INÉDITOS
MARIANA SALOMÃO CARRARA
De tempos em tempos eu sou uma árvore. Há o perigo de estar com minha filha no colo e o braço torna-se um galho retorcido e alto que avança pela janela, frutos que me despencam da pele que engrossa depressa em cascos trepidantes de colônias de formigas que me passeiam em fila, a cabeça dói de repente muitíssimo, folheia-se larga e verde para além do teto, não caibo no quarto e a copa se curva a coluna enverga e as pernas se trançam em raízes gigantes, e então me flagram assim súbita figueira doméstica, e a seiva me escorre quente e densa. Grito por sol, qualquer sol que seja uma lâmpada fosforescente um abajur, e fico aqui troncuda e secular espantando o intruso com os galhos revoltos. Não me deixam portanto segurar minha filha, nem um instante porque eu de repente árvore a despencá-la minúsculo fruto, por isso eles vêm e me colhem a menina, não vá essa mãe arvorar-se dela. Espio a menina no berço, música amena, tudo em ordem, fauna e flora do quarto contidas, não posso compreender a maldição nem adivinhar o gérmen e vou me armando repentina planta e acontece de me notarem antes de avançar pelo teto, as raízes ainda fracas os braços resistindo caulescentes enquanto me tombam e me arrastam na folharia que me desprega dos cabelos, atam-me à boleia da caminhonete onde continuo a engrossar e espessar seca, as ranhuras queimando das formigas. Eles se apressam e nas ruas as outras árvores resplandecem e me olham assim caída aberração das fêmeas todas, as entranhas se encaracolam fibrosas, o peito em nós lenhosos, e se no caminho chove me torno escorregadia de limo e eles precisam de muitos médicos para conter-me, o hospital tão experiente em desumanizações. Tentam tratar a mulher e não a árvore, e eu insisto que o problema é a árvore não me entendem eu digo a louca é a árvore que me toma e não larga arranquem de vez as sementes mas não arrancam, remédios, injeções, amarram-me os braços como se assim não florescessem e eletrizam-me os dutos e me devolvem em casa, eucalipto venenoso impossibilitando o solo e a vida. Torno a esperar o sol no quarto, minha filha chora baixinho na porta ao lado, e me estico nos restos da minha folhagem dentro da minha sombra, e sou oca, a mais oca das mulheres. Um dia me arborizo e floreio inteira e gigante e maciça e estendo os braços amadeirados e firmes e espero anos até que me confiem e me ajustem as cordas de um balanço e quem sabe ela venha, a minha filha, ainda menina e me veja assim frondosa e me escale num abraço os pés descalços na minha casca e se ajeite no farfalhar fresco das minhas folhas e se abandone contente no meu balanço, e eu sinta no tronco o esgar das cordas, o tremor das suas idas e vindas, o vento pequeno sob os meus galhos. A doçura da sua primeira gargalhada. 74
Ilustrações: Luyse Costa
Ramalheira