Bianca Pedrina O protagonismo das mulheres periféricas na mídia
Zumbi presente A trajetória do reitor José Vicente por igualdade racial
Léa Garcia O legado de um ícone do teatro e do cinema no Brasil
Comida no prato Que ações podem efetivamente combater a fome no país?
Um lugar para curtir, para se encontrar Um lugar de aprender, de criar
Um lugar para refletir, para se movimentar
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um novo lugar para todas as pessoas
Inauguração em 28 de novembro a partir das 10h
CAPA: Detalhe da obra omi ati afefef (Água e Vento, 2024), da artista Nádia Taquary, que integra a exposição Lélia em nós: festas populares e amefricanidade, no Sesc Vila Mariana. A mostra se estrutura a partir do livro Festas populares no Brasil, da pensadora, antropóloga e liderança do movimento negro brasileiro, Lélia Gonzalez. Com curadoria de Glaucea Britto e Raquel Barreto, a exposição destaca festas e tradições afro-brasileiras que refletem aspectos fundantes da nossa cultura. Em cartaz até 9/2/25.
Crédito: Matheus José Maria
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Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.
O Sesc – Serviço Social do Comércio – tem como foco central o bem-estar dos trabalhadores dos setores de comércio, serviços e turismo, além de suas famílias. Fundada em 1946, por iniciativa do empresariado do setor, a entidade busca promover qualidade de vida tanto para seu público prioritário quanto para a comunidade em geral, oferecendo uma programação ampla e variada nos campos do lazer, da cultura, dos esportes, do turismo, da saúde e da alimentação.
Esse objetivo é alcançado por meio de atividades realizadas nos centros culturais e esportivos espalhados pelo Estado, com cursos, oficinas, encontros, debates e apresentações artísticas, sempre priorizando a valorização da diversidade e dos diferentes saberes e expressões.
O Sesc também marca presença no meio digital, oferecendo uma vasta produção de conteúdos que expandem sua atuação, garantindo acesso amplo e gratuito aos bens culturais. Além disso, através do programa Sesc Mesa Brasil, contribui no combate à fome e ao desperdício de alimentos, promovendo valores como solidariedade e sustentabilidade.
Ao investir recursos e esforços nessa iniciativa inovadora, o Sesc reafirma seu compromisso em colaborar para o desenvolvimento de uma sociedade mais próspera e cidadã.
Abram Szajman Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo
Pelo fim da fome
Daquilo que se pactua na vida em sociedade, há valores que são inegociáveis na garantia e na sustentação da dignidade humana. E talvez, nenhum outro valor seja tão fundamental quanto o acesso ao alimento. Comer é um direito humano. E a permanência da fome na sociedade do século 21 nos alerta para a urgência da mobilização, tanto em âmbito individual quanto coletivo.
Se as estatísticas nos revelam a dimensão do problema, são as histórias que nos sensibilizam para agir. Há 30 anos, o Sesc São Paulo deu um importante passo para a ação concreta de combate à fome e ao desperdício de alimento, com a criação do Sesc Mesa Brasil. O programa surgiu inspirado pelo sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, em seu ativismo contra a fome. Reportagem desta edição da Revista E aborda a importância de iniciativas como essa e reflete sobre as três décadas do Sesc Mesa Brasil.
Trata-se de uma tecnologia social que conecta doadores e receptores, voltando-se à minimização do desperdício de alimentos e da insegurança alimentar de grupos sociais vulnerabilizados, com foco no complemento de refeições. Uma ação que depende da colaboração de diferentes setores da sociedade, unidos com foco no bem-estar comum, convocando todos nós a garantir um direito humano elementar. Boa leitura!
Luiz Deoclecio Massaro Galina
Diretor
do Sesc São Paulo
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC
Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho
CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO
Presidente: Abram Abe Szajman
Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina
Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.
Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.
CONSELHO EDITORIAL | Revista E Adauto Perin, Aguinaldo Soares da Costa, Alessandra Argenton, Alex Siciliani Anastacio Cruz, Aline Ribenboim, Ana Carolina Alves de Toledo, Ana Carolina Rodrigues, Ana Cristina Feitosa de Pinho, Ana Ortigosa, Ana Paula Neves Cabral de Vasconcellos, Andrea de Oliveira Rodrigues, Andressa Kelly Ribeiro Ivo, Anna Luisa de Souza, Antonio Henrique Carlessi Terciani, Ariane Carvalho da Cruz, Barbara Caroline da Silva Ramos de Freitas, Camila Ribeiro Castro, Cassio Renato de Lima, Cherrye Mendes Virote, Christi Lafalce, Cinthya de Rezende Martins, Corina de Assis Maria, Daniel Ramos da Silva Melo, Danny Abensur, Diego Polezel Zebele, Doracy Feliciano Teixeira, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Elaine Barros Martins, Eloá de Paula Cipriano, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Gabriela Camargo das Graças, Gabriela Carraro Dias, Gislene Lopes Oliveira, Giulia Maria de Campos Manocchi, Gleiceane Conceição Nascimento, Graziela Delalibera, Gustavo Faria, Heloisa Pinto Ururahy, Helton Henrique Cassiano, Isabela Trazzi, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Ivy Granata Delalibera, Jacy Helena Almeida Silva, Jade Stella Martins, Joana Carolina Teixeira Mota, Jose Mauricio Rodrigues Lima, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Juliana Figueiredo Alves, Juliana Francischett Nogueira, Juliana Neves dos Santos, Livia Lima da Silva, Livia Maria de Freitas Muchiutti, Marcel Antonio Verrumo, Marcelo Baradel, Marcos Afonso Schiavon Falsier, Maria Claudia Novaes Curtolo, Maria Elaine Andreoti, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Marina Borges Barroso, Marina Reis, Mario Luiz Alves de Matos, Mirella Ghiraldi de Castro, Monique Mendonça dos Santos, Nilton Andrade Bergamini, Patricia Maciel da Silva, Rachel D Ipolitto de Oliveira Scire, Rafael Lima Peixoto, Rafaela Ometto Berto, Rejane Pereira da Silva, Renan Cantuario Pereira, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Sandra Ribeiro Alves, Sheila de Sá Budney, Silvia Cristina Garcia, Simone Oliveira dos Santos, Talita Ferreira dos Santos, Tamara Demuner, Tatiana Busto Garcia, Thais Cristina Kruse, Thais Ferreira Rodrigues, Thamires Magalhaes Motta, Thiago da Silva Costa, Tiago Pratis da Silva, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Viviane Ferreira Alves, Vivianne de Castro, Wagner Francisco Pinho.
Coordenação-Geral: Ricardo Gentil
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A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social
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Entre os destaques de novembro, Festival Sesc de Turismo Comunitário realiza passeios, ações educativas e culturais diversas para todos os públicos
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JUÇARA MARÇAL DAIARA TUKANO DENILSON BANIWA MIRÓ DA MURIBECA
ATÉ 22 DE DEZEMBRO DE 2024
TERÇA A SEXTA, 10H30 ÀS 18H30 SÁBADOS, DOMINGOS E FERIADOS, 10H30 ÀS 17H30
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SESCCASAVERDE
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Baseado no livro homônimo do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), o espetáculo A Peste toca em uma angústia que persegue a humanidade: a luta pela sobrevivência. Na montagem, o ator Thiago Lacerda interpreta o doutor Bernard Rieux, que acompanha a luta dos moradores de Orã diante de um mal-estar ameaçador que promete devastar a pequena cidade. Sob direção de Ron Daniels, premiado encenador brasileiro, que ainda assina a adaptação do texto de Camus para o palco, A Peste entrou em cartaz no mês de outubro no Sesc Santana, e permanece na programação até dia 10/11.
APRESENTA
direção jeanne dosse
Um documentário que retrata o processo criativo da diretora teatral francesa Ariane Mnouchkine na montagem da peça “As Comadres”.
DOSSIÊ
Turismo de base comunitária norteia programação do Sesc São Paulo em novembro.
Para além do
turismo
Passeios, excursões, ações educativas e culturais integram a mais recente edição do Festival Sesc de Turismo Comunitário, de 1º a 30/11
Muito além do simples deslocamento de um lugar para outro, o turismo é a vivência que cada ambiente carrega, um conjunto de memórias, modos de viver e saberes que são parte da história das pessoas que ali vivem. A partir dessa premissa, o Sesc celebra e promove nesta edição do Festival Sesc de Turismo Comunitário, práticas que envolvem os grupos e comunidades que realizam grande parte da gestão das ações turísticas, incentivando cadeias econômicas justas, que muitas vezes complementam atividades tradicionalmente realizadas, como a agricultura e a pesca.
São aldeias indígenas, quilombos, assentamentos, comunidades
caiçaras, associações e coletivos urbanos, entre outros grupos. Tais práticas e saberes tradicionais muitas vezes têm papel fundamental na conservação de florestas, rios e territórios, por muitas gerações. Com foco na convivência, coletividade e diversidade, durante o mês de novembro, a programação inclui
passeios, excursões, bate-papos, cursos, encontros, oficinas e outras ações educativas e culturais.
Para Fabio Vasconcelos, gerente adjunto da Gerência de Educação para a Sustentabilidade e Cidadania, “quando falamos em democratizar o turismo, pensamos não apenas no viajante, mas também na relação entre uma comunidade tradicional e a conservação dos bens naturais ou de uma técnica de pesca”. Pensa-se também, complementa Vasconcelos, “na possibilidade de que o próprio território e as pessoas que ali habitam possam se organizar para fazer parte da gestão do turismo ou mesmo de algo que para nós é muito caro, que é a dimensão educativa da experiência, na qual as pessoas detentoras de saberes são as próprias populações locais”.
Um dos destaques da programação será o lançamento, no dia 7/11, no Sesc Bom Retiro, da série de vídeos-passeios Itinerários de Resistência na plataforma Sesc Digital, em que 20 grupos do estado de São Paulo que praticam o Turismo de Base Comunitária apresentam seus territórios e suas histórias. No dia, a programação contará com a apresentação do grupo Batucada Tamarindo.
Programação em sescsp. org.br/festivaldeturismo
Quando falamos em democratizar o turismo, pensamos não apenas no viajante, mas também na relação entre uma comunidade tradicional e a conservação dos bens naturais ou de uma técnica de pesca
Fabio Vasconcelos, gerente adjunto da Gerência de Educação para a Sustentabilidade e e Cidadania do Sesc São Paulo
Cadu
VÉU E GRINALDA
Um dos textos clássicos de Nelson Rodrigues (1912-1980), a peça Vestido de noiva ganha montagem inovadora, que funde teatro e cinema. Idealizado por Lucélia Santos e dirigido por Helena Ignez, a peça-filme faz uma releitura contemporânea que preserva o caráter provocador do texto original, atualizando suas questões sociais. A produção, predominantemente feminina, explora a complexidade psicológica da obra, e aborda amor, traição e morte por meio da trajetória de três mulheres. Lucélia, que encenou esse texto aos 15 anos, no início de sua carreira, interpreta Madame Clessi, ao lado das atrizes Djin Sganzerla (Alaíde) e Simone Spoladore (Lúcia). A direção de imagem é de André Guerreiro Lopes, a direção de arte, cenografia e figurinos é de Simone Mina e Carolina Bertier; e a iluminação é de Aline Santini, vencedora do prêmio Shell pela peça Mutações, dirigida por Guerreiro. Em cartaz até 8/12, de sexta a domingo. Saiba mais: sescsp.org.br/consolacao
DOSSIÊ
ESCURECENDO OS CAMINHOS
Dia 1º de novembro, às 19h30, um sarau em homenagem ao escritor pernambucano Miró da Muribeca (1960-2022), no Sesc Campo Limpo, abre os trabalhos da Ocupação Clariô, em cartaz até 24/11 na unidade. Trata-se da retrospectiva artística do Grupo Clariô de Teatro, na estrada há mais de vinte anos, referência por uma produção artística pela e para a periferia. Sempre aos sábados e domingos,
Berço da humanidade
às 18h, a programação tem início com Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto (2023), nos dias 2 e 3/11. Urubu come carniça e voa! (2011), que narra vida e obra do escritor Miró da Muribeca, será encenada dias 16 e 17/11. Em paralelo, três ações formativas fazem parte da ocupação. Confira a programação completa em: sescsp. org.br/campolimpo
Lançamento das Edições Sesc São Paulo em coedição com a editora Zahar, a coleção Biblioteca Africana reúne obras não ficcionais sobre temas relacionados à filosofia, política, crítica literária e de arte, história e teoria social. Idealizada por um grupo de importantes nomes da luta antirracista, como Kabengele Munanga, Sueli Carneiro e Tiganá Santana, a coleção abarca Sobre a “filosofia africana”, do beninense Paulin J. Hountondji (1942-2024), considerado um dos cem melhores livros africanos do século 20. Já Mito, Literatura e o Mundo Africano, do nigeriano Wole Soyinka, o primeiro escritor africano a receber o Prêmio Nobel de literatura em 1986, analisa a interconexão entre história, literatura, teatro, mito e ritual na cultura iorubá. Saiba mais: sescsp.org.br/edicoessescsp
Ale Catan (Véu e grinalda); João Claudio de Sena (Escurecendo os caminhos)
A peça Urubu come carniça e voa! faz parte da Ocupação Clariô, no Sesc Campo Limpo.
As atrizes Simone Spoladore, Lucélia Santos e Djin Sgarzela (da esq. para a dir.) compõem o elenco de nova montagem de Vestido de noiva
DOSSIÊ
Música em curso
Durante o mês, o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo traz em sua programação uma palestra e um curso sobre recortes importantes da música brasileira. Som Livre: uma biografia do ouvido brasileiro (dia 23/11, das 11h às 13h) aborda a trajetória dos primeiros 50 anos da Som Livre, uma gravadora nacional que contou com nomes como Djavan, Rita Lee (1947-2023), Cazuza (1958-1990) e Alceu Valença em sua trajetória, e que escreveu a história da música do
país. A palestra será ministrada por Hugo Sukman, jornalista, escritor, roteirista e curador da nova sede do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro. Já o curso Cheio de manias: o encanto e a revolução do Pagode 90 no samba brasileiro (dias 26, 28/11, 3, 5 e 10/12, das 19h às 21h) explora a importância do pagode de 1990, analisando suas raízes, principais protagonistas, meios de divulgação e legado na cultura nacional. Inscreva-se: centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br
A série de interprogramas Poesia em Trânsito, realizada pelo SescTV, com estreia neste mês, investiga e exibe as mais diversificadas intervenções poéticas de rua da cidade de São Paulo, em diferentes bairros. Com direção da videoartista,
performer e curadora Lucila Meirelles, foram registradas poesias não convencionais e instantâneas que surgem espontaneamente nos faróis, nas feiras, nas calçadas, no ônibus, no metrô e nas comunidades. Versos que transmitem pontos de
vista, sentimentos, gracejos e bravezas. Neste mês, seis blocos com o trabalho de cinco artistas serão exibidos no canal. Assista: sesctv.org.br/noar A partir do dia 11/11, durante os intervalos da programação
A escritora, artista visual e travesti afro-indígena Naiá Curumim apresenta seu trabalho na série Poesia em Trânsito, exibida pelo SescTV.
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Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.
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Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).
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PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
Ricardo Ferreira
entrevista
Zumbi presente
Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente acredita na educação como chave de transformação para equidade social e na luta contra o racismo
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
FOTOS ADRIANA VICHI
Odia 20 de novembro, data da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, um dos mais importantes nomes da história do Brasil pela luta contra a escravidão, é celebrado, a partir deste ano, como feriado nacional. O Dia Nacional de Zumbi dos Palmares, Dia da Consciência Negra, é resultado da luta do movimento negro por reparação histórica, uma vez que Zumbi foi retratado, por séculos, como um criminoso. “Sou de uma geração de crianças negras que cresceu ouvindo dizer que Zumbi era um fantasma sem beira nem eira, doido perambulando pelas encruzilhadas, assombrando como alma penada. O nome de Zumbi sempre foi identificado, associado como negro à imagem do diabo, do pecado”, relatou a filósofa e doutora em educação Sueli Carneiro, em texto publicado em 2009, pelo jornal Correio Braziliense. Na ocasião, Carneiro escreveu sobre as constantes tentativas de demérito e apagamento da liderança de Zumbi dos Palmares, não só pela historiografia, e por livros didáticos, mas também pelo que chamou de “golpes de caneta” que, finalmente foram desmobilizados com a sanção da Lei 14.759/2023.
Em São Paulo, a Universidade Zumbi dos Palmares (UZP) carrega no nome a luta antirracista iniciada por Zumbi, e comemora neste mês não somente o feriado nacional, mas
também a inauguração, há exatos 20 anos, da instituição de ensino superior focada na inclusão de pessoas negras e de baixa renda. Doutor em educação e mestre em administração pela Universidade Metodista de Piracicaba, além de mestre em ciências jurídicas pela Escola Paulista de Direito, o reitor da UZP, José Vicente, vê como auspiciosa a ocasião. “Eu gosto muito da simbologia. O Brasil, minimamente, se redimiu e entendeu que esse tema, essa agenda e, sobretudo, esse personagem é importante para todos os brasileiros a ponto de, primeiramente, reconhecê-lo como herói nacional e, depois, transformar o dia da sua morte em feriado para todas as pessoas”, constata.
Há, contudo, muito chão pela frente, segundo o reitor, para que negras e negros – aproximadamente 56% da população do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – tenham, de fato, seus heróis, suas histórias e seus direitos respeitados. E um dos caminhos para essa reivindicação se dá pela educação. Nesta Entrevista, Vicente fala sobre as reviravoltas de sua trajetória: de boia-fria a reitor; sua participação na luta por ações afirmativas; a criação da Universidade Zumbi dos Palmares e de duas iniciativas pioneiras: o Procon Racial e a Brigada Climáticos, programa que visa erradicar o racismo ambiental.
Nascido em Marília, no interior do estado de São Paulo, caçula de seis irmãos, criado por uma mãe que trabalhava na lavoura, como boia-fria. Como foi sua infância?
Por incrível que pareça, apesar das faltas de toda natureza e das limitações, me parece que na cabeça da criança qualquer coisa que possa ser disponibilizada se transforma em diversão. Então, por conta disso, mesmo como boia-fria, transitar nos cafezais de Marília, naquela época, não me pareceu alguma coisa que me causasse qualquer desconforto ou mal-estar. Eu era criança, então, pegar um caminhão, ir para lá e para cá, me misturar com as pessoas e com as outras crianças, brincar nessas localidades, foi divertido. Porque era uma diversão disponível. Logicamente, eu não tinha clareza das coisas, de modo que ali, para mim, era um pedacinho do universo. Eu estava, afinal de contas, com a minha mãe, irmãos e amigos, e isso era importante, além de estar fazendo uma atividade essencial: ganhar o dinheiro do dia a dia.
E como a escola atravessou seu caminho? Eu morava numa cidade muito pobre e limitada na época. Minha família não tinha acesso a livros, revistas, teatro, cinema. No entanto, no início do ensino fundamental, fiz amizade com uma família que morava próxima da gente, sobretudo com Eunice Pelegrini – não me esqueço desse nome –, secretária na escola onde eu estudava. Na casa dela, onde eu ficava depois da escola, tinha muitas revistas, fotonovelas. Logo em seguida, tive contato com os
primeiros livros, sobretudo, Jorge Amado (1912-2001) – li Capitães da Areia (1937) e Tereza Batista cansada de guerra (1972). Por conta disso, eu também enveredei pela poesia e pela música. Eu acho que elas salvaram a minha vida porque o bairro onde eu morava, Morro da Querosene, era de faltas e necessidades. O jornal da cidade leu minhas poesias e me convidou para escrever. De repente, saí do anonimato. E, por fim, como eu sempre gostei muito de banda marcial, me encorajei e fiz a inscrição para entrar na Banda Marcial da Associação de Ensino de Marília. Pude andar pelas cidades do interior e conheci São Paulo. Na hora, eu falei: “É aqui que eu preciso estar”.
Em São Paulo, o senhor cursou a faculdade de direito. Por que escolheu esse curso?
Nesse momento, aconteceram dois fatos marcantes na minha vida. Na faculdade, na minha sala, havia muitos policiais. Em algum momento, houve um aumento de mensalidades e um grupo de alunos resolveu fazer passeata e puxar uma greve. Decidi me juntar ao protesto. Meus comandantes estavam de braços cruzados, olhando a manifestação e eu, como soldado, feliz e puxando aquele movimento. Foi curioso porque, em algum momento, eu me dei conta de que, por ser policial, eu não poderia estar ali. Depois, num segundo momento, eu nunca tinha participado de nada e iam montar uma chapa para o diretório e um amigo propôs que eu fosse o vice--presidente. Foi aí que surgiram intervenções: “A gente vai pôr um negro na chapa?”; “Nós vamos perder”.
Tem uma classe média intelectual em construção e que, se ainda não está em todos os espaços, já começa a se apresentar, a se posicionar e fazer suas reivindicações
Depois disso, prestei atenção em algo que, até então, não tinha me dado conta. Quando olhei ao redor, entre os demais alunos do curso direito, e na minha sala, não havia negros. Foi aí que percebi como as coisas são, que eu teria que me preparar para outros questionamentos, hostilização e ataques dessa natureza. Essa coisa ficou tão latente ali, que comecei a fazer o tal “teste do pescoço” [reconhecer se no ambiente há pessoas negras] para todas as situações em que estava, a fim de entender essa discrepância que, até então, não tinha me dado conta.
Foi esse episódio na faculdade de direito que provocou uma reorientação da sua carreira para trabalhar na luta por ações afirmativas e pela defesa dos direitos humanos?
Eu comecei a gostar muito dessa agenda de direitos humanos, de combate ao racismo e à discriminação e, curiosamente, foi um momento muito importante, porque começaram os debates da Constituinte. Eu me formei em 1984. A partir daquele momento, em todos os espaços, os debates começaram a se constituir, e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) montou uma comissão para discutir direitos humanos, da qual fiz parte. Então, essa ampliação de consciência veio dentro da luta da reabertura política, com posições para combater o racismo e construir ações afirmativas de toda natureza. Essa bandeira de que uma das ferramentas mais importantes para combater o racismo seria pela educação começou ali. As pessoas que tinham essa afinidade com a educação começaram a se juntar e disso nasceu o primeiro Encontro de Estudantes Negros do Estado de São Paulo, que montamos para discutir efetivamente o quê e como fazer.
Nesse momento, seria plantada a semente do que viria a ser a Universidade Zumbi dos Palmares? Depois que me formei em direito, no caminho para o trabalho, eu passava em frente à Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e aí me matriculei. Na Escola, curiosamente, havia muitos negros e o debate era uma discussão que eu já trazia sobre um dos caminhos para a igualdade racial passar pela educação. Então, foi lá que começou esse embrião da Universidade Zumbi dos Palmares. Criamos um grupo de estudos que convidava pessoas para debater essa agenda. E numa dessas atividades, convidaram o adido cultural dos Estados Unidos para falar sobre educação. Ele falou sobre a história das universidades negras estadunidenses: são 150 universidades negras, desde 1800, que formaram personalidades fantásticas e que são importantes para a vida do país. Perguntamos se dava para conhecer uma delas e uma universidade se dispôs a pagar
a passagem. Então, fui conhecer a Howard University, em Washington D.C. (Estados Unidos). Imagina uma USP só de negros? Essa universidade fica no coração do império, em Washington D.C., perto da Casa Branca. Fotografei, voltei e contei para os meus camaradas: “Que tal se a gente fizer uma dessas aqui no Brasil?”.
E o que resultou, nessa época, dessa viagem?
Na USP, como nas demais universidades naquela época, não havia negros, proporcionalmente. Então, a gente montou um cursinho chamado Cais, porque era um porto seguro para o jovem negro realizar seu sonho. Depois de sete meses, o cursinho faliu. Aí alguém disse: “Em vez de preparar o jovem negro para entrar na USP, por que a gente não reúne aqueles que já estão prontos e tenta colocá-los nas universidades privadas?”. Criamos o projeto Mais Negros nas Universidades e fomos bater nas portas das universidades privadas. Em algum momento, nós tínhamos mil jovens negros bolsistas e isso começou a fortalecer a ideia da Universidade Zumbi dos Palmares. Em São Paulo, procuramos duas universidades ligadas à Igreja Metodista, de São Bernardo e de Piracicaba, e perguntei se eles não tinham alguma ação para incluir os negros, como as metodistas dos Estados Unidos. Aí saiu a contribuição mais importante daquele momento: um projeto técnico para a criação de uma universidade. Falamos com o consulado americano e eles nos ajudaram. Com isso, nós lançamos a ideia de construir a Universidade Zumbi dos Palmares.
Neste mês, a Universidade Zumbi dos Palmares completa 20 anos. Além de ser a única na América Latina focada na inclusão de pessoas negras, a instituição destaca-se por dois programas: o Procon Racial, fruto de uma parceria com o Procon-SP, e o programa Brigada Climáticos. O que são e quais os objetivos desses programas?
O Procon Racial faz duas desconstruções. A primeira delas é de que haveria uma isonomia no consumo. Ou seja, a ideia de que todos são tratados iguais pelo mercado porque, afinal de contas, o mercado não faria distinção da cor do dinheiro. Mas, um dos lugares em que o racismo e a discriminação mais se manifestam é justamente nessa relação de consumo. Quando se mensurou essa violência, isso fez o ambiente corporativo se mexer. Sobre o programa Brigada Climáticos, ele é resultado de outra constatação importante: os efeitos extremos da mudança climática. Ela atinge a todos, mas aqueles que serão atingidos com mais intensidade estão em territórios onde
As cotas nas universidades, as cotas no serviço público, tudo está descrito na lei. Então, nós saímos do nada, e agora, estamos a caminho de tentar transformar todas essas medidas e essas ações em resultado efetivo e eficiente.
o equipamento público não existe ou não chega. Nós criamos e temos o primeiro espaço de combate ao racismo ambiental e isso se faz através de uma ação estruturada para qualificar as pessoas e auxiliá-las a fim de que estejam prontas para fazer os enfrentamentos dessas manifestações dos extremos climáticos em seus territórios.
Além desses mecanismos de monitoramento, as redes sociais também se tornaram uma plataforma de grande alcance para a discussão de pautas de reivindicação de direitos, valorização de expressões culturais e no combate à discriminação. Que avaliação faz desse ambiente na luta contra o racismo?
A partir das redes sociais, esse público e essa agenda que não tinha voz e que não conseguia pressionar politicamente, agora está lá: pressiona ou constrói os seus argumentos, apresenta a sua voz, expõe suas contestações, seu ponto de vista, enfim. Agora esse público é um objeto de política e de consumo potente e relevante. Então, por conta disso, as marcas começam a ter preocupação, cuidado e atenção. O ambiente político,
da mesma maneira, o ambiente governamental, enfim todos os espaços que antes não davam atenção para esse público começam a ter essa preocupação e esses últimos 20 anos ajudaram a consolidar se não uma aversão inconcebível contra o racismo, uma mudança no olhar no sentido de que algumas coisas não se debatem, algumas coisas não se põem mais na mesa, e para muitas delas se pôs uma trava: “Isso aqui não é justificável;” “Isso não é permissível”. Por conta disso, muito do discurso, da atitude, da postura, da prática que antes passava batido, hoje “dá B.O.” como diz a molecada. Então, tem responsabilização por danos morais na rede social. Ela lacra e cancela.
Entre tantos obstáculos enfrentados para o reconhecimento e respeito à cultura afro-diaspórica, para a garantia de espaço em todas as esferas da sociedade, que mudanças efetivas orientam o século 21?
A gente está mais ou menos nessa situação de um copo meio cheio e meio vazio. Até 30 anos atrás, eram só reivindicações de passeatas: o combate ao racismo, lei de cotas etc. Eram coisas que só estavam nas ruas ou
nos cartazes, que se debatia por aí, e foi para dentro da Constituição. A Constituição diz que racismo é um crime inafiançável, imprescritível, punido com cinco anos de reclusão. A mesma Constituição diz que o racismo produz distorção e distanciamentos e, por conta disso, é preciso produzir ações afirmativas. Por conta dessa formalização é que nós produzimos as políticas públicas, com base em lei. As cotas nas universidades, as cotas no serviço público, tudo está descrito na lei, não é uma concessão do governo. Então, nós saímos do nada, e agora, nós estamos a caminho de tentar transformar todas essas medidas e essas ações em resultado efetivo e eficiente. A lei é importante, mas é indispensável que ela seja cumprida. Mas a gente pode dizer que houve uma verdadeira revolução social no país e, diga-se de passagem, uma revolução que foi construída e conduzida pelos negros. Não fossem os negros, o nosso país ainda seria aquele país bárbaro de 30 anos atrás, quando o apartheid era tanto que os negros ocupavam somente 1% dos bancos das universidades do nosso país.
Nessa agenda de décadas da luta por ações afirmativas, a Lei nº 12.711/2012 permitiu
a ampliação do acesso de jovens negros às instituições de ensino superior federal, mas também, novas ponderações quanto a esse acesso. Que balanço faz dessas últimas duas décadas da Lei de Cotas?
Precisávamos de uma transformação que exigiria uma profunda revolução para ser uma república democrática, um Estado democrático de direito. Mas impossibilitado de fazê-lo, limitado ou desinteressado, o que o país fez? Entregou cotas para jovens negros nos bancos escolares. Ninguém falou, mesmo naquela época, dos professores, dos pesquisadores, dos gestores da universidade. Então, as cotas cumprem o objetivo de ser um remendo possível para uma agenda que estava premida. Nesse exato momento, nosso país tem 300 universidades públicas, mas temos quatro reitores negros. O corpo docente nas universidades públicas continua sendo um espaço da branquitude. Além disso, mesmo com as cotas nas universidades, não conseguimos ocupar as contas na magistratura, no judiciário e nas empresas públicas. Nesse exato momento de 20 anos da implementação da lei, a gente saiu de 300 mil jovens
A partir das redes sociais, esse público e essa agenda que não tinha voz e que não conseguia pressionar politicamente, agora está lá: pressiona ou constrói os seus argumentos, apresenta a sua voz, expõe suas contestações, seu ponto de vista
negros em formação para, aproximadamente, um milhão. Então, tem uma classe média intelectual em construção e que, se ainda não está em todos os espaços, já começa a se apresentar, a se posicionar e fazer reivindicações.
E o que representa para a história brasileira a sanção da Lei 14.759/2023, que determina que o dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra e Dia Nacional de Zumbi dos Palmares, seja feriado nacional?
Eu gosto muito da simbologia. O Brasil minimamente se redimiu e entendeu que esse tema, essa agenda e, sobretudo, esse personagem é importante para todos os brasileiros a ponto de, primeiramente, reconhecê-lo como herói nacional e, depois, transformar o dia da sua morte em feriado para todas as pessoas. Isso transforma um imaginário, porque, há 30 anos, quando se lia sobre escravizados, descrevia-se Zumbi dos Palmares como um criminoso, um marginal, um pária social que semeava o ódio e o terror. Essa construção política e ideológica servia a uma hegemonia de pensamento e à manutenção dessa demonização do negro, algo que sempre se pretendeu. Mas isso é artificial e carente da verdade desse povo que se juntou e fez a segunda revolução, acho que a mais importante da história desse país, que foi tirar Zumbi da imagem de pária social. Isso não é pouca coisa.
Atualmente, o senhor também se dedica à criação do Museu da História do Negro em São Paulo, no Bom Retiro. Como será esse museu?
A inspiração é no museu da história e cultura afro-
-americana em Washington D.C. [Museum of African American History and Culture], que é um negócio fabuloso. Acho que tem uma grande parcela do povo brasileiro, negros e brancos, que tem uma profunda compreensão de que nós temos uma dívida moral, espiritual, ética com o próprio país e com nós mesmos pelo fato de que nunca nos foi concedido conhecer nossa história por inteiro. Um país que não tem um registro da sua memória e um equipamento museológico para falar dessa memória é injustificável. Então, nasceu nosso desejo de deixar um museu que possa ter essas histórias, que possa ter esses registros acessíveis, disponíveis para a gente achar um pouquinho da gente neles. A proposta do museu é da Universidade Zumbi dos Palmares, mas a justificativa é de todos nós, brasileiros. A gente só vai dar o pontapé e vai ajudar a trilhar os caminhos, mas todo mundo tem que colocar um tijolo nessa obra. A gente quer começar e no nosso tempo fazer a parte que nos compete. E depois, os que vierem em seguida, que deem continuidade.
Assista a trechos da entrevista com o advogado e reitor José Vicente, realizada em outubro de 2024, na Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo.
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mesa BRASIL À
Em meio a uma crise climática com potencial de agravar a fome e as desigualdades sociais, como promover o direito humano à alimentação adequada?
POR MARCEL VERRUMO
alimentação
Segundo a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, todos devem ter acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
Matheus José Maria
Carlos Macedo
A“[tontura] da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. Comecei a sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida?”, questionou a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) em sua obra de memórias Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960). Passadas mais de seis décadas, milhões de brasileiros ainda caminham com a tontura descrita pela autora, trêmulos por carregarem o estômago cheio de ar, com um gosto amargo na boca. É o que demonstra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o estudo, 3,2 milhões de lares conviviam com a fome no Brasil em 2023 e, no total, 21,6 milhões enfrentavam algum grau de insegurança alimentar, ou seja, não tinham acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para sobreviverem.
Os indivíduos com os marcadores de gênero e raça de Carolina Maria de Jesus são a população mais vulnerável: 59,4% dos domicílios com insegurança alimentar eram chefiados por mulheres e 69,7%, por pessoas pretas ou pardas. Os dados reiteram uma problemática já apresentada em outras pesquisas, como o Suplemento Insegurança alimentar e desigualdades de raça/cor da pele e gênero, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), que sobrepôs esses marcadores e concluiu que, entre o final de 2021 e início de 2022, “moradores de domicílios chefiados por mulheres negras viviam em situação de mais iniquidade relativa ao acesso aos alimentos, o que ilustra o efeito da intersecção entre a discriminação de gênero e o racismo”.
DESAFIO CENTENÁRIO
A fome atravessa a história do Brasil. Um dos ensaios sociológicos seminais sobre o assunto é o livro Geografia da fome, do médico, geógrafo e cientista social Josué de Castro (1908-1973), publicado em 1946. Para o autor, esse flagelo é um fenômeno social coletivo com raízes que remetem à colonização do país, ignorado pelas autoridades, e que se manifesta ao longo do tempo de forma permanente e estrutural (fome endêmica) e se agrava em determinados contextos (fome epidêmica).
“A fome no Brasil, que perdura, apesar dos enormes progressos alcançados em vários setores de nossas atividades, é consequência, antes de tudo, de seu passado histórico, com os seus grupos humanos, sempre em luta e quase nunca em harmonia com os quadros naturais”, escreveu Castro, salientando que a colonização do país foi orientada por uma “agricultura extensiva de produtos exportáveis ao invés de uma agricultura intensiva de subsistência, capaz de matar a fome do nosso povo”.
O tema ganhou os holofotes no país na década de 1990, quando o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que 32 milhões de brasileiros passavam fome e o sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, realizou a campanha Ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida, em 1993, um movimento de arrecadação de alimentos com forte presença midiática e participação de artistas. A iniciativa fomentou a solidariedade, engajou a sociedade civil e inspirou empresas e organizações. Um exemplo de programa implementado nesse contexto foi o Sesc Mesa Brasil [leia mais em Ação coletiva], criado pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) em 1994.
No início do século 21, o problema retornou ao centro da agenda pública. Um capítulo decisivo se deu em 2003, quando o governo federal lançou o programa Fome Zero, política pública que articulou iniciativas e projetos de enfrentamento à fome e à pobreza, como ações de transferência de renda para famílias em extrema pobreza (Bolsa Família), de melhoria da alimentação escolar e ampliação das ações de educação alimentar e nutricional (Programa Nacional de Alimentação Escolar), de fomento à agricultura familiar e promoção do acesso a alimentos (Programa de Aquisição de Alimentos), dentre outras. Três anos depois, foi promulgada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), tornando a segurança alimentar e nutricional uma política de Estado, ou seja, responsabilizando os poderes públicos por assegurar o direito humano à alimentação adequada.
NÚMEROS DA FOME
Enquanto o governo investia em políticas públicas, o tema era aprofundado nas universidades. Em 2003, pesquisadores criaram a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) para medir o número de pessoas com fome no território nacional e o seu grau. A metodologia foi a base para o IBGE colher dados e, em 2006, publicar o primeiro levantamento suplementar do PNAD sobre o tema, informando que 34,8% dos domicílios do país (72 milhões de pessoas) conviviam com insegurança alimentar. Em edições seguintes da pesquisa, o instituto revelou uma melhora nos índices, que chegou ao seu menor patamar em 2013, quando 4,2% de sua população estava em insegurança alimentar grave (fome).
O enfrentamento desse flagelo teve os resultados reconhecidos pela comunidade internacional. Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) tirou o Brasil do Mapa da Fome, um instrumento que inclui os países em que mais de 2,5% da população passa fome. Apesar do avanço, a situação voltou a se agravar. Menos de uma década após sair do Mapa, o II Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (Rede PENSSAN) indicou que 33,1 milhões de pessoas passavam fome no país em 2022. A mais recente pesquisa sobre o tema, a PNAD Contínua, publicada em abril, mostrou que 8,7 milhões de pessoas passavam fome no Brasil em 2023.
Liderada pelo sociólogo Betinho, em 1993, a campanha Ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida inspirou empresas e organizações a participar do movimento de arrecadação de alimentos, como o Serviço Social do Comércio (Sesc), que criou o programa Sesc Mesa Brasil em 1994.
Matheus José Maria
“O problema da fome no Brasil, nos últimos anos, resulta especialmente de uma combinação de desigualdade social e econômica, retrocesso em políticas públicas, impactos das mudanças climáticas e da pandemia de Covid-19”, destaca Aline Martins de Carvalho, professora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão Sustentarea. Diante desse cenário de avanços e retrocessos, especialistas defendem que, para garantir o direito humano à alimentação adequada, no presente e no futuro, é imprescindível o investimento em políticas públicas permanentes, bem como em ações de empresas e da sociedade civil.
CAMINHOS DO ALIMENTO
O combate à fome envolve a promoção de sistemas alimentares sustentáveis, segundo pesquisadores do tema ouvidos nessa reportagem, ou seja, requer o fomento à sustentabilidade nas atividades relacionadas ao caminho percorrido
pelo alimento: do local de produção à mesa, jornada que passa pelo transporte, distribuição, processamento, consumo e posterior descarte.
“Os sistemas alimentares precisam buscar a sustentabilidade econômica, social e ambiental. Do ponto de vista econômico, precisam ser rentáveis para distintos elos da cadeia produtiva e com práticas de comércio justo. Devem, ainda, gerar benefícios amplos para a sociedade, e buscar neutralizar os impactos ambientais negativos da produção, distribuição e consumo. Quando alinhado a todas essas premissas, o combate à fome gera renda localmente, contribui com a neutralidade de carbono e pode ajudar no fortalecimento da cidadania alimentar”, elenca Gustavo Porpino, pesquisador da Embrapa Alimentos e Territórios e colaborador de iniciativas da ONU Meio Ambiente e G20 sobre sistemas alimentares sustentáveis.
Quando os sistemas alimentares não se pautam na sustentabilidade ambiental, seus impactos no
O fomento à sustentabilidade nas atividades que compõem o caminho do alimento in natura (do local de plantio ao transporte, distribuição, comercialização, descarte) é imprescindível para o combate à fome.
O PROBLEMA DA FOME NO BRASIL, NOS ÚLTIMOS ANOS, RESULTA
ESPECIALMENTE DE UMA COMBINAÇÃO DE DESIGUALDADE SOCIAL E ECONÔMICA,
RETROCESSO EM POLÍTICAS PÚBLICAS,
IMPACTOS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E
DA PANDEMIA DE COVID-19
Aline Martins de Carvalho, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão da USP Sustentarea
meio ambiente são maiores, agravando a crise climática e, consequentemente, a produção de alimentos, as desigualdades sociais e a fome. A sustentabilidade social e econômica, por outro lado, fomenta a distribuição de renda, o combate à pobreza, o trabalho decente, a justiça social etc.
Entre as ações citadas por Carvalho e Porpino estão o consumo de alimentos produzidos localmente, de pequenos produtores e da agricultura familiar, a priorização de comida de verdade (alimentos in natura e minimamente processados, como frutas, verduras e legumes, em detrimento de ultraprocessados, como salgadinhos de pacote e bolacha) e a educação alimentar nutricional. Os especialistas também apontam como caminho a diversificação de cultivos agrícolas, a valorização da biodiversidade do país e das agroflorestas, o fortalecimento de cinturões verdes no entorno dos grandes centros urbanos, a promoção de uma economia circular, a transferência de renda, o comércio justo e o combate às desigualdades e ao desperdício.
No que tange ao último ponto, em um país onde milhões de pessoas passam fome, grande parcela dos alimentos produzidos se perde ao longo da cadeia alimentar, seja no transporte, na comercialização ou no consumo. “No mundo, 30% dos alimentos são perdidos. Esses resíduos orgânicos são geralmente descartados em lixões ou aterros sanitários, onde se decompõem em condições anaeróbicas, gerando metano, um gás liberado na atmosfera. Esse é um poluente climático com um potencial de aquecimento global 86 vezes maior que o CO2 e é responsável por 45% do aquecimento global recente”, diz Carolina Urmeneta, diretora do Programa Waste & Circular Economy no Global Methane Hub. Portanto, além de não chegar à mesa de quem passa fome, um alimento desperdiçado contribui com a crise climática que, consequentemente, prejudica a produção de alimentos, produz desigualdades e prejudica a vida da presente e das futuras gerações.
Para os especialistas, a erradicação da fome envolve ações de diferentes atores sociais. Porpino defende que é necessário investir em políticas públicas
alimentação
robustas e permanentes, combinadas com geração de emprego e renda, em um processo que articule ações dos diferentes níveis de governo (federal, estadual e municipal), da sociedade civil e do setor privado. “A segurança alimentar e nutricional é um direito humano relacionado com a sustentabilidade em todas as suas dimensões. Precisamos enfrentar a fome com alimentos saudáveis, alinhados à cultura alimentar local”, acredita Porpino.
COMPLEMENTO ALIMENTAR
Os bancos de alimentos também são equipamentos importantes no combate à fome, prestando serviços de coleta, triagem e distribuição gratuita de doações. “Como recuperam alimentos que seriam desperdiçados, eles conseguem fornecer comida a pessoas com fome e, simultaneamente, reduzir o desperdício, além do impacto negativo que esse descarte geraria em nosso planeta. Ao estabelecer relacionamentos de longo prazo com agricultores, produtores de alimentos, varejistas e outros atores ao longo da cadeia de suprimentos, os bancos de alimentos também ajudam a garantir que menos comida se perca e que mais alimentos cheguem às mesas das famílias”, explica Lisa Moon, presidente e CEO do The Global FoodBanking Network, organização sem fins lucrativos que dá suporte a bancos de alimentos em diferentes países.
Na América Latina, a maior rede privada de combate à fome é o Sesc Mesa Brasil, criado pelo Sesc São Paulo há 30 anos. O programa realiza ações educativas e entrega alimentos a instituições sociais que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade social. Pesquisadores da Harvard Law School, em parceria com a GFN, avaliaram o papel desses equipamentos na erradicação da fome, bem como as legislações e políticas públicas vigentes em 24 países. O trabalho resultou no Atlas Global de Política de Doação de Alimentos, publicado em 2024. “Atualmente, o Atlas destaca que o Brasil é um dos poucos países a oferecerem proteções nacionais abrangentes de responsabilidade para doadores e organizações de recuperação de alimentos. Também identifica que a Lei 14.016/20 de Desperdício e Doação de Alimentos autoriza produtores e fornecedores de alimentos a doarem excedentes seguros e adequados para consumo humano, o que é um ótimo primeiro passo, mas a lei não exige a doação nem penaliza o desperdício”, destaca Gray Norton, advogada e pesquisadora
OS BANCOS DE ALIMENTOS TAMBÉM AJUDAM A GARANTIR QUE MENOS COMIDA SE PERCA E QUE MAIS ALIMENTOS CHEGUEM ÀS MESAS DAS FAMÍLIAS
Lisa Moon, presidente e CEO do The Global FoodBanking Network
da Harvard Law School. Para a especialista, o governo brasileiro poderia oferecer subsídios para melhorar a infraestrutura de doação de alimentos, permitindo que essas organizações aumentem sua escala e recuperem, manuseiem, transportem e distribuam doações de forma mais eficaz e segura.
Com menos desperdício, bancos de alimentos fortalecidos e um sistema alimentar pautado na sustentabilidade, mais comida poderia chegar às mesas do país. Com isso, mais brasileiros talvez parassem de sentir o estômago cheio de ar e vivenciassem o que Carolina Maria de Jesus nomeou como “o espetáculo mais lindo”: “Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos. (...) Comecei a sorrir como se eu estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?”.
para ver no sesc / alimentação
AÇÃO COLETIVA
Sesc Mesa Brasil celebra três décadas de fomento à alimentação saudável e adequada para todos
Programa de combate à fome e ao desperdício, o Sesc Mesa Brasil é realizado pelo Sesc desde 1994, conectando parceiros doadores (empresas, cooperativas etc.) e instituições sociais. Na operação Colheita Urbana, a equipe faz uma triagem e coleta de alimentos que perderam o valor comercial, mas estão próprios para consumo e, no mesmo dia, entrega a instituições sociais onde eles complementam as refeições servidas a pessoas em situação de vulnerabilidade social.
“Além de coletar e distribuir alimentos que fazem a diferença na mesa de muitas pessoas, o programa tem um caráter educativo, com ações para disseminar conhecimentos sobre elaboração de cardápios saudáveis, boas práticas de manipulação de
alimentos, valorização das culturas alimentares e técnicas culinárias de preparo”, ressalta o diretor do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina, referindo-se aos bate-papos, oficinas culinárias, seminários, dentre outras atividades voltadas às instituições sociais atendidas, parceiros doadores e outros públicos.
Na celebração dos 30 anos do programa, alinhado com a agenda pública, o Sesc realizou, no mês de agosto, junto à GFN, o Seminário Internacional Sistemas Alimentares: Oportunidades para Combater a Fome e o Desperdício no Brasil, no Sesc Belenzinho, em São Paulo. O evento reuniu pesquisadores nacionais e internacionais, debatendo as problemáticas da fome e do desperdício de alimentos.
Em 2023, o Sesc Mesa Brasil distribuiu 48 milhões de quilos de doações, e realizou 8700 ações ações educativas em todo território nacional.
“Além de realizarmos o Seminário, as atividades educativas voltadas às instituições sociais foram ampliadas para todos os públicos; realizamos o Festival Sesc Mesa Brasil; promovemos uma campanha de arrecadação de alimentos; montamos uma exposição sobre o programa na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo; e estamos trabalhando em outras ações para angariar mais doações e fomentar a solidariedade”, conta Mariana Meirelles Ruocco, gerente na Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar.
Atualmente, o Sesc Mesa Brasil está presente em todos os estados do país e no Distrito Federal, atendendo mais de 750 municípios. São três mil parceiros e dois milhões de pessoas beneficiadas por mês. Em 2023, foram distribuídos 48 milhões de quilos de doações e realizadas oito mil e 700 ações educativas.
Saiba mais em sescmesabrasil.sescsp.org.br
CARMO
Sesc Mesa Brasil, 30 anos Exposição celebra atuação do programa com imagens de arquivo e ensaio fotográfico inédito de Luisa Macedo. De 4/11 a 13/12. Segunda a sexta, das 10h às 19h. GRÁTIS.
PRESENÇA ancestral
A força da arte de Léa Garcia, estrela que primou pela representatividade nos palcos e nas telas
POR MANUELA FERREIRA
Nos anos 1960, a televisão brasileira dava, ainda, seus primeiros passos. Nesse período, os programas eram exibidos ao vivo e as telenovelas começavam a se consolidar como o principal produto da dramaturgia do país – para se tornarem, pouco depois, um dos expoentes da cultura nacional. O espaço para atrizes e atores negros era, contudo, escasso, e os papeis oferecidos costumavam reforçar estereótipos. Foi nesse cenário desafiador que emergiu Léa Garcia (1933-2023), uma artista de talento inquestionável e um dos nomes pioneiros a desbravar novos caminhos para a representatividade negra na TV, cinema e teatro. Sua trajetória, no entanto, já era marcante àquela altura. Em 1959, ela havia conquistado plateias por sua atuação no clássico Orfeu Negro, dirigido pelo francês Marcel Camus (1912-1982) e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro e da Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano.
Pelo trabalho, a intérprete foi indicada à Palma de melhor atriz. Nas sete décadas de carreira que viriam a partir daquele momento, diversos outros prêmios e homenagens a esperavam. Mas sua contribuição às artes foi muito além, e se refletiu especialmente na popularização das telenovelas, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980. “Léa Garcia, Ruth de Souza (1921-2019),
Chica Xavier (1932-2020), Milton Gonçalves (1933-2022), Jacyra Silva (1940-1995), Zeni Pereira (1994-2002) e Zezé Motta, entre outros nomes, contribuíram para –com muita garra, determinação e talento –, mostrar o Brasil aos brasileiros, em meio a um período em que se encobria a presença negra em nossa sociedade”, analisa o pesquisador, consultor e escritor Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP).
ENTRE CENAS E LUTAS
Segundo Alencar, ainda que em número pequeno, foi esse coletivo de talentos que ajudou a fomentar a telenovela brasileira na indústria cultural, promovendo sua modernização e uma importante propagação do Brasil no mercado estrangeiro. “Devemos a esse grupo o que vemos hoje em nossa teledramaturgia: o caldeirão racial que formou o Brasil e que constitui a sociedade de nosso país", reflete o pesquisador. Léa Garcia, conforme explica Alencar, se destacava por atuações sólidas, nas quais imprime força e carisma com o olhar e o corpo esguio, seja através de personagens como Elza, de Selva de Pedra (1972), Dalva, de Assim na Terra como no Céu (1970) ou a inesquecível vilã Rosa, de Escrava Isaura, produzida pela TV Globo em 1976.
Murilo
Em 2022, a atriz foi reconhecida por sua longeva trajetória com o Prêmio Milú Villela - Itaú
Cultural 35 anos.
“Por trás de marcantes interpretações, construídas com paixão, estava a leitura meticulosa da mulher e atriz, misturando diversas estéticas da arte de representar. Ora mergulhando com a memória emotiva de Constantin Stanislavski (1863-1938), ora criticando a atitude de uma personagem, a exemplo do proposto por Bertolt Brecht (1898-1956). Mas sempre falando e exprimindo suas emoções com o corpo, a parecer uma discípula de Jerzy Grotowski (1933-1999)”, esmiúça Alencar. Para ele, outro ponto alto da diversificada carreira da artista foi o papel da cantora e dançarina Josephine Baker (1906-1975) no lendário musical Piaf - A vida de uma estrela da canção, de 1983, imortalizado pela atriz Bibi Ferreira (1922-2019) no papel principal, e com direção de Flávio Rangel (1934-1988). “Todo esse processo artístico contribuiu para formar e impactar a construção da representatividade negra na teledramaturgia em geral. Em síntese, o que vemos hoje é fruto do ontem plantado com extrema dedicação e talento por nomes como Léa Garcia”, afirma o pesquisador.
SEMENTES E FRUTOS
Os primeiros contatos de Léa Garcia com as artes cênicas aconteceram por intermédio de outra de suas paixões: a literatura. Filha de um bombeiro e de uma costureira, foi uma garota que se interessava pelos livros e pela escrita. Na adolescência, por incentivo do então namorado, o dramaturgo, diretor e ativista Abdias Nascimento (19142011), Léa mergulhou na leitura das tragédias gregas. Anos depois, a jovem subiu aos palcos pela primeira vez na montagem de Rapsódia Negra (1952), de autoria de Abdias Nascimento e encenada pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), histórica companhia cujo objetivo era promover a valorização da cultura afro-brasileira, ao passo que discutia questões raciais e sociais por meio do teatro.
Em cena, a artista dançava e declamava fragmentos do poema “O Navio Negreiro”, do escritor baiano Castro Alves (1847-1871). Com o TEN, Léa Garcia estabeleceu sua vinculação com a militância antirracista. Isso norteou a recusa por alguns papeis estigmatizantes ao longo de sua carreira e a opção por narrativas, em sua maioria, de mulheres fortes e corajosas, a exemplo das personagens
Por trás de marcantes interpretações, construídas com paixão, estava a leitura meticulosa da mulher e atriz, misturando diversas estéticas da arte de representar Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP)
Léa Garcia e Abdias Nascimento, ativista, diretor e dramaturgo com quem foi casada, na peça Todos os filhos de Deus têm asas, no início da década de 1950.
Arquivo Nacional / Fundo Correio da Manhã
Tenho saudades imensas das nossas conversas e risadas. Ela sempre deu de ombros e seguiu em frente, sendo “ela mais ela”, diante dos preconceitos que surgiam. Sei que a vida da Léa não foi fácil, como não é fácil a vida de atrizes brasileiras negras.
Maria Ceiça, atriz
Cipriana, do filme Ganga Zumba (1963), dirigido por Cacá Diegues, e Laura, da série Arcanjo Renegado (2020), dos diretores José Júnior e Renan Ribeiro. Do casamento com Nascimento vieram os filhos Henrique Christovão Garcia do Nascimento e Abdias do Nascimento Filho. Seu terceiro filho, o empresário, produtor e diretor Marcelo Garcia, por sua vez, é fruto da relação com Armando Aguiar.
MEMÓRIAS PERMANENTES
Em depoimento à série Cada Voz, do Itaú Cultural, gravado em agosto de 2022, Léa Garcia fez uma reflexão enfática sobre como a questão racial seguia perpassando seu fazer artístico. “Eu não encontrei grandes dificuldades para atuar enquanto atriz. Encontrei discriminações. Encontrei preconceitos dentro das empresas televisivas, teatrais e cinematográficas (...). O racismo, no Brasil, não é declarado; ele é camuflado. É diferente. Eu senti discriminação, por exemplo, na rua. Isto é uma constante até agora. Se eu encosto, sem querer, em uma pessoa que não é negra ou tida como ‘branco brasileiro’, ela vê meu braço, encosta na bolsa. E, de repente, dão de cara com a atriz, e (a situação) se modifica. Se eu não fosse atriz, a discriminação continuaria”, disse.
Nas recordações da atriz Maria Ceiça, Léa Garcia possuía muitas facetas: a atriz de brilho único, pioneira; a mãezona de todos, disposta a cuidar e dar afeto às pessoas que a rodeavam e a mulher dona de um bom humor peculiar e de irônicas e perspicazes observações sobre a vida. “Tenho saudades imensas das nossas conversas e risadas. Ela sempre deu de ombros e seguiu em frente, sendo ‘ela mais ela’, diante dos preconceitos que surgiam. Sei que a vida da Léa não foi fácil, como não é fácil a vida de atrizes brasileiras negras’, pontua Maria Ceiça.
Dentre as muitas histórias compartilhadas pelas amigas, Ceiça destaca uma memória divertida: a ocasião em que Léa Garcia deu um “chá de cadeira” em um dos atores mais cobiçados do cinema norte-americano. “Ela contava que na época em que esteve em Cannes, o astro Sidney Poitier (1927-2022) ficou encantadíssimo por ela e a convidou para jantar. Apesar de maravilhada com o convite, acabou se atrasando, talvez por ter sido convidada
Léa Garcia (à direita) em cena de filme Orfeu Negro (1959), pelo qual foi indicada ao prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes no ano de estreia: o filme faz parte da mostra Léa Garcia - 90 anos, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB-RJ).
para outro evento. E, quando finalmente chegou, ele disse que ela estava muito atrasada para o encontro, levantou-se e foi embora. Essa frustração de não ter jantado com o Poitier marcou a vida da Léa por muito tempo, mas ela contava esta história rindo, gargalhando e dando de ombros. Ela era isso, dava de ombros para os tropeços. Essa era a Léa Garcia”, define Maria Ceiça.
CAMINHOS DO FUTURO
“Vi minha mãe atuar pela primeira vez aos quatro anos, no teatro. Depois a vi na novela Acorrentados, de 1969. Sentava na frente da televisão para assistir, quando chegava o horário da novela. Foi assim que entendi que, quando ela não estava comigo, estava gravando. Como éramos muito agarrados, para ela sair de perto de mim, tinha que ser escondido. Sempre foi emocionante assistir à minha mãe. Tenho a mesma emoção, desde criança até hoje”, conta Marcelo Garcia. É ele o mantenedor do acervo da atriz, a quem acompanhava de perto em seus últimos anos, período em que a mãe, embora octogenária, seguia trabalhando de forma ativa e ainda recebia diversos convites para atuar.
“Dona Léa nunca parou. Atuou em cinema e televisão até o fim da vida. Mesmo após alguns meses acamada, por consequência de uma fratura na bacia, ela retomou o ritmo aos poucos, à medida em que se recuperava.
Era muito vaidosa e tinha muitos planos futuros, entre eles a participação na nova versão da novela Renascer (2024)”, revela Marcelo Garcia. A despedida do tablado aconteceu em novembro de 2022, quando a atriz subiu ao palco do Sesc Santana, com o espetáculo A Vida Não É Justa. Ao seu lado estava outro ícone das artes cênicas, o ator Emiliano Queiroz (1936-2024). Entre os atuais projetos em homenagem ao legado da atriz está uma biografia, de autoria do pesquisador Mauro Alencar. A obra deve explorar a trajetória da artista sob a perspectiva de seu filho Marcelo. Outro livro, lançado em 2023, Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita: a trajetória e o protagonismo de Léa Garcia (Editora UEA), do professor e pesquisador Julio Claudio da Silva, também lança luzes sobre os trabalhos da artista.
Já o cineasta Joel Zito Araújo está à frente da produção do documentário Léa Garcia, eu mesma. Joel Zito, por sua vez, dirigiu uma das grandes atuações da carreira da artista: o filme Filhas do Vento (2005), no qual ela contracenava com as atrizes Ruth de Souza, Taís Araújo e Maria Ceiça. Pelo trabalho, Léa Garcia foi homenageada no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, onde recebeu o Troféu Candango de melhor atriz coadjuvante, além de ter sido agraciada com o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Reconhecimentos não apenas pelo seu talento, mas também pela sua luta, tão fundamental na história do país.
A atriz em cena do filme O Forte (1974), dirigido e escrito por Olney São Paulo, exibido na retrospectiva Léa Garcia - 90 anos, em cartaz no CCBB-RJ até 4/11.
Mostra
para ver no sesc / bio
RESISTÊNCIA E CELEBRAÇÃO
Programações ao longo do mês inspiram reflexões e ações de artistas negros em diferentes linguagens em defesa da equidade racial
Pioneira na luta por mais visibilidade negra nas artes, Léa Garcia questionou estruturas racistas e se tornou um dos ícones da resistência e da representatividade. Por meio de uma programação diversa, o mês da Consciência Negra no Sesc convida à reflexão sobre as histórias, a cultura e as lutas dessa população no Brasil. No Sesc Sorocaba, o projeto Iorubrá chega à décima edição, valorizando as contribuições africanas para a cultura brasileira e celebrando o protagonismo negro em oficinas, espetáculos e vivências.
O especial Consciência Negra no SescTV traz o documentário Jards (2013), do cineasta Eryk Rocha, que celebra a vida e o processo criativo do cantor e músico Jards Macalé. Já Histórias e Rimas, de 2009, conduz o espectador pelas narrativas de artistas de rap no Brasil e nos Estados Unidos. A direção é de Rodrigo Giannetto. Ao acompanhar o processo de composição do segundo disco do cantor e compositor Mateus Aleluia, o filme Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã (2020) conecta sua obra musical a memórias afetivas, explorando diferentes
A encenação de Uma Leitura dos Búzios também faz parte da programação do SescTV no especial Consciência Negra, exibido neste mês.
lugares e temporalidades. A encenação Uma Leitura dos Búzios, dirigida por Marcio Meirelles e Rafael Sacramento Grilo, por sua vez, oferece uma visão crítica sobre a Conjuração Baiana, a partir de texto de Mônica Santana e sob direção musical de João Milet Meirelles.
SESCTV
Especial Consciência Negra Jards (2013)
Direção: Eryk Rocha
Dia 15/11. Sexta, 22h.
Histórias e Rimas (2009)
Direção: Rodrigo Giannetto
Dia 16/11. Sábado, 22h.
SOROCABA
Iorubrá
Oficinas, espetáculos e vivências celebram as contribuições africanas na cultura brasileira. De 1º a 30/11. Mais informações em sescsp.org.br/sorocaba
Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã (2020)
Direção: Tenille Bezerra
Dia 22/11. Sexta, 22h.
Uma Leitura dos Búzios
Direção: Marcio Meirelles e Rafael Sacramento Grilo
Dia 23/11. Sábado, 22h.
ARTE DOS SENTIDOS
Considerado um dos maiores artistas contemporâneos brasileiros, Carlito Carvalhosa ganha exposições simultâneas no Sesc Pompeia e no Instituto Tomie Ohtake, na capital paulista
POR LUNA D’ALAMA
Faço Tudo para Não Fazer Nada (2017)
Um ateliê montado na casa de número 7 de uma vila no bairro de Pinheiros, zona Oeste de São Paulo, nos anos 1980, abrigava jovens artistas que tinham, em comum, propostas estéticas e a amizade. Faziam parte do Grupo Casa 7: Carlito Carvalhosa (1961-2021), Nuno Ramos, Fábio Miguez, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade, que costumavam criar, coletivamente, obras neoexpressionistas com tinta industrial sobre grandes folhas de papel kraft. O imóvel foi demolido, mas a produção desses artistas e o legado de Carvalhosa permanecem. Falecido em 2021, aos 59 anos, o paulistano se formou em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), estudou artes visuais na Alemanha e teve uma vasta produção (sobretudo de pinturas e esculturas), que abrangeu quatro décadas e o uso de materiais diversos.
“A obra de Carlito Carvalhosa é um dos legados de longa duração para a história da arte, se pensarmos desde o Helenismo, na Antiguidade Clássica. Ele tinha obsessão por fósseis e materiais que mudam com o tempo. Suas instalações de grandes dimensões, por exemplo, não ocupam o espaço, elas são o espaço”, resume o venezuelano Luís Pérez-Oramas, ex-curador do MoMA, doutor em ciências sociais e um dos curadores da exposição A Natureza das Coisas – Carlito Carvalhosa, no Sesc Pompeia [leia mais em A natureza de Carvalhosa].
Em paralelo à mostra no Sesc Pompeia, é realizada a partir deste mês, pelo Instituto Tomie Ohtake, a exposição A Metade do Dobro, que reúne pinturas, esculturas e instalações de menor porte feitas pelo artista, que gostava de explorar os sentidos e utilizar materiais tão diferentes quanto tinta a óleo, cera, porcelana, tecido, madeira, gesso e vidro, em obras bi e tridimensionais. Segundo Daniel Rangel, diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Bahia, parceiro de Carvalhosa por três décadas e, também, curador da exposição, o artista gostava de trabalhar opostos e exercitar a dialética entre materiais leves e
pesados, transparentes (ou reflexivos) e opacos. “Carlito também fazia muito esse jogo de tirar as coisas de seus lugares e funções de origem e de lhes devolver novos espaços e significados. Queria utilizar matérias-primas que já existissem na natureza”, explica Rangel.
Como artista formado em arquitetura, Carvalhosa também se inspirava em grandes arquitetos modernistas, como Oscar Niemeyer (1907-2012), Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) e Lina Bo Bardi (1914-1992). Assim como Bardi, por exemplo, o paulistano buscava transformar espaços em lugares – ou seja, em espaços ocupados. Agora, as obras de ambos se encontram e dialogam na Área de Convivência do Sesc Pompeia.
Historiadora da arte, professora da Universidade Anhembi Morumbi e curadora-ajunta da mostra, Lúcia Stumpf é hoje responsável pela curadoria do acervo do artista, com quem começou a trabalhar em 2021, na organização de seu arquivo (papéis, jornais, fotografias etc.). “Carlito deixou um arquivo muito rico de projetos, maquetes, anotações e guias de montagem especificando o que deu certo ou errado, e até o tipo de cola usado nas instalações. É todo um sistema com processos e métodos, no qual também há um diálogo interno do artista com suas obras”, destaca Stumpf. A especialista considera que há um eixo comum que guia todo o trabalho de Carvalhosa, da década de 1980 até 2021. Como o conheceu de trás para a frente, isto é, do fim para o começo, Stumpf tem uma visão privilegiada, quase total, do trabalho dele. “Era uma pessoa que escrevia a partir de fluxos de pensamentos poéticos e caóticos, e esses escritos se materializaram em uma série de produções. Na exposição do Sesc Pompeia, não existe essa de ‘don’t touch, it’s art’ (‘não toque, é arte’ – frase comum em muitos museus), a interatividade é bem-vinda”, acrescenta. E assim, Carvalhosa, que gostava de abordar questões amplas da humanidade, relativas às transformações do espaço-tempo, continua presente.
O artista no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 2011, em sua primeira exposição nos Estados Unidos: A Soma dos Dias, uma instalação sonora que reinterpreta os conceitos de espaço e tempo.
gráfica
Os tecidos de TNT branco e lâmpadas flutuantes formam um labirinto em Faço
Tudo para Não Fazer Nada (2017).
As obras de Carlito Carvalhosa convidam o público a se tornar sujeito do ato criativo, oferecendo a oportunidade de interação e fruição corpórea.
gráfica
Lâmpadas, taças e copos transparentes (de diferentes modelos e tamanhos) compõem a obra Imaterialidade (2015).
Imaterialidade (2015).
Projeções de vídeos com entrevistas realizadas com o artista, sobre seu processo criativo, fazem parte da exposição: na imagem o compositor Philip Glass, que já trabalhou em parceria com Carvalhosa.
e molde da obra
Reprodução
Já Estava Assim Quando Eu Cheguei (2006) dialoga com o projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi, na Área de Convivência do Sesc Pompeia.
gráfica
Postes de madeira utilizados originalmente na iluminação pública compõem a obra Linha de Sombra (2017).
Fotos: Adriana Vichi
Sala de Espera (2013).
Cadernos, maquetes, fotografias, jornais, revistas e outros itens do acervo documental do artista também compõem a exposição.
Acervo Carlito Carvalhosa
para ver no sesc / gráfica
Carlito Carvalhosa teve uma vasta produção, sobretudo de pinturas e esculturas, que abrangeu o uso de materiais diversos.
A NATUREZA DE CARVALHOSA
Retrospectiva A Natureza das Coisas reúne no
Sesc Pompeia, pela primeira vez, cinco instalações de grande porte do artista paulistano
Ao longo de sua trajetória, Carlito Carvalhosa (1961-2021) produziu, além de quadros e esculturas, obras efêmeras como performances e instalações de grandes dimensões, concebidas originalmente como trabalhos in situ (ou site specific). Até fevereiro de 2025, porém, cinco dessas produções “reencarnam” no Sesc Pompeia, na exposição
A Natureza das Coisas, e se tornam recipientes do espaço que as contém, acomodando, reinventando e tensionando esse ambiente projetado, nos anos 1970 e 1980, pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi.
Divididos em quatro núcleos (Tecidos, Luz e Som, Gesso, Postes),
os trabalhos monumentais de Carvalhosa apresentam tecidos, lâmpadas, copos de vidro, postes e um molde gigante de gesso usado na obra Já Estava Assim Quando Eu Cheguei, feita inicialmente, em 2006, para o MAM-RJ e refeita, em 2019, para a inauguração do Sesc Guarulhos. Já os postes de madeira (utilizados antigamente na iluminação pública) estão presentes em Sala de Espera (MAC/USP e Kukje Gallery, Seul, 2013) e Linha de Sombra (MuBE, 2017). Os tecidos de TNT branco aparecem em Faço Tudo para Não Fazer Nada (Galeria Nara Roesler, 2017), enquanto lâmpadas, taças e copos transparentes, de diferentes modelos e tamanhos,
compõem Imaterialidade (Sesc Belenzinho, 2015). Todas as obras foram remontadas conforme o projeto original, replicando as criações de Carvalhosa.
Esta é a primeira vez que várias obras instalativas do artista contemporâneo são reunidas num único lugar, ao mesmo tempo. Algo que, segundo a curadora-adjunta Lúcia Stumpf, só poderia ocorrer pela amplitude da Área de Convivência do Sesc Pompeia e pela visão retrospectiva que agora se tem da vida e da obra do paulistano. Além do impacto visual, com paisagens deslocadas, copos colados na vertical e postes que parecem flutuar, os trabalhos expostos convidam o público a se tornar sujeito do ato criativo, oferecendo a oportunidade de interação e fruição corpórea. Além disso, a mostra reúne parte do arquivo documental de Carvalhosa.
Segundo a gerente da unidade, Monica Carnieto, a partir de materialidades diversas, Carlito Carvalhosa promove uma intensa articulação com o espaço e a experiência de fruição do Sesc Pompeia.
POMPEIA
A Natureza das Coisas – Carlito Carvalhosa
Curadoria de Daniel Rangel e Luís Pérez-Oramas, com curadoria adjunta de Lúcia Stumpf. Até 9 de fevereiro de 2025.
Terça a sábado, das 10h às 21h30; domingos e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS.
Mais informações em sescsp.org.br/pompeia
O BREGA é nosso
Impulsionado pela força das redes sociais, o movimento brega é reconhecido internacionalmente e conquista novos públicos
POR LUCAS VELOSO
Nascida em Jurunas, bairro da periferia de Belém (PA), a menina Gabriela Amaral dos Santos cantava no coral da igreja Santa Teresinha do Menino Jesus. Sua voz chamava a atenção dos vizinhos, da comunidade e chegou aos ouvidos de alguns donos de bares da capital paraense. Na época, sem dinheiro e se virando com o pouco que tinha, seguia sua vida artística de forma bem precária. No dia a dia, os desafios incluíam baixar programas de computador em inglês, mesmo sem falar uma palavra do idioma, traduzindo, aprendendo e manuseando. O primeiro teclado foi financiado em 60 vezes para que ela pudesse fazer seus shows.
Décadas depois, Gabriela é reconhecida internacionalmente como Gaby Amarantos. Cantora, compositora e apresentadora, ela é responsável pela popularização do tecnobrega, um estilo musical originado na periferia de Belém. Também é reconhecida por sua militância em prol da cultura amazônica, e por incorporar elementos do pop e da música eletrônica em suas produções. A história de ascensão da artista
é entrelaçada com a trajetória da música brega no Brasil, que surgiu como um rótulo pejorativo para gêneros musicais populares, especialmente aqueles produzidos pelas classes mais baixas.
DOR DE COTOVELO
De acordo com o jornalista e pesquisador musical GG Albuquerque, o brega romântico criou raízes nos anos 1960 e 1970, consolidado por artistas como Waldick Soriano (1933-2008), Odair José, Amado Batista e Reginaldo Rossi (1944-2013), tratando de temas amorosos e melodramáticos, influenciados por bolero e seresta. “Nos anos 2000, o tecnobrega emergiu em Belém do Pará, com batidas eletrônicas e influências caribenhas, ganhando popularidade com as aparelhagens e artistas como Banda Xeiro Verde”, observa o pesquisador. “Já em Recife, o brega funk mesclou o funk carioca com batidas mais rápidas e letras sobre o cotidiano periférico”, completa GG.
Além de Gaby Amarantos, são expoentes do tecnobrega artistas
como Manu Bahtidão, Dona Onete, e Manoel e Felipe Cordeiro, a Banda Xeiro Verde e DJ Mary. Já entre os representantes do brega funk estão o MC Leozinho, MC Troia e MC Metal.
Apesar das definições gerais, o pesquisador admite que o termo “brega” é um guarda-chuva que “engloba muitos gêneros musicais, mas também não os define claramente”. Do brega funk dos MCs de Recife ao tecnobrega acelerado de Belém e à seresta romântica, o campo é muito amplo. O próprio termo “brega” muitas vezes foi usado para designar coisas de “mau gosto”, inclusive a música produzida por pessoas mais pobres, mas, ao longo dos anos, os músicos deram a ele novos significados.
Embora o brega seja geralmente relacionado a temáticas ligadas a dores de amor e traição, GG defende que problemas sociais também são abordados. Por exemplo, nos anos 1970, durante a ditadura, surge uma divisão entre a MPB, vista como música militante, tendo como representantes nomes como Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o brega, que era tratado como
Rodolfo Magalhães
Rainha do tecnobrega, a cantora e compositora Gaby Amarantos teve sua obra reconhecida como Patrimônio Cultural e Imaterial do Pará, em setembro deste ano.
música
música alienada. “Mas alguns artistas populares, como Odair José, abordavam temas sociais de forma subversiva. A música ‘Pare de tomar a pílula’ criticava uma política de controle de natalidade. Havia, também, as canções que retratavam personagens marginais com carinho e respeito”, exemplifica o pesquisador.
DA MARGINALIDADE À ASCENSÃO
Na opinião do jornalista GG Albuquerque, nas últimas décadas, o gênero brega passou de marginalizado e criticado, por estar ligado às classes populares, para ser considerado Patrimônio Cultural e Imaterial do Estado do Pará e de outras regiões, presente até mesmo na universidade. “Embora o brega seja amplamente reconhecido por seu valor social, como uma música das classes populares que dialoga com a sociedade brasileira de forma transversal, falta um debate mais amplo sobre seu valor artístico”, constata.
Para GG, o circuito artístico brasileiro, historicamente dominado por uma elite branca, tem dificuldade em reconhecer a criatividade vanguardista que surge nas periferias. Além disso, as políticas culturais que valorizam o brega ainda são limitadas. Muitas vezes, mais voltadas para espetáculos e eventos do que para o estímulo e desenvolvimento contínuo da música e dos jovens criadores.
O pesquisador também menciona que algumas políticas públicas em estados como Pará e Pernambuco têm buscado reconhecer o brega como patrimônio, mas que é necessário implementar políticas
culturais de longo prazo que estimulem a criação musical.
ACESSO AO PÚBLICO
O ímpeto criativo dos artistas foi essencial para o brega ocupar outros espaços. Uma das estratégias mais curiosas foi o uso que os artistas fizeram da pirataria; antes vista como inimiga, tornou-se meio de difusão, tanto em Pernambuco quanto no Pará. Camelôs, barraqueiros e pequenos comércios de CDs e DVDs nas periferias recebiam diariamente materiais de artistas e compositores interessados em ter seus trabalhos “pirateados”, pois isso garantiria acesso a outros públicos e espaços. A esperança de alcançar uma rádio ou um produtor estava por trás desse movimento.
Assim, artistas construíram seus próprios meios de circulação e de divulgação, à margem dos tradicionais. Nas próprias músicas, mandar um “alô” ou divulgar um número de telefone também foram estratégias para fechar shows e gravações em estúdios profissionais. Hoje, essa difusão ocorre também em plataformas digitais, como o YouTube.
“Meu maior sonho era ligar o rádio e ouvir as nossas músicas, vê-las na televisão, em abertura de novela, filmes, séries, propagandas, em todos os lugares. Isso está acontecendo fortemente”, comenta Gaby Amarantos. Com hits como “Ex mai love” e “Xirley”, Gaby popularizou o ritmo e se tornou um símbolo de empoderamento feminino e representatividade da mulher negra. Suas músicas já fizeram parte da trilha sonora de novelas, como Cheias de Charme (TV Globo, 2012). Além disso, a
artista já se apresentou em grandes eventos, como o Rock in Rio.
A cantora paraense coleciona diversos feitos em sua carreira, como a conquista, no ano passado, do Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa com o álbum Tecnoshow, e o reconhecimento de sua obra como Patrimônio Cultural e Imaterial do Pará, em setembro deste ano.
Ela lembra que, ao começar a trabalhar com o estilo, tudo o que ouviu foi: “Você vai acabar com a sua carreira”; e “Essa música não mostra o seu potencial vocal, você é muito melhor e maior que isso”. “Mas foi essa aposta que me deu tudo, me fez ser reconhecida”, pontua. “Tudo o que sou vem da música da periferia de Belém do Pará, desse movimento tão lindo, tão importante, tão brasileiro, tão autêntico, que começou do nada, sem estrutura, como tantas coisas que a gente, que é brasileiro, cria”. Gaby comenta que nunca imaginou que a música que tanto amava alcançaria tamanha projeção. “Foi uma pororoca de sonhos que se transformou nessa grande imensidão”, destaca.
ATRAVESSAR FRONTEIRAS
Apesar de viver em um cenário cada vez mais favorável à sua música, ainda há obstáculos que a cantora enfrenta na carreira para emplacar o gênero. Mas Gaby Amarantos entende que os desafios são comuns a qualquer estilo musical que emerge da periferia. “Se pensarmos no samba, no funk carioca e agora no tecnobrega, veremos que a história se repete: um som que nasce nas favelas, nos lugares que a elite e a burguesia discriminam.”
A artista crê que o tecnobrega, assim como o samba e o funk, ainda sofre discriminação, porém deve se fortalecer graças à força do público e à qualidade da música. O fato de artistas do movimento serem premiados, consumidos e cada vez mais presentes em plataformas digitais e festivais mostra o alcance da produção musical da periferia amazônica. “A música que produzimos aqui tem valor e merece espaço. Vejo-a no seu lugar de direito no cenário musical brasileiro, ao lado de outros gêneros”, destaca Gaby.
Na mesma linha de raciocínio da artista, os irmãos e produtores culturais Jeft Dias e Gerson Júnior, moradores do Pará, promoveram, em maio deste ano, a primeira edição do Festival do Tecnobrega e Aparelhagem. Em quatro dias, o evento reuniu artistas, produtores e público para pensar o gênero em nível nacional. “A gente trabalhava com meu pai, copiando CDs e DVDs a noite toda. A gente fazia parte desse circuito desde o início”, lembra Jeft.
A ideia do festival é criar um espaço para discutir e pensar o cenário da música brega no país, para que esse movimento se torne o maior mercado cultural do estado. “O festival serviu como um palco para os artistas, mas também como um espaço para registrar e estudar a história dessa cultura”, resume. Além do evento, os irmãos também são os realizadores do Festival Psica, um dos principais da Amazônia, e que, neste ano, chega à sua 12ª edição. A atração reúne, nos mesmos palcos, nomes famosos e menos conhecidos do mercado musical nacional, privilegiando artistas da cena cultural amazônica.
CONEXÃO PARÁ-SP
Uma mostra da popularidade do brega na cena paulistana tem como protagonistas os DJs Tide e Madruga. Desde 2014, a dupla organiza uma festa quinzenal na maior cidade da América Latina. Nela, centenas de pessoas interessadas no som que toca nas aparelhagens do Pará, e nas vertentes que se espalham pelo Brasil, como o tecnobrega e o brega funk. A festa batizada de Je Treme Mon Amour surgiu como uma iniciativa para integrar ritmos, especialmente o brega, com a proposta de levar música a públicos que não conheciam esse estilo. Idealizada por um grupo que inclui DJs e músicos com forte ligação com a cultura latino-americana, a festa começou quando havia pouca oferta de eventos com esse propósito.
Hoje realizado no Centro da cidade, o evento se destaca pela fusão de diferentes ritmos, experiência que atrai um público crescente, em média de 700 a 900 pessoas por edição. No Carnaval, a festa também se adaptou a um trio elétrico, reunindo centenas de pessoas nas ruas com sons cotidianos da região Norte. Editor de som, produtor musical e um dos responsáveis pela Je Treme, DJ Tide diz que a festa é a oportunidade das pessoas que “já ouviram a música brega no rádio dos porteiros de seus prédios e acharam ruim poderem desconstruir essa ideia”.
Também pesquisador musical, Tide destaca que a produção sonora no Pará chama a atenção pela grande estrutura e facilidade no processo de criação, gravação e divulgação, resultando em um
AO VALORIZAR O TECNOBREGA, ESTAMOS CELEBRANDO A DIVERSIDADE CULTURAL DO BRASIL E FORTALECENDO A NOSSA IDENTIDADE COMO POVO
Gaby Amarantos, cantora e compositora
mercado vibrante e diversificado. “A democratização do acesso à tecnologia e às redes sociais permitiu que artistas locais criassem versões inovadoras de músicas internacionais, como no estilo tecnobrega”, comenta.
NOSSA MÚSICA
Viajando o Brasil e o mundo com sua música, Gaby Amarantos enxerga o movimento brega com potencial de crescimento, gerando renda e melhores condições de trabalho para os envolvidos no mercado. Para garantir um cenário cada vez mais favorável, sua aposta é em políticas públicas, algo que considera fundamental. “Precisamos de mais ações concretas para preservar e valorizar o nosso patrimônio cultural”, define. “A iniciativa de declarar o tecnobrega como patrimônio cultural, proposta por uma deputada estadual negra que também veio da periferia, é um grande passo”, emenda. Gaby defende a criação de leis e projetos que valorizem a cultura do tecnobrega. “Imagine o impacto de incluir o tecnobrega no currículo escolar. As crianças e jovens teriam a oportunidade de conhecer a nossa história, a nossa música e os nossos artistas”, destaca.
Parte do trabalho já está sendo visto, garante a artista. Alguns exemplos são as festas juninas com quadrilhas ao som do tecnobrega, além de pessoas dançando carimbó em São Paulo. “Ao valorizar o tecnobrega, estamos celebrando a diversidade cultural do Brasil e fortalecendo a nossa identidade como povo. O tecnobrega é a música brasileira que pulsa na Amazônia, e o mundo precisa conhecê-la”.
A cantora e compositora Dona Onete é reconhecida como "rainha do carimbó" e atrai uma legião de fãs da nova geração.
ver no sesc / música
SONORIDADES CONTEMPORÂNEAS
Álbum do Selo Sesc e programações no SescTV e no Sesc Vila Mariana celebram fusões entre ritmos regionais e a diversidade da música brega
A pluralidade da música popular presente na cultura brasileira é celebrada em diversas programações do Sesc. Lançado pelo Selo Sesc, o álbum Levadas de Festa reúne o frevo e o maracatu de Pernambuco; o rock e o samba do Rio de Janeiro; o carimbó e o brega do Pará, apresentando o trabalho do maestro Manoel Cordeiro, ícone da guitarra amazônica.
O projeto instrumental é resultado de uma colaboração entre Cordeiro, Alexandre Kassin, Pupillo e Marlon Sette. Segundo Cordeiro, esse
Lançamento do Selo Sesc, Levadas de Festa traz o multi-instrumentista e maestro Manoel Cordeiro misturando sonoridades brasileiras junto aos músicos Alexandre Kassin, Puppilo e Marlon Sette.
Idealizada pelos DJs Tide e Madruga, a festa Je Treme Mon Amour surgiu como uma iniciativa para integrar diferentes ritmos do Brasil, especialmente o brega, e alcançar novos públicos na cidade de São Paulo.
disco tem esse espírito festivo, de comunhão e celebração da vida.
Neste mês, o SescTV exibe episódios das séries Passagem de Som e Instrumental Sesc Brasil com Manoel Cordeiro e Sonora Amazônia, num repertório que dialoga com a estética do brega.
No Sesc Vila Mariana, o projeto Bregue-se, realizado no mês passado, também celebrou as múltiplas facetas desse movimento musical, que vai da música romântica ao bregafunk. Com ações formativas e shows, o projeto ofereceu reflexões sobre a evolução histórica do brega e suas inúmeras manifestações.
SELO SESC
Levadas de Festa
De Manoel Cordeiro, com Alexandre Kassin, Pupillo e Marlon Sette, esse disco mistura diversos ritmos brasileiros. Disponível nas principais plataformas de streaming e no Sesc Digital: sesc.digital
SESCTV
Passagem de Som e Instrumental Sesc Brasil - Manoel Cordeiro e Sonora Amazônia
Os episódios apresentam repertório que dialoga com a estética do brega. Dia 19/11. Terça, a partir das 20h30, em sescsp.org.br/sesctv
Divulgação
(Capa do disco Levadas de Festa ); Lucas Kappaz
(DJs Tide e Madruga da festa Je Treme Mon Amour )
atividades educativas e culturais voltadas ao turismo de base comunitária
Aldeias indígenas, assentamentos, associações, coletivos urbanos, comunidades caiçaras e quilombos compartilham seus saberes, práticas e modos de realizar o turismo, a partir de uma organização coletiva própria. Participe!
1–30 novembro 2024
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mais informações e inscrições em sescsp.org.br/ festivaldeturismo
O LEGADO DE Darcy Ribeiro
No mesmo ano em que lançaria uma das obras seminais sobre a formação do país – O povo brasileiro (1995), o antropólogo e então senador Darcy Ribeiro (1922-1997) esteve no programa Diálogos Impertinentes, da TV PUC, apresentado pelo filósofo Mario Sérgio Cortella. De maneira bem-humorada, como de costume em entrevistas, Darcy Ribeiro disse: “Por todos os lados: em cima e embaixo [sou utópico]. Porque quem tem um país para fazer, desse tamanho, que tem potencialidades imensas, se não prefigurar na cabeça o que vai ser, se não inventar o país que há de ser, o país nunca vai dar certo. Nós já temos séculos de erros e absurdos porque outros pensaram o Brasil para nós”. Prestes a completar 30 anos, em 2025, a obra O povo brasileiro é resultado da utopia que o estudioso definia como a ação de “inventar o país que você quer”. E assim foi, utópico, em todas as outras iniciativas – como a criação da Universidade de Brasília (UnB), em 1962, junto ao educador Anísio Teixeira (1900-1971).
“Por mais de uma década, participei de muitos de seus projetos na cultura e na educação, e vivenciei sua capacidade de realizar, e sua paixão alucinada pelo Brasil, compartilhando experiências profissionais e uma grande amizade. Ao mesmo tempo,
tenho a visão de alguém que segue acreditando na força e na atualidade de muitas de suas ideias, bem como na oportunidade de trazê-las à luz nos difíceis dias de hoje”, reflete a socióloga e cineasta Isa Grinspum Ferraz, que trabalhou junto ao antropólogo, foi curadora da exposição Utopia Brasileira – Darcy Ribeiro 100 anos, realizada no Sesc 24 de Maio, em 2023, e dirigiu a série O povo brasileiro (2000), já exibida pelo SescTV.
Para Marcio Farias, um dos organizadores do livro Darcy Ribeiro: Uma Utopia (Perspectiva, 2024), curador e mediador do curso O povo brasileiro: mestiçagem em questão, disponível no Sesc Digital, o legado de Darcy Ribeiro não está cerrado em livros de história, mas vivo e presente na atualidade. “Enquanto intelectual, foi insurgente, original e provocador, produziu muito e sobre muitos temas ao longo de sua vida. Seus ensaios sobre o papel da universidade na América Latina trazem reflexões que ainda hoje se mantêm pertinentes frente aos desafios da expansão universitária e sobre o papel dessas instituições no mundo contemporâneo”, analisa.
Neste Em Pauta, Ferraz e Farias tecem reflexões e análises sobre o profícuo patrimônio deixado pelo antropólogo, sociólogo, escritor e político Darcy Ribeiro.
Darcy e a utopia brasileira
POR ISA GRINSPUM FERRAZ
Darcy Ribeiro é um homem controverso. Sua obra pertence a uma certa tradição ensaística brasileira de autores que fizeram leituras amplas sobre a complexidade de nossa formação singular, como Euclides da Cunha (1866-1909), Gilberto Freyre (1900-1987) e Sérgio Buarque de Hollanda (19021982). Ao mesmo tempo, Darcy fez parte de uma geração de intelectuais e artistas que acreditavam ser possível construir um projeto cultural e político para o Brasil e para a América Latina destinado a transformar profundamente as estruturas do país e do continente, e a construir um mundo mais justo, plural e alegre.
Sem se filiar a nenhuma escola de pensamento, mas bebendo em muitas fontes e conhecendo em profundidade o país no qual vivia, ele ousou reler com liberdade a história do Brasil e tecer profecias. Para Darcy, fato e mito formam juntos a tessitura do Brasil, e qualquer análise que menospreze esse amálgama será necessariamente incompleta e desinteressante. Assim, ele incorpora em seu discurso, dissonante e heterodoxo, o culto do Espírito Santo, a mestiçagem e uma profunda vontade de beleza –que aprendeu a observar com os povos indígenas, com quem conviveu por mais de dez anos e que estudou em profundidade. Darcy buscava um socialismo moreno que tivesse repercussões profundas na alma brasileira.
Apesar do mundo acadêmico brasileiro – principalmente o paulista – sempre ter olhado com reserva e ceticismo para seu pensamento independente e heterodoxo, sua obra e sua atuação influenciaram toda uma geração de pensadores e criadores nas mais diversas áreas da cultura, tais como Glauber Rocha [cineasta (1939-1981)], Caetano Veloso [músi-
co e escritor] e José Celso Martinez Corrêa [diretor, encenador, ator e dramaturgo (1937-2023)], entre muitos outros.
Minha visão sobre Darcy é a de alguém que, ainda jovem, pôde vê-lo ser o vulcão de ideias e utopias que era, e que pôde acompanhar o seu modo enérgico de atuar. Por mais de uma década, participei de muitos de seus projetos na cultura e na educação, e vivenciei sua capacidade de realizar, e sua paixão alucinada pelo Brasil, compartilhando experiências profissionais e uma grande amizade. Ao mesmo tempo, tenho a visão de alguém que segue acreditando na força e na atualidade de muitas de suas ideias, bem como na oportunidade de trazê-las à luz nos difíceis dias de hoje. Darcy foi um dos principais pilares da minha formação, fundamento presente de forma significativa em todos os museus e documentários que realizei, entre eles a série O povo brasileiro, que criei em 1999 a partir de seu livro de mesmo nome.
Darcy Ribeiro foi um dos grandes intérpretes do Brasil do século 20. Foi antropólogo, educador, homem de ação política, romancista e pensador do Brasil e da América Latina. Deixou uma vasta obra, como os impressionantes Estudos de Antropologia da Civilização (1968) – seis volumes, com quase duas mil páginas – entre muitos outros ensaios e romances, como o clássico Maíra (1976). Participou da criação do revolucionário Parque Nacional do Xingu, junto a Eduardo Galvão e os irmãos Villas-Bôas. Como educador, lutou pela escola pública e gratuita de período integral e de qualidade para todos os brasileiros, que concretizou nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPS), ao lado de Leonel Brizola (1922-2004), então governador do Rio de Janeiro; criou a Universidade de Brasília (UnB) com Anísio Teixeira [educador e jurista (1900-1971)]; e andou pelo continente latino-americano reformando universidades.
Ao longo de sua vida, Darcy fez inúmeros gestos e propostas de inventar um outro país – mais justo e menos desigual, razão de ser de toda a sua vida e obra. Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu certa vez: “Darcy é um monstro de entu-
siasmo que nenhum golpe feroz arrefece, é um ser de esperança e combate.
Num transe de criação e revolta, Darcy viveu sua vida. Revolucionário nas várias áreas onde atuou – “gênio da raça”, como gostava de dizer Glauber Rocha –, ele teve a liberdade rara de inventar-se e reinventar-se em mil faces. Antonio Candido [sociólogo, crítico literário e professor (1918-2017)] afirmou que Darcy foi “uma das grandes inteligências do Brasil de todos os tempos”. Para Anísio Teixeira, ele era “a inteligência do Terceiro Mundo mais autônoma que conheço”.
Darcy valorizava a singular mistura de genes e símbolos de povos e culturas que ocorreu no Brasil – e que não aconteceu de maneira pacífica, ele afirmava. Apostava na força e na originalidade desses encontros e trocas como promessa de um país diverso, tolerante e menos desigual. O Brasil como uma utopia possível. Entre exemplos desse pensamento comprometido está a criação, ao lado do Marechal Cândido Rondon (1865-1958), do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 1953. Tratava-se de uma ação pioneira em um tempo em que os povos indígenas eram considerados selvagens, incivilizados e sem cultura. Também se destacam: seus projetos na educação, que inauguraram novos paradigmas no país; os projetos de reformas de base, como a reforma agrária, que idealizou ao lado do então presidente João Goulart (1919-1976). E, também, a invenção do Sambódromo, a passarela do samba do Carnaval do Rio de Janeiro, que, na verdade, é uma grande escola pública de período integral para centenas de alunos, um enorme CIEP.
Amado e perseguido, respeitado e contestado, Darcy deu aula em grandes universidades pelo mundo e teve suas obras traduzidas em vários paí-
ses. Por aqui, muitas vezes foi visto como um louco visionário, um intelectual menor que desenhava castelos ao vento, e uma ameaça à segurança pública nos anos de chumbo. Acredito firmemente que seu pensamento segue relevante em um Brasil que ainda expõe as mesmas fraturas profundas de sua formação. Suas lutas são ainda as mesmas de hoje: respeito e valorização dos povos indígenas, educação e cultura de qualidade para todos, combate à desigualdade e reforma agrária.
Por isso, é estimulante e fundamental conhecer suas ideias e a sua obra. E não apenas como notável expressão de uma época profícua da produção intelectual do Brasil, mas também como um horizonte aberto para pensar o país contemporâneo. Pois como diz Caetano Veloso: “vida sem utopia, não entendo que exista”.
Com a palavra, o próprio Darcy: “Tenho um sentido agudo do Brasil como desafio posto a todos. Como promessa de uma nova civilização ecumênica e feliz. Gosto demais de gente. Quero é fartura para todos comerem, para crescerem sadios e manterem seus corpos. Quero boas escolas para a criançada toda, custe o que custar, porque não há nada mais caro que o suceder de gerações marginalizadas pela ignorância. Tenho tão nítido o Brasil que pode ser, e há de ser, que me dói demais o Brasil que é”.
Isa Grinspum Ferraz é formada em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), roteirista, documentarista e curadora de exposições e museus multimídia.
Acredito firmemente que seu pensamento segue relevante em um Brasil que ainda expõe as mesmas fraturas profundas de sua formação
O Brasil possível de Darcy Ribeiro
POR MARCIO FARIAS
A famosa frase do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) que diz: “Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”. Essa é uma boa definição para a importância de Darcy Ribeiro. Não bastasse ser autor de ampla produção teórica, era uma pessoa de “fazimentos”, como ele mesmo dizia.
Ao longo da vida, teve uma notória ação pública, exercendo cargos técnicos administrativos, tanto em âmbito nacional, como internacional. Deste modo, foi desde antropólogo do Conselho Nacional de Proteção ao Índio, instituição que à época era comandada por Marechal Rondon, até assessor direto do presidente chileno Salvador Allende (19081973). Na esfera da política institucional, foi ministro da Casa Civil, passando por vice-governador do Rio de Janeiro, até o cargo de senador da República, quando elaborou e efetivou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação que ainda hoje vigora.
Enquanto intelectual, foi insurgente, original e provocador, produziu muito e sobre muitos temas ao longo de sua vida. Seus ensaios sobre o papel da universidade na América Latina trazem reflexões que ainda hoje se mantêm pertinentes frente aos desafios da expansão universitária e sobre o papel dessas instituições no mundo contemporâneo. Enquanto antropólogo, o livro O processo civilizatório – etapas da evolução sociocultural (1968) é um dos seus grandes contributos intelectuais, pois sintetiza seu intento em localizar a história do desenvolvimento humano, amplo e desigual, a partir da análise dos processos históricos culturais dos
povos originários latino-americanos, inaugurando assim, sua teoria sobre as origens da formação social brasileira.
Desse modo, ao situar a América Latina no processo de evolução tecnológica, social e ideológica humana, dá um passo analítico decisivo na tentativa de superar uma perspectiva histórica de orientação colonial: aquela que, mesmo que pela perspectiva de crítica, tem como premissa o início da história a partir do colonizador, descartando a história dos povos colonizados. Nesse caso, os povos indígenas, mas também os africanos, são compreendidos em seu desenvolvimento histórico-cultural, o que permite a Darcy Ribeiro interpelar a história a partir da reflexão sobre quais eram os patamares de desenvolvimento econômico e tecnológico em que estavam situados os povos indígenas e africanos no início do processo colonial.
Darcy também tem contribuições para uma sociologia latino-americana. Com escritos sobre as características específicas de formação das classes sociais na região, os padrões de dominação e a conformação das instituições sociais modernas, que produziram, segundo ele, uma forma específica de modernidade – países de dinâmicas sociais distintas das que se observam nos centros dinâmicos do capitalismo. Nesse sentido, seus contributos teóricos também o permitem refletir sobre a formação da América Latina e seu desenvolvimento histórico-cultural em relação ao desenvolvimento na Europa e nos Estados Unidos. Frente aos grandes esquemas interpretativos, segundo ele, era preciso convergir as análises das estruturas econômicas com a tessitura do processo histórico. Essa análise era, conforme Darcy, decisiva para qualquer projeto de transformação da realidade brasileira e latino-americana.
Ou seja, era preciso reconhecer que a desigualdade estrutural nos países latino-americanos e no Brasil não tinha origem nas características culturais de seus povos e muito menos uma condição histórica eterna e imutável. A América Latina poderia e deveria seguir caminho próprio na sua independência e em seu desenvolvimento econô-
Nesse sentido,
a análise global e totalizante de Darcy deve ser retomada criticamente, não como bússola, mas como referência de possíveis caminhos a serem perseguidos
mico, superando assim, tanto a dependência econômica, como a tentativa de copiar os passos dados pela Europa e pelos Estados Unidos.
Ao longo de décadas, Darcy Ribeiro seguiu entre fazeres e elaborações, quando septuagenário e abatido por um câncer que se generalizava, ainda uniu forças para apresentar aquela que é considerada sua principal obra: O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil, de 1995. Com esse volume, encerrou seu ciclo de Estudos de Antropologia da Civilização, iniciado nos idos dos anos 1960 e que conta com as obras: O Processo Civilizatório (1968); As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Cultural Desigual dos Povos Americanos (1970), em que analisou as razões do desenvolvimento desigual da América Saxônica e da América Latina, além dos romances Maíra (1976) e A utopia selvagem (1982). Esse conjunto de obras, incluindo os romances, formam os volumes de sua Teoria Geral do Brasil.
Em seu último livro, O povo brasileiro, Darcy Ribeiro permaneceu fiel à tarefa científica de investigar a natureza da formação nacional. De modo efetivo, também foi um pensador que apoiou seu pensamento prático em visões de mundo que miravam a transformação radical das estruturas sociais. Por isso defendeu um Brasil possível de se fazer melhor e mais bonito. Ou seja, menos desigual e mais diverso. Apesar da intransigência das elites nacionais e internacionais que operam para explorar a terra e o povo.
Grande parte dos temas sociais pelos quais dedicou sua reflexão ainda permanecem como flagelos da sociedade brasileira, mas sob um novo quadro. Justamente por conta do seu esforço e de sua geração, aliados da classe trabalhadora que foram, o povão teve conquistas, nos marcos legais, mas também vivenciaram avanços reais. Há miséria, fome, desigualdade, educação pública cambaleante e tantos outros aspectos sobre os quais debateu Darcy em sua vasta obra, mas há também grandes diferenças do ponto de vista das estruturas de consciência. A cidadania pelo consumo, a nova ética protestante que dá guarida aos flagelos da alma dos de baixo, a violência urbana e rural, a experiência de um partido de base popular no governo com seus êxitos e frustrações. Todos esses temas no contemporâneo só podem ser analisados, evidentemente, por uma perspectiva interseccional, tal como indicam os avolumados estudos que demonstram, dia após dia, o quão substantivo é o racismo. Nesse sentido, a análise global e totalizante de Darcy deve ser retomada criticamente, não como bússola, mas como referência de possíveis caminhos a serem perseguidos.
Marcio Farias, mestre e doutor em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é professor do departamento de psicologia social da PUC-SP, um dos organizadores do livro Darcy Ribeiro: Uma Utopia (Perspectiva, 2024). em pauta
encontros
periféricas PROTAGONISTAS
Bianca Pedrina, cofundadora do coletivo Nós, Mulheres da Periferia, fala sobre a importância da diversificação de narrativas e de um jornalismo conectado com a comunidade
POR RACHEL SCIRÉ
A jornalista Bianca Pedrina, cofundadora e diretora executiva operacional do coletivo Nós, Mulheres de Periferia, acredita que a potência das vozes e pautas de territórios vêm provocando a mídia tradicional a tratar de temas antes negligenciados.
No álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), o grupo Racionais MC’s cantou: “o mundo é diferente da ponte pra cá”. A expressão poética que se popularizou no vocabulário faz referência às particularidades da vida nas periferias, em especial na cidade de São Paulo, onde pontes sobre os rios Pinheiros e Tietê ligam os bairros periféricos ao Centro expandido. Além de contextos específicos, as periferias carregam perspectivas próprias que não costumam ser divulgadas pela mídia tradicional. Para “escrever textos e registrar histórias que não encontravam em lugar nenhum”, um coletivo de mulheres fundou, em 2014, o site Nós, Mulheres de Periferia. O texto de apresentação do projeto jornalístico traz a frase dos Racionais MCs, e ainda destaca: “mais do que notícias, o que você encontra aqui é um jeito de ver o mundo”.
Para Bianca Pedrina, cofundadora e diretora executiva operacional da iniciativa, “existe muita potência nesse ser periférico que atravessou a ponte e conseguiu acessar a universidade e outros espaços que não foram feitos para mulheres como nós”. E acrescenta: “digo que foi preciso socar a porta para conseguir entrar e fazer o jornalismo que a gente acredita”.
Bianca é jornalista e conheceu as outras integrantes do coletivo ao participar do Blog Mural (que depois daria origem à Agência Mural de Jornalismo das Periferias), projeto de treinamento de correspondentes comunitários para a produção colaborativa de conteúdos multimídia. Um artigo com o título “Nós, Mulheres da Periferia”, para o jornal Folha de S.Paulo, alcançou
repercussão e surpreendeu o grupo. “A gente entendeu que existe um vazio de representatividade, de narrativas, um silenciamento das nossas histórias e experiências. A partir disso, decidimos criar um site.” Neste Encontros, Bianca Pedrina fala sobre os princípios que orientam o coletivo, a valorização do protagonismo de mulheres negras e periféricas e a importância do diálogo com o público.
QUEBRAR BARREIRAS
Rompemos com a ideia de jornalismo distanciado da audiência. Pelo contrário, as nossas fontes eram muito próximas: mães, vizinhas, pessoas dos nossos bairros. Quando fundamos o Nós, não se falava muito sobre isso, a pauta da diversidade não era dominante. Entendemos que havia um espaço e que ele precisava de outras como nós. Por isso, a nossa linha editorial defende que quem vai falar são as mulheres negras e da periferia. Trouxemos um protagonismo que nos deu pertencimento. É muito desafiador enfrentar um sistema que não é feito para você, trazer narrativas que não são consideradas importantes. Esses desafios se perpetuam até hoje, por mais que a gente tenha se tornado referência. Continuamos sendo vistas como mulheres periféricas que fazem um jornalismo de menos qualidade e credibilidade. Sempre tentam nos colocar em um lugar de silenciamento.
JORNALISMO DE MEMÓRIA
Estamos na base da pirâmide de direitos, somos maioria e temos que contar as nossas histórias. Fazemos
um jornalismo de memória, ideia que veio muito forte quando começamos a eternizar histórias invisibilizadas. Por exemplo, com a exposição QUEM SOMOS [POR NÓS], de 2015, ou com o documentário Nós, carolinas – Vozes de mulheres das periferias (2017), a partir da vida de Dona Carolina [Carolina Augusta de Oliveira, uma das personagens do documentário]. A produção encheu salas de cinema, é exibida em escolas, permite às meninas se reconhecer. Não é qualquer coisa. É um trabalho diário manter esse pertencimento para que nossa identidade seja preservada e perpetuada.
PELO DIÁLOGO
Existem várias formas de fazer esse tipo de jornalismo que a gente defende. Preferimos seguir por um caminho de escuta, reflexivo. Temos uma linha editorial que chama a audiência para o diálogo. A gente está muito atenta ao que as pessoas pedem que seja falado a partir do nosso jeito de ver o mundo, como diz o nosso slogan. Nos provocamos em um lugar maior do que o do jornalismo, trabalhando em várias esferas da comunicação, da arte, em trocas diárias com as nossas. Queremos deixar um legado. Compartilhamos o nosso jeito de fazer por meio de formações e mentorias com jovens jornalistas, principalmente pensando em pautas que são muito caras para nós.
NOSSAS PAUTAS
O Nós não trabalha com hard news [cobertura de notícias da política, da economia e do cotidiano]. A partir dos acontecimentos
que nos atravessam, fazemos um exercício para entender como trataremos daquele tema, sempre levando em conta: gênero, raça e território. A missão é pensar qual olhar daremos ao assunto. Por exemplo: como as queimadas atingem as mulheres da periferia? Se a gente não se comunicasse, outros fariam de um jeito que, mais uma vez, reproduziria posturas inadequadas, machistas, preconceituosas, ainda presentes em tantas publicações. Então, pensamos como as nossas atividades incluem frentes de escuta, de respeito e de cuidado, trazendo as nossas histórias, e batendo de frente com temas polêmicos.
GERAR MUDANÇAS
A gente provocou a mídia tradicional com nossos temas. Já é possível ver a informação com outra
contextualização. Por exemplo: “Um menino negro foi assassinado por um policial branco” – foi uma luta para que as notícias passassem a ser contadas dessa forma. Ao mesmo tempo, outras notícias continuam pautando a realidade de maneira equivocada. Ou veículos tratam as questões de forma esvaziada, por exemplo, quando contratam duas pessoas negras para garantir diversidade na redação. Existe uma necessidade de reconhecer, de fato, os privilégios. O sistema não quer perder o poder, dar espaço, mas teve que jogar o jogo de alguma maneira e o resultado, a gente vê na publicidade. O mercado se beneficia disso, mas não quer dizer que haja uma reparação. A moda da “diversidade” passa, e a gente continua sofrendo racismo, machismo, continua pobre, vivendo em lugares extremamente precários, com o meio ambiente pedindo socorro. Esses assuntos precisam ser tratados.
A NOSSA LINHA EDITORIAL
DEFENDE QUE QUEM VAI FALAR SÃO AS MULHERES NEGRAS
E
DA PERIFERIA.
TROUXEMOS UM PROTAGONISMO QUE
NOS DEU PERTENCIMENTO.
Criado em 2014, o site jornalístico Nós, Mulheres da Periferia reúne histórias e vivências de mulheres negras periféricas em pautas relevantes no espectro nacional e internacional.
FURAR A BOLHA
Estamos em um momento em que é preciso ter muito cuidado. Nessa era dos influenciadores, todo mundo é um especialista. Tem muitas pessoas espalhando fake news e a gente vem da periferia, onde a formação escolar ainda é precária, nem todo mundo e politizado e tem criticidade sobre temas importantes. O ponto positivo é que as pessoas estão se apropriando de suas narrativas e conseguem mostrar a suas vivências na periferia, sozinhas, em suas redes. Lá atrás, a gente teve que formar um coletivo para conseguir fazer essas trocas. Buscamos estar atentas à nossa audiência e entender como é possível aprofundar um assunto, trazer outro recorte a partir de pontos que mexem muito com o
cotidiano da mulher periférica. Conseguimos furar a bolha quando geramos identificação, mas para isso é preciso estar muito próxima da audiência.
MODELO DE FINANCIAMENTO
No início, era por amor. Ganhamos dois editais do Programa VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), da Secretaria Municipal de Cultura, o que permitiu realizar tanto a exposição quanto o documentário. Então, começamos a nos organizar enquanto empresa com fins lucrativos, CNPJ... Em paralelo, nos inscrevemos em fundos internacionais de jornalismo e comunicação, e recebemos apoio de alguns deles. Com o caixa que fizemos, contratamos uma equipe, que inclui área editorial, institucional
e operacional. Também temos apoio institucional do Instituto Ibirapitanga e realizamos alguns projetos pontuais, como foi o caso da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, com diversas matérias, uma formação e um guia sobre primeiras infâncias e racismo. Prospectamos fundos e editais, nos unimos com organizações alinhadas ao nosso propósito e vamos tentando a nossa sustentabilidade, mas ainda é muito difícil.
DO NOSSO JEITO
Sempre cuidamos muito para não reproduzir modelos empresariais. Adotamos um que funciona do nosso jeito, no qual equilibramos as demandas organizacionais e pessoais. Acredito que acertamos, especialmente em um lugar onde a gente ainda é muito desrespeitada enquanto mulher, por não entenderem os atravessamentos todos, a tripla jornada. Todas as mulheres trabalham de casa e tentamos fazer reunião de planejamento pelo menos uma vez por ano. Tudo é muito conversado, a gente analisa e avalia as pautas com mais fôlego. Isso ajuda no cuidado com a equipe, em termos de saúde física e mental. Os processos têm uma cadência em que uma passa o bastão para a outra. A maior parte da nossa equipe está com a gente há bastante tempo, e isso mostra que temos feito um bom trabalho nesse lugar, para que as pessoas queiram continuar. Além do trabalho, temos um propósito.
A jornalista Bianca Pedrina esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 25 de setembro de 2024. A mediação do bate-papo é de Ana Cristina Pinho, do Sesc Digital.
inéditos
TRANÇAS
POR MAY SOLIMAR
May Solimar é uma mulher negra, mãe, publicitária, designer, ilustradora e quadrinista. Em suas artes, ela aborda pautas raciais, sociais e de gênero, com o intuito de trazer à tona situações e narrativas que levantem reflexões e debates sobre os temas retratados. Em 2023, participou da mesa de debate Quadrinhos Negros, no Museu AfroBrasil, e em 2024, esteve no debate Artes, Ativismo e Desigualdades, realizado pela OXFAM Brasil. Foi quadrinista na Alma Preta Jornalismo, entre 2023 e 2024, já ilustrou capas e páginas de algumas obras literárias e HQs Afrofuturistas.
depoimento
BICHO DE PALCO
Movido pela inquietação, Paulo Miklos aposta na versatilidade para seguir sua vocação de estar em cena, seja na música, no teatro ou no audiovisual
POR
LÍGIA SCALISE
Quando garoto, Paulo Miklos passava horas olhando pela janela. Queria ganhar o mundo. Nascido e criado no Centro de São Paulo, filho de um médico de uma dona de casa, desde cedo revelou talento para a música e parecia pressentir as aventuras e a intensidade da vida que o aguardavam. Lançou-se como vocalista, multi-instrumentista e compositor da banda Titãs, nos anos 1980. Ao lado de amigos do colégio, Miklos percorreu o Brasil, participou de programas de TV e fez sucesso com composições provocativas e apresentações performáticas.
À medida que os Titãs se firmavam como um dos principais grupos de rock nacional, Miklos revelava suas múltiplas facetas artísticas. Em 1994, lançou o primeiro álbum solo, Paulo Miklos, no qual assina letras e produção das faixas. Seu segundo álbum solo, Vou ser feliz e já volto, é de 2001, mesmo ano em que estreou como ator no cinema, no papel do matador de aluguel Anísio, no filme O invasor, de Beto Brant, trabalho que lhe rendeu prêmios de atuação no Festival de Brasília e no Grande Prêmio BR de Cinema Brasileiro. Hoje já são mais de 20 filmes – entre os recentes, Saudosa maloca (2024), no qual interpreta o sambista Adoniran Barbosa (1910-1982), e Estômago 2: o poderoso chef (2024).
Miklos também foi parar no teatro, onde interpretou o trompetista
Chet Baker (1929-1988), a lenda do jazz norte-americano, no espetáculo Chet Baker, apenas um sopro, de
No encerramento do Festival Sesc Thermas do Rock, em julho deste ano, o músico apresentou sucessos da carreira e de referências, como Raul Seixas e Erasmo Carlos.
depoimento
2016. Outra surpresa da carreira foi a boa aceitação pelas crianças do vilão Gonzales, papel de Miklos no longa Carrossel (2015). É justamente essa imprevisibilidade que o nutre como artista.
“Sou assim mesmo, gosto de mudar de assunto, fazer coisas diferentes. Estar em movimento é algo que me renova a vida.”
Após mais de 40 anos de carreira, e aos 65 anos de idade, Paulo Miklos celebra seus projetos atuais: o recém-gravado álbum Paulo Miklos ao vivo e a turnê nacional de Paulo Miklos canta Adoniran, no qual resgata clássicos do samba de Adoniran Barbosa. Neste Depoimento, Miklos relembra sua trajetória e fala sobre o desejo constante de se arriscar em nome da realização artística. “Da minha carreira pode-se esperar tudo, até mesmo aquilo que eu nem imagino.”
piano
A música sempre esteve presente na minha casa. Aos 13 anos, já tocava violão, mas comecei a pedir um piano ao meu pai. Ele alugou um piano baratinho e me matriculou em aulas com uma professora que morava na esquina da nossa casa. Eu amava passar as tardes, depois da escola, martelando aquelas teclas, mas acabei deixando de lado as lições da escola. O resultado? Minhas notas começaram a cair, e meu pai acabou tirando o piano de mim. Fiquei tão deprimido que minha avó me presenteou com uma flauta doce por puro consolo. Até que descobri algo óbvio: eu podia levá-la comigo para qualquer lugar. Por volta dos meus 20 anos, conheci uma galera da Bahia, que me deixava improvisar solos de flauta no começo e no fim das músicas. Foi a convite deles que participei da banda como arranjador, no festival
da extinta TV Tupi, em 1979. Eu me vi ao lado de artistas que tanto admirava, como Caetano Veloso, Jorge Ben, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção (1949-2003) e Walter Franco (1945-2019). Eu me diverti muito e estreei na TV como músico.
titãs
Eu morria de tédio com as regras rígidas do colégio onde estudava. Então, quando ouvi falar de um colégio que realizava festivais e participava de circuitos de música universitária, fiquei maluco para estudar lá. Em 1976, mudei para lá. Nem nos meus melhores sonhos eu poderia imaginar que assistiria a shows dos Novos Baianos, Alceu Valença, Gilberto Gil, entre outros ídolos, no pátio da escola. Foi ali também que conheci Arnaldo Antunes, Sérgio Britto, Branco Mello, Marcelo Fromer (1961-2001), Ciro Pessoa (1957-2020) e Nando Reis. Tony Bellotto e Charles Gavin não estudaram com a gente, mas frequentavam as reuniões do centro cultural e acabaram se juntando a nós. Formamos o grupo Titãs com o diferencial de ter essa pegada autoral e criativa, além da força do coletivo. Nosso primeiro show oficial aconteceu em 1982, no Sesc Pompeia. Confesso que não acreditava que tudo isso iria se transformar no que se transformou. O sucesso da banda sempre me surpreendeu.
disciplina
Apesar de tudo ser muito divertido, nosso trabalho na banda era levado muito a sério. Ensaiávamos exaustivamente todas as manhãs, sempre no horário combinado. Não havia um líder ou um vocalista principal. Todos os integrantes precisavam ensaiar para tocar, cantar e performar na sua vez. Tínhamos um compromisso com
a precisão e a excelência. Embora fosse uma banda de amigos, o desejo de sermos um grupo profissional era forte. Quando o Arnaldo saiu, a primeira coisa que pensamos foi: “Pô, mas peraí, pode sair?”. Aquele sonho meio ingênuo de criança acabou ali. Os Titãs precisavam continuar. O mesmo espírito de seguir em frente nos dominou quando perdemos o Marcelo, que morreu tragicamente em 2001. A força do grupo vinha disso: sempre havia um para apoiar o outro. Apesar de ser apaixonado pela participação em grupo, eu também sentia uma inquietação de fazer meus trabalhos como artista independente. Enquanto estava nos Titãs, lancei meus dois discos solo, estreei no cinema e comecei a trabalhar com audiovisual. Tentei equilibrar as duas carreiras, até que senti a necessidade de ser dono do meu próprio tempo.
fama
Mesmo sendo apaixonado pela música, eu não imaginei que faria carreira nela. Meus pais queriam
que eu cursasse uma faculdade, então, primeiro, prestei vestibular para psicologia. O trote que recebi foi, digamos, “psicologicamente terrível”, tanto que fui à faculdade por apenas uma semana e nunca mais voltei. Depois, me matriculei em filosofia, mas não passei do primeiro ano. Por fim, decidi encarar a música como profissão e entrei na ECA [Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP)]. Passei um ano estudando, mas percebi que aquele ambiente não era para mim. Depois que gravamos o primeiro disco dos Titãs, então, virou uma loucura total e sem volta. “Sonífera Ilha” foi um sucesso e nos catapultou para o cenário nacional. Começamos também a investir nas coreografias. E isso fez um enorme sucesso. Com os Titãs, tive a vantagem de ser famoso sem nunca sentir que estava botando a cara para bater sozinho. Tudo era feito em grupo o tempo todo. A fama pela fama é totalmente vazia, mas o reconhecimento de um trabalho bem feito é algo espetacular.
EMBORA
MUITOS VEJAM AS
CARREIRAS DE MÚSICO E ATOR COMO DISTINTAS, PARA MIM, ELAS TÊM A MESMA
ESSÊNCIA. SER MÚSICO É SER INTÉRPRETE, E ATOR TAMBÉM.
intérprete
Eu me considero um “bicho de palco”. Adoro provocar, instigar e brincar com o público. Embora muitos vejam as carreiras de músico e ator como distintas, para mim, elas têm a mesma essência. Ser músico é ser intérprete, e ser ator também. Meu primeiro convite para atuar veio do Beto Brant, que havia dirigido clipes dos Titãs. Ele me viu performando com um pedestal de microfone como se fosse uma cruz nas costas e teve a coragem de me convidar para seu filme, O invasor. Atuar se tornou uma paixão avassaladora. O teatro surgiu para mim em 2016, quando interpretei o trompetista de jazz na peça Chet Baker, apenas um sopro, dirigida por José Roberto Jardim. Eu amo interpretar, amo um palco. É isso que sou, um pouco de tudo e com um enorme desejo de abraçar novas experiências. Para mim, tudo acontece simultaneamente porque é assim que eu gosto de viver.
adoniran
O desafio de dar vida ao Adoniran Barbosa me cativou profundamente. Foi um presente me ver vestido com aquela gravatinha, resistindo ao “pogréssio” e falando em “adonirês”. São tantas as camadas desse personagem, e o que eu mais queria era construir o meu próprio Adoniran. Conversei muito com o diretor Pedro Serrano pelo receio de cair na armadilha de imitar o sambista. Acho que consegui um bom resultado. Eu, ao menos, me diverti. Depois do filme, estreei no Sesc Pinheiros a turnê nacional Paulo Miklos canta Adoniran, acompanhando os bambas do samba paulistano. Sinto-me honrado, e com uma certa licença poética, por ser um roqueiro cantando samba. As pessoas têm a mania de colocar os outros em caixinhas, mas eu estou aqui para sair da caixa. Para mim, tudo faz parte da realização artística. O que
me motiva a aceitar um projeto é o desafio que ele apresenta. É essa imprevisibilidade que dá tempero e não enjoa, pelo menos para mim. Acredito que temos que estar prontos para agarrar as oportunidades quando elas surgem e se lançar com coragem.
aprendizados
Fiquei viúvo e perdi minha mãe e meu pai em um período de um ano e meio. Isso dá uma sacudida em qualquer um. Tive que aceitar que os momentos difíceis fazem parte do amadurecimento e transformam muito a gente. Meus lutos me ensinaram sobre a finitude e a importância de cuidar das nossas relações. A vida é um constante recomeço. Tive que me refazer e reconstruir minha história. O amor é a força vital que nos impede de desanimar. Meu maior aprendizado foi acreditar que tenho o direito de ser feliz. Quando olho para trás, vejo uma trajetória muito bonita, cheia de entrega, batalhas e muitas aventuras interessantes. Me sinto realizado pelo que fiz. E quando olho para o futuro, quero enfrentar novos desafios com a mesma vontade de sempre. Essa é a graça da vida. Como canto em “Todo querer”, o que importa é “viver como se deve, mesmo que seja breve”.
Assista a trechos dessa entrevista gravada na casa do artista Paulo Miklos, em São Paulo, em julho de 2024.
Com o figurino do show Paulo Miklos canta Adoniran (Barbosa), sambista que o músico interpretou no filme Saudosa maloca (2024).
ALMANAQUE
Se essa rua fosse minha
Conheça cinco bairros da capital paulista que categorizam suas vias por nomes de frutas, flores, corpos celestes, mulheres e temas natalinos
POR LUNA D’ALAMA FOTOS ADRIANA VICHI
Prestes a completar 471 anos, em janeiro de 2025, a cidade de São Paulo tem mais de 48 mil ruas, avenidas, pontes e praças oficiais. Mais de 80% das vias, porém, ostentam nomes de homens que já morreram e foram considerados importantes em suas respectivas áreas. É o que aponta um levantamento feito pelo jornal Folha de S.Paulo em 2019, a partir de dados do Dicionário
de Ruas, serviço da Prefeitura da capital paulista, e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Embora os exemplos ainda sejam escassos, a cidade reúne ruas e avenidas batizadas com nomes temáticos, curiosos e, também, de mulheres. Conheça, a seguir, cinco bairros – três na zona Sul e dois na Leste – que concentram denominações curiosas e criativas para seus logradouros. Bom passeio!
É comum "andar com a cabeça na Lua" pelas ruas da Cidade Satélite Santa Bárbara, na zona Leste de São Paulo: vias fazem referência a corpos celestes que habitam o espaço sideral.
CIDADE-SATÉLITE
Na astronomia, são chamadas de corpos celestes as matérias que se encontram no espaço sideral, como planetas, estrelas, cometas, asteroides, meteoros, meteoritos e satélites. Distante 23 quilômetros da Praça da Sé – e a muitos anos-luz de corpos celestes do Universo – está a Cidade Satélite Santa Bárbara, pertencente à Subprefeitura de São Mateus, na zona Leste de São Paulo. No mapa, o bairro começa após um entroncamento entre as avenidas Sapopemba e Adélia
Chohfi. Lá, as ruas e avenidas foram batizadas com nomes de galáxias (Via Láctea, Andrômeda), constelações (Ursa Maior, Ursa Menor, Perseu, Austral e os 12 signos do zodíaco), estrelas (Sol, Sirius, Antares), luas de planetas como Saturno (Rhéa, Titan, Mimas, Tétis, Hipérion), de Marte (Phobus), de Júpiter (Amalthéa) e de Urano (Oberon, Umbriel), entre outros. Algumas vias receberam nomes mais genéricos, como Satélite, Estrelas, Galáxia e Nebulosas.
ALMANAQUE
O BOM VELHINHO
Em Parelheiros, no extremo sul paulistano, onde fica o Jardim Papai Noel. O bairro está localizado a cerca de 40 quilômetros do Centro da cidade, em uma área quase rural. Entre os logradouros que fazem menção à data do nascimento de Jesus Cristo estão as ruas Natal, Belém e Vinte e Cinco de Dezembro. No fim de 2021, a revista piauí publicou uma reportagem intitulada “Um Natal de fome no Jardim Papai Noel”, destacando que, numa época em que muitas pessoas montam ceias fartas e trocam presentes, os moradores mais pobres dessa região periférica muitas vezes não têm o que comer, numa triste contradição com o próprio nome do bairro.
V DE (NOVA) VITÓRIA
Além de abrigar ruas batizadas com nomes de aves (gaivota, curió e uirapuru) e regiões serranas brasileiras (Serra Vermelha, das Pinturas, do Recreio, da Cachoeira e dos Milagres), o Jardim Nova Vitória I, pertencente à Subprefeitura de São Mateus, na zona Leste da cidade, reúne uma série de vias que homenageiam mulheres cujos nomes começam com a letra “v”. Valéria, Valkíria, Vânia, Valdirene, Valentina, Valdete, Vanessa, Vanusa, Vanderléia, Veruska, Viviane, Violeta, Vitória. E a lista continua: Valda, Vanadia, Valdelice, Viena, Vilza etc. Fica difícil saber se mulheres com todos esses nomes já viveram no bairro. Mas certamente, há moradoras com a letra “v” por lá atualmente.
Todo dia é Natal em Parelheiros, zona Sul da cidade de São Paulo: basta atravessar as ruas do bairro Jardim Papai Noel.
O que não falta no Jardim Nova Vitória I, na zona Leste da cidade, é sugestão de nomes femininos com a letra "v".
SALADA DE FRUTAS
Entre as represas Billings e Guarapiranga, na zona Sul de São Paulo, nasceu em 1988 o bairro Vila Natal, a partir de uma fazenda loteada cujas propriedades começaram a ser vendidas num mês de dezembro – daí a referência a esse período do ano. Mas, em vez de terem nomes relacionados ao Papai Noel e a outras inspirações natalinas, as ruas do bairro fazem menção a frutas – a maioria, tropicais. Laranja, banana, maracujá, mamão, abacaxi, goiaba, carambola, morango, tangerina (e sua variação mexerica), ameixa e até a não tão conhecida abricó. Todas as vias ganharam também o “sobrenome” Natal. Então, chamam-se: Laranja Natal, Banana Natal, e assim por diante. A Vila Natal é um bairro do distrito do Grajaú, pertencente à Subprefeitura da Capela do Socorro, e concentra mais de 40 mil habitantes.
TODAS AS FLORES
Integrante do distrito da Saúde, na zona Sul de São Paulo, o bairro de Mirandópolis é uma região bem residencial, tranquila e arborizada, envolta de praças. A natureza está presente também nos nomes das ruas, inspiradas em palavras indígenas e em flores. Rosas, violetas, orquídeas, jasmins, camélias, azaléas e narcisos são as mais populares. Mas o espaço nos convida a despertar o botânico que há em nós para conhecer também tílias, bogaris, heliotrópios, entre outros exemplares. Próximo à Vila Mariana, à Vila Clementino e ao Planalto Paulista, Mirandópolis também fica a apenas três quilômetros de distância do Parque Ibirapuera.
Na Vila Natal, zona Sul de São Paulo, a contradição de ruas pouco arborizadas com nomes de frutas.
O sabor de aprender
Quando recebi o convite de uma das instituições sociais atendidas pelo Sesc Mesa Brasil para participar de uma ação educativa que eles iriam desenvolver, não imaginei que viveria uma experiência tão rica em sabores e ensinamentos. Ao chegar lá, o ambiente estava cheio de energia, e o entusiasmo de crianças e adolescentes era contagiante. Eles estavam em duplas, com aventais coloridos e sorrisos largos, prontos para se aventurar em suas criações culinárias. Meu papel? Ser uma das juradas em uma competição de sanduíches.
Logo percebi que aquela tarde seria muito mais do que uma simples degustação. À medida que as duplas iam apresentando suas receitas recheadas de criatividade, percebi o quanto cada detalhe importava para eles. Cada ingrediente era escolhido com cuidado, a quantidade dos molhos era discutida com seriedade, e a apresentação do prato era tratada quase como uma obra de arte. Alguns estavam mais tranquilos, confiantes em suas escolhas, enquanto outros tremiam de nervosismo, ajustando e reorganizando os elementos no prato até o último segundo.
O que mais me marcou naquele dia foi a dedicação minuciosa das crianças: eles me explicavam suas escolhas com alegria, compartilhando algo que haviam elaborado com cuidado. Não era apenas uma competição; era uma oportunidade de aprendizado, troca e construção coletiva do saber.
Enquanto eu observava o comprometimento deles na tarefa proposta, pensei no quanto as doações de alimentos para a instituição contribuem para esses momentos. Graças a
essas doações, o cardápio das crianças é complementado, permitindo que elas experimentem novos sabores e tenham contato com alimentos que, muitas vezes, não fazem parte do seu dia a dia. A atividade proposta pela atividade representava uma oportunidade de vivenciar a alimentação de uma forma diferente, aprendendo sobre combinações, nutrição e até sobre criatividade na cozinha.
Lembro-me de um momento específico, em que uma das duplas, visivelmente ansiosa, me observava atentamente enquanto eu dava a primeira mordida. Eles tinham feito questão de ajustar a quantidade exata de molho, preocupados que não fosse nem demais nem de menos. Naquele instante, mais do que a comida, eu via o esforço deles, o trabalho em equipe e o prazer de realizar algo que importava. Aquilo me fez refletir sobre o poder da educação alimentar e de como essas experiências práticas podem despertar habilidades, senso de responsabilidade e até novas formas de ver o mundo.
Ao final da atividade, fiquei pensando em como uma vivência simples pode impactar não só as crianças, mas também a mim. A cada sorriso e a cada sabor cuidadosamente equilibrado, percebi a importância de estar ali, vivenciando o trabalho de perto, sentindo a motivação e a disposição deles.
É esse tipo de experiência que me inspira a continuar ressaltando o valor do que fazemos no cotidiano. Aquele dia me ensinou que, muitas vezes, são as pequenas ações que deixam as maiores marcas. Sempre que retorno à instituição, lembro dessa atividade e da lição valiosa que aprendi: mais do que ensinar, estamos ali para aprender juntos. Essa troca é o que me motiva a seguir em frente, alimentando cada dia com novos sabores.
Sheila Travain é nutricionista e mestranda em Ciências da Saúde pela USP. Atua como coordenadora do Sesc Mesa Brasil na unidade do Sesc Carmo.