Muito prazer, meu primeiro disco #5 leci brandão
Neste março de 2021, o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) divulgou os resultados de um levantamento sobre a presença feminina no mercado da música no Brasil na última década. Ainda que uma honesta equidade de gênero pareça distante – dos quase R$ 950 milhões distribuídos em direitos no ano de 2020, apenas 7,1% foram destinados a mulheres –, há indicadores alentadores. Se em 2010 o Brasil tinha cerca de 23 mil compositoras registradas, no ano passado este número chegou a 365 mil, o que representa um aumento de 1.474%. Bem antes, na virada da década de 1960 para a de 1970, quem quisesse se lançar em uma carreira artístico-musical dependia da chancela dos diretores das grandes gravadoras (em sua maioria, homens brancos). Assim, contavam-se nos dedos das mãos as oportunidades dadas a compositoras que fossem mulheres e negras.
Uma daquelas precursoras nasceu na Estrada da Portela, em 1944, foi criada em Vila Isabel, morou em três escolas públicas e logo na juventude, antes mesmo de compor sua primeira canção, compreendeu o quão estruturais e cruéis eram (e ainda são) o racismo e o machismo na sociedade brasileira. Ao se candidatar a empregos cujos anúncios das vagas exigiam “moças com boa aparência” – sendo descartada em todos –, percebeu que a recusa das empresas nada tinha a ver com estética, mas com a cor de sua pele preta. Quinta convidada do “Muito Prazer, Meu Primeiro Disco”, aos 76 anos Leci Brandão da Silva falou a esta série não apenas sobre seu álbum de estreia, “Antes que eu volte a ser nada”, de 1975. Num depoimento rico em informações e emoções, contou sobre sua formação, passeou por toda sua trajetória artística, chegando também a tempos mais recentes. Reeleição após reeleição, desde 2010 ela atua como deputada estadual pelo PCdoB. Sendo apenas a segunda mulher negra na história da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, repete na política o mesmo pioneirismo que teve no meio musical. E não há como ignorar aqui o quão longa foi a jornada de Leci Brandão até a seu début no mercado fonográfico. Afinal, foram dez anos entre a primeira composição (a ainda ingênua “Tema de amor de você”) e a gravação de seu primeiro LP. Neste caminho, algumas passagens foram marcantes. A começar pela estreia na TV, em 1968, – enquanto trabalhava como atendente de consertos na Companhia Telefônica Brasileira – cantando “Minha mensagem” no programa de calouros “A grande chance”, apresentado por Flávio Cavalcanti.
Depois, com atuações de destaque com músicas de sua autoria em festivais como o da Universidade Gama Filho (instituição em que ela ganhara uma bolsa para estudar Filosofia, e cantou o samba “Cadê Mariza”, posteriormente gravado em seu álbum inaugural), o Abertura, da TV Globo (com “Antes que eu volte a ser nada”, que não apenas seria incluído no repertório, como também batizaria seu primeiro disco), e o 2º Encontro Nacional de Compositores de Samba (em que ela tirou o primeiro lugar ao apresentar “Quero sim”, parceria sua com Darcy da Mangueira, de 1973). Dois anos antes, na esteira de uma trilha que começara a ser desbravada por Carmelita Brasil desde a década de 1950, na Unidos da Ponte, e por Dona Ivone Lara, a partir dos anos 1960, no Império Serrano, Leci tornou-se a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores da Mangueira. Levada até lá por Zé Branco, teve de encarar um ano de testes, compondo sambas de terreiro, os chamados sambas de quadra. A ligação com a Estação Primeira, porém, vinha de longe; sua avó, sua madrinha e sua mãe, Dona Leci de Assunção Brandão, desfilavam na ala das baianas da escola havia anos. Desde que despontou nesse métier musical, Leci acostumou-se a dar nós na cabeça e nos ouvidos de quem a escutava, fosse nas apresentações na “Noitada de Samba”, do teatro Opinião, fosse no espetáculo Unidos do Pujol, ambos realizados na elitizada Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, fosse na Mangueira. Com um olhar revelador e preconceituoso as pessoas não entendiam como aquela jovem franzina que não tocava nenhum instrumento de harmonia era capaz de conjugar em suas composições erudição e popularidade.
Sob esse ponto de vista, provavelmente eram as mesmas cabeças que tinham ouvido outros ícones mangueirenses como Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Cartola, Geraldo Pereira e Nelson Sargento sem entender absolutamente nada. Via rádio, discos de 78 rotações e, depois, pelos LPs de 10 e de 12 polegadas levados para a casa de cômodos por seu pai, Antonio Francisco da Silva, a escuta musical de Leci Brandão foi valiosamente moldada por nomes relembrados por ela mesma. De Doris Day a Jamelão, de Bienvenido Granda a Carmélia Alves, passando por Jackson do Pandeiro, Elizeth Cardoso, Luiz Gonzaga, Dalva de Oliveira, Geraldo Pereira e Angela Maria. Ouvia-se de tudo: boleros, sambas, valsas, choros, baladas americanas, baiões. E, sobretudo, dançava-se. Portanto, era absolutamente natural que em 1975, quando Leci entrasse nos estúdios Hawai para gravar seu primeiro LP – pela Marcus Pereira, mesma gravadora que um ano antes lançara o seminal álbum de Cartola –, toda aquela musicalidade apreendida durante a infância e a juventude desaguasse nas 12 faixas de “Antes que eu volte a ser nada”. Principalmente em termos de originalidade nas linhas melódicas. Pois caso alguém ainda duvide, bote para tocar “Pensando em Donga”, choro-canção de Leci que perdura por mais de 45 anos sem perecer. Se alguns versos de sambas daquele álbum, como os de “Antes que eu volte a ser nada” e de “Pudim de queijo”, soam hoje um pouco datados por descreverem um papel de subserviência doméstica da mulher em relação ao homem – pudera, naquela época não se debatiam de forma tão ampla e acessível tais dinâmicas e comportamentos –, outros permanecem atualíssimos. Basta ouvir, por exemplo, “Ele, o compositor de samba” (“Todo mundo gosta dele/ Diz que o nome dele é uma
sensação/ Mas ninguém sabe que o bolso dele está sempre vazio/ Não tem um tostão”) ou “Grêmio Recreativo Escola de Samba” (“Vou fundar uma escola de samba/ De pouca riqueza e muita verdade/ Com gente valente e força de vontade/ Será muito mais do que simples diversão”). O compromisso com questões sociais, com o respeito às liberdades individuais e com o combate ao preconceito e às desigualdades de todas as ordens, que se firmaria como traço marcante na obra e na trajetória de Leci Brandão – com as conhecidas “Assumindo”, “Deixa, deixa”, “Vamos ao teatro”, “Isso é Fundo de Quintal” e, claro, “Zé do Caroço” –, já se fazia presente desde seu primeiro disco. Isso tudo, é importante lembrar, sob a censura de um regime militar que, além de torturar e matar quem pensava diferente, prometia um “milagre econômico”, mas ampliava o abismo entre os grandes centros e as periferias. Seguindo o espírito gregário tão inerente ao universo do samba, Leci teve ainda a sabedoria louvável – ladeada do produtor Zeno Bandeira, do jornalista Sérgio Cabral e do maestro e arranjador Ivan Paulo – de incluir em seu repertório sambas de compositores ligados a diferentes agremiações carnavalescas. De Padeirinho da Mangueira, ela gravou o dolente “A mais querida” (com destaque para o fraseado jazzístico da guitarra de Hélio Capucci). De Toco da Mocidade, “Flor esmaecida”, e de Dedé da Portela e Sérgio Fonseca, “Meu dia de graça”. E, também, “Pranto colorido”, parceria dela com Jorginho Pessanha, que conhecia o Império Serrano desde o berço por ser, afinal, filho do lendário Mano Décio da Viola. Outra prova de que a rivalidade entre as escolas não ultrapassava os limites dos desfiles na Avenida Presidente Vargas era “Pra Vilma Nascimento”, samba de Leci Brandão dedicado à porta-bandeira portelense com tal achado poético: “Um dia alguém
lhe perguntou/ Como o mestre-sala abordava a sua companheira/ Vilma simplesmente afirmou/ Como o beija-flor beija a roseira”. Por fim, encerrando o álbum, abria-se espaço para uma composição assinada por outra mulher, também considerada uma revelação naquele momento, Sueli Costa, autora de “Simples pessoa”. Como se não bastasse a veia para compor letra e música – e a coragem de apresentar suas criações em ambientes predominantemente masculinizados –, Leci ainda se revelou cantora capaz de combinar afinação, delicadeza e potência em uma mesma interpretação. Sua obra foi cantada por Emílio Santiago, Martinho da Vila, Jair Rodrigues, Zezé Motta e, de geração em geração, seguiu sendo regravada por Mano Brown, Xenia França, Seu Jorge, Mariana Aydar, Art Popular e Teresa Cristina. A despeito de tanta desgraça que insiste em rondar o Brasil, não há o que faça com que Leci Brandão volte a ser “nada”. De forma inapagável, ao lado de Dona Ivone, Clementina, Alcione, Clara, Beth e Jovelina seu nome permanece intacto, altaneiro como um farol, na história da música popular brasileira. Por Lucas Nobile