (reuniões) e diferentes energias.

“Uma mulher encurvada que

CORPO,

máquina do tempo

Movimentos da dança contemporânea atravessam existências, saberes e memórias ancestrais, construindo pontes entre passado, presente e futuro

POR KARLA DUNDER

No espetáculo O Sacrifício | The Sacrifice (África do Sul), a coreógrafa e bailarina Dada Masilo celebra a dança tswana, nativa de Botsuana, fundindo ancestralidade com movimentos contemporâneos e passos do balé clássico.

faz bem a aqueles que pedem o bem, e faz feitiços, se lhe for pedido”, descreve Adnã.

C A C U N D A será apresentada na Bienal Sesc de Dança, e se desenvolve a partir das figuras da memória ancestral de Adnã. Além dessa referência, a coreografia também dialoga com obras literárias, especificamente Um Defeito de Cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, e Becos da Memória (2017), de Conceição Evaristo. Outra referência importante está na sonoridade do álbum Padê (2008), de Juçara Marçal e Kiko Dinucci. “Dentro do terreiro não

tem música sem dança, ou dança sem música. No meu processo criativo, ambas são uma coisa única. Busco a integração entre essas expressões artísticas”, conta Adnã, que criou seu novo trabalho a partir das inquietações surgidas durante as aulas da faculdade de dança e do mergulho nas pesquisas que começaram em Imalè Inú Ìyágba, coreografia presente na programação da última Bienal Sesc de Dança, em 2021.

Para as religiões de origem africana, a dança é a harmonia entre o físico e o sagrado, o presente e o passado. “É o lugar de

55 | e dança

dança

materialização da ancestralidade. Aprendi os movimentos com a minha avó e com a minha mãe, que contam histórias de antepassados primordiais, como os orixás, e até mais próximos, quando falamos da diáspora, da vinda [da população do continente africano] em forma de sequestro”, recorda Adnã.

A coreógrafa busca entender esses movimentos também nas danças contemporâneas. Além das memórias afetivas e da vivência religiosa, Adnã usa como referência o conceito de “escrevivência”, cunhado pela escritora Conceição Evaristo. O termo é a junção das palavras “escrever” e “vivência”: a ideia de contar histórias absolutamente particulares, mas que remetem a experiências coletivas. A escrevivência é um referencial para a inspiração de Adnã, que conclui: “Minha dança é individual,

porque a minha subjetividade é única, mas é coletiva porque estamos no mesmo contexto”.

VIVÊNCIAS PRÓPRIAS E COLETIVAS

Para a pesquisadora Deise de Brito, há muitas formas de abordar a questão ancestral em cena. Em seu trabalho, ela investiga as relações entre corpo e ancestralidade, e reúne registros escritos de produções de pessoas negras nas artes cênicas, na plataforma Arquivos de Okan. O primeiro ponto, segundo Brito, é entender que a ancestralidade atravessa todas as culturas e tem relação com os saberes e práticas de quem existiu antes de nós. “A ancestralidade é o lugar das existências que fomentaram saberes, relações e tramas de existência que chegam até nós”, explica. A partir desse

conceito, a relação que cada pessoa vai ter com a sua ancestralidade é particular e subjetiva.

O candomblé, por exemplo, que é uma religião afro-brasileira, compartilha um modo que abrange um conjunto de rituais para que o indivíduo se relacione com os lugares ancestrais. “O corpo é ancestralidade. Eu sou a Deise, mas me ocupo com muitas outras existências que chegaram antes para que eu estivesse aqui. E nas artes cênicas, a gente vai encontrar muitos modos de produção para abordar esse lugar ancestral”, observa.

O espetáculo Barricada | The barricade, criação do coreógrafo Marcelo Evelin e da Plataforma Demolition Incorporada, reúne um conjunto de corpos encadeados que se articulam e desarticulam em cena, propondo pensar a proximidade como estratégia de defesa e o estar juntos como posição política.

Victor Martins

Em cena, a dança nasce a partir do repertório e das vivências de cada um. Não existe um modo único de abordar a ancestralidade e as memórias. “Mesmo tendo similaridades, somos pessoas muito diversas e com desejos diferentes no palco. Ora esses desejos vão passar por estéticas consideradas negras, ora por estéticas que não são consideradas afro-referenciadas, e está tudo bem. Mostra justamente o quanto temos anseios infinitos em relação à nossa produção cênica”, reflete a pesquisadora.

DANÇA COMO ENTIDADE

Essa memória que está presente nos corpos dos bailarinos foi o que chamou a atenção do coreógrafo Luis Arrieta. No registro em vídeo de um encontro entre amigas – bailarinas que participavam do Balé do IV Centenário –, um detalhe chamou-lhe a atenção. A bailarina Neide Rossi fez um gesto de agradecimento às amigas. Um gesto conhecido do balé. Todas repetiram com a mesma suavidade e delicadeza. “Aquela cena deixou claro pra mim que o corpo guarda saberes, a dança foi sendo passada ali de uma para outra, como uma espécie de entidade”, recorda Arrieta. Essa foi a semente para Corpos Velhos – Pra que Servem

A coreografia, que também será apresentada neste mês, na Bienal Sesc de Dança, reúne em seu elenco figuras que participaram da construção da história da dança brasileira, como Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica

Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada. “Pessoas importantes para a dança de São Paulo e que continuam

atuando, trabalhando”, conta o coreógrafo. “São artistas com quase meio século de experiência, que compartilham com o público, por meio de gestos e movimentos, os saberes acumulados ao longo da vida”, acrescenta.

Corpos Velhos – Pra que Servem surgiu de um questionamento: "Onde estão os corpos velhos na dança?" Para Arrieta, o espetáculo tem um aspecto radical porque rompe com a ideia de que só os jovens podem ocupar os palcos. “O público verá pessoas idosas em cena, as consequências no corpo de muitos anos de imersão na dança, e terão a oportunidade de compartilhar essa experiência.”

JOGO DE CENA

Cadê ela? Cadela? O jogo de palavras pode ser o ponto de partida e um convite inusitado para assistir à intervenção Ka'adela – Ação coletiva de contra-ataque, que também integra a programação da Bienal Sesc de Dança 2023. Inspirada na palavra de origem tupi, a proposta do multiartista Juão Nyn, junto a Idylla Silmarovi e aos integrantes da Plataforma Ka’adela, é refletir sobre a ancestralidade e a busca pelas origens. O trabalho é um espaço aberto para artistas de diferentes linguagens resgatarem memórias e histórias a partir de alguns questionamentos: qual legado dos nossos antepassados trazemos para nossas vidas hoje? Como as tradições e a memória estão presentes na atualidade?

“Ka'adela" nasce desse jogo de palavras e inquietações, pode ser ‘cadê ela’? Cadê a nossa ancestralidade? Ou mesmo cadela,

uma vira-lata que está por aí. Sinto que estamos no mundo, mas não somos vistos e partimos para a discussão: de qual ancestralidade estamos falando?”, pergunta Juão Nyn. A ideia é romper com os modelos eurocêntricos conhecidos e procurar, no passado, nossas origens. “Buscamos uma transformação, deixar as referências do mundo colonial que ainda estão muito presentes. Para isso, utilizamos diferentes linguagens a fim de resgatar a ancestralidade do movimento no corpo,” explica o multiartista.

A intervenção Ka'adela surgiu em 2021 como um trabalho de pesquisa para discutir quais imagens do passado estão presentes nas ruas erguidas em monumentos. Quais memórias estão sendo preservadas, e quais estão presentes nos corpos, mas não estão presentes na iconografia da cidade? A partir dessa inquietação, Juão Nyn passou a questionar, principalmente, os monumentos que prestigiam figuras históricas do Brasil Colônia. Fruto dessa investigação, já teve monumento disfarçado e até praça rebatizada.

Durante a Bienal Sesc de Dança, a proposta de Nyn é convidar artistas de diferentes linguagens e origens para uma residência que se aprofunde no compartilhamento de metodologias e ideias. O ponto de partida será o Monumento à Mãe Preta, na região central de Campinas (SP), um local que, no passado, foi palco para o enforcamento de pessoas pretas e indígenas. Agora, o espaço será ocupado por artistas que trazem à tona a história, a ancestralidade e um novo olhar para o local, numa espécie de “sonho coletivo”, como define Juão Nyn.

57 | e
dança

dança / para ver no sesc

DANÇAR PONTES

Campinas recebe 13ª edição da Bienal Sesc de Dança, com mais de 60 atividades que celebram pluralidade de movimentos, corpos e estéticas

Ancestralidade, segundo o dicionário, é entendida como o legado dos antepassados. Um mergulho na memória, uma busca pelas origens e raízes, beber na fonte da sabedoria dos mais velhos, mas com um olhar em sintonia com as questões deste tempo. Dessa ponte entre o hoje e o ontem, surgem novos movimentos inspirados pelas danças originárias de matrizes africanas, dos terreiros e das tradições indígenas.

Uma dança que também constrói pontes com diferentes linguagens, como o teatro, a música e a literatura. Assim, a Bienal Sesc de Dança, que neste mês ocupa a cidade de Campinas (SP) em sua 13ª edição, apresenta mais de 60 atividades, entre espetáculos, performances, instalações e ações formativas, inspiradas em diferentes tempos e tradições. Entre os dias

14 e 24/9, a Bienal, que volta ao formato presencial após a pandemia de Covid-19, oferece um amplo leque de trabalhos nacionais e estrangeiros, vindos de países como África do Sul, Chile, Coreia do Sul, França, Ruanda, Síria e Suíça.

Maitê Lacerda, assistente de dança da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo e integrante da equipe curatorial da Bienal de Dança, conta que, neste ano, "a curadoria buscou viabilizar um festival que possa ser vivido como experiência comunitária, gerando encontros e conexões entre artistas e públicos da dança". Talita Rebizzi, que é colega de Maitê no Sesc e também compõe a equipe de curadores da Bienal, aponta que a programação desta edição "propõe um olhar que contempla diversos contextos de dança no Brasil e no mundo, revelados na

forma de passinhos, danças de luta e resistência, tradições clássicas e contemporâneas, além de diversas fusões e inventividades que o corpo assume para ser e contar suas histórias", finaliza.

Confira destaques da programação da Bienal

Sesc de Dança:

CAMPINAS

Ato 1 (Brasil)

Estreia do grupo SalaMUDA, na qual bailarinos e músicos mergulham no cotidiano dos corpos pretos, explorando a busca por reconhecimento, em contraste com uma realidade marcada pela violência, apagamento de narrativas e negação de identidades. Dias 19 e 20/9. Terça e quarta, às 20h. CIS-Guanabara.

Clamores | Clamors (França e Síria)

Refugiado na França, o bailarino sírio Mithkal Alzghair questiona, por meio da dança, o confronto entre o homem e as autoridades. A partir de uma exploração figurativa, escultural e cinética, o solo de Alzghair cria o retrato de um corpo diante de um mundo cercado por formas de dominações e ameaças. Dias 23 e 24/9. Sábado, às 21h30. Domingo, às 20h30. Galpão do Sesc Campinas.

Bienal Sesc de Dança

14 a 29 de setembro.

Programação completa e informações sobre ingressos: sescsp.org.br/bienaldedanca

Mithkal Alzghair, coreógrafo sírio refugiado na França, é idealizador do solo Clamores | Clamors, em que retrata o confronto entre o homem e as autoridades.

e | 58
Youssef Iskandar

JOÃO BOSCO

AO ViVO NO SESC _ 1978

João Bosco levou ao Sesc Consolação 45 anos atrás a turnê do disco Tiro de Misericórdia , com destaque para sua parceria com Aldir Blanc, suas memórias musicais de Minas Gerais e a preocupação com a realidade social do Brasil. Agora, o show foi remasterizado e transformado no álbum digital Relicário: João Bosco (ao vivo no Sesc 1978)

Relicário: João Bosco (ao vivo no Sesc 1978)

DISPONÍVEL EM STREAMING

Visite a loja virtual e conheça o catálogo completo sescsp.org.br/loja

/selosesc

sescsp.org.br/relicario

ALGORITMOS uma questão de

Você já se sentiu à deriva no vasto oceano de textos, vídeos, músicas e tanto conteúdo produzido e propagado nas plataformas digitais? O que ler? Será que este filme vai me agradar? E essa reportagem, é importante? Ou estou lendo uma fake news? Orientados por um farol chamado “algoritmo”, somos levados a acreditar que navegamos com segurança. Mas será que podemos confiar nesse filtro que promete nos entregar conteúdo personalizado em meio à sobrecarga de informações que recebemos?

A pesquisadora em comunicação Issaaf Karhawi observa que “falamos do algoritmo como uma entidade sobre-humana, aquele que tudo vê e que tudo decide”. No entanto, explica a professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista (Unip): “Algoritmos não são apenas modelos ou representações de um processo. Eles são ‘opiniões embutidas em matemática’, como afirmaria a estudiosa Cathy O’Neil. Ou seja,

apesar de uma aparente neutralidade que conferimos às máquinas, aos códigos e à tecnologia, não há tecnologia neutra”.

Assim como Cathy O’Neil, autora de Algoritmos de destruição em massa (2021), chegou à conclusão de que os modelos de algoritmos usados hoje são opacos, não regulamentados e incontestáveis, outros pesquisadores somam-se ao ressaltar que, sim, os algoritmos também reforçam a discriminação. Em Racismo algorítmico – inteligência artificial e discriminação nas redes digitais (Edições Sesc São Paulo, 2022), o pesquisador Tarcízio Silva traz desdobramentos desse debate. “Precisamos entender os modos pelos quais o racismo se imbrica nas tecnologias digitais através de processos ‘invisíveis’ nos recursos automatizados e/ou definidos pelas plataformas, tais como recomendação de conteúdo, moderação, reconhecimento facial e processamento de imagens”, escreve.

Neste Em Pauta, um artigo de Issaaf Karhawi e excertos do primeiro capítulo do livro Racismo algorítmico – de Tarcízio Silva, analisam a lógica algorítmica e suas implicações sociais e cognitivas em uma população cada vez mais conectada.

Nortearia
em pauta 61

Algoritmo: decifra-o ou devora-te

Ainda que você não tenha qualquer relação com as tecnologias, é provável que a palavra “algoritmo” faça parte do seu vocabulário. Essa gramática própria das plataformas já adentrou as nossas vidas por conta da plataformização – a penetração das plataformas de redes sociais em distintas esferas sociais. Falamos do algoritmo como uma entidade sobre-humana, aquele que tudo vê e que tudo decide. Os mais jovens, navegando no TikTok, dirão que o algoritmo os conhece bem e, por isso, entrega apenas conteúdos que eles adoram assistir. No YouTube, aceitamos as indicações de “próximo vídeo”: “Era isso mesmo que eu gostaria de ver!”. Durante as eleições, ouvimos acusações: “O algoritmo está nos polarizando!”. Essa entidade parece estar por trás de todas as nossas pequenas ações diárias. Mas sabemos o que ele é, de fato?

Um algoritmo é uma combinação de passos. Como uma receita de bolo, sustenta o funcionamento da internet. De forma bastante simplificada, eles são conjuntos de etapas a serem executadas, um passo a passo computacional, um código de programação. A internet é uma combinação de códigos matemáticos e os algoritmos são responsáveis pela tradução do mundo em dados. Pela digitalização do mundo. Pela dataficação daquilo que antes era apenas uma ação. Os nossos afetos são convertidos em dados, nossos interesses, dúvidas, personalidade. Uma simples curtida materializa um afeto, uma predileção, e transforma em dados algo que não imaginávamos possível quantificar.

Além disso, algoritmos variam em suas funções: os algoritmos de buscadores, como o Google, determinam aquilo que é mostrado ou não, o que é considerado relevante. Os algoritmos de serviços de streaming, como a Netflix, definem o que será consumido ou não, a partir de seu sistema de re-

comendações. Nas redes sociais, em todas elas, os algoritmos funcionam como filtros invisíveis responsáveis por selecionar o montante de conteúdo. Afinal, consumir o volume de posts, notícias, fotos e memes publicados diariamente nas redes seria humanamente impossível.

Tudo indica, portanto, que os algoritmos seriam apenas uma ajuda maquínica para a sobrecarga informativa em que vivemos. Mas não. Algoritmos não são apenas modelos ou representações de um processo. Algoritmos são mais que isso, são “opiniões embutidas em matemática”, como afirmaria a estudiosa Cathy O’Neil. Ou seja, apesar de uma aparente neutralidade que conferimos às máquinas, aos códigos e à tecnologia, não há tecnologia neutra. E cada programação não está livre de ideologias, visões de mundo. De interesses econômicos. Os algoritmos –como parte essencial e estrutural das plataformas – configuram uma nova forma de edição do mundo.

O “mundo editado” – conceito cunhado por Maria Aparecida Baccega, uma das fundadoras do campo de educomunicação no Brasil – consiste na construção de realidades outras, a partir das decisões em relação àquilo que deve ser suprimido ou acrescentado a um acontecimento. Na chamada Indústria Cultural, a edição do mundo parecia mais clara, ela se materializava na linha editorial de um programa televisivo, no tom de um filme, na pauta escolhida por um jornal. Mas a edição do mundo por algoritmos de plataformas de redes sociais tem como premissa a opacidade. Em uma lógica de caixa-preta, não sabemos como se dão as estruturas das plataformas, tampouco como o algoritmo funciona. Lidas apenas com o que sai ou entra nessa caixa-preta, sua lógica de funcionamento fica à sombra – ou é tratada como segredo de negócio. E ainda que as plataformas digitais sirvam de espaço para mantermos as nossas redes sociais “da vida real”, as relações com nossos amigos, familiares e ídolos, elas não são exatamente um espaço propício para a construção de comunidades e coletivos, mas para transações comerciais. Não o são porque as plataformas funcionam a partir de um modelo de negócio em que há gratuidade para os usuários, mas o pagamento da plataforma é feito a partir da venda de dados para anunciantes.

em pauta 62

Diferentemente de plataformas de streaming, não fazemos pagamentos mensais a nenhuma das grandes redes sociais digitais. Não há qualquer plano de assinatura, mas isso não impede que a Meta – conglomerado dono do Facebook, Instagram e WhatsApp – seja uma das maiores empresas do mundo. Por sinal, isso só é possível porque para os usuários das redes, a moeda mais importante não é a corrente em seu país – a moeda mais importante são os dados.

Cada foto que curtimos, cada comentário que deixamos nos posts de colegas, cada página que decidimos curtir, todas as nossas ações vão revelando um pouco de nós aos algoritmos. São pistas valiosas que serão convertidas em segmentações para os anunciantes. E é assim que as redes se mantêm funcionando sem que precisemos passar o nosso cartão de crédito. Portanto, há uma relação dupla aí: os algoritmos traduzem instruções que vêm embutidas em seu desenho. Instruções de ações diversas. Ao mesmo tempo, as nossas ações alimentam esse mesmo sistema.

Não seria apocalíptico afirmar, portanto, que algoritmos não apenas filtram conteúdos aos quais temos acesso, editam nosso mundo de acordo com ditames institucionais, mas também modulam comportamentos. É o professor Sérgio Amadeu da Silveira quem discute esse conceito no Brasil. Modulação algorítmica é cada microintervenção feita pelas redes no comportamento dos sujeitos: sutilmente, oferecendo mais de um tipo de conteúdo e suprimindo outro, amplificando certas pautas, mudando a frequência de certos posts, aumentando o volume de outros... Habilmente, somos conduzidos para onde os interesses mercadológicos vão. Todos os dias. Individualmente. Reiteradamente. Em cada clique. Mas há antídoto para a relação com as plataformas e seus algoritmos: a literacia algorítmica – temática que discuti longamente ao lado da jorna-

lista Daniela Osvald Ramos, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), no trabalho Por uma literacia algorítmica: uma leitura educomunicativa do documentário ‘O dilema das redes’ (2023).

O cenário descrito até aqui coloca os sujeitos do lado mais fraco da corda quando comparados aos grandes monopólios midiáticos contemporâneos: Google e Meta, para citar apenas dois. Estamos no escuro, pouco letrados nas questões tecnológicas, desconhecedores dos interesses comerciais (e políticos, por que não?) das big techs, incapazes de reconhecer em nossas ações cotidianas a entrada intrusa da modulação algorítmica, ou mesmo anterior a ela, da filtragem ou recomendação algorítmica.

No instigante livro Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais (Intrínseca, 2018), de Jaron Lanier, o antídoto para a modulação de comportamentos e intervenções das plataformas em nossas vidas está logo no título. Mas assumo aqui uma postura que não nega o digital, mais do que isso: que o reconhece como indissociável da vida “real”. E me associo ao que o educador midiático David Buckingham defende: precisamos entender como as mídias funcionam. E isso não significa saber de programação ou abrir a caixa-preta e se deparar com códigos binários, mas reconhecer que a mídia –ampliando o termo para abarcar as plataformas de redes sociais – não é apenas ferramenta ou aparato de comunicação, mas forma de linguagem, produtora de sentidos. É preciso tirar o véu dos algoritmos, desvelar seus objetivos, entender suas dimensões políticas, sociais e econômicas. É só a partir do reconhecimento das lógicas embutidas nas plataformas que seremos capazes de abrir caminhos para resgatar a autonomia dos sujeitos, para a agência e – por que não!? – para certa subversão algorítmica?

em pauta

É preciso tirar o véu dos algoritmos, desvelar seus objetivos
Issaaf Karhawi é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e professora titular no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista (Unip). 63

Discursos racistas na web e mídias sociais

Por serem um tipo de manifestação inequívoca do racismo, xingamentos e ofensas verbais são também o tipo mais estudado pelo campo dos estudos de internet, mas não devem ser vistos como a única pauta antirracista, sob o risco de nos cegarmos ao racismo estrutural. Na verdade, frequentemente podemos testemunhar a tentativa de delimitação da própria concepção de “racismo” a apenas ofensas, com o objetivo de diluir o combate ao racismo estrutural e “sutil” nas esferas da economia, conhecimento ou política institucional.

Como era de se esperar, a maioria das primeiras formulações hegemônicas nos estudos sobre internet foram caracterizadas por uma miopia em torno da ideia equivocada de descorporificação online. Conflitos de ideias sobre o papel da internet na relação, intensificação ou erosão de grupos identitários e suas controvérsias estiveram presentes, pois a ideia de um self cambiante que poderia ser diferente a cada nova janela dos ambientes online ganhou popularidade nos anos 1990 do século 20.

Muitos defenderam que o “ciberespaço” ou ambientes “virtuais” e digitais derrubariam variáveis vistas como apenas identitárias, tais como raça, gênero, classe ou nacionalidade. Isto se deu sobretudo quando: a) os ambientes digitais eram ainda informacionalmente escassos, com poucas modalidades de comunicação, focando sobretudo em textualidade; b) pesquisadores advindos de populações minorizadas nos países de diáspora africana ainda eram poucos e ignorados; c) a pretensão de neutralidade das plataformas e mídias, advindas de um tecnoliberalismo em consolidação, já se fazia vigente. Hegemonicamente, então, este mito da descorporificação e superação das identidades fortaleceu-se

na intersecção de uma série de motivações, desde o olhar utópico de quem via a internet como um possível éden à cegueira racial que já não via as disparidades estruturais e hiatos digitais.

Um exemplo contundente e influente foi a Declaração de Independência do Ciberespaço, proposta por John Perry Barlow, em 1996, como uma reação da elite tecnológica estadunidense a iniciativas estatais de regulação. Oferecendo uma concepção determinista da internet, alegou-se que não seria desejável ou possível a existência de controles estatais. Em grande medida, as propostas da declaração apresentaram posições utópicas sobre o mundo “virtual” de então, mas foram um ponto de inspiração para uma postura “tecnolibertária” da internet, cega a questões de classe, gênero, raça e colonialismos, como podemos ver no trecho que alega que “todos poderão entrar sem privilégios ou preconceitos de acordo com a raça, poder econômico, força militar ou lugar de nascimento”.

Mas a realidade, como podemos imaginar, era bem diferente. Estas proposições foram realizadas por grupos hegemônicos em termos de origem, raça e gênero que relegaram à relativa invisibilidade a multiplicidade de experiências e olhares sobre a internet e tecnologias digitais. Entretanto, grupos de cientistas, teóricos e ativistas da comunicação e tecnologia apontaram os processos pelos quais a construção tanto das tecnologias digitais de comunicação quanto da ideologia do Vale do Silício são racializadas, a partir de uma lógica da supremacia branca. O racismo algorítmico é alimentado e treinado por outras práticas digitais de discriminação mais explícitas, como o racismo discursivo – além de impulsioná-lo por vários expedientes. Antes de chegar aos algoritmos, vamos percorrer uma tipologia compreensiva do racismo online que abarca as práticas contemporâneas nas plataformas digitais.

RACISMO ONLINE E MICROAGRESSÕES

Concordamos com Brendesha Tynes e colaboradoras ao dizer que, apesar do frequente foco da pesquisa digital em ações – individuais ou coletivas

pauta 64
em

– pontuais, o racismo online é um “sistema de práticas contra minorias racializadas, que privilegia e mantém poder político, cultural e econômico em prol de Brancos no espaço digital”. Estas práticas, portanto, não se resumem a ofensas explícitas em formato textual ou imagético. Técnicas como análise de texto e circulação de discursos dão conta de apenas uma parte da questão.

Nos ambientes digitais, temos um desafio ainda mais profundo. Precisamos entender os modos pelos quais o racismo se imbrica nas tecnologias digitais através de processos “invisíveis” nos recursos automatizados e/ou definidos pelas plataformas, tais como recomendação de conteúdo, moderação, reconhecimento facial e processamento de imagens. Então, é preciso entender também as manifestações do racismo “construídas e expressas na infraestrutura, ou back end (ex.: algoritmos) [o termo back end é usado nos campos de desenvolvimento de tecnologia para descrever processos de suporte e base para um sistema, tais como a programação de mecanismos de gestão de dados], ou através da interface (ex.: símbolos, imagens, voz, textos e representações gráficas)”.

Uma questão chave para pensarmos as particularidades do racismo nos meios de comunicação digitais é a relação entre pervasividade, de um lado, e o seu caráter aparentemente sutil e difuso, de outro. Afinal de contas, como abordar os modos pelos quais práticas racistas se materializam em bases de dados e conhecimento digital? Um mecanismo de busca pode ser racista? E como falar sobre esses casos de forma distinta: sejam as injúrias racistas explícitas, sejam os níveis diretamente necropolíticos?

Uma das construções teóricas mais importantes, ainda que controversa, para o antirracismo em áreas como educação e psicologia, é o conceito de

“microagressões”, que nos será útil para entender desde o racismo verbal até o racismo algorítmico. Microagressões são “ofensas verbais, comportamentais e ambientais comuns, sejam intencionais ou não intencionais, que comunicam desrespeito e insultos hostis, depreciativos ou negativos” contra minorias vulnerabilizadas, como pessoas racializadas, mulheres, migrantes, entre outros – assim como as interseções dessas variáveis.

O conceito de microagressões, assim como a importância de estudá-las e enunciá-las, foi criado pelo psiquiatra Chester Pierce (1927-2016) ao desenvolver um trabalho propositivo sobre a necessidade de estudar também os “mecanismos ofensivos” dos grupos opressores em medida similar ao que as práticas psiquiátricas já realizavam sobre os “mecanismos defensivos” para pessoas negras. Afinal de contas, o racismo não é algo que deva ser entendido apenas em seus efeitos – mas também deve ser compreendido em suas motivações, para assim idealizarmos defesa e reação dos grupos alvos em diversas camadas, como legais, econômicas, educacionais e psicológicas.

Tarcízio Silva é mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), liderou times de pesquisa digital no Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (IBPAD), do qual é também sócio e cofundador; e já organizou publicações como Comunidades, algoritmos e ativismos digitais: olhares afrodiaspóricos (LiteraRUA, 2020).

Acesse o site das Edições Sesc São Paulo e saiba mais sobre o livro Racismo algorítmico – inteligência artificial e discriminação nas redes digitais (2022), de Tarcízio Silva: sescsp.org.br/edicoes

O racismo algorítmico é alimentado e treinado por outras práticas digitais de discriminação mais explícitas, como o racismo discursivo – além de impulsioná-lo por vários expedientes
em pauta 65

CAPÍTULO próximo

No mês em que a TV brasileira completa 73 anos, o autor de novelas Alessandro Marson defende que o gênero deve ser, ao mesmo tempo, janela e espelho da sociedade

POR LUNA D’ALAMA

Aprimeira transmissão televisiva da América Latina aconteceu em São Paulo (SP), em setembro de 1950, com a inauguração da TV Tupi, iniciativa do empresário Assis Chateaubriand (1892-1968). 73 anos depois, no mês em que a TV brasileira faz aniversário, Alessandro Marson, que soma mais de duas décadas como autor de novelas da TV Globo, conversa com a Revista E sobre os desafios de produzir um dos gêneros narrativos mais simbólicos e influentes da cultura nacional.

Nascido em Águas de Lindóia, no interior de São Paulo, o roteirista queria, inicialmente, ser ator para ingressar no meio artístico. Fez curso de teatro, tirou o registro profissional e atuou em algumas peças amadoras. Foi no palco que descobriu a dramaturgia – em obras de Shakespeare (1564-1616), Molière (1622-1673) e Nelson Rodrigues (1912-1980). Aos 28 anos, já formado em jornalismo e tendo atuado como repórter e assessor de imprensa, Marson se inscreveu em uma oficina de roteiro na Globo e passou a fazer os discursos de eliminação do Big Brother Brasil. Foi aí que descobriu que não queria mais ser ator, e sim, autor.

Além de se concentrar em tramas que revisitam a história do Brasil, como Novo Mundo (2017) e Nos Tempos do Imperador (2021) –escritas em parceria com Thereza Falcão –, o novelista colaborou no roteiro de várias produções, como O Profeta (2006), Cordel Encantado (2011) e o sucesso de audiência Avenida Brasil (2012), de João Emanuel Carneiro. Com previsão de estreia para o dia 25/9, a adaptação de Elas por Elas – folhetim de 1982 assinado

por Cassiano Gabus Mendes – é a nova aposta da dupla Marson e Falcão. Originalmente exibida no horário das sete, a novela agora vai para a faixa das seis, com direção artística de Amora Mautner. Aliás, Marson recorda que a primeira novela da qual tem lembrança, aos 12 anos de idade, é justamente Elas por Elas. “Esse é um projeto que sempre quis fazer porque tenho uma ligação afetiva com essa novela”, conta.

Neste Encontros, Alessandro Marson explica como nasce uma novela, o que é uma obra aberta e como se dá a construção de personagens, além de refletir sobre a importância da vilania para o fluxo narrativo e as transformações que o gênero vem sofrendo nas últimas décadas.

DENTRO DA ENGRENAGEM

Antes de começar a ser gravada, uma novela tem uma grande parceria entre autor e diretor. A gente fala muito sobre como vai ser a história, como será contada. O processo parte do autor, fazemos uma sinopse, que resume a novela inteira. Por que contar essa história agora? Qual o objetivo? Quem é o nosso protagonista e antagonista e o que eles vão fazer ao longo de oito meses de exibição? Quais são os núcleos? A sinopse, que tem de 50 a 100 páginas, é entregue à emissora, como se fosse a novela em versão de livro. A partir do momento em que a sinopse é aprovada, você ganha uma data de exibição. Então, o autor escreve 24 capítulos, ou seja, um mês de novela, totalmente às cegas, sem saber se aquilo vai para o ar, quem vai dirigir ou atuar. Na sequência, entram a direção e a produção.

OBRA ABERTA

No Brasil, a novela é gravada à medida em que é exibida. Dessa forma, recebe informações de fora durante o processo. É um caminho de mão dupla. Isso é importante para fazer correções de rota e, eventualmente, atender a desejos das pessoas. Algumas, inclusive, assistem às novelas e as comentam em tempo real, no Twitter e em outras redes sociais. Claro que esse público não é, necessariamente, o mesmo da novela, a gente tem que saber distinguir. Mas ali aparece a repercussão, o que está dando certo ou não, pelo menos naquele universo. Você também percebe o retorno quando sai na rua – o que as pessoas estão falando, se estão gostando. Fora isso, há o seu feeling como espectador. Eu assisto aos capítulos quando são exibidos, vejo o que está dando certo, e faço correções de rota. Acredito que a novela vai se segurar na TV aberta enquanto for uma obra aberta. E isso deve durar um bom tempo ainda. Se ela for para o streaming, como uma obra fechada, vai virar outra coisa. Deverá ter menos capítulos e se parecer mais com uma série, com correções no máximo de uma temporada para a outra. Acho que a tendência da TV aberta é ficar cada vez mais focada no ao vivo: em transmissões esportivas, shows de música e reality shows que precisam da participação do público.

PAUTAS SOCIAIS

A novela joga na mesa temas sociais (como clonagem, tráfico de pessoas, deepfake, relações tóxicas etc.), principalmente a das 21h – que tem maior audiência e repercussão. Das três faixas de horário, a novela

Estevam Avellar
67 | e encontros

TEM QUE CONQUISTAR A AUDIÊNCIA PELA EMOÇÃO. ALIÁS, ESSE É O

GRANDE SEGREDO DE TODA NOVELA

das nove é a que vai mais para o realismo, o factual. O primeiro beijo gay da TV Globo, por exemplo, foi em Amor à Vida (2013), protagonizado por Mateus Solano e Thiago Fragoso. É uma pauta que vem de um desejo social de pessoas LGBTQIA+, que querem se ver representadas na TV. Todos nós queremos ser representados e a telenovela é, ao mesmo tempo, uma janela e um espelho da sociedade. No horário das seis, a maioria [dos enredos] é de época, e não há exatamente esse compromisso com pautas sociais, mas você pode inserir temas atuais nessas histórias. Inclusive, não faz sentido se não for assim, porque a novela precisa falar com o tempo em que é exibida. As das sete, por sua vez, são de humor. Claro que podem trazer assuntos sérios também, mas de outra maneira.

CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS

No trabalho do autor, nos valemos de diferentes mundos, personagens, épocas. Óbvio que devemos ter responsabilidade na pesquisa e criação, mas damos voz a pessoas e seres que são totalmente diferentes de nós. O grande segredo é não transformá-los em panfleto –não fazer com que os vilões fiquem o tempo todo falando: “Olha como eu sou malvado!”. Eles têm que ter humanidade, como os heróis.

A construção de personagens passa por um grande trabalho de pesquisa, mas o que determina as personagens é a história que você quer contar. O mais bacana é criar personagens que entram em conflito o tempo todo, seja físico, moral, de ideias, valores. Se você tem medo de criar um vilão politicamente incorreto, está fazendo alguma coisa errada. Pois o que precisa como contraponto ao politicamente correto é o incorreto.

FORÇA MOTRIZ

Uma característica da novela, do melodrama, é o vilão ser a grande força motriz da história. Isso faz com que as pessoas acabem gostando dos vilões, porque percebem que são eles e elas que fazem a história acontecer. O vilão é catártico. Para você ter um grande herói ou heroína, precisa ter um grande vilão ou vilã. Tem que ter conflito e combate o tempo todo. Pelas características da novela e pelas limitações morais que os heróis têm, quem acaba fazendo com que a história ande, geralmente, são os vilões. Eles fazem coisas para os mocinhos se mexerem. Avenida Brasil (2012), por exemplo, tentou inverter um pouco essa lógica e criar uma heroína que fizesse coisas condenáveis também. E deu no que deu: muito certo!

REALIDADE E FICÇÃO

A ficção histórica é um gênero muito praticado fora do Brasil. Há muitos exemplos, como a série The Crown (2016-). É óbvio que aquilo é ficção, mas baseada em fatos reais e em pessoas que estão vivas – um caminho ainda mais perigoso. Se a gente fosse tentar dar aula de história no horário das 18h, fracassaria. Tem que conquistar a audiência pela emoção. Aliás, esse é o grande segredo de toda novela. A partir do momento que você faz um pacto de emoção, consegue passar informação. É hora de curtir, chorar, torcer, ficar com raiva. Quando surgiu a ideia de Novo Mundo (2017), a gente [Alessandro e Thereza Falcão] queria fazer uma novela de herói, de uma pessoa que sacrifica a própria vida em nome do povo. Nosso herói era o Joaquim [Chay Suede], que abriu mão de um monte de coisas para ajudar a construir este país. Depois, a gente achou que a história de Dom Pedro I e Domitila tinha muitos ingredientes novelescos. Além disso, a Imperatriz Leopoldina é, essencialmente, uma personagem de melodrama, por tudo que teve que suportar por amor. O final da vida dela, na vida real, foi muito triste, então mostramos apenas o seu triunfo, que é a coroação junto a Dom Pedro I. Fazer adaptações para o bem de uma história é totalmente válido. Só acho que não se pode trapacear na essência das personagens, modificar seu caráter. A gente ensinou corretamente como foi a vida da Leopoldina, que ninguém conhecia no Brasil. Depois da novela, as pessoas passaram a saber que foi ela quem assinou a nossa independência. Também entendo os historiadores que

e | 68

criticam, respeito o trabalho deles. A gente faz televisão para um público muito grande. Se não for capaz de lidar com críticas, a gente está fazendo a coisa errada.

TV É COLETIVA

Como autor, você dá o primeiro passo, mas a novela não é sua. É também do produtor, do diretor, do elenco, dos câmeras, dos maquiadores, dos figurinistas. Digo sempre que, se o texto é ruim, nada vai salvá-lo. Um bom diretor não salva um texto ruim, um elenco ótimo não salva um roteiro ruim. Você, como autor, tem a obrigação de oferecer uma história boa, mas isso também não quer dizer que vai dar certo no final, porque há muitas variáveis que podem fazer com que aquilo dê errado. Por isso é importante que a história converse com a época em que for exibida.

INFLUÊNCIAS AUDIOVISUAIS

A novela sofre muita influência do cinema e, agora, das séries. E da forma como filmes e seriados são feitos. Mas a novela tem sua essência que não pode se perder. Se você tenta contar uma novela como uma série, vai fracassar. A novela tem alguns cânones, embora comece a incorporar temáticas, estéticas e formas de contar das séries – sem deixar de ser novela. Uma série conta a história pelo caminho mais curto, enquanto a novela segue o caminho mais longo. O legal da novela é percorrer esse caminho maior oferecendo uma boa paisagem, para que as pessoas não sintam que estão sendo enroladas. Enquanto uma série só tem cenas importantes para o avanço da trama, a novela tem cenas de preparação, de consequência, de recapitulação do último capítulo

assiste a todos, mas apenas dois ou três por semana. Então, você tem que fazer essa atualização constantemente, além de repercutir o que aconteceu e preparar para o que vai acontecer. Hoje, por causa das séries, houve uma evolução na forma e na estética narrativas, principalmente do visual – não são mais apenas “cabeças falantes” em plano e contraplano.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com o convidado Alessandro Marson, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 27 de julho de 2023. A mediação é do jornalista Guilherme Barreto, editor assistente da Revista E.

– porque a maioria do público não
/
O ator Caio Castro (sobre o cavalo) interpretou Dom Pedro I, enquanto Chay Suede vive o papel de Joaquim, na trama da novela Novo Mundo (2017), que se passa durante o período da Independência do Brasil.
Globo
Foto: Divulgação
69 | e encontros

O BARBA

POR MARCELO MALUF ILUSTRAÇÕES TAINAN ROCHA

Ele abriu os olhos e estava morto.

Não viu anjos ou demônios. Nem túnel ou luz. Aquele lugar não se parecia em nada com o céu ou com o inferno, retratado nos filmes a que ele assistia na tevê. Imaginar como seria, ele nunca imaginou. Também não era o limbo. Ele também nunca imaginou o limbo. Imaginar era como sonhar. Ele não sonhava. Dormir para ele significava se desligar de si mesmo e do mundo. E só.

A primeira coisa que viu foi uma porta de madeira, igual a porta do escritório em que trabalhava como auxiliar. Na porta do escritório, tinha apenas uma guirlanda de Natal pendurada, que ficava ali o ano todo. Naquela porta, não havia guirlanda. Apenas a frase:

OS MORNOS SERÃO VOMITADOS

Um pouco abaixo, tinha uma folha de sulfite fixada com durex. Dava para ler, com alguma dificuldade, o texto escrito à mão: “Entre logo antes que a gente se arrependa”

Ele abriu a porta. Não queria que ninguém se arrependesse por sua causa.

A respeito do seu nome, os colegas do trabalho (amigos ele nunca teve) o chamavam de Barba. De fato, ele usava uma barba toda desgrenhada, rala e malcuidada, mas preferia viver com a barba do que sem. Ela escondia as marcas, minicrateras, das espinhas remanescentes da sua adolescência. Seu nome no RG era Asclépio Nathaniel. Aqui iremos chamá-lo apenas de Nathan, que era como sua avó materna o chamava. Aliás, sua avó era a única a chamálo desse modo. Os pais preferiam se dirigir a ele como

“ô, garoto, menino, moleque, rapaz, homenzinho, palerma, inútil, besta e filhote de cruz credo”. Mesmo assim, quando os pais morreram afogados num barco de passeio que naufragou nos mares de Cancún, no México, ele chorou durante uma semana. Ele não tinha ido viajar com eles porque a viagem ficaria muito mais cara caso ele fosse.

− Você entende, né, filhote? É para o seu bem. Estamos economizando para os seus estudos – a mãe segurava a ponta

dos dedos de Nathan e olhava para o tapete persa no chão da sala. Ele tinha quatorze anos na ocasião.

Foi morar com a avó. Aos finais de semana, ela fazia o bolo de laranja que ele adorava. Ela estava com oitenta e nove anos quando começou a esquecer das coisas. Certo dia, num lampejo de lucidez, ela se lembrou do seu esquecimento, subiu no terraço do prédio e voou, sem paraquedas ou asa-delta. Deixou para ele o pequeno apartamento como herança e um bilhete:

“Cuide do Drácula”.

Drácula era um gato preto que não saía de perto da velha. Ela o segurava no colo, levantava as bochechas do bichano, expondo as gengivas e os dois caninos, e dizia: “Olha o vampirinho”, “Quem é o vampirinho da mamãe?”. Drácula morreu cinco meses depois numa manhã ensolarada. Deitou-se no meio da sala e se entregou à luz do sol que entrava pela janela. Virou-se de barriga para cima, suspirou. Morreu iluminado.

Com vinte e seis anos de idade e sozinho no mundo, Nathan ia de segunda a sexta ao escritório em que trabalhava desde os seus dezessete anos, das 9h às 18h, organizava papéis e tirava cópias, preparava planilhas, digitava relatórios, engavetava, organizava, entregava encomendas no correio, atendia ao telefone, fazia o cafezinho. Nunca se perguntou se poderia ou não ocupar outro cargo. Apenas continuava fazendo.

Em suas noites, esquentava um congelado no microondas, tomava um litro de refrigerante e ouvia os vizinhos brigando. Às vezes, ele se debruçava na janela e via as pessoas na rua sem muito interesse.

Depois de entrar por aquela porta com a frase “Os mornos serão vomitados”, a sua história deixou de ser a sua vida no escritório ou em casa. Mas também não foi um deleite no paraíso ou castigo no inferno. Ele estava numa dimensão intermediária, que é para onde vão as pessoas que viveram suas vidas mornas.

“Mas porque és morno, nem frio nem quente, vou vomitar-te da minha boca”
71 | e
APOCALIPSE, 3:16
inéditos

Quanto ao modo como ele morreu, e é importante relatá-lo aqui, foi o seguinte: ao sair do banho, Nathan pisou com os pés molhados num fio desencapado do ventilador que sempre mantinha ligado no banheiro – costume herdado da sua avó, que era para não mofar o teto e evitar que o espelho ficasse embaçado. Mas não foi o choque que o matou, foi o escorregão e a batida da sua testa no bidê.

Três dias depois, seu corpo nu foi encontrado pelo síndico do prédio. Os moradores tinham reclamado do mau cheiro que vinha do apartamento 33. Quando o síndico ligou para avisar o pessoal do escritório sobre o ocorrido, apenas disseram que nenhum Asclépio Nathaniel trabalhava lá e desligaram o telefone. Também não sentiram falta do Barba. Só perceberiam a ausência dele, dias depois, quando a pilha de papéis sobre a mesa em que Nathan trabalhava se transformara numa espécie de barricada.

Quando o corpo foi encontrado, o ventilador do banheiro ainda estava ligado e girava, lentamente, da esquerda para a direita. Da direita para a esquerda. Toda vez que o vento atingia a cabeça, um fio de cabelo se sustentava no topo e ficava em pé por três segundos.

Agora, Nathan estava sentado diante de uma espécie de conselheiro que dava apoio às pessoas com vidas mornas e anônimas como ele. Estar naquela condição o fez pensar sobre o fato de ter vivido sem nenhum propósito. Ser um morno e estar ali foi a pior coisa que poderia ter acontecido a ele. Não porque o lugar fosse repulsivo, nada disso. Tinha até uma mesa com quitutes: bolos de laranja iguais aos bolos de sua avó, goiabada, lanches de metro e pães de queijo à vontade. O problema era: mais dia, menos dia, todos os mornos seriam vomitados por Deus. Essa era a promessa. Isso era o que se falava no corredor da pós-vida.

Mas o que ele poderia fazer? Como poderia mudar aquela situação? O conselheiro não tinha nenhum conselho para lhe dar. As pessoas encostadas na grande mesa com quitutes comiam e conversavam sobre qualquer coisa e não se questionavam se ou quando seriam vomitadas. Havia a promessa. Sempre houve.

Nathan, morto e morno, adaptou-se àquele novo mundo, naquela dimensão intermediária em que as coisas não atam, nem desatam. Fechou e abriu portas, caminhou sem saber para onde, comeu pedaços e mais

e | 72

pedaços de bolos de laranja, bebeu litros de guaraná, também discursou sobre amenidades. Reparou que os recém-mortos logo se adaptavam. Tudo estava tão certo. Tudo seguia como sempre fora. Não havia ontem, hoje ou amanhã. Só o terrível agora.

Diante do conselheiro, sem perguntar, dizer ou ouvir nada, pensou em sua avó. No bilhete que ela deixara: “Cuide do drácula”. Mas o fato é que ele não cuidou. Deixou o gato morrer de fome e de sede. Sim, essa era a verdade.

Pela primeira vez, Nathan compreendeu que ser vomitado por Deus era o melhor que poderia acontecer a ele. Seria justo. Esforçou-se tentando se imaginar sendo vomitado pelo Criador. Nunca havia desejado que nada de extraordinário acontecesse em sua existência. Mas se cansou de tanto pensar e adormeceu.

Quando acordou, chorando, duas mãos o puxavam pela cabeça, ele estava envolto em sangue e placenta. Havia luz ofuscando a visão.

Tinha sido vomitado por Deus.

inéditos

Marcelo Maluf é romancista, contista e autor de livros infantojuvenis. Mestre em artes e professor de criação literária, é autor de A imensidão íntima dos carneiros (Reformatório, 2015), foi finalista do Prêmio Jabuti e vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria estreante com mais de 40 anos. Seu mais novo romance é Os últimos dias de Elias Ghandour (Faria e Silva/Alta Books, 2023).

Tainan Rocha é ilustrador, quadrinista e professor. Além de livros infantis, lançou diversas HQ's como Savana de Pedra (2016) que foi finalista do Prêmio Jabuti, e Que Deus Te Abandone, lançada na Europa durante o Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja. Seu livro mais recente é a adaptação para quadrinhos do clássico Romeu e Julieta (FTD, 2023).

73 | e

depoimento

DESAFIO AO ORDINÁRIO

Em cartaz no Sesc Santo Amaro com A Falecida, de Nelson Rodrigues, atriz

Camila Morgado celebra carreira marcada pela versatilidade

POR DANNY ABENSUR

Faz duas décadas que o nome Camila Morgado não passa mais despercebido à atenção do público. Depois de conquistar seu primeiro papel na TV, já como protagonista da série A casa das sete mulheres (2003), a atriz nascida em Petrópolis (RJ) ganhou projeção a ponto de não mais conseguir andar na rua sem ser abordada. De lá para cá, Camila colecionou experiências de interpretação em vários formatos – como novelas, filmes, minisséries para a TV e séries em plataformas de streaming –, dando vida a personagens dramáticas e cômicas.

Nas séries Bom dia, Verônica (2020) e Sentença (2022), por exemplo, a atriz vive, respectivamente, a uma dona de casa vítima de violência doméstica e a uma advogada

criminalista com o dilema de defender uma assassina. No cinema, Camila já interpretou uma militante comunista no dramático Olga (2004), mas também embarcou na comédia como a ex-milionária Jane, em Até que a sorte nos separe 2 e 3 (2013 e 2015). No mundo das novelas, passou de vilã xenófoba em América (2005) à integrante de um relacionamento amoroso que envolvia quatro pessoas, em Avenida Brasil (2012), e, mais recentemente, viveu a recatada Irma, no remake de Pantanal (2022).

Mas, “o teatro é uma necessidade”, como Camila diz. Formada na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), no Rio de Janeiro (RJ), a atriz se inspirou, ainda, por mestres do palco como Monah Delacy, Gerald Thomas e Antunes Filho (1929-2019).

Apesar da intensa carreira no audiovisual, Camila faz questão, de tempos em tempos, de voltar à sala de ensaio. “Eu preciso me colocar de novo numa situação que não me dê muito conforto”.

Depois de 11 anos distante dos palcos – seu último espetáculo foi Palácio do fim (2012), com direção de José Wilker (1944-2014), montagem que tocava nas feridas da guerra do Iraque – a atriz acaba de estrear em A Falecida, adaptação do diretor Sergio Módena para uma das tragédias cariocas de Nelson Rodrigues (1912-1980), obra que completa 70 anos em 2023. Na peça, interpreta a adoecida e frustrada Zulmira, que sonha com um enterro de luxo. A atriz recebeu a Revista E no camarim do teatro do Sesc Santo

e | 74

Amaro, onde A Falecida fica em cartaz até 1º/10, e compartilha detalhes do seu processo criativo, além de relembrar curiosidades de uma carreira versátil e refletir sobre os desafios de interpretar um texto de Nelson Rodrigues.

formação

Na minha família não tem ninguém voltado ao teatro ou à música. Meu pai é comerciante e minha mãe, dona de casa. Eu lembro que assisti a uma peça de teatro, em Petrópolis, e fiquei encantada. E aí eu vi que tinha o curso da Monah Delacy [atriz, diretora e escritora brasileira] e me matriculei. De repente, fui para o Rio de Janeiro. Fiz alguns cursos livres e entrei na CAL [Casa das Artes de Laranjeiras, centro de formação e treinamento

em artes cênicas]. Tive sorte, porque fiz minha formatura com o [diretor e dramaturgo] Gerald Thomas [que dirigiu o espetáculo de conclusão de curso]. Quando me formei, então já conhecia o Gerald. E tinha o CPT [Centro de Pesquisa Teatral do Sesc São Paulo, no Sesc Consolação]. Eu era louca pelo Antunes Filho. Prestei o teste e ele me convidou para fazer parte. Fiquei só um ano com Antunes e, logo em seguida, entrei para a companhia do Gerald Thomas, a Companhia de Ópera Seca. Eu sinto que trabalhar com essas duas pessoas foi uma pósgraduação, um mestrado, um doutorado. Porque se respirava teatro o dia inteiro. E foi ali que a minha vida mudou, onde comecei a ver que era realmente aquilo que eu gostaria de fazer para o resto

Na peça A Falecida, adaptação da obra homônima de Nelson Rodrigues, a atriz vive a personagem Zulmira, uma mulher frustrada do subúrbio carioca às voltas com a mortalidade.

da minha vida. Não sei se como atriz ou dando aula, ou trabalhando com alguma coisa muito próxima. Mas teria que ser aquilo. Eles foram os mestres que me formaram.

oportunidade

Eu não fazia ideia de que ia parar na TV. Tinha 22 anos quando cheguei a São Paulo. Era tudo tão grandioso que eu ficava um pouco perturbada. Era muito prédio, muito concreto, muita gente. E eu amava aquilo tudo. Era um mundo novo se abrindo. Não pensava que iria conseguir entrar para a TV, porque trabalhava muito – tanto com o Antunes, quanto com o Gerald. O que acontecia é que, às vezes, iam muitos produtores de elenco assistir a gente. Até que aconteceu. Eu já tinha feito alguns testes. Tive várias respostas muito engraçadas também: “Sua voz é muito grossa. Não vai dar certo”, “Você não é atriz de TV”, eu escutei. A nossa profissão é assim. Até que a Frida [Richter, produtora de elenco] foi me assistir no teatro e me chamou para fazer um teste. Ali, eu conheci o [diretor] Jayme [Monjardim], que se encantou com a minha voz [risos]. E falou: “Eu queria muito que você entrasse na terceira fase de uma novela que estou fazendo”. E não aconteceu. Porque novela é uma coisa muito viva. A terceira fase não aconteceu, e ali foi minha primeira frustração. Eu falei: “Vou continuar aqui no teatro”. Mas, logo depois, ele me chamou para fazer um outro teste, que já era para a [minissérie] A casa das sete mulheres.

Victor Hugo Cecatto
75 | e

depoimento

público

Quando me deram a notícia [da aprovação para o papel de Manuela, de A casa das sete mulheres], demorou um tempo para cair a ficha. De repente me falaram: "Você vai fazer a protagonista". A partir dali a minha vida mudou radicalmente, porque a televisão é algo muito forte no nosso país. A gente assiste à televisão. Nossa dramaturgia é feita também pelas telenovelas – o que me dá muito orgulho. Uma vez eu estava dirigindo até o Projac – eu dirigia muito mal – e acabei batendo no carro da frente. Eu já saí pedindo desculpas: “Moço, me desculpa, eu tô errada. Eu vou pagar”. Ele falou: “Não acredito que é você!”. Aí chamou a família inteira: “Vem ver! Olha quem bateu no nosso carro”. E aí eu tirei foto com ele, com os filhos, com a esposa. Não paguei! Ele não me deixou pagar. O ator tem sorte –tanto de teatro quanto de TV, de cinema, de série – porque o público comenta. Porque você "invade" a casa das pessoas. Assim como no teatro, a gente faz o espetáculo com a plateia. É imediato.

método

Eu tinha vários diários. No começo, lembro que o meu caderno de A casa das sete mulheres era imenso de anotações. Eu não deixava ninguém pegá-lo porque poderiam me ver, ver como eu penso. Eu ficava com vergonha. Em Olga, era uma quinquilharia, uma pasta com vários amuletos, caderno, diário. E eu me lembro de ficar com aquilo como se fosse um grande tesouro. Eu acho que isso tudo são formas [de trazer confiança para o trabalho do ator], porque a gente fica muito inseguro, a nossa profissão deixa a gente muito exposto. Imagina: um set montado e você errando, dá muita aflição. É horrível. Ainda mais em Olga, que a gente gravou em película. Quando você errava, você sabia que estava desperdiçando aquele rolo. Isso tudo dava pânico. Então, eu acho que é uma paranoia, e para conter a neurose, a gente vai construindo esses amuletos. Hoje em dia – eu adoro envelhecer, porque a gente vai ficando mais tranquila pra certas coisas – o meu processo está mais leve.

personagens

Isso o Antunes [Filho] me ensinou: a gente tem que trabalhar com os nossos cinco sentidos justamente para fazer surgir esse sexto sentido, que é intuição, quando você escuta aquela voz, quando o personagem fala. Porque ele fala mesmo pela gente. É claro que não é um espírito que encosta. A gente não vira outra pessoa. Mas, de repente, começa a enxergar um pouco mais pelo ponto de vista de outra pessoa. Isso acontece. No ensaio de A Falecida, no Rio de Janeiro, eu comecei a ficar muito resfriada. Na cena final da Zulmira, ela já está com muita falta de ar. Eu tive uma crise de asma tão galopante, que tive que usar bombinha. Aí eu fui ao médico e falei: “Eu resolvi fazer uma consulta com um pneumologista porque estou com medo: no último ensaio, eu entrei numa crise de asma, e meu personagem tem tuberculose”. Ele começou a rir: “Ah, lá vêm vocês, atores. Vocês entram no personagem”. Aí, eu pensei como a gente é frágil, porque, de certa maneira, eu entrei. Eu comecei a tossir muito. A gente é totalmente racional, mas a nossa profissão é mais forte, porque ela lida com esse mundo psicológico que a gente não tem controle.

formatos

O teatro, a TV, o cinema e as séries são linguagens e lugares muito diferentes, mas eles se complementam. A televisão tem essa coisa de você ter que ter cartas na manga muito rapidamente, porque a gente grava várias cenas em um único dia. Você tem que ter uma elasticidade emocional muito grande e tem que acessá-la. Isso acaba te ajudando quando você está num

A
SALA DE ENSAIO É O LUGAR MAIS LINDO, PORQUE VOCÊ VÊ O
PROCESSO
ACONTECENDO COM VOCÊ, COM OS SEUS AMIGOS, COM O DIRETOR, COM A EQUIPE.
PORQUE É UM TEMPO DIFERENTE
e | 76

processo de ensaio, porque você joga uma carta, não funciona, joga outra, não funciona, e aí você vai aprimorando. O teatro tem uma coisa que eu estava precisando. Eu estava fazendo [a novela] Pantanal e me veio essa voz: “Camila, volta pro teatro!". Porque o teatro é uma necessidade. Chega uma hora em que você fala: “Preciso me colocar de novo numa situação que não me dê muito conforto. Preciso ir para a sala de ensaio”.

Porque esse processo que a gente tem no teatro é difícil de achar na TV. A sala de ensaio é o lugar mais lindo, porque você vê o processo acontecendo com você, com os seus amigos, com o diretor, com a equipe. Porque é um tempo diferente. A gente vê aquilo crescendo, vê que o erro é fundamental para poder chegar a algum lugar. O tempo é outro. Um tempo que, às vezes, é necessário. E eu estava precisando disso.

Assista ao vídeo com trechos do Depoimento da atriz Camila Morgado.

zulmira

É horrível falar essa palavra, porque ela é muito clichê, mas [o Nelson Rodrigues] tem personagens que são presentes. É um presente para o ator. Porque é um mundo fantástico, um universo interno tão profundo, que fala de preconceito, de fantasmas que as pessoas guardam, de recalques, de culpa, de um mundo psicológico que é riquíssimo. Eu acho que é por isso que o Nelson é tão amado ou odiado, porque é um mundo difícil de assistir: ele vai em pontos que são cruciais. E seus personagens femininos são gloriosos. Eu tenho muito carinho [pela Zulmira], porque ela é muito rica. Ela é de uma infinidade de afetos. Ela passa pela culpa, pela ganância de conseguir um enterro de luxo. E a Zulmira carrega uma característica que eu acho que é muito atual para as mulheres e para todas as pessoas que são excluídas, que não são ouvidas, que foram deixadas de lado. A Zulmira faz parte desse grupo de mulheres. Esse personagem que, em algum momento, pensa na morte como uma forma de ascensão, porque talvez, pela morte, ela vai ser lembrada. Você traz para os dias de hoje, e tudo que a gente está falando reverbera na realidade das pessoas que são excluídas, essa luta constante que a gente tem para poder ser escutada. É tão potente. Essa peça foi escrita em 1953. E a gente está em 2023.

Adriana Vichi
No camarim do teatro do Sesc Santo Amaro, onde Camila Morgado fica em cartaz com o espetáculo A Falecida, até 1º de outubro.
77 | e

ALMANAQUE

Muitos em um Manifestações culturais de diferentes países permitem que se conheçam vários cantos do mundo sem sair da Grande São Paulo

Amistura de práticas, origens geográficas, saberes e idiomas dos moradores de São Paulo cria um ambiente favorável à diversidade de experiências. Turistas, imigrantes e refugiados vindos de diferentes partes do mundo contribuem para essa miscelânea de vozes, sotaques e influências. Segundo a Prefeitura de São Paulo, a maior cidade do país reúne mais de 360 mil imigrantes legais, e o ranking é liderado por bolivianos – com quase um terço do total –, seguidos por chineses, haitianos, peruanos e estadunidenses. Entre as pessoas em situação de refúgio, predominam venezuelanos, sírios, afegãos e congoleses. E é nesse rico mosaico cultural que é possível sentir-se um pouco em outros cantos do mundo, da religião à gastronomia, sem precisar pegar um avião. O embarque é doméstico e por terra. Boa viagem!

LATINOAMÉRICA VIVA

Nome de uma flor que cresce no planalto da Cordilheira dos Andes e que tem as cores da bandeira da Bolívia, a palavra kantuta também batiza, desde 2001, uma feira que acontece aos domingos, na zona norte de São Paulo. Expositores bolivianos e peruanos oferecem, em

40 barracas, opções de gastronomia, artesanato, roupas, acessórios e até cortes de cabelo. Entre as comidas, fazem sucesso o anticucho (coração de boi no espeto), ceviche, peixe na parrilla, pollada (frango assado com batata), saltenhas (empanadas) e sopas. Para beber, sucos como o mocochinchi (à base de pêssego) e a chicha morada (de milho roxo), além de cervejas e refrigerantes locais. A Feira Kantuta também

Adriana Vichi
No Canindé, zona norte de São Paulo, a Feira Kantuta é espaço para comida e artesanato andinos, além de apresentações de dança e música típicas.
POR LUNA D’ALAMA
BOLÍVIA E PERU
e | 78

sedia apresentações de grupos de morenada, tinku e salay, com música e danças andinas.

Feira Kantuta

Praça Kantuta, 924, Canindé, São Paulo (SP). Entrada também pela Rua Pedro Vicente, 620 (próximo à estação Armênia do metrô, Linha 1-Azul). Domingos, das 12h às 19h30. Entrada grátis.

ISRAEL

MEMÓRIA MILENAR

Inaugurado há dois anos no espaço onde funcionava uma das sinagogas mais antigas da capital, o Museu Judaico de São Paulo busca preservar as expressões, histórias e valores da cultura e da religião judaicas, em diálogo com o contexto brasileiro e com o tempo presente. O espaço abriga quatro andares expositivos, uma biblioteca com mais de mil títulos e um café que serve pratos típicos. O público pode conferir duas mostras permanentes, A vida judaica e Judeus no Brasil: histórias trançadas; – e uma temporária, Marcelo Brodsky: exílios, escombros, resistências. O Museu Judaico oferece, ainda, visitas guiadas (agendadas ou espontâneas), mediação de leituras, contação de histórias, oficinas, cursos e palestras.

Museu Judaico de São Paulo

Rua Martinho Prado, 128, Bela Vista, São Paulo (SP). Visitas de terça a domingo, das 10h às 19h. Grátis aos sábados. museujudaicosp.org.br

Julia Thompson
79 | e

ALMANAQUE

FRANÇA

JARDINS DE VERSALHES

Adornado por rosas, azaleias, buxos e pinheiros, o jardim em frente ao Museu do Ipiranga foi projetado, no início do século 20, pelo paisagista belga Arsène Puttemans (18731937), que recebeu a encomenda do primeiro prefeito da cidade de São Paulo, Antônio da Silva Prado (1840-1929). Puttemans se inspirou

nos jardins barrocos franceses, como o do Palácio de Versalhes. Inaugurado em 1909, 14 anos após a abertura do museu, esse é o terceiro jardim de grande porte construído na capital, e conta com canteiros geométricos e eixos de vegetação que conduzem ao edifício central. Uma década após sua abertura, o espaço entrou em reforma para as comemorações do centenário da Independência, reabrindo apenas em 1923. Ganhou um espelho d’água,

chafarizes e uma escadaria, num projeto do francês Félix Émile Cochet (1881-1916). O Parque da Independência, do qual o jardim faz parte, é tombado, desde 1998, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Jardim do Parque da Independência Parque da Independência (acesso pela Rua dos Patriotas, 20), Ipiranga, São Paulo (SP). Grátis.

Adriana Vichi
e | 80
O Jardim do Parque da Independência foi inspirado pelos jardins franceses do século 17, como o que adorna o Palácio de Versalhes, na França.

JAPÃO, CHINA, COREIA E PAÍSES AFRICANOS LIBERDADE A TODOS

Para fãs de animes, mangás e da cultura oriental, o bairro da Liberdade é o lugar mais indicado para se visitar em São Paulo. Quem estiver com fome, pode se deliciar em restaurantes de lámen e nas barraquinhas de rua, que aos finais de semana vendem tempurás, yakissobas e outros pratos típicos do continente asiático. A Liberdade abriga, ainda, o Museu da Imigração Japonesa, um jardim oriental e lojas de eletrônicos e produtos com temas orientais. Além disso, em julho, foi inaugurado o Sato Cinema, uma sala com mais de 700 lugares e programação voltada ao cinema da Ásia. Também é preciso reconhecer e valorizar as raízes afro-brasileiras da Liberdade. “Quem passeia pela feirinha pode não entrar em contato com a história negra desse lugar. A Capela Nossa Senhora dos Aflitos, por exemplo, fica no fundo de um beco e não há sinalização, então os turistas nem se dão conta da existência dela. Devemos conhecer as diferentes narrativas para preservar a memória urbana", analisa a especialista em turismo Vanessa Correa.

Bairro da Liberdade

Praça da Liberdade e arredores. Acesso pela estação

Japão-Liberdade do metrô (Linha 3-Vermelha). Grátis.

INGLATERRA BRUMAS DA VILA

Em tupi-guarani, Paranapiacaba significa “lugar de onde se vê o mar”. Isso porque era a partir dos montes dessa região, localizada na Serra do Mar, que os indígenas avistavam o litoral. Esse distrito da cidade de Santo André (SP) foi construído no século 19 para acomodar funcionários da companhia inglesa São Paulo Railway, responsável pela primeira estrada de ferro do estado, que ligava Santos (SP) a Jundiaí (SP), ao longo de 160 quilômetros. Rodeada por uma área preservada de Mata Atlântica, com trilhas e cachoeiras, Paranapiacaba atrai visitantes de diferentes partes do Brasil e do mundo, e até virou cenário de filmes como A Princesa da Yakuza (2021).

É famosa também pela produção de itens à base do cambuci (fruta verde, azeda e com formato de disco voador) e pela realização do Festival de Inverno e de eventos místicos, como a Convenção de Bruxas e Magos O jeito mais charmoso – e disputado – de chegar a Paranapiacaba é pelo Expresso Turístico da CPTM, que sai todos os domingos da Estação da Luz, em São Paulo.

Paranapiacaba

A 60 km da capital paulista, entre o Centro de Santo André (SP) e Cubatão (SP). De carro, pela Rodovia Anchieta, é só seguir até o km 29 (sentido Riacho Grande - SP) e, então, pela SP-148 (sentido Ribeirão Pires - SP). Há também transporte de trem e ônibus. Entrada grátis.

Adriana Vichi (Bairro da Liberdade); Carol Godefroid (Paranapiacaba)
É possível chegar a Paranapiacaba pelo Expresso Turístico da CPTM, que sai todos os domingos da Estação da Luz, na cidade de São Paulo.
81 | e

Respeitar o passado, desfrutar do presente e plantar o futuro

Venho sendo instigado, ultimamente, a refletir e falar sobre longevidade. Já abordei a questão algumas vezes, a partir do meu emblemático histórico familiar: meus pais partiram cedo; já meus irmãos, assim como eu, seguem na lida, desempenhando seus papéis nesse espetáculo imprevisível que é a vida.

É preciso reconhecer que a humanidade avançou no campo da ciência, o que faz com que os descompassos entre o frescor das ideias e o natural declínio físico possam ser minimizados.

Todavia, há aqui uma questão central: tais progressos estão longe de alcançar todas as pessoas. Sendo assim, configura-se como privilégio de poucos, o que já seria o bastante para que todos estivéssemos engajados em sua universalização. Quem determina que algumas pessoas são mais merecedoras de usufruir tais conquistas coletivas?

Somos frutos do acúmulo de vivências experienciadas, curiosidades saciadas e anseios irrealizados. O que nos move é a certeza da incompletude e, com ela, o impulso de seguir semeando futuros que promovam o advento de uma sociedade melhor para as gerações atuais e futuras. A crença na educação permanente encontra perfeita simetria com a necessidade de se manter implicado com as coisas do nosso tempo.

Escolher quais são os bons combates é uma forma de nos manter vivos e atentos ao bem maior, que é o coletivo –como apregoava o apóstolo Paulo. Nesse sentido, vale lembrar que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo: aqui padecem mais cedo à morte pessoas cujos marcadores sociais – raça, origem geográfica, orientação sexual etc. – as afastou de condições dignas de existência. Por isso urge fazer com que o trabalho sociocultural esteja associado às pautas de combate a todo tipo de discriminação e luta pela equidade.

O passado é uma das matérias das quais somos feitos. São os ombros dos antecessores que nos elevam à altura de montanhas e permitem que vejamos o mundo de uma perspectiva privilegiada. O que foi legado pelos que vieram antes é conhecimento acumulado; por isso, deve ser respeitado, embora não cristalizado. Respeitar o passado supõe aprender com ele e superar eventuais limitações, para arriscar novas abordagens e respostas. O saudosismo é paralisante, ao passo que a experiência humana é naturalmente dinâmica. O movimento, seja físico ou intelectual, é indispensável ao percurso humano.

Isso implica estar envolvido com as coisas e os temas da atualidade. Desfrutar o presente, como o próprio vocábulo sugere, é uma dádiva que, ao mesmo tempo, traz responsabilidades; oportunidade para partilhas, encontros, afinidades, loucuras e descobertas. É, também, o lugar do efêmero que solicita disponibilidade para fluir plenamente. O presente é planejamento e realização concomitantes.

Isso nos traz de volta aos desafios da longevidade tardia, que se desdobra em legado e permanência, outros nomes para um fenômeno cultuado ao longo dos tempos: a ideia de posteridade. O que fica após deixarmos de existir no plano físico? Como queremos ser lembrados, pessoal e profissionalmente? Como as pessoas irão se referir a nós?

Gostaria de compartilhar com os de hoje e de amanhã uma noção que habita meus dias: somos interdependentes. Respeitemos, portanto, a diversidade e colaboremos para ampliá-la com criatividade e encantamento por toda forma de vida. Assim, no tempo certo, talvez possamos legar um ambiente mais justo e acolhedor.

Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo.
Nortearia e | 82 P.S.

Fique por dentro do que é destaque na programação deste mês!

RETIRE GRATUITAMENTE SEU GUIA NAS UNIDADES DA CAPITAL E GRANDE SÃO PAULO

Confira a programação completa: sescsp.org.br

SETEMBRO 2023

sescsp.org.br

Pedro Vannucchi (foto); Nortearia (colagem) DISTRIBUIÇÃO GRATUITA VENDA PROIBIDA CONHEÇA O SESC CAMPINAS

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.