Prรกxis PSI Vol. 2 - Nยบ 2 - 2013
Práxis PSI Vol. 2 - Nº 2 - Jan./Dez. 2013
Três de Maio
ISSN versão eletrônica 2318-0560
Práxis PSI
Três de Maio
v. 2
n. 2
p.1-x
jan./dez 2013
2013, Sociedade Educacional Três de Maio
Secretária Luthiane Pisoni Godoy
Editora Rita de Cássia Maciazeki Gomes (Universidade do Porto)
Revisão de Português Vanessa Salapata e Scheila Paula Zorzan
Editora Assistente Carolina Duarte de Souza (UFSC)
Revisão de Inglês Erikson Kaszubowski
Comissão Editorial Lilian Ester Winter (SETREM) Scheila Paula Zorzan (SETREM)
Revisão de Normas ABNT Carolina Duarte de Souza
Consultores Ad Hoc Carina Nunes Bossardi (UFSC) Elisabete Andrade (UNIJUI) Elisangela Boing (UFSC) Erikson Kaszubowski (UFFS) Maria Isabel Caminha (UFSC) Iranice da Silva (Universidade do Estado da Bahia) Janete Patzold (UNOESC/SETREM) Jeane Borges (IENH/UFGRS) Jeferson Passig (IBES/SOCIESC) Manuela Lanius (UERJ) Marcia Alves (UNISINOS) Nádia Rocha Veriguine (UNIASSEL VI/FAMEBLU E FURB) Oriana Hadler (Centro Universitário Metodista - IPA/UFGRS) Paulo Marques (UFPel) Raquel Bertoldo (Cis, ISCTE-IUL Lisbon University Institute Samara da Silva (UFSM) Solange Schorn (UNIJUI)
Projeto Gráfico Paulo Vitor Daniel Imagem de capa Leandro Machado Bibliotecária Responsável Rosimere Marx Griebler - CRB 10/1425
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) P919 Práxis Psi [recurso eletrônico] / Sociedade Educacional Três de Maio, Faculdade de Psicologia – Ano 1, v. 1 (2013) – Três de Maio: Setrem, 2013-
Modo de acesso : Internet <http://www.setrem.com.br/38-psicologia> Periodicidade anual ISBN 2318-0560 l. Psicologia. 2. Orientação profissional. 3. Saúde pública. 4. Psicologia infantil. 5. Psicologia do trabalho. 6. Psicologia existencial. I. Sociedade Educacional Três de Maio. II. Faculdade de Psicologia.
CDU 159.9
Bibliotecária Responsável: Rosimere Marx Griebler - CRB 10/1425
Sumário Editorial Psicologia Mestiça: os (des)caminhos de uma Psicologia em composição e implicada com as questões contemporâneas Rita de Cássia Maciazeki Gomes
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Artigos Entre o Prazer e a Dor, a Subjetividade no Trabalho Between Pleasure and Pain, the Subjectivity at Work Ana Paula Benatti, Silvana Aparecida Desordi
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Psicologia na Educação Infantil: características da produção científica nacional e internacional Psychology in Early Childhood Education: Characteristics of national and international scientific production Carolina Duarte de Souza, Viviane Vieira, Mauro Luis Vieira, Maria Aparecida Crepaldi
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O Amor de Transferência na Clínica Psicanalítica e no Symposium de Platão Transferential Love in the Psychoanalytic Clinic and in Plato's Symposium Erikson Kaszubowski
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O Conceito Freudiano de Desejo Inconsciente: Implicações no Entendimento das Sintomatologias Contemporâneas Freud´s Concept of Unconscious Desire: Implications for Understanding Contemporary Symptomatologies Jefferson Silva Krug, Paula Kegler
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Perfil da clientela atendida numa clínica-escola de Psicologia do interior do Rio Grande do Sul Clientele's profiles of a clinic-school of Psychology of interior of Rio Grande do Sul Manuele Giacomelli , Ana Patrícia Griebler , Ana Paula Benatti , Mariléia Alflen, Jeane Lessinger Borges
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Sentidos da Integralidade no Fazer Psicológico em Saúde Pública Senses of Completeness in Psychology Work in Brazilian Public Health Ivânia Jann Luna
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Satisfação na Escolha Profissional: Jovens que Passaram por Orientação Profissional Satisfaction in Professional Choice: Youth who passed for Vocational Guidance Marjane Bernardy Souza, Augusta Cheuiche de Souza
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Grupos de Reflexão Segundo Contribuições da Psicologia Existencial Reflection Groups According to the Contributions of Existential Psychology Tatiane Baggio, Rossane Frizzo de Godoy
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Editorial Psicologia mestiça: os (des)caminhos de uma Psicologia em composição e implicada com as questões contemporâneas A Revista Práxis PSI em seu segundo número renova seu compromisso social, com a formação em Psicologia, ao propor discussões de temas relevantes associados ao fazer da Psicologia na contemporaneidade. Dentre as tantas psicologias, enfocamos uma Psicologia voltada aos pressupostos de uma ciência em constante construção, em processo, por isso inacabada. Emerge associada as ideias de uma Psicologia mestiça que se compõem a várias mãos, na multiplicidade de olhares e na diversidade do pensar. Psicologia que adota como pilar de sustentação a propositura à uma escuta do sujeito e das relações que se dão em meio aos contextos sócio-histórico, econômico, político e cultural. Psicologia que, perpassada por um tempo acelerado, associado as novas tecnologias e a emergência de massivas manifestações populares que ocuparam as ruas, no último período, se dispõem a escutar as diferentes vozes. Psicologia que, atenta a este pulsar, desafia-se constantemente, a cada momento, e busca um distanciamento de uma concepção positivista de ciência, na qual o caminho da certeza, da objetividade, da neutralidade, da verdade e da generalização se fazem presentes, de modo majoritário. Psicologia que, ao escolher realizar seu caminho por trilhas diversas e minoritárias encontra no desassossego o aguçar da curiosidade, a ética, a estética e a política como dimensões fundamentais de uma práxis que se volta ao encontro com o outro. A Psicologia como ciência do inacabado, reconhece a necessidade do compartilhar e realizar trocas. Não retrocede diante do diferente, segue em busca de interfaces com outras áreas do conhecimento nos diferentes âmbitos de atuação do(a) psicólogo(a). Acredita que a diversidade não virá enfraquecê-la, ao contrário irá fortalecer práticas que dialoguem com as questões atuais. Os artigos desta edição trazem uma fração dessas discussões. Nos remetem a refletir sobre o cotidiano do mundo do trabalho, as produções científicas e o cotidiano da educação infantil, questões referentes a clínica contemporânea, o perfil da clientela que busca atendimento em uma clínica-escola, os sentidos da integralidade na atuação do profissional de psicologia junto a saúde pública, questões referentes a satisfação na escolha profissional e experiência com grupos de reflexão na reabilitação de pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica. Temas que nos instigam, enquanto psicólogos(as), a construção de uma psicologia plural voltada às demandas sociais e as questões emergentes que nos convocam a uma postura ética e política a que devemos estar imbuídos em nossos estudos e produções acadêmicas, bem como, nas intervenções cotidianas de nossa Práxis PSI. Boa leitura!
Rita de Cássia Maciazeki Gomes Editora I Mestre em Psicologia Social e Institucional - UFRGS. Doutoranda em Psicologia pela Universidade do Porto, Portugal, Bolsista CNPq - Brasil.
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Entre o Prazer e a Dor, a Subjetividade no Trabalho Between Pleasure and Pain, the Subjectivity at Work I
Ana Paula Benatti , Silvana Aparecida Desordi RESUMO Trata-se de um artigo de revisão bibliográfica acerca do tema prazer/sofrimento no trabalho. A fundamentação teórica é predominantemente psicanalítica, tendo como autor de referência o Psiquiatra e Psicanalista francês Cristophe Dejours que trabalha a temática envolvendo a psicopatologia e psicodinâmica do trabalho. O principal objetivo deste estudo é compreender o sujeito em seu ambiente de trabalho e a dinâmica organizacional envolvida, pensando a díade prazer/sofrimento, bem como seus reflexos na produtividade do trabalhador e seu desempenho nas tarefas laborais. Os achados bibliográficos abordaram a questão do prazer no trabalho como produto de duas fontes: da sublimação e da ressignificação do sofrimento. Quanto ao sofrimento foram identificados diversos fatores que podem estar na sua etiologia, entretanto, o sofrer depende muito da história de vida particular de cada sujeito. Dentre esse fatores que podem causar o sofrimento/adoecimento do sujeito estão: a ausência de sublimação, as falhas na comunicação e a rivalidade e hostilidade entre colegas e chefia, bem como, o próprio acesso à Cultura que torna-se fonte de sofrimento devido às renúncias pulsionais necessárias. Palavras-chave: trabalho, prazer, sofrimento, sublimação, subjetividade.
O trabalho é um componente fundamental na vida das pessoas, uma vez que organiza toda a rotina do sujeito, a dinâmica familiar, o círculo de relacionamentos e produz um importante efeito em sua autonomia pessoal. Dessa forma, pode-se pensar o trabalho como constituinte da identidade do sujeito, sendo o referencial por este adotado para se
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ABSTRACT This is a literature review paper about pleasure and suffering at work. The theoretical foundation is predominantly psychoanalytic, taking as reference author the french psychiatrist and psychoanalyst Cristophe Dejours, who studied the thematic involving psychopathology and psychodynamic at work. The principal objective of this study is to comprehend the person in his work environment and the organizational dynamic involved, thinking the dyad pleasure/suffering, as well as its reflections in worker productivity and his performance in labor tasks. The bibliographic findings approached the question of pleasure at work as a product of two fonts: the sublimation and ressignification of suffering. Regarding the suffering, many factors were identified that might be related to its etiology.However, the suffering depends of the particular life history of each person. Among the factors that may cause the suffering/sickening of a person are: the lack of sublimation, the communication faults and the rivalry and hostility among colleagues and boss, as well as the access to Culture that becomes font of suffering because of the necessary drive renunciations. Keywords: work, pleasure, suffering, sublimation, subjectivity.
caracterizar e posicionar perante a sociedade, uma vez que, muitas vezes, o sujeito que trabalha incorpora em sua personalidade aspectos de seu trabalho/ocupação. Entretanto, é importante ressaltar que há uma diferença entre trabalho e emprego. De acordo com Davel e Vergara (2008) o trabalho é algo muito dinâmico e amplo, que envolve
I Psicóloga graduada pela Faculdade Três de maio - SETREM II Psicóloga da Superintendência dos Serviços Penitenciários de RS, mestra em Desenvolvimento pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUI.
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7 desde o emprego, propriamente dito, até qualquer tipo de ocupação de tempo. O emprego, por sua vez, é uma relação de trabalho na qual este é remunerado, ou seja, é pago pelo outro. Nestes casos, há uma relação intrínseca de poder e submissão, uma vez que, o trabalhar envolve pessoas com diferentes saberes profissionais e, além disso, há uma disposição de hierarquias devido ao sistema de produção capitalista no qual a sociedade tem se organizado. Isso significa que a dinâmica organizacional, como o próprio nome já diz, não é algo estático, mas em movimento e, em algumas vezes, em constante oscilação e degradação, o que nos permite concluir que o trabalho pode ser percebido através de duas óticas: como fonte de prazer e bem-estar e/ou como fonte de desprazer/sofrimento. Considerando tais aspectos, este estudo tem por objetivo identificar na literatura os principais conceitos relacionados à díade prazer/sofrimento do trabalhador envolvido na dinâmica organizacional, na produtividade e no desempenho das tarefas laborais. Para tanto, o termo “trabalho” será utilizado para considerar algo mais amplo do que o emprego, mas qualquer relação de troca e ocupação. A fundamentação teórica deste estudo baseia-se principalmente na abordagem psicanalítica, tendo como referência principal o autor Christophe Dejours que trabalha a questão da psicopatologia e psicodinâmica do trabalho.
A Questão do Prazer e da Dor de Trabalhar Mendes (2008) aborda o fato de que, em nossa sociedade capitalista, o trabalho pode apresentar diversos sentidos para os trabalhadores, dentre eles, a ambivalência. Esta pode ser caracterizada da seguinte forma: o trabalho como fortalecedor da autonomia e emancipação do sujeito, ou o trabalho como gerador de sofrimento por constituir-se em um sistema que escraviza e tortura não apenas o corpo, mas também a subjetividade. Segundo a autora, a organização
evidencia tais dimensões da condição humana, “patrocinando o jogo entre a servidão e a emancipação do sujeito” (Mendes, 2008, p. 13). Para lidar com esse jogo de forças contraditórias, a organização busca estimular o desempenho dos seus trabalhadores. Entretanto, muitas vezes, a busca pela produtividade, e, consequentemente, o lucro da empresa, irá estimular o conflito entre colegas, a rivalidade, a competição e o individualismo o que, conforme Mendes (2008) constitui-se num modo perverso de organização.
Mas de onde provém o Sofrimento no Trabalho e nas Organizações? De acordo com Rodrigues, Alvaro e Rondina (2006) o sofrimento do trabalhador é causado justamente por este estar inserido em um ambiente (organizacional) que lhe é adverso e desprazeroso. Esta concepção é consoante a de Dejours (1994) que caracteriza a etiologia da psicopatologia do trabalho como produto das pressões que o sujeito sofre em seu ambiente de trabalho. Para Dejours (1998) as organizações geralmente fragmentam o sujeito, desconectando-o de sua subjetividade e tornando-o uma vítima do seu trabalho na medida em que retira a sua liberdade. Em organizações que praticam o autoritarismo, muitas vezes, o sujeito não tem direito à escolha, à fala, ou seja, a expor sua opinião e não tem autonomia para sugerir mudanças. Em ambientes como este, o sujeito passa a ser assujeitado, pois seu desejo é desconsiderado em detrimento das normas e regras da organização. Portanto, pode-se pensar que o sujeito sofre por estar dividido entre o seu desejo e as exigências da empresa/organização. De acordo com esta lógica (sujeito dividido) Jerusalinsky (2000) aborda a questão do sintoma no âmbito do trabalho e traz que “o sintoma não é mais do que o ponto de articulação entre o discurso social e o sujeito, Práxis PSI, Três de Maio, v. 2, n. 2, jan./dez. 2013
8 no qual o sujeito tenta criar uma forma legítima de gozar, uma forma legítima de usufruto” (p.46). Isso significa que o sintoma vem para dar conta desses dois desejos – da organização/empresa que visa lucro e produtividade, e do sujeito que deseja obter certo prazer apesar de toda exigência laboral que lhe é imposta.
Entre Normal e Patológico Torna-se difícil definir os conceitos de normal e patológico quando as maiores queixas com relação ao ambiente organizacional dizem respeito ao adoecimento do trabalhador; parece que nestes contextos, adoecer é o “normal”, o comum. Entretanto, Dejours (1994 citado em Rodrigues, Alvaro e Rondina, 2006, p. 05) conceitua a normalidade como sendo “o equilíbrio psíquico entre constrangimento do trabalho desestabilizante ou patogênico e defesas psíquicas”. Trata-se da capacidade de equilibrar a rotina desgastante do trabalho a partir das defesas psíquicas de cada sujeito. Segundo Dejours (1994) o sofrimento é inevitável. Freud (1996) diria que sofremos porque estamos em falta; fomos castrados, interditados para poder viver em sociedade e na cultura e por isso sofremos. Ou seja, não é o trabalho que nos causa sofrimento, mas sim a forma como lidamos com o nosso próprio corte/interdição, uma vez que todas as instituições são substitutas do Pai (simbólico). Dessa forma, Dejours (1994, citado em Rodrigues, Alvaro & Rondina, 2006, p. 07) aponta que o sofrimento é algo muito particular que tem a sua origem na história singular de cada sujeito; e “depende da construção social e psíquica de cada pessoa”. Ainda quanto ao sofrimento no contexto organizacional, Dejours (1993) também faz a distinção entre dois tipos de sofrimento: o sofrimento criativo e o sofrimento patológico. O primeiro diz respeito à forma que o sujeito lida com o seu sintoma, que é causa de sofrimento, produzindo soluções favoráveis a partir do mesmo. Já o sofrimento patológico, é aquele em que se esgotaram as tentativas de
solução, o sujeito não consegue produzir nada além do seu próprio sofrimento, o que terá sérias consequências para a sua saúde mental. Partindo de tal conceituação sobre sofrimento criativo e sofrimento patológico, é possível pensar que o sofrimento criativo seria um impulsionador ao sujeito, uma vez que, por incomodar, desacomoda, fazendo com que o sujeito busque alternativas que lhe sejam agradáveis. Como exemplo temos aquele colaborador que, devido à sobrecarga de trabalho, rearranja um modo laboral que não seja tão angustiante a si e no qual possa extravazar essa energia psíquica que tem disponível, ou o chefe de setor que reorganiza as tarefas para que ninguém fique sobrecarregado e assim é possível produzir mais, com mais qualidade e em menos tempo, uma vez que todos encontram-se envolvidos com o mesmo objetivo e para o mesmo fim. O sofrimento patológico, por sua vez, é vivido como incapacitante, pois esgotaram-se as alternativas e mesmo assim não foi possível encontrar uma solução ou um meio adequado de lidar com a situação que produz angústia e, dessa forma, o sujeito encontra-se paralisado. Diz-se que esse tipo de sofrimento não produz nada além do próprio sofrimento e adoecimento do sujeito, pois não visa uma economia psíquica da libido. O sujeito não consegue desvencilhar-se de tal estado e, com isso, sérias complicações podem surgir, inclusive o adoecimento psíquico, que muitas vezes é diagnosticado como Depressão, uma doença que está em voga neste século e que é responsável por muitos afastamentos do trabalho. Outra forma de adoecimento que serve como exemplo do sofrimento patológico no trabalho são as diversas formas de somatização em que surge no corpo o sinal daquilo que não está bem. Jerusalinsky também faz uma leitura do sofrimento psíquico pensando o sintoma enquanto produto do social, sendo possível uma comparação ao pensamento de Dejours (1993) acerca dos dois tipos de sofrimento no trabalho – criativo e patológico. Para Jerusalinsky (2000) frente ao fracasso da simbolização (lei simbólica) há duas saídas Práxis PSI, Três de Maio, v. 2, n. 2, jan./dez. 2013
9 possíveis ao sujeito: uma que é de reinvenção e outra em que o sujeito vê-se impossibilitado de produzir e criar. Nas palavras do autor, Quando o sujeito consegue se sobrepor aos efeitos de angústia que tais fracassos lhe impingem assistimos, evidentemente, à produção de novos sintomas. Sintomas que reordenam o enlouquecimento, a neurose e a perversão, em sistemas que procuram alguma forma de legitimação social. Mas, quando uma e outra vez suas recomposições imaginárias, as novas cenas, as invenções de novos percursos, se precipitam na tendência ao valor zero do corpo de cada um, o sujeito mutilado do significante que lhe dá seu nome próprio, bate em retirada. Ou seja, confessa-se incapaz de reinventar um modo de resolver esse desengate que tem sofrido no seu laço social (Jerusalinsky, 2000, p. 47).
Dessa forma, pode-se compreender o sofrimento criativo (Dejours, 1993), e os novos sintomas (Jerusalinky, 2000), como saídas eficazes, que possibilitam um reordenamento psíquico. Assim, tanto o sofrimento criativo quanto os novos sintomas desempenham uma função importante, que é a de não adoecimento. Através de situações adversas e que geram angústia, o sujeito passa a criar alternativas que exercitam todo o seu potencial e criatividade.
A Sublimação e o Prazer de Trabalhar Em O mal-estar na civilização (1996) Freud define a felicidade como sendo feita de pequenos momentos, situações efêmeras; nada muito espalhafatoso ou grandioso, como estamos acostumados a pensar ou fantasiar. Neste mesmo texto, Freud afirma que trabalhar é uma das formas de alcançar a felicidade, de ser feliz, pois o trabalho assume um papel muito importante na vida dos
sujeitos, e carrega um valor simbólico que o torna parte constituinte da identidade dos mesmos. Segundo Freud (1996) o trabalho permite a operação de um mecanismo psíquico muito evoluído: a sublimação. Este conceito é definido por Chemama e Vandermersch (2007) como sendo a capacidade inconsciente de desviar as catexias libidinais de um objeto sexual para outro objeto não sexual e, portanto, socialmente aceito. É por meio do processo de sublimação que “é possível vivenciar prazer no trabalho, uma vez que a pulsão é ressignificada em gratificação social” (Mendes, 2008, p. 16). Em outras palavras, o trabalho é uma forma de reutilizar as energias psíquicas para um fim produtivo e reconhecido pela sociedade, por isso o trabalho é mais do que uma simples ocupação de tempo e tem um significado que vai além do fato de gerar sustentabilidade para o sujeito. Nesse sentido, pode-se pensar o trabalho como dimensão existencial, como marca que se inscreve no sujeito. Mendes (2008) define o prazer não como a expressão desenfreada das pulsões, mas como a pulsão ressignificada e simbolizada, com objetivos e alvos definidos. Dessa forma, o sujeito busca em seu trabalho, a gratificação pelo seu desempenho, pela sua produção, pelo investimento psíquico e libidinal que ele fez da sua pulsão para algo aceito e útil. Porém, Freud (1996) afirma que para tudo há um preço, e o preço para amar e trabalhar na sociedade civilizada é a restrição (deixa-se de fazer uma coisa para fazer outra); e o adiamento da gratificação pulsional (é preciso o resultado para que haja a gratificação). Dessa forma, Mendes (2008) aponta duas formas de encontrar prazer no trabalho. Uma seria través da sublimação, que no contexto organizacional pressupõe criatividade e oportunidades (impulsionadores das mudanças); e a ressignificação do sofrimento, que possibilitará outras vias para lidar com situações difíceis e o estresse do trabalho, ou seja, produzir algo a partir do sofrimento, dar outro sentido, outra direção. Esta autora também trata a questão do
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10 prazer no trabalho como sendo um importante componente para a saúde do trabalhador, bem como a falta de sublimação como geradora de sofrimento. Isso significa que através do mecanismo de sublimação, é possível ser mais criativo e inovador frente às demandas do trabalho e isso gera prazer; e quando trabalhar torna-se prazeroso, não se adoece devido ao trabalho. Entretanto, há outro ponto importante a ser considerado sobre o adoecimento no trabalho. Trata-se da questão da comunicação, muito estudada por Dejours (2001). Para este autor, a comunicação pode apresentar falhas que comprometem o relacionamento entre colegas e chefia. Dentre os problemas de comunicação, alguns estão na própria mensagem. É comum em organizações que exigem a alta produtividade e estabelecem metas de produção e/ou vendas por trabalhador que surjam intrigas e as chamadas “fofocas” e mentiras, o que dificulta ainda mais o relacionamento e o trabalho. P or t a n t o, h á v á r i os f a t or e s q u e influenciam diretamente na dinâmica organizacional (já abordados acima) sendo que estes podem estar influenciando na saúde do trabalhador e, consequentemente, em sua capacidade de produção. Por outro lado, ao contrário do modelo taylorista clássico, hoje busca-se muito o prazer no trabalho, sendo que este não pode simplesmente ser algo mecânico, mas deve proporcionar um espaço de criação e invenção do potencial dos sujeitos. Por isso, muitas vezes, em nosso sistema capitalista, se apresenta um sujeito dividido entre o prazer e a dor/sofrimento em seu ambiente de trabalho, o que irá repercutir em todas as esferas de sua vida e não apenas no trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando tais aspectos retirados a partir deste estudo de revisão bibliográfica, pode-se perceber que o ambiente de trabalho exerce diferentes efeitos em cada sujeito, como é o caso do sofrimento no contexto organizacional. O sofrimento, por sua vez,
apresenta uma íntima relação com a história de vida particular de cada sujeito: como cada um lida com a sua falta, com o seu corte/interdição para poder viver em sociedade. Constatou-se também que o mecanismo de sublimação exerce um importante papel na dinâmica do trabalho, uma vez que direciona a energia pulsional do sujeito para um meio socialmente aceito, que gera reconhecimento e gratificação. A sublimação proporciona o exercício da criatividade e inovação, bem como ressignifica e simboliza a pulsão, direcionando-a para um alvo já estabelecido: a produção laboral. Por outro lado, os autores revisados abordaram a ausência e sublimação como uma das causas do sofrimento, além das falhas na comunicação e da rivalidade e hostilidade entre colegas e chefia. Portanto, resta a nós psicólogos(as) organizacionais pensar intervenções possíveis e viáveis nestes contextos, pois o papel do psicólogo inserido neste meio não diz respeito apenas às questões “burocráticas”, tais como: seleção e recrutamento, avaliação de desempenho, entrevistas (desligamento, seleção, acompanhamento) etc.; mas também é papel do psicólogo(a) proporcionar espaços de escuta, tanto para os trabalhadores como para a chefia, para poder desobstruir os canais de comunicação, fazendo circular a palavra, melhorando, assim, o relacionamento interpessoal. Ademais, o psicólogo(a) organizacional precisa saber acolher as queixas, as lamentações e propor para a organização reflexões acerca de suas práticas, para poder perceber o que não vai bem e melhorar neste sentido. Por isso diz-se que o psicólogo desta área é um mediador; ele precisa ter calma e paciência para poder, aos poucos, realizar intervenções que propiciem relações mais saudáveis no ambiente de trabalho.
REFERÊNCIAS CHEMAMA, R., & Vandermersch, B. (2007). Dicionário de Psicanálise. Unissinos: São Leopoldo – RS.
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11 DAVEL, E., VERGARA, S. (2008). Gestão com Pessoas e Subjetividade (2ª. ed.). São Paulo: Atlas. DEJOURS, C. (1993). Uma nova visão do sofrimento humano nas organizações. O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. São Paulo: Atlas. DEJOURS, C. (1994). Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento trabalho. São Paulo: Atlas. DEJOURS, C. (1998). A loucura do trabalho: estudo de Psicopatologia do Trabalho. São Paulo: Cortez. DEJOURS, C. (2001). A Banalização da Injustiça Social (4ª. ed.). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. FREUD, S. (1996). O mal-estar na civilização. In S. Freud Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago. (Original published in 1930). JERUSALINSKY, A. (2000). Papai não trabalha mais!. In A. Jerusalinsky, A. C. Merlo, & A. L. Giongo (Orgs.), O Valor Simbólico do Trabalho e o sujeito contemporâneo (pp. 35-49). Porto Alegre: Artes e Ofícios. MENDES, A. M. (2008). Prazer, Reconhecimento e Transformação do Sofrimento no Trabalho. In A. M. Mendes, Trabalho e Saúde – o sujeito entre a emancipação e a servidão. Juruá: Curitiba. RODRIGUES, P. F., Alvaro, A. L. T., & Rondina, R. (2006). Sofrimento no trabalho na visão de Dejours. Revista Científica Eletrônica de Psicologia, 7(4), 1-8. Acessado em 05 de outubro de 2011.
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Psicologia na Educação Infantil: características da produção científica nacional e internacional Psychology in Early Childhood Education: Characteristics of national and international scientific production I
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Carolina Duarte de Souza , Viviane Vieira , Mauro Luis Vieira, IV Maria Aparecida Crepaldi RESUMO O estudo teve por objetivo realizar um levantamento bibliográfico sobre produções na área de Psicologia e Educação Infantil, buscando identificar e comparar quais são as práticas dos Psicólogos Escolares/Educacionais e as pesquisas realizadas na área nos âmbitos nacional e internacional. Os estudos foram selecionados em diversas bases de dados, por meio de combinações de descritores e sua análise baseou-se, em comparações por frequência e porcentagem, além do teste do Qui-quadrado. A revisão resultou em 283 documentos, sendo 138 internacionais e 145 nacionais. As pesquisas brasileiras eram predominantemente transversais e qualitativas; as internacionais longitudinais e quantitativas. Quase metade dos estudos referiu-se a políticas públicas relativas a área da Educação Infantil, entretanto encontrou-se uma escassez de trabalhos que mencionassem a importância do psicólogo na área. Pontuou-se a valorização do rigor científico no contexto internacional e as dificuldades das pesquisas longitudinais no Brasil. Indica-se a necessidade de realização de mais estudos que investiguem outros contextos do desenvolvimento da criança (que não apenas o familiar), além de pesquisas que enfatizem o papel do psicólogo e das políticas públicas na Educação Infantil. Palavras-chave: Educação Infantil, pesquisa bibliográfica, psicologia escolar.
A Educação Infantil no Brasil até os anos de 1990 era compreendida como um atendimento de comunidades carentes com um cunho mais assistencial, voltados ao cuidado, alimentação e segurança das crianças. Atualmente, a instituição de educação infantil vem ganhando espaço entre as formas de
ABSTRACT This study aimed to do a survey on bibliographical productions in the field of Psychology and Early Childhood Education, to identify and compare what are the practices of educational psychologists and the research conducted in Brazil and international contexts. The studies were selected in various databases through combinations of descriptors. The analysis was based on comparisons by frequency and percentages, and the chi-square test. The review resulted in 283 documents, with 138 international and 145 brazilian. The brazilian studies were predominantly cross-sectional and qualitative; and the international were longitudinal and quantitative. Almost half of these studies referred to public policies, however, we found few studies which mention the importance of the psychologist in this area of practice. International documents showed great scientific rigor . The difficulties of longitudinal surveys in Brazil are also discussed There is need for more studies that focus on different contexts of child development.There is also need for research that emphasize the role of psychologists and public policies in Early Childhood Education. Keywords: Early childhood education, bibliographical research, school psychology.
cuidado à criança de zero a seis anos, passando a ser uma opção viável em termos educacionais e de cuidado para os pais e, juntamente com a família, constitui-se como um dos principais contextos de desenvolvimento dessas crianças (Oliveira, Mello, Vitoria, & Rosseti-Ferreira, 1994; Lordelo, 2002). E essa modificação na
I Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina - PPGP-UFSC II Mestra pelo PPGP -UFSC. III Professor Pós-Dr. de Psicologia dos Departamento de Graduação e Programa de Pós-graduação da UFSC IV Professora Pós-Dra. de Psicologia dos departamentos de Graduação e Programa de Pós-graduação da UFSC.
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13 compreensão aparece na Constituição Federal (Brasil, 1988) e na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil, 1996), que consideram a creche e a pré-escola como instituições educativas (Santos, & Moura, 2002; Rapoport, & Piccinini, 2001). Tais documentos legais regulamentam a finalidade educacional da creche e da pré-escola como lugar que deve trabalhar junto à família e comunidade para promover o desenvolvimento das crianças na sua totalidade, formando cidadãos capazes de interagir socialmente (Amorim, & RossettiFerreira, 1999). A partir das mudanças na concepção da Educação Infantil ocorreu um aumento da preocupação com as crianças nessa fase. Além disso, vários profissionais de diversas áreas, incluindo dentre esses o psicólogo, começaram a se inserir com o intuito de dar sua contribuição para a complexidade de funções e relações estabelecidas nestas instituições de educação. A Psicologia Escolar e Educacional é uma área da Psicologia que tem suscitado inúmeras reflexões sobre a identidade dos profissionais que nela atuam, sobretudo a necessidade de uma redefinição do papel do psicólogo na escola e de reestruturação da formação acadêmica (Almeida, 1999). Criada em 1990 (Costa, & Guzzo, 2006), a Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional - ABRAPEE define como psicólogos escolares “aqueles profissionais que, devido a sua preparação universitária em psicologia e experiências subsequentes nas áreas escolar e/ou educacional, trabalham para melhorar o processo ensinoaprendizagem no seu aspecto global (cognitivo, emocional, social e motor), através de serviços oferecidos a indivíduos, grupos, famílias e organizações. A atuação dos psicólogos escolares se caracteriza mais pela intervenção na prática, enquanto que a dos psicólogos educacionais, geralmente, se direciona para as áreas de ensino e pesquisa.” (ABRAPEE, 2010) No âmbito internacional, Jimerson, Oakland e Farrel (2007) apresentam um panorama do psicólogo escolar em diversas partes do mundo. Nesse manual as mais
diversas culturas, incluindo o Brasil (Guzzo et al., 2007), pontuam seus fazeres, facilidades e dificuldades. De modo geral, a psicologia escolar e educacional luta pelo seu espaço e reconhecimento, apesar de já estar inserida em instituições escolares, além disso, os diversos profissionais consultados na pesquisa referem à preocupação de novas práticas que envolvam a família e práticas preventivas. O maior destaque é a ênfase constante em novas pesquisas e acesso a estas (Jimerson, Graydon, Curtis, & Staskal, 2007). Mais especificamente, tratando da atuação do psicólogo no contexto de educação infantil Delvan, Ramos e Dias (2002), sugerem que este o profissional no Brasil deve mediar à relação com a família, trazendo questões que favoreçam o estabelecimento de uma comunicação constante e freqüente. O psicólogo também possui outras possibilidades de intervenção na educação infantil, abrangendo os demais aspectos que compõem este contexto, como a proposta pedagógica e a equipe profissional da instituição, bem como as próprias crianças. Nesse sentido, o psicólogo pode contribuir com conhecimentos para a formação dos profissionais que atuam na instituição, auxiliando-os assim em sua tarefa cotidiana, seja por meio de palestras em reuniões pedagógicas, grupos de crianças, e até mesmo em conversas informais no dia-a-dia. Atualmente, verifica-se que o psicólogo brasileiro não mais atua somente diante das dificuldades que surgem, mas também na prevenção de possíveis riscos e problemas relacionados ao desenvolvimento infantil, assim como na potencializarão de fatores que se constituem como proteção para o desenvolvimento das crianças. Desta forma, o psicólogo tem a condição de sair de uma posição somente curativa e contribuir para a organização dos envolvidos com a escola, criar no coletivo novas pautas de compreensão da realidade vivida, sugerir novas formas de avaliação dos processos que se desdobram no contexto escolar (Martins, 2003). Já em âmbito internacional, as práticas na educação infantil focalizam-se mais nas Práxis PSI, Três de Maio, v. 2, n. 2, jan./dez. 2013
14 questões de aprendizagem e leitura, além de compartilhar com o Brasil o foco em ações primárias preventivas (Jimersonn, Graydon et al., 2007). Essas ações preventivas ficam claras nos estudos que se inserem desde o nascimento até a idade escolar (Augustine, Cavanagh, & Crosnoe, 2009; Berry, & O´Connor, 2010; Dowsett, Huston, Imes, & Gennetian, 2008; Hirsh-Pasek, & Burchinal, 2006). A inserção do psicólogo na Educação Infantil é recente, pois mesmo essa modalidade de educação teve seu papel fortalecido a partir da década de 1990. Assim, as atuações realizadas pelos psicólogos nas creches e pré-escolas ainda estão em construção e perpassam pela re-construção do papel do Psicólogo Escolar e Educacional (Andrada, 2005; Jimerson, Oakland et al., 2007; Saklofske, Schwean, Harisson, & Mureika, 2007). Faz-se necessário que, diante da consolidação desse profissional nas instituições de Ensino Infantil, se realize pesquisas e divulgações sobre os fazeres do psicólogo. A divulgação dessas atuações é essencial para que a psicologia seja considerada como profissão obrigatória nos contextos de educação, por meio de políticas públicas, e que sua identidade seja consolidada e reconhecida. A partir da problemática apresentada, o objetivo desse estudo foi realizar um levantamento da literatura sobre as produções nacionais na área de Psicologia e Educação Infantil, identificando quais são as práticas desses profissionais e quais as pesquisas realizadas na área. Pretende-se, assim, comparar essas produções com estudos internacionais, visando verificar quais as semelhanças e distinções entre esses contextos e pontuar quais as questões necessárias de se investigar futuramente.
MÉTODO Material Como este artigo se propõe a investigar como estão sendo realizadas as pesquisas na
área de Educação Infantil e Psicologia comparando contextos nacionais e internacionais, um levantamento bibliográfico foi realizado em diversas bases de dados no mês de março do ano de 2010. Para a pesquisa em bancos nacionais o sítio da Biblioteca em Saúde Virtual – Psicologia Brasil (BVS-PSI, 2010) foi utilizado, pois este portal proporciona o levantamento simultâneo em várias bases. Para a pesquisa internacional o portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, 2010) foi utilizado, assim como, a Rede de Revistas Científicas da América Latina, do Caribe, da Espanha e de Portugal (Redalyc, 2010), que possui bases nacionais e internacionais, com ênfase em estudos com a língua espanhola. Os descritores para a pesquisa foram encontrados no sítio do BVS-PSI (2010) com a Terminologia em Psicologia. Os descritores utilizados em português foram: “Educação Infantil e Psicologia”; “Ensino Pré- escolar e Psicologia”; e “Creche e Psicologia”. Na língua inglesa os termos utilizados foram: “Early Childhood Education and Psychology”; “Preschool Education and Psychology”; e “Child Day Care and Psychology”. Por fim, os descritores em espanhol foram: “Educacion Preescolar y Psicologia” e “Jardines Infantiles y Psicologia”. O termo Educação Infantil em espanhol não foi referido na base de terminologias da Psicologia.
Procedimento Após o levantamento de dados, alguns documentos foram excluídos da amostra analisada por: apresentarem apenas o título e o autor (sem resumo ou informação adicional); não se referirem à Educação Infantil como fase de escolarização (compreensão de educação de crianças em geral); não se referirem a atuações de psicólogos; e não permitiam o acesso online (pré-requisito de autorização especial ou pagamento). Os critérios adotados para a análise foram baseados em outros estudos de levantamentos bibliográficos (Cordazzo,
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15 Martins, Macarini, & Vieira, 2007; Oliveira, Siqueira, Dell´Aglio, & Lopes, 2008) e adequados à temática da educação infantil e atuação dos psicólogos. É importante ressaltar que algumas produções apresentaram lacunas nas informações, mesmo aquelas com texto completo. Em razão disso, a categoria não especificada foi utilizada nesses casos. As categorias de análises foram: 1) Ano da publicação: antes de 1980, décadas de 1980, 1990, e anos entre 2000-2005 e 2006-2010; 2) Natureza do estudo: publicação em periódicos (artigos) ou publicação acadêmica (dissertações e teses); 3) Origem do estudo: nacional ou internacional (latino-americano, europeu, norte-americano ou outros); 4) Apresentação da informação: resumo ou texto completo; 5) Enfoque do estudo: teórico (incluindo aqui a revisão de literatura), empírico-pesquisa e intervenção prática; 6) Método do estudo: observação, experimento, levantamento de dados, estudo de caso, relato de experiência e combinação (dois ou mais métodos); 7) Tipo do estudo: transversal ou longitudinal; 8) Técnicas utilizadas: observações, entrevistas, questionários/escalas, testes, bibliográfica, grupo operativo, combinado ou não se aplica; 9) Análise de dados: quantitativa, qualitativa, quantitativa-qualitativa; 10) Etapa da escolaridade estudada: creche, pré-escola, educação infantil como todo, educação infantil e próximas etapas escolares (ensino fundamental, médio e superior); 11) População estudada: crianças, professores(as), pais, psicólogo, outros profissionais da instituição, instituição em si (espaço físico, características pedagógicas) e combinação (duas ou mais populações estudadas); 12) Temas estudados: adaptação, alfabetização/aprendizagem, relação família-escola, papel do psicólogo, formação professores(as)/identidade profissional, relação criança-professor(a), relação pais-criança, relação professor(a)instituição, problemas comportamentais infantis, relação criança-criança, desenvolvimento infantil, sexualidade, cidadania, educação inclusiva, independência
afetiva, ambiente da instituição, avaliação psicológica e combinação (dois ou mais temas). Além disso, quatro perguntas com respostas “sim” ou “não” foram elaboradas: 1) Citam o papel do psicólogo (importância, ausência...)? b) Citam políticas públicas da Educação Infantil? C) Oferecem soluções/caminhos para os temas estudados; e d) Caracterizam/discutem ações de promoção/prevenção de saúde?
Análise de Dados Após a seleção das categorias e avaliação dos trabalhos encontrados, os dados foram organizados em uma planilha e testados por meio de análises estatísticas descritivas. Esse tratamento dos dados baseou-se, principalmente, em comparações por frequência e porcentagem. Para verificar relações entre as variáveis categóricas utilizadas foi realizada a análise com tabelas de contingência por meio do teste do Qui-quadrado, que verifica se há relação associação entre as variáveis e se esta é estatisticamente significativa. Este teste foi efetuado por um programa estatístico. Para verificar a significância da força da relação estatística, utilizou o C de Pearson em matrizes quadradas e o V de Cramer em matrizes retangulares. O nível mínimo de significância admitido foi de p<0,05. Nesses casos, as categorias, não se aplica e não especificado , foram retiradas (consideradas missing).
Resultados No total, foram encontradas 1670 publicações com os descritores utilizados. Após uma análise inicial, 83% documentos foram excluídos da amostra, permanecendo 283 materiais a serem analisados. A redução do número de documentos após a exclusão devese à retirada daqueles que não preencheram os quesitos de inclusão e os documentos que se
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16 repetiram entre as bases de busca. É importante ressaltar que grande parte do material avaliado e excluído não tinha envolvimento de psicólogos, apesar dos descritores utilizados. Com relação à origem dos documentos, 145 (51,2%) eram de origem nacional e 138 de proveniência estrangeira. Dentre estes, 76,8% eram de origem norte americana, 15,2% de origem européia, 5,1% latino-americanos e 2,9% de outras origens (Oceania e Ásia). Apesar dessa distinção geográfica, as análises seguintes terão essas localidades agrupadas e intituladas de “publicações internacionais”. A data de publicação dos trabalhos analisados, exposta na Tabela 1, ficou concentrada a partir do ano 2000 (76,6%). Essa tendência de distribuição permaneceu também na comparação entre documentos nacionais e internacionais, contudo estes últimos tiveram um crescimento mais gradual. Comparando os dois contextos com relação ao ano de publicação, a análise demonstrou diferença estatisticamente significativa (χ 2 = 20,95; p<0,001; V=0,27; p<0,001) indicando que há uma diferença na data de publicação entre os locais analisados.
Ano da publicação Origem do documento
Antes Década Década Antes 2000 de de de 1990 1980 1980 2005 1980
2006 2010
Total
Nº
1
6
27
64
47
145
%
0,7
4,1
18,6
44,1
32,4
100
Nº
1
15
16
34
72
138
0,7
10,9
11,6
24,6
52,2
100
Nº
2
21
43
98
119
283
%
0,7
7,4
15,2
34,6
42
100
Nacional
Internacional %
Total
Tabela 1:Frequência e porcentagem da data de publicação dos documentos nacionais e internacionais
A apresentação da informação no Brasil ficou concentrada em textos completos, com 91 documentos (62,8%) nesta forma e 54 resumos. No material internacional, essa tendência se repetiu, com 105 textos completos (76,1%) e 33
resumos analisados. Na análise do Quiquadrado, o tipo de apresentação (χ2=5,9; p<0,05; C=0,14; p<0,05) apresentou significância estatística de força fraca, indicando associação dessa variável com a origem do documento. Com relação à natureza desses documentos, o Brasil apresentou 80,7% e os contextos internacionais 98,6% de artigos. Teses e dissertações internacionais não foram encontradas e, no âmbito nacional, 28 produções de pósgraduações foram analisadas. O enfoque do estudo, de forma geral, apresentou uma concentração no tipo empírico-pesquisa, totalizando 74,2% da amostra. Os estudos teóricos vieram em seguida com 19,4% e, por fim, trabalhos sobre intervenções práticas com 6,4%. Em comparativo entre contextos, no Brasil 69% das publicações eram de pesquisas empíricas, 20% de estudos teóricos e 11% de intervenções práticas. Já no âmbito internacional, 79,7% foram pesquisas empíricas, 18,8% teóricas e somente 1,4% intervenções práticas. A análise demonstrou que há uma associação estatisticamente significativa de força moderada entre a origem do documento e o enfoque do estudo (χ2= 11,36; p<0,01; V=0,20; p<0,01). Esse resultado indica que há essa diferençaentres os contextos, especialmente no número de pesquisas empíricas e no relato de intervenções práticas. Com relação ao método utilizado nos 278 estudos analisados, ambos os contextos apresentaram uma concentração no tipo levantamento de dados; o Brasil com 46,1% e os países estrangeiros com 61, 3%. Além deste método, os documentos brasileiros indicaram 19,9% de estudos observacionais; 10,6% de relatos de experiência; 9,2% de experimentos; 8,5% de métodos combinados; 4,3% de estudos de caso; e 1,4% de outros. Já no âmbito internacional, 9,5% eram estudos experimentais; 8,8% de observações; 2,9% de combinação; 1,5% de estudos de caso; 1,5% de relato de experiência; e 0,7% com outros métodos. Em todos os casos de combinação o método levantamento de dados esteve presente, contudo, nacionalmente foi Práxis PSI, Três de Maio, v. 2, n. 2, jan./dez. 2013
17
Origem do Documento Técnicas
Nacional
Internacional
Total
%
Nº
%
Nº
%
Nº
Tipos Observação
26
19,7
13
9,8
39
Questionário/ Escalas
15
11,4
53
39,8
68
Teste
10
7,6
10
7,5
20
7,5
Entrevista
16
12,1
4
3
20
7,5
Bibliográfica
28
21,2
22
16,5
50
18,9
Grupo
6
4,5
5
3,8
11
4,2
Combinação
31
23,5
26
19,5
57
21,5
Total
132
49,8
133
50,2
265
100,0
14,7 25,7
Tabela 2: Frequência e porcentagem das técnicas em pesquisa nos âmbitos nacional e internacional
Com relação às técnicas para coleta de dados, os resultados por contexto podem ser visualizados na Tabela 2. No Brasil, os estudos que envolviam técnicas isoladas, a observação foi mais frequente. Contudo, nos estudos com técnicas combinadas, os questionários e escalas foram dominantes, enfatizando a presença destes nos estudos brasileiros. Da mesma forma, os questionários e escalas foram majoritários nos contextos internacionais, tanto de forma isolada como nas combinações, especialmente acompanhados das técnicas de observação e testes. Ao se verificar a associação
entre a origem do documento e o tipo de técnica de pesquisa, a análise do Qui-quadrado foi estatisticamente significativa com força moderada (χ 2 =34,01; p<0,001; V=0,36; p<0,001). Ou seja, as técnicas utilizadas são diferentes em cada âmbito pesquisado, com ênfase para os tipos de observação e entrevista no Brasil e para questionários e escalas no exterior. Figura 1: Gráfico de barras da porcentagem do tipo de análise de dados nos contextos nacional e internacional
Porcentagem
acompanhado predominantemente por observação; enquanto nos contextos estrangeiros esse método foi utilizado conjuntamente com experimentos. No tipo de pesquisa, as diferenças entre os contextos analisados ficaram mais evidentes. O Qui-quadrado apontou novamente significância estatística (χ 2=26,59; p<0,001; C=0,30; p<0,001), indicando que o contexto internacional produz significativamente mais estudos longitudinais em comparação com o Brasil e a associação entre essas variáveis tem força moderada. Enquanto no Brasil 88,3% dos 142 documentos analisados foram transversais e 16,2% foram longitudinais; no âmbito internacional, dos 137 documentos analisados, 55,5% caracterizaramse como transversal e 45,5% longitudinal.
100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0
Nacional Internacional
70,4 58
30,4
25,2 11,6 4,4
Quantitativo
Qualitativo
Quanti-quali
Tipo de Análise de Dados
A análise de dados, como aponta a Figura 1, mostrou diferenças entre os contextos nacional e internacional. Resumidamente, a relação se inverte quando compara-se o quantitativo, predominantemente nos estudos internacionais, e o qualitativo, dominante nos manuscritos brasileiros. Estudos que abordam ambos os tipos de análises foram mais frequentes no Brasil. Essa diferença se confirma na análise do relacionamento entre a origem do documento e no tratamento dos dados, em que foi encontrada uma significância estatística de força moderada (χ 2 =43,58; p<0,001; V=0,40; p<0,001). No quesito etapa da escolaridade estudada foi possível analisar 281 documentos. Nos estudos brasileiros, a pré-escola foi o período mais focado, com 33,6%, seguido da creche (30,8%), da educação infantil como todo (22,4%) e da educação infantil e próximas etapas escolares – ensino fundamental, médio e superior (13,3%). Nos 138 trabalhos internacionais analisados, 39,1% focaram na pré-escola, 31,2% na educação infantil e Práxis PSI, Três de Maio, v. 2, n. 2, jan./dez. 2013
18 próximas etapas escolares; 7,4% na educação infantil como todo e 12,3% na creche. A diferença entre os contextos foi estatisticamente significativa com relação ao período mais focado, com força moderada (χ ²=22,66; p<0,001; V=0,28; p<0,001). A população estudada foi analisada em 282 documentos. No Brasil, o grupo mais pesquisado foi o das crianças (45,5%), seguido da população combinada (25,5%), da instituição em si (11,7%), dos professores (9,0%), dos pais (4,1%) e dos psicólogos (4,1%). Com relação às populações combinadas, majoritariamente apareciam as crianças acompanhada dos pais e/ou de professores. Nos estudos internacionais (N= 137), as crianças também foram a principal população pesquisada (61,3%), seguida de populações combinadas (19,0%), da instituição em si (6,6%), dos professores (5,8%), dos pais (4,4%) e do psicólogo (2,9%). É importante ressaltar que nas populações combinadas a dupla paiscrianças foi dominante.
A análise dos temas pode ser observada na Tabela 3. É possível visualizar que a distribuição foi ampla nos dois contextos, apesar de ocorrer uma concentração relativa do tema Desenvolvimento infantil no âmbito n a c i o n a l e d a s m a t é r i a s Alfabetização/aprendizagem e Desenvolvimento Infantil no contexto internacional. Outro resultado importante encontrado nos temas pesquisados foi que, apesar do estudo ocorrer em situações envolvendo Educação infantil, a maioria dos trabalhos traz essas instituições somente como uma das variáveis pesquisadas (tempo de ensino infantil com influência no desenvolvimento infantil). Outra ocorrência muito comum foi a utilização dos ambientes de educação infantil para recrutamento de participantes. Por fim, foram formuladas quatro perguntas para serem respondidas nas análises. A primeira buscava verificar se os estudos citavam o papel do psicólogo. Nos 112 estudos Origem do documento
Temas Pesquisados Adaptação Alfabetização/aprendizagem Relação família-escola Papel do psicólogo Formação/identidade profissional professores Relação criança-professor(a) Relação pais-criança Relação professor(a)-instituição Problemas comportamentais infantis Relação criança-criança Desenvolvimento infantil Sexualidade Cidadania Educação inclusiva Ambiente da instituição Avaliação psicológica Combinação Outros Total
Nacional Nº % 9 8 11 6 5 10 8 1 9 12 24 2 5 3 14 3 9 5 144
6,3 5,6 7,6 4,2 3,5 6,9 5,6 0,7 6,3 8,3 16,7 1,4 3,5 2,1 9,7 2,1 6,3 3,5 100,0
Internacional Nº % 6 28 4 4 0 6 3 0 20 8 23 1 1 6 3 5 14 6 138
4,3 20,3 2,9 2,9 0,0 4,3 2,2 0,0 14,5 5,8 16,7 0,7 0,7 4,3 2,2 2,6 10,1 4,3 100,0
Total Nº % 15 36 15 10 5 16 11 1 29 20 47 3 6 9 17 8 23 11 282
5,3 12,8 5,3 3,5 1,8 5,7 3,9 0,4 10,3 7,1 16,7 1,1 2,1 3,2 6 2,8 8,2 3,9 100,0
Tabela 3: Descrição dos temas pesquisados nos âmbitos Nacional e Internacional Práxis PSI, Três de Maio, v. 2, n. 2, jan./dez. 2013
19 nacionais analisados, 79,5% não citavam a participação desse profissional. Da mesma forma, dos 107 documentos internacionais verificados, 86,9% também não se referiram ao psicólogo no contexto da educação infantil. A segunda questão a ser respondida era se as políticas públicas eram aludidas nos estudos. No Brasil, dos 117 documentos analisados, 66 (56,4%) não faziam referência a políticas públicas. Essa tendência também foi encontrada nos estudos internacionais verificados (N=125) em que 53,3% não comentam sobre políticas públicas. A análise do Qui-quadrado entre essas duas perguntas e o contexto não foi estatisticamente significativa. Com relação à terceira questão, certificouse se o documento apresentava soluções/caminhos para os temas estudados. Dos trabalhos brasileiros analisados (N=123), 90,4% indicaram caminhos e nos internacionais (N=128) 94,8% fizeram referências a soluções. Não houve associação estatisticamente significativa entre essas variáveis. Sobre a última pergunta, que tinha como objetivo avaliar se o estudo caracterizava ou discutia ações de promoção/prevenção da saúde, foram analisados 126 materiais nacionais e 133 documentos internacionais. A resposta foi positiva em 77% dos estudos brasileiros e 86,5% dos internacionais. Na análise de associação entre essas variáveis, esta foi estatisticamente significativa, porém fraca (χ²=3,92; p<0,05; C=0,12; p<0,05). Isso indica que os estudos internacionais apontam mais a questão da prevenção que as pesquisas brasileiras, porém essa distinção não tem significância de destaque.
Discussão A partir dos resultados, alguns aspectos importantes serão discutidos. Inicialmente, destaca-se a grande quantidade de documentos provenientes da América do Norte. Essa concentração de pesquisas pode ser reflexo do que encontramos nos relatos dos
psicólogos estadunidenses e canadenses (Jimenson, Graydon et al., 2007; Saklofske et al., 2007), em que a pesquisa é considerada essencial para eles e apontada como uma prática ideal do psicólogo nos ambientes de educação, que integra pesquisa e atuação. Percebe-se que o Brasil e o exterior aumentaram suas produções bibliográficas após os anos 90 e associam-se a este acréscimo as mudanças legislativas nos países que reconheceram tanto a importância da Educação Infantil quanto do Psicólogo Escolar e Educacional (Almeida, 1999; Amorim, & Rosseti,-Ferreira, 1999; Jimerson et al., 2007; Saklofske et al., 2007). Assim, mudanças que envolvam políticas públicas e legislações colaboram com melhor reconhecimento da área, sendo essencial a luta dos psicólogos por essas alterações. No enfoque do estudo, é importante discutir a diferença mais marcante: as intervenções práticas. Comparando os dois contextos analisados, fica claro que no Brasil os relatos de intervenções são mais frequentes, o que vai ao encontro das pontuações de psicólogos em diversos países sobre a falta de comunicação acerca das práticas entre os psicólogos que trabalham em escolas (Jimerson et al., 2007a; Saklofske et al., 2007). Entende-se que é importante que os resultados de pesquisas realizadas sirvam de fundamentos para práticas profissionais que atendam às reais demandas da área escolar e educacional, e que estas intervenções, por sua vez, se transformem em documentos com os relatos daquilo que foi feito, enriquecidos de novas reflexões teóricas. Com relação ao método, o levantamento de dados foi o mais utilizado, porém o Brasil mostrou melhor distribuição nos tipos de métodos. Destaca-se a alta frequência de estudos observacionais, especialmente com relação a brincadeira infantil (Conti, & Sperb, 2001; Lordelo, 2002a) e aspectos do ambiente das instituições (Lordelo, & Carvalho, 2006; Meneghini, & Campos-de-Carvalho, 2003). As técnicas também refletiram a tendência para a observação, além de questionários e escalas que complementam as informações Práxis PSI, Três de Maio, v. 2, n. 2, jan./dez. 2013
20 observadas. No tipo de pesquisa, as distinções estatisticamente significativas aparecem no foco dos estudos estrangeiros em pesquisas longitudinais. Como apontam Jimerson, Graydon et al. (2007), vários profissionais descrevem a importância e ações na prevenção primária. Para se verificar como se comportaram essas intervenções, estudos longitudinais são necessários. No Brasil, há também valorização das práticas preventivas (Andrada, 2005; Lordelo et al. 2006), contudo são escassos os estudos que efetivamente buscam verificar ao longo do tempo como as variáveis se comportam. Entende-se que a falta de estudos longitudinais possa se basear no alto custo que pesquisas como essas necessitam, pois alguns países como Estados Unidos e Canadá os investimentos em pesquisa são superiores, assim como a valorização desta. Outra pontuação possível é a incipiência que a Educação Infantil tem no Brasil e, por conseguinte, ainda é cedo para os estudos de longo prazo aparecerem. Quanto à análise dos dados, nota-se que os estudos quantitativos predominam no cenário exterior, contudo, o Brasil vem realizando mais pesquisas que buscam uma combinação de ambos os tipo de análise para dar conta do fenômeno estudado. Diante dos resultados apresentados, entende-se que, tanto o contexto nacional como o internacional, precisam diversificar mais os tipos de pesquisas realizadas para que diferentes aspectos dos fenômenos relacionados à Psicologia e à Educação Infantil possam ser contemplados. Os estudos nacionais e internacionais concentram seu foco de interesse na pré-escola, especialmente realizando testes de aprendizagem e alfabetização, o que vai ao encontro dos achados de Jimerson, Graydon et al. (2007) que colocam os temas da aprendizagem e leitura como muito importantes para os psicólogos escolares e educacionais, além da prática de avaliação psicológica. Ademais, vê-se que internacionalmente também há um número elevado de estudos que enfocam a educação
infantil e os períodos posteriores, o que confirma o resultado anteriormente apresentado da ênfase nesse contexto em estudos longitudinais. Quanto à população, estudada o fato da maior parte dos estudos concentrarem-se na criança, mostra que ainda existe um enfoque individualizante. Isso vai de encontro ao que foi sugerido por Vokoy e Pedroza (2005), quando afirmam que cada vez menos a criança em sua individualidade deve ser tomada como foco das intervenções, mas, ao invés disso, devem ser levados em conta também os fatores que constituem o contexto ecológico em que a criança vive, principalmente a instituição e a família. Porém, esse resultado pode ser reflexo do fato de outras áreas da Psicologia, como a Psicologia do Desenvolvimento e a Avaliação Psicológica, utilizarem a educação infantil com o intuito de recrutar os participantes da pesquisa. O desenvolvimento infantil foi o tema mais estudado no Brasil e o segundo no exterior. Conforme dito antes por Jimerson, Graydon et al. (2007), no cenário internacional predominam os estudos sobre a alfabetização e aprendizagem, já no contexto nacional, percebe-se que outro importante foco da atenção é o ambiente da instituição, o que pode ser explicado pela preocupação com a qualidade do mesmo devido à regulamentação ainda recente desses estabelecimentos. Nesse quesito destaca-se ainda a escassez de estudos sobre importantes tópicos da área da educação infantil, quais sejam: a formação dos professores, o papel do psicólogo e a educação inclusiva. Um dos achados mais preocupantes dessa pesquisa foi a falta de reconhecimento do profissional da psicologia, tanto no contexto nacional como internacional. Apenas 13,1% do total de 283 documentos apresentados citaram a importância do psicólogo. Isso se reflete, oupode também ser reflexo, da falta de políticas públicas nacionais que garantam o espaço desse profissional no ambiente da educação infantil. O único projeto de lei que versa sobre o psicólogo na educação, é o 3688/00 de 2007, que assegura o atendimento Práxis PSI, Três de Maio, v. 2, n. 2, jan./dez. 2013
21 de Psicólogos e Assistentes Sociais na Educação Básica a alunos de escolas públicas, por profissionais do Sistema Único de Saúde (ABRAPEE, 2010). Além desse projeto não incluir a educação infantil, ainda restringe o foco da atuação do profissional a ações curativas e individualizantes. Grande parte dos estudos analisados ofereceu soluções aos problemas apresentados o que é bastante positivo, pois evidencia a realização de esforços em direção a melhoria da Educação Infantil e Psicologia. Ademais, o fato de um pouco menos da metade dos estudos referirem-se a políticas públicas, mostra que a necessidade de discuti-las ainda se faz presente na atualidade. Aliado a esse resultado, está o fato da maior parte dos estudos abordarem a questão da prevenção e promoção de saúde, tendo uma ênfase um pouco maior no contexto exterior, o que pode ser explicado, como dito anteriormente, pelo maior número de estudos longitudinais nesse contexto.
CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se que, conforme hipotetizado ocorreu uma concentração maior de estudos na última década relacionada à implementação de políticas públicas no cenário nacional e ênfase na pesquisa no âmbito internacional. Houve uma predominância no Brasil de pesquisas transversais e qualitativas, enquanto que inversamente no cenário internacional prevalecem os estudos longitudinais e quantitativos. Porém, os estudos como um todo não refletem tanto a luta pelo espaço do profissional de Psicologia no contexto da Educação Infantil, pois das hipóteses propostas, confirmou-se a preocupação de parte dos estudos com as políticas públicas, porém uma escassez de trabalhos que mencionem a importância do psicólogo. A comparação com os estudos internacionais auxilia para que se possam verificar quais as metodologias que ainda são necessárias no contexto nacional e em quais
aspectos se avançou em comparação com outros países. Essa comunicação global necessita ser enfatizada, pois a abordagem transcultural mostra-se cada vez mais comum e a união entre os múltiplos conhecimentos uma realidade irreversível. Por fim, além do objetivo de levantar a literatura, esse estudo permite também que se possa repensar as práticas profissionais dos psicólogos na área da Educação Infantil e verificar quais as barreiras que ainda precisam ser desconstruídas para a inserção significativa dos psicólogos nesses contextos educacionais. Finaliza-se apontando que devem ser realizados mais estudos com foco longitudinal e que envolvam os diversos contextos do desenvolvimento da criança, reduzindo a tendência a privilegiar a linha individualizante. Além disso, a análise quantitativa deve ser também utilizada, no estudo do papel do psicólogo escolar enfatizado e políticas públicas defendidas nas produções futuras. Estudos posteriores poderiam utilizar o mesmo método com o objetivo de realizar um levantamento bibliográfico sobre as produções na área de Psicologia e o Ensino Fundamental e Médio, identificando se as práticas psicológicas e as pesquisas realizadas na área diferem dos resultados encontrados. Outra proposta interessante, em âmbito nacional, seria a realização uma pesquisa de caracterização dos profissionais de psicologia que atuam nessa área, das práticas por eles exercidas e de sua relação com o campo da pesquisa.
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O Amor de Transferência na Clínica Psicanalítica e no Symposium de Platão Transferential Love in the Psychoanalytic Clinic and in Plato's Symposium Erikson Kaszubowski
I
RESUMO A transferência é um dos conceitos fundamentais da psicanálise que operacionaliza práticas essenciais da clínica psicanalítica. Dentre as diversas facetas que a transferência pode exibir num processo psicanalítico, a mais fundamental é sua dimensão amorosa. Este artigo aborda o amor de transferência a partir de seus fundamentos no conceito de sujeito suposto saber, passando por seus desenvolvimentos com relação a seus aspectos positivos e negativos e elaborando suas implicações para a prática clínica da psicanálise. A prática clínica evidencia a importância da posição e do desejo do analista para poder operar o que Lacan denomina de “metáfora do amor”, desvelando o aspecto resistencial da transferência e permitindo a condução do tratamento sem, no entanto, tratar dos afetos transferenciais como mera ilusão. Por fim, a título de ilustração dos diferentes conceitos ligados à direção da transferência no tratamento, excertos do diálogo Symposium (O Banquete) de Platão são abordados, dando especial atenção ao discurso proferido por Alcebíades para Sócrates.
ABSTRACT Transference is one of the fundamental concepts of Psychoanalysis that relates to key practices of the psychoanalytical clinic. Among the various facets that the transference can show during a psychoanalytical process, the most fundamental is the aspect of love. This paper discusses transferential love from its foundations in the concept of “sujet supposé savoir” (“the one who is supposed to know”), through its developments with respect to its positive and negative aspects, and proposing its implications for the clinical practice of Psychoanalysis. Clinical practice shows the importance of the analyst's position and desire to operate what Lacan names “metaphor of love”, which unveils the resistential aspect of the transference and allows the conduction of the treatment without treating the transferential affects as an illusion. Finally, as an illustration of the various concepts linked to the conduction of the transference during treatment, some excerpts from Plato's dialogue Symposium are addressed, with special attention to the speech given by Alcibiades to Socrates.
Palavras-chave: psicanálise, clínica, amor, transferência.
Keywords: psychoanalysis, clinic, love, transference.
INTRODUÇÃO O Analista e Seus Amores
Terapeuta aos “amores terapêuticos”, como ele denomina. O desespero inicial do interlocutor epistolar de Calligaris é deflagrado pela possibilidade de ele, enquanto analista, se apaixonar por uma paciente. Qual é a relevância dessa temática para receber tanta atenção numa obra endereçada a aspirantes a
Calligaris (2004) dedica todo o quarto capítulo de seu livro Cartas a um Jovem
I Professor Me. Assistente da Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Cerro Largo
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24 psicoterapeutas? Se ela é de fato relevante, quais seus fundamentos e seu lugar no tratamento? No que diz respeito ao apaixonamento do analista, podemos dizer que esse medo tem fundamento. É por ser convocado por seu desejo pessoal a ocupar um lugar especular em relação ao paciente que o analista funciona como fonte de resistências no tratamento. A prevalência desse fenômeno e seu peso para dificultar o andamento de um processo analítico levou Lacan (1985) a afirmar que a resistência que impede uma análise é a do analista, uma vez que é por sua paixão pessoal que o analista não consegue deixar vacante sua posição imaginária, dificultando que as fantasias do paciente possam se apoiar transferencialmente sobre si. Tendo sua origem no desejo singular do analista, esse aspecto do “amor terapêutico” só pode ser endereçado em sua análise pessoal. Portanto, afora situar o aspecto claramente resistencial da paixão do analista, não nos alongaremos em sua abordagem.
A Transferência e Sua Dimensão Amorosa Deixemos, então, um pouco de lado a resistência do analista, e procuremos ver o que se passa no divã: qual é a natureza desse “amor terapêutico” que aflige o analisando? Podemos localizar sua origem no que Lacan (1998a) chama de “sujeito suposto saber”. Segundo Lacan, é a partir desse conceito que podemos pensar o início da transferência, pois ele faz referência a uma série de processos que servem de impulso inicial para mobilizar os complexos inconscientes. De que maneira o sujeito suposto saber marca o início da transferência? Isso acontece porque o paciente, ao procurar o tratamento, mesmo não tendo ideia alguma de como ele se processa, já vai ao encontro do analista tendo certeza de que esse dispõe de um sentido e uma resposta para suas queixas e angústia. Assim, como afirma Nasio (1999), não é o analista o primeiro objeto da
transferência, mas sim a relação do analista com a psicanálise. Mais estritamente, o que está em jogo na busca de um tratamento é a transferência do sujeito com um determinado campo de saber, por mais vago que ele possa se constituir. Se a psicanálise, a psicologia, a psiquiatria ou a área “psi” não se constituem como um Outro passível de ratificar sentidos para o sujeito, ele procurará outros saberes para lidar com seus sintomas e enigmas; se, por outro lado, o sujeito reconhecer nesse campo a possibilidade de significação de suas questões, essa transferência inicial já está estabelecida, e o profissional que ele buscar se encontrará, antes de tudo, no lugar de um representante desses saberes – um sujeito “sub-posto” ao saber (Harari, 1987). Essa ideia já aparece, de maneira germinal, na obra freudiana: a encontramos logo no início do artigo A Dinâmica da Transferência, quando Freud (1990a) comenta que o neurótico, por ter seu investimento libidinal insatisfeito, já tem no inconsciente uma carga libidinal pronta por antecipação, que acaba por se dirigir à figura do analista, ligando-o a uma série de amores passados. A primeira manifestação dessa carga libidinal transferida ao analista é a demanda de respostas, de sentidos para as questões fundamentais do sujeito que emergem através de seus sintomas. A demanda de saber preliminar à transferência, todavia, não se configura como algum interesse estritamente intelectual, ou como alguma pulsão epistemofílica, para dizer com Freud. Trata-se, desde o início, de um demanda intransigente de amor, na qual o paciente espera ser reconhecido pelo analista. Tal fato fica evidente se lembramos da origem à qual Freud (1990b) remonta os sentimentos de respeito e veneração que são tão comumente nutridos pelo paciente em relação a seu analista: as “antigas aspirações sexuais [...] das pulsões parciais infantis” (p. 188). Em função deste investimento libidinal inicialmente travestido de demandas de saber, logo no início da análise, o analisando quer se transformar em alguém amável, não apenas no
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25 sentido gentil ou carinhoso, mas como alguém passível de ser amado. E é aqui que se encontra o que Freud denominou de “engano do amor”. Mas antes de entrar nessa discussão de maneira mais aprofundada, é necessário compreender que amor é esse que se estabelece na transferência. A transferência pode surgir tanto de forma positiva quanto negativa (Freud, 1990a). Foquemos nossa atenção inicialmente na transferência positiva. Freud afirma que ela se divide em dois grupos de afetos principais: os sentimentos amistosos e afetuosos dirigidos à figura do analista, e os sentimentos eróticos que remontam à sexualidade infantil. O que temos no momento inicial da transferência, junto e no desenvolvimento da propulsão inicial dada pelo sujeito suposto saber, é o que passou a ser conhecido como “namoro de transferência”: o paciente se encanta pelo analista em função do investimento libidinal para ele transferido, e, levado pelo fascínio, faz de tudo para poder agradar seu amado. As associações livres começam a acontecer sem muitos tropeços, os atrasos não se repetem, e como afirma Freud (1990c) em suas Observações sobre o amor transferencial, inclusive deixa de se queixar de seus sintomas, ou mais, seus sintomas já não existe mais, está curado. Mas Freud apela para que nos mantenhamos com nossos pés no chão e não sejamos levados pelos inúmeros atrativos oferecidos pelo paciente: sua cura e docilidade é obra da sugestão, e se mantivermos o tratamento psicanalítico na abstinência, ou seja, sem responder às constantes demandas do analisando, esses efeitos sugestivos caem por terra, e as queixas e sintomas tendem a voltar, muitas vezes ainda piores do que antes. É nesse momento, quando a especularidade imaginária da paixão se quebra, que a transferência mostra uma de suas faces de resistência: advém aí a transferência negativa, ou seja, os sentimentos de ódio visando o analista, e o aspecto erótico da transferência positiva, na qual o paciente se mostra totalmente desinteressado pelo tratamento e exige do analista o
reconhecimento de seu amor. A emergência conjunta desses sentimentos ambíguos, por mais estranha que possa soar, em nada é surpreendente se lembrarmos da ambivalência que marca os complexos inconscientes e que são o ponto de origem da transferência com o analista. Encontramo-nos de volta à encruzilhada que deixou o interlocutor imaginário de Calligaris (2004) perplexo. Essa perplexidade, porém, não afeta somente a ele: a repetição constante desse fenômeno fez com que Freud (1990c) escrevesse um artigo tratando exclusivamente do amor transferencial; e, somando-se a isso, Lacan (1998a) reitera que o que é central na transferência é justamente sua dimensão amorosa. O que fazer quando o analisando declara seu amor pelo analista e exige uma resposta? Calligaris (2004) retoma as respostas que Freud (1990c) elencou como possíveis dentro do que se espera na cultura quando algo dessa natureza acontece: ou bem o analista aceita inteiramente o amor do analisando, ou corta totalmente sua relação com ele, para evitar que o relacionamento leve ao desastre, ou ainda aceita parcialmente seu amor e tem um pequeno affair com seu paciente. Invariavelmente, seja qual for a escolha feita dentre essas três, a continuidade do tratamento se torna impossível e a resistência consegue aquilo que objetivara: manter recalcado os desejos inconscientes inaceitáveis, encerrando a análise. Como psicanalistas, entretanto, não podemos aceitar nenhuma das escolhas mencionadas acima, nem tampouco ficarmos parados, perplexos, frente a essa situação. E para isso retornamos à questão do engano do amor: a declaração de amor reiterada pelo paciente, e que serve também de resistência, trata-se, na verdade, em uma demanda de amor: “amo-te para que me ames em troca”. Nesse sentido, o amor, na psicanálise, tem um caráter eminentemente narcisista, pois, por mais que as pessoas o considerem como um sentimento especial, como diz Freud (1990c), uma página na qual nenhum outro texto é permitido, na verdade trata-se de uma forma
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26 do Eu exigir ser amado por um objeto idealizado, exaltando a si próprio enquanto ideal. Não interessa ao analista fazer esse amor desaparecer logo de início, mas cabe mantê-lo sempre em vista, mesmo que não satisfazendo suas exigências, pois, justamente por se mostrar como resistência, o amor erótico na transferência está ligado aos conteúdos recalcados. Como afirma Freud (1990c), a transferência funciona como resistência justamente porque quando a investigação analítica consegue se aproximar de determinados complexos recalcados, parte desses complexos são transferidos para o analista, erigindo sua presença como um impedimento para que o analisando continue com suas associações, uma vez que elas passam a se dirigir ao sujeito a quem ele fala. Ainda que isso possa parecer um impedimento a um dos primeiros objetivos formulados por Freud ao tratamento psicanalítico – o de tornar consciente o inconsciente por meio da interpretação (Freud, 1990f) –, o analista se aproveita dessa situação para dissolver as forças que mantém recalcado os complexos, possibilitando que o tratamento ocorra, e que seja esclarecido para o analisando para quem aquelas demandas estão endereçadas. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o amor de transferência se impõe como uma forte fonte de resistência – a mais forte, diz Freud (1980a) – é justamente a partir dela que os conteúdos do inconsciente podem ser trazidos à tona. Em outras palavras, espera-se, numa análise, que o paciente resista, pois a resistência serve como indício da força que recalcou o desejo, fazendo-o retornar como sintoma; dissolver a resistência pelo uso das interpretações permite também levantar o recalque. Além disso, se existe alguma resistência que impede a continuidade do tratamento, é justamente aquela referida no início do texto: a resistência do analista, quando ele, por exemplo, aceita o amor do paciente como sendo obra de sua grandiosidade, ou quando nega totalmente esse afeto, fazendo de conta que ele não existe.
Para além da resistência, então, como a transferência contribui para a emergência de conteúdos do inconsciente? O paciente insiste, na transferência, em repetir determinados padrões de conduta de sua vida sexual, inscritos em sua infância, ao invés de associar livremente e permitir que o psiquismo apareça na análise como recordações verbalizadas. Pois, como afirma Freud (1990d), os conteúdos inconscientes não desejam ser recordados como pedimos no tratamento, ou seja, pela fala, mas procuram aparecer como contemporâneos e reais, mobilizando paixões que não levam em conta a situação atual, uma vez que o inconsciente é atemporal. É a análise dessa repetição que substitui a neurose original por uma neurose de transferência, forçando o analisando a submeter seus impulsos à via da fala ao invés da compulsão motora, o que permite tornar claro para o paciente como ele constituiu as singularidades com que conduz sua vida erótica, obtendo junto com isso a convicção pessoal necessária para levar a cabo o tratamento analítico (Freud, 1990f). Cabe, ainda, uma discussão que se repete tanto no quarto capítulo do livro de Calligaris (2004), quanto no artigo de Freud (1990c) sobre o amor transferencial: qual é o estatuto desse amor que surge na clínica? Inicialmente, ele aparenta ser de natureza artificial, produzido quase que como em laboratório, e resultado da singularidade do método psicanalítico. Ainda que verdadeiro, isso não é, contudo, toda verdade. Pois, assim como o amor de transferência é a repetição de protótipos eróticos infantis, também o é todo estado amoroso, mesmo aqueles que acontecem espontaneamente, fora do setting analítico. Como nos esclarece Freud (1990c), é justamente de sua determinação infantil que o amor recebe seu caráter compulsivo, o que nos leva a afirmar que o amor “genuíno” em muito se aproxima dos processos psíquicos patológicos. Para ilustrar esse aspecto pervasivo da dimensão transferencial no amor, mesmo fora de um processo analítico, passaremos à análise de um caso de
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27 transferência amorosa no diálogo O Banquete, de Platão, situando principalmente seu caráter de engano, no sentido dos descaminhos necessários para que uma mensagem chegue ao destino ao qual foi endereçada, e abordando os vários aspectos relativos à transferência que foram acima expostos.
Um Caso Clássico De Amor Transferencial Tomemos, então, o clássico diálogo de Platão (2004) sobre o amor, O Banquete, e vejamos o que Lacan (2010) nos ensina a partir dele. Não nos preocupemos aqui em examinar os extensos elogios a Eros feitos pelos vários interlocutores, muito menos na preleção que Sócrates coloca na boca de Diotima. Vamos nos ocupar com a parte final do Symposium, quando toda ordem é destruída pela chegada de Alcibíades, que muda o tema da festa: o foco sai do amor para se fazer um elogio à pessoa amada. Esse panegírico, que o recém-chegado dedica a ninguém mais que Sócrates, parece totalmente excêntrico ao Banquete, uma vez que abandona a linha condutora dos discursos proferidos até então na tentativa de definir a essência de Eros, e passa a demonstrar, em ato, o aspecto conflituoso da dimensão amorosa para os seres falantes. É nesse momento, entretanto, que temos uma figuração daquilo que se passa na análise, com relação ao amor de transferência. À primeira vista, há uma grande confusão para se determinar quem é o amante, érastès, e quem é o amado, érôménos. Alcibíades insiste para Sócrates ser seu amante, sem pudor algum, e faz uso, para dizer com Lacan, de todo seu sexappeal de jovem mancebo. Fica claro, na sua fala, que ele deseja ser amado por Sócrates para que possa se aperfeiçoar na busca pelo Bem, ou seja, de Sócrates ele busca a sabedoria. Em outras palavras: no caso de Alcibíades, o caráter amoroso ligado à dimensão do sujeito suposto saber fica evidenciado de saída. O amor afetuoso e erótico dirigido a Sócrates parte da suposição de Alcibíades de que no
interior de Sócrates residem saberes preciosos, os quais ele gostaria de compartilhar, assim como o analisando parte da “sub-posição” do analista a um saber sobre seu sintoma para por fim tornar claro o caráter libidinal dessa relação (Harari, 1987). Não está aí, portanto, escancarada a mesma demanda feita pelo analisando? Fundada no sujeito suposto saber, ela surge da boca do analisando de várias maneiras: afeição, reclamações, confissões. Mas a demanda continua a mesma: “ama-me, pois se alguém da tão grandiosa beleza – belo como Sócrates, poderíamos ironizar – deseja-me como amado, quão belo serei eu?” Ou então, nas palavras do próprio Alcibíades: “Creio que és o único que merece ser meu amante, e que não tens evidentemente coragem de declararte” (Platão, 2004, p. 158). O analisando encontra-se aí no lugar de érôménos, e coloca o analista no lugar de érastès, de idealização, naquele momento que denominamos de “namoro da transferência”. O caráter narcísico dessa posição inicial fica evidenciado pela maneira como o analisando se coloca como bela alma: não bastando ele não estar, nessa demanda, em nada implicado como sujeito do desejo, ele ainda dá ares de plenitude imaginária, de uma esfera aristofânica que não foi cindida, castrada. Voltemos ao Banquete. Há algo nisso tudo que incomoda Alcibíades. Ora, se Sócrates já havia dado mostras claras de seu amor, por que razão era necessário que Alcibíades usasse de artimanhas para que Sócrates se declarasse, por fim? O autor do panegírico é obrigado a assumir uma posição diferente daquela do início, é obrigado a admitir para Sócrates seu desejo por ele. Processa-se, então, uma mudança de lugares, e Alcibíades tece um elogio a Sócrates que ganhou especial relevância a partir dos comentários de Lacan (2010). Afirma Alcibíades que Sócrates se assemelha a um sileno: além de extremamente feio, é hirsuto e tem um jeito de ignorante. Mesmo assim, encerra, dentro dele, algo de extrema preciosidade, o agalma – termo que muitas vezes passa despercebido pela falta de
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28 rigor das traduções, e que originalmente pode significar tanto objetos ornamentados, como joias, quanto oferendas dispostas nos templos dos deuses, ou ainda estatuetas. Quando Alcibíades descobriu esses maravilhosos objetos, esses agalmata, no interior do filósofo, se enamorou dele e se viu disposto a atender todas as suas exigências. É quase desnecessário lembrar, porém, a posição de Sócrates frente ao saber – de que ele, de fato, nada sabe, e portanto não pode possuir tais saberes maravilhosos para compartilhar, assim como o analista não detém em seu poder os sentidos buscados pelo analisando e nem os objetos a que o paciente reconhece em seu semblante. Essa vacuidade, contudo, não impede o dispositivo analítico de funcionar nesta direção. Eis aí projetado um segundo momento da análise – momento, sempre é bom retificar, que é lógico, pois não se trata de etapas de desenvolvimento – que Lacan (2010) irá denominar de metáfora do amor. Sem nos estendermos muito na definição lacaniana de metáfora, poderíamos dizer, simplesmente, que é a estrutura na qual a “substituição do significante pelo significante [...] produz um efeito de significação” (Lacan, 1998b, p. 519). Pois bem, a metáfora do amor é justamente essa troca de lugares ilustrada no Banquete, na qual o érôménos toma o lugar do érastès. Essa metáfora é efeito de uma certa postura do analista, referente ao que Freud (1990e) recomendou: conduzir a análise num clima de frustração. Há algo aí do desejo do analista, ao escutar a demanda sem aceitar atendê-la, que impede um desfalecimento de seu lugar, fazendo com que a análise não se estagne na identificação amorosa, mas que possa bascular e retornar para a dimensão do desejo. Ou seja, na metáfora do amor não há simplesmente uma troca de lugares, mas sim o advento do sujeito barrado ($), do sujeito cindido pelo desejo, em contrapartida a um objeto causa-dedesejo, um agalma, objeto a, erigido no lugar do analista. Fica evidente também na fala de Alcibíades o caráter ambivalente da transferência: ao mesmo tempo em que tece
elogios inúmeros a Sócrates, especialmente no que diz respeito aos saberes a ele supostos, ele também faz críticas mordazes à sua falta de coragem em tomá-lo efetivamente como amado. A recusa de Sócrates em aceitar a demanda de amor de Alcibíades faz com que este passe para o desejo que o animava; a condução da análise em clima de frustração permite sair das queixas iniciais e das demandas intransigentes de amor para colocar o analisando face à face com seu desejo e com seu fantasma fundamental. Surge aí novamente a dimensão da falta, do desejo, que havia sido elidida no momento do amor transferencial. É somente tombando desse lugar de idealização que o analisando insiste em colocá-lo que o analista pode ocupar o lugar desse agalma causa-de-desejo do sujeito, e fazer a análise circular. Para finalizar, cabe ainda uma última observação: ao final do elogio a ele dirigido, Sócrates replica que, apesar de não ter deixado explícito, o discurso de Alcibíades tinha um destinatário óbvio, mencionado apenas no fim de sua fala: Agáton, anfitrião do banquete. Os objetivos de Alcibíades também são interpretados por Sócrates: não se tratava de elogiá-lo ou criticá-lo, mas sim de criar intrigas entre Agáton e Sócrates, de forma a evitar uma aproximação entre ambos. A exatidão com que Sócrates constrói sua interpretação pode ser elevado ao valor de um exemplar da interpretação psicanalítica dos fenômenos transferenciais. Não se trata, na interpretação da transferência, de reter os afetos transferenciais no aqui-e-agora do setting analítico, mas identificar o seu efetivo endereçamento e torná-lo claro por meio das intervenções do analista.
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29 FREUD, S. (1990b). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Salomão, J. (Org.), Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (3a Ed.) (Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1905). FREUD, S. (1990c). Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III). In Salomão, J. (Org.), Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (3a Ed.) (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1915) FREUD, S. (1990d). Recordar, repetir e elaborar. In Salomão, J. (Org.), Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (3a Ed.) (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1914). FREUD, S. (1990e). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In Salomão, J. (Org.), Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (3a Ed.) (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1912) FREUD, S. (1990f). Além do princípio de prazer. In Salomão, J. (Org.), Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. (3a Ed.) (Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1920) HARARI, R. (1987). Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de Lacan. Campinas: Papirus Editora. LACAN, J. (1985). O seminário. Livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original proferido entre 1954-1955) LACAN, J. (1998a). O Seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2a Ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original proferido entre 1963-1964) LACAN, J. (1998b). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957). LACAN, J. (2010). O Seminário. Livro 8: A transferência (2a Ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original proferido entre 1960-1961). NASIO, J.-D. (1999) Como trabalha um psicanalista? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. PLATÃO (2004). Apologia de Sócrates. Banquete. São Paulo: Martin Claret.
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O Conceito Freudiano de Desejo Inconsciente: Implicações no Entendimento das Sintomatologias Contemporâneas¹ Freud´s Concept of Unconscious Desire: Implications for Understanding Contemporary Symptomatologies I
Jefferson Silva Krug, Paula Kegler
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RESUMO O conceito de desejo inconsciente é um dos tópicos mais importantes da teoria psicanalítica. O estudo deste tema em Psicanálise se faz necessário sempre que surgem questionamentos sobre as manifestações clínicas na contemporaneidade. Este trabalho, por sua vez, aborda o conceito de desejo inconsciente a partir da teoria freudiana, buscando apresentar algumas discussões sobre a relação entre esse construto, a formação dos sonhos e dos sintomas atuais. Entende-se que os modos de expressão do sofrimento contemporâneo caracterizam-se por manifestações que privilegiam o corpo e a ação, sendo sua dinâmica principal o esvaziamento da capacidade desejante e o declínio do princípio da realidade. Compreende-se a contemporaneidade como um tempo que demanda o gozo pleno e ilimitado ao sujeito, fazendo com que os sintomas passem a assumir formas que indicam a necessidade de seres perfeitos, completos e constantemente satisfeitos, uma decorrência da não tolerância à falta, à incompletude e ao próprio desejo.
ABSTRACT The concept of unconscious desire is one of the most important topic in psychoanalytical theory. The study of this theme in Psychoanalysis is needed whenever inquiries about contemporary clinical manifestations are brought up. This paper approaches the concept of unconscious desire from the perspective of the freudian theory, in an attempt to introduce some discussions about the relation of this construct, the formation of dreams, and contemporary symptoms. It is understood that the expression modalities of contemporary suffering are characterized by manifestations that privilege the body and the action, and their main dynamics are the deflation of the desiring capacity and the decaying of the principle of reality. The contemporary is understood as a time that demands, from the subject, a full and unlimited enjoyment, causing the symptoms to take forms that denote the need for perfect, complete and constantly satisfied beings; a result of the intolerance to the lack, to the incompleteness and to desire itself.
Palavras-chave: desejo inconsciente, clínica psicanalítica, contemporaneidade.
Keywords: unconscious desire, psychoanalytic clinic, contemporary.
Introdução:
os dias atuais (Brasiliense, 1999; Garcia-Roza 2000, 2001, 2002; Greenberg & Mitchell, 1994; Hanns, 1999; Weinmann, 2002). O estudo desta temática se faz necessário sempre que surgem questionamentos sobre as manifestações clínicas na contemporaneidade, uma vez que,
O conceito de desejo inconsciente está no centro da teoria e da técnica psicanalítica, o que confere a esse construto uma importância especial na problematização da Psicanálise até
1 Este trabalho é parte integrante da Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica intitulada “A realização imaginária de desejos inconscientes num grupo terapêuticos de crianças: a saída edípica e a entrada no período de latência” desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com o apoio da CAPES I Doutorando em Psicologia (UFRGS) e professor da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) II Doutoranda do PPG em Psicologia da PUCRS. Professora do Curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Taquara FACCAT.
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31 para Freud, desde 1895, o desconhecimento de seu desejo por parte do sujeito seria uma das causas dos sintomas (Chemama, 1995). Neste trabalho, abordaremos a posição que o conceito de desejo inconsciente ocupa na obra freudiana. Em seguida, discutiremos como esse construto compreende aspectos fundamentais da constituição do aparelho psíquico, repercutindo nas expressões subjetivas e sintomáticas do cotidiano clínico.
Uma Moção que Busca Caminho para a Descarga de Excitação Iniciamos nosso caminho investigativo através da discussão sobre o construto desejo inconsciente na primeira teoria do aparelho psíquico de Freud. Em seu desenvolvimento, o pai da Psicanálise apoiou suas ideias num conjunto de conceitos que se relacionam entre si e que possibilitam um modelo explicativo da constituição e do funcionamento psíquico do sujeito. A leitura de alguns dos textos mais significativos dessa época, como Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1895/1996) e A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900/1996), leva-nos a constatar a importante marca que o conceito de desejo ocupou em seu pensamento. Após esses escritos, o termo desejo não recebeu nenhum desenvolvimento importante no restante de suas publicações, fazendo com que inexista uma teoria específica do desejo (Cesa, 1997; Chemama, 1995; Laplanche & Pontalis, 2001; Valls, 1995). Ainda que Freud tenha aprofundado o conceito de desejo de maneira pouco frequente no restante de sua obra, podemos encontrá-lo citado ao longo de toda ela (Valls, 1995). Por esse motivo, associado à importância que o desejo possuía na formulação da primeira teoria freudiana do aparelho psíquico, constata-se que esse construto ainda se situa no centro das indagações e da pesquisa psicanalíticas (Dockhorn & Macedo, 2008; Rosolato, 1999). As primeiras dificuldades encontradas ao buscar definir tal construto
residem nos problemas de tradução e na polissemia do termo para a Psicanálise. Além disso, seu uso nos textos psicanalíticos, muitas vezes, confunde-se com outros conceitoschave como o de pulsão e de libido. Por estas e outras razões, é possível afirmar que não há uma definição estrita do termo, mesmo que ele se faça claramente presente quando associado a um arcabouço teórico mais extenso (Cesa, 1997; Chemama, 1995; Laplanche & Pontalis, 2001; Valls, 1995). Barros (2010) enfatiza uma dificuldade na compreensão dos sentidos do vocábulo desejo. O termo alemão Wunsch, empregado por Freud originalmente e traduzido para o português como desejo, designa a aspiração, o voto formulado. Tal expressão é utilizada em alemão para se dirigir ao que é almejado, que está distante e é idealizado. O desejo em questão não se refere, portanto, a querer (Wille) ou à vontade (Lust) como algo de alcance mais imediato, mas àquilo que se apresenta para o sujeito como “ideal” ou algo “sonhado” (Hanns, 1996). Essa distinção ajuda a compreender o lugar e a função do desejo inconsciente na dinâmica psíquica individual. De maneira geral, pode-se dizer que o desejo inconsciente está, fundamentalmente, ligado às primeiras vivências de satisfação e à sua resultante no psiquismo do sujeito. As primeiras vivências de satisfação são aquelas experimentadas pela criança quando ainda é muito pequena. Um bebê que sente fome poderá saciá-la através do contato com o seio materno. Assim, uma necessidade orgânica, proveniente de um estado de tensão interna, encontra sua satisfação mediante a ação específica de um objeto adequado (seio). Nesse processo, quando uma necessidade interna é atendida, uma imagem mnêmica da percepção de satisfação se criará e se associará ao traço mnêmico da excitação experimentado quando do surgimento da necessidade (Laplanche & Pontalis, 2001). Desta associação se estabelecerá uma facilitação, que se tornará uma espécie de caminho a ser novamente percorrido quando o indivíduo voltar a
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32 apresentar tal necessidade. No exemplo adotado, a criança, sempre que sentir o desconforto proveniente da necessidade, buscará reeditar a vivência de satisfação experimentada anteriormente. Esse caminho é construído a partir da associação de duas imagens: a do objeto de satisfação e a da descarga pela ação específica (Cesa, 1997; Freud, 1895/1996, 1900/1996). Portanto, quando o sujeito experimenta um estado de urgência, resultante do aparecimento da necessidade, uma moção psíquica procurará reinvestir a imagem mnêmica com a finalidade de reproduzir a satisfação original, de acordo com a associação efetuada anteriormente. A essa moção que busca um caminho para a descarga de excitação, Freud (1900/1996) chama de desejo. Caso o desejo não encontre uma ação específica que satisfaça este estado de tensão, se produzirá uma alucinação. Nesse sentido, na ausência de um objeto real, surge a possibilidade de uma “realização alucinatória do desejo” que visa reencontrar a vivência de satisfação (Cesa, 1997; Freud, 1895/1996, 1900/1996; Laplanche & Pontalis, 2001). A criança, na impossibilidade de encontro com o seio, o objeto específico que lhe proporcionou a satisfação original, poderá aluciná-lo chupando o bico ou o próprio dedo. Portanto, o desejo é concebido como herdeiro da necessidade, ocorrendo uma passagem da necessidade ao desejo no momento em que o ser humano constitui o universo simbólico² (Barros, 1991). Assim, a estruturação do desejo depende da impossibilidade de satisfação decorrente da falta do objeto (Barros, 2010). Hanns (1999) lembra que, na teoria freudiana, os desejos representam a pulsão, portanto devem ser compreendidos como representações na medida em que fornecem forma e imagem, evocando um objeto que o sujeito deseja possuir, tocar, incorporar. Para 2 O termo universo simbólico é aqui referido fazendo alusão à concepção freudiana de que a pulsão nasce apoiada nas demandas de autoconservação e, por meio do desejo de reprodução da vivência prazerosa, diante da ausência do objeto real de satisfação, permite o nascimento fantasia e da realidade psíquica.
Freud (1900/1996), o primeiro movimento do desejo se constitui através da catexização alucinatória da lembrança de satisfação. Desta maneira, pode-se afirmar que o que fica na memória são vivências de prazer, de satisfação e sua reedição se faz pelo desejo. Este visa um objeto ou uma situação associada à vivência de prazer, sendo a alucinação do objeto a forma utilizada pelo psiquismo para reeditar a percepção de satisfação das necessidades primitivas (Hanns, 1996; Laplanche & Pontalis, 2001).
Os Sonhos: Realização Alucinatório dos Desejos Inconscientes Segundo Freud (1900/1996), um dos caminhos que o psiquismo adotaria para buscar a realização alucinatória dos desejos inconscientes seria a construção de cenas e associações de imagens durante a vida onírica. Os sonhos são entendidos, desta forma, como uma produção do psiquismo voltada a satisfazer parcialmente um estado de tensão desejante, transformando-se em espaços singulares para a realização alucinatória de desejos. Além disso, Freud (1900/1996) postula que a formação dos sonhos estaria relacionada diretamente ao conflito existente entre os sistemas Pré-consciente (Pcs.) e Inconsciente (Ics.), o que convoca a um exame de suas considerações a esse respeito. Ao reportar ao modelo de aparelho psíquico desenvolvido por Freud (1900/1996) no texto A Interpretação dos Sonhos, percebe-se o princípio de que o aparelho psíquico voltar-seia à descarga. Neste sentido, ao receber um estímulo, o psiquismo buscaria dar vazão a esta carga de excitação através de uma ação motora. Tal descrição do modelo de aparelho psíquico como um sistema reflexo inclui, ainda, o fato de que o psiquismo possuiria a propriedade de reter traços das excitações que recebe, originando um sistema mnêmico. A memória comportaria, além dos registros de
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33 conteúdos, registros de associações criadas a partir das primeiras vivências de satisfação. Brasiliense (1999) lembra que para a teoria freudiana os registros mnêmicos teriam um caráter inconsciente, enquanto as percepções seriam conscientes. Isso faria com que, para se tornarem conscientes, os conteúdos mnêmicos inconscientes associados à vivência de satisfação deveriam se subordinar a regras e leis de outro sistema que passaria a abrigá-los, exigindo do aparelho psíquico uma transformação. Durante esse percurso, no qual os conteúdos inconscientes são transformados em percepções conscientes, encontraríamos o trabalho do sistema Pré-Consciente. O Pré-Consciente é uma instância que se aproximaria mais da Consciência (Cs.), permitindo ao seu material transpor-se à condição consciente com mais facilidade. Já os registros mnêmicos formadores do Inconsciente só poderiam se tornar conscientes através da ação do Pré-Consciente. Para tal, o material inconsciente seria modificado pelo Pré-Consciente visando atender aos interesses desta instância censora. Esse processo dar-seia mediante ligação do conteúdo inconsciente a uma representação (resíduo verbal, imagem, etc.), “uma vez que só pode ser conscientizado um material que tem natureza consciente, ou seja, que possa ser percebido, que tenha qualidade” (Brasiliense, 1999, p.54). Sendo, então, os sonhos uma realização alucinatória do desejo inconsciente, para alcançar o nível da Consciência seria necessária a ação de mecanismos psíquicos como o deslocamento, a condensação, a transformação de pensamentos em imagens visuais, o simbolismo, a elaboração secundária, a representação pelo contrário, a dispersão e a personificação. Além disso, na formação do sonho estariam implicados diferentes tipos de desejos. O relaxamento do Pré-Consciente, que permite o avanço do material inconsciente, parte de um desejo de dormir. Para Freud (1900/1996), sem a presença deste desejo nenhum sonho seria possível. Paralelamente, sem o sonho, dificilmente poderíamos
permanecer adormecidos, uma vez que o sonho alivia a tensão provocada pelas moções inconscientes, as quais, normalmente, procuraram uma saída motora para as excitações que continuam sendo percebidas durante o sono. Como a via motora está em suspenso quando dormimos, o caminho natural do processamento psíquico se inverte, ou seja, há uma regressão na medida em que os sonhos não são representados numa ação, mas como percepções/alucinações (Brasiliense, 1999). Os desejos provocados durante o sono por estímulos como a sede, a fome ou a sensação de bexiga cheia também fazem parte da formação dos sonhos. Por fim, encontramos os “desejos infantis”, ou “desejos inconscientes”, todos eles originários das vivências de satisfação anteriormente descritas. Estes últimos seriam, segundo Freud (1900/1996), aqueles que estariam sempre implicados no processo de formação do sonho. Isso porque os desejos inconscientes utilizarse-iam de outros tipos de desejos provenientes dos restos diurnos e das excitações somáticas para, por meio de associações, conseguir “driblar as resistências estabelecidas contra sua manifestação por obra do recalque, somando sua quantidade de energia à deles” (Brasiliense, 1999, p. 57). Como os restos diurnos não são alvo da resistência, já enfraquecida pelo descanso do PréConsciente, os desejos inconscientes transferem sua energia para estes, estabelecendo uma via de escoamento da tensão interna. Os desejos inconscientes são, desta maneira, a mola propulsora do sonho, exercendo sobre este um papel imprescindível. No entanto, não é apenas na formação do sonho que os desejos inconscientes têm sua importância. Eles marcam forte influência sobre todos os atos humanos sem, no entanto, poderem ser totalmente reconhecidos. Alguns autores relacionam situações nas quais os desejos podem ser identificados: na análise dos sonhos, dos chistes, dos atos falhos, dos sintomas, das combinações de associações de
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34 cada sujeito (Rosolato, 1999) e entre os membros de um grupo (Decherf, 1986), dos fantasmas/fantasias (Missenard, 1975; Yospe, 1980), das manifestações grupais através do interjogo de vínculos e papéis (Fernandes, 2003) e das formas de organização grupal (Anzieu, 1993; Decherf, 1986; Kaës, 1997; Krug & Seminotti, no prelo). Nesta perspectiva, a clínica psicanalítica circunscreve um campo privilegiado de manifestações originárias de desejos inconscientes singulares.
O Desejo Inconsciente na Clínica Contemporânea O encontro analítico permite, por meio da palavra e da escuta, o acesso às formações do inconsciente. A análise dos sonhos, dos lapsos verbais, das manifestações sintomáticas e da relação transferencial viabiliza uma aproximação ao desconhecido do desejo. Baratto (2010) define que a transferência configura-se como uma atualização do desejo inconsciente na medida em que possui a propriedade de transformá-lo e reproduzi-lo a partir de representantes substitutos. Também Dockhorn e Macedo (2008) demarcam o território da transferência, defendendo a concepção de que a técnica psicanalítica consiste no encontro intersubjetivo que se propõe a traduzir os conteúdos inconscientes com o intuito de modificar a significação do desejo. Este novo sentido, segundo as autoras, possibilita ao paciente a (re)invenção de sua própria história. Não se pode desconsiderar, no entanto, que a história do sujeito encontra-se entrelaçada à história da cultura. Diante das atuais configurações culturais, a demanda presente no cotidiano da clínica vem sofrendo modificações. Ehrenberg (2004) propõe uma evolução sociocultural marcada pela passagem de uma sociedade da disciplina que envolve obediência, interdição e autoridade
para uma sociedade da autonomia, cuja característica principal é a liberdade de decisão e ação pessoais. O autor faz uma reflexão sobre as consequências subjetivas deste decurso: “se passa de uma patologia do conflito – que coloca em cena o desejo – para uma patologia da insuficiência – que coloca em jogo a questão da ação” (p. 147). Assim, a clínica psicanalítica contemporânea vem se deparando com novas sintomatologias³ que não seguem, predominantemente, a lógica do conflito psíquico, do recalque e da representação. Neste sentido, novos modelos de abordagem do mal-estar humano estão sendo pensados para dar conta de um sofrimento que escapa à referência das interdições morais e que, portanto, se afasta da dialética da falta e do desejo como arcabouço da subjetividade. Estas novas manifestações psíquicas caracterizam-se, principalmente, pela dificuldade de construção representativa por parte do aparelho psíquico, fazendo com que o sintoma seja expressado diretamente no ato ou no corpo. O paciente não mais recorda, ele age sua dor. Tal configuração pode se dar na ausência de ação, num estado de total letargia – as depressões – ou na ação total – compulsões, adições, impulsividades, bulimias, anorexias, autotomias, manifestações psicossomáticas, estresse, pânico. Conservando as particularidades de cada um destes modos de expressão do sofrimento contemporâneo, percebe-se que o que eles apresentam em comum é que as suas manifestações privilegiam o corpo e a ação e sua característica principal é um esvaziamento da capacidade desejante. Atualmente observa-se um declínio do que Freud (1911/1996), no artigo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, chamou de princípio da realidade que surge como forma de barrar o que o princípio do prazer 3 Faz-se importante considerar que o uso do termo novas sintomatologias não é unânime na teoria psicanalítica. É possível encontrar autores com leituras diversas que estabelecem um contraponto à concepção apresentada neste artigo. Ainda que existam diferenças de nomenclatura, propõe-se uma compreensão acerca das manifestações atuais do padecimento psíquico que se traduzem por falhas na capacidade de representação de um psiquismo que pouco elabora e que viabiliza o triunfo do ato sobre a palavra.
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35 busca. O primeiro indica a percepção de que o mundo reluta em se submeter à vontade do sujeito. É a apreensão do mundo como real, intimidante e limitante. Já o segundo é o movimento de busca humana do que é agradável, do prazer e da felicidade através da diminuição da tensão pulsional causada pela intensa estimulação do aparelho psíquico. Com o advento do princípio da realidade já não se representa apenas o que é agradável, mas o que é real, mesmo que o real seja desagradável. O princípio da realidade se instala para adiar o prazer, ou seja, “um prazer momentâneo, incerto quanto a seus resultados, é abandonado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde, ao longo do novo caminho, um prazer seguro” (Freud, 1911/1996, p. 283). Este princípio surge para modificar o princípio do prazer na medida em consegue impor-se como princípio regulador. Com o abrandamento do princípio da realidade na sociedade contemporânea, a satisfação não é mais adiada. Na cultura do carpe diem, a satisfação imediata impõe-se como princípio de sobrevivência, produzindo a permanente busca por prazeres evasivos e fugazes que, assim que forem apreendidos, já escapam. A satisfação é, então, assim como a contemporaneidade, fluida (Bauman, 2001). As relações tornam-se voláteis, pautam-se no princípio do prazer, promovendo a abolição do adiamento da satisfação, pois a recompensa deve ser instantânea. No entanto, esta satisfação é breve, um momento de êxtase. Sem demora, uma nova vivência de prazer urge como garantia de uma satisfação absoluta. A conjuntura econômica seduz e deixa crer que o consumo possibilita a realização plenamente satisfatória dos desejos. No entanto, desconsidera-se a salvaguarda da permanência do desejo: a falta. Baratto (2009) ressalta que “a realização do desejo não seria outra coisa senão o restabelecimento da situação originária de satisfação de forma alucinatória. A realização alucinatória do desejo permite-nos depreender o caráter ficcional próprio do desejo” (p. 78). É a ausência de satisfação plena que viabiliza a
constituição psíquica representacional e simbólica por meio da reedição das vivências de prazer via alucinação. Uma cultura que silencia esta falta constitutiva, medicalizando e anestesiando qualquer manifestação de sofrimento, parece aprisionar o desejo de modo a torná-lo vazio ou insuportável. Assim, o mundo atual oferece inúmeras possibilidades e exige que o sujeito atinja um estado de plenitude que é inalcançável. Desta forma, o vazio se revelaria pelo excesso e o desejo se traduziria como necessidade. Daí a busca de satisfação imediata, de ordem mais propriamente corporal e das sensações, sem a espera – que é o que leva à elaboração psíquica. Lebrun (2004), ao caracterizar a falta de limites presenciada na contemporaneidade, discursa sobre a “redução do desejo humano ao que é necessidade, consecutiva à desinscrição desse caráter decepcionante” (p. 139). Na medida em que o desejo figura-se como uma necessidade, o sujeito dos tempos atuais passa a acreditar que a satisfação plena é possível, pois não leva em consideração o impedimento causador da falta que assegura a sobrevivência do desejo e de um psiquismo representacional. Quando a realização intrapsíquica do desejo não é suficiente, o sujeito precisa satisfazê-lo na realidade material. Pode-se pensar, portanto, que a imposição contemporânea de realização plena do desejo é justamente o que o torna vazio, posto que a sua sustentação é a impossibilidade. Não satisfazê-lo permite ressignificá-lo. A partir destas considerações, questiona-se a respeito do papel da clínica psicanalítica. Tal como os sonhos, a relação transferencial, enquanto pilar da técnica psicanalítica, revela a migração de representações inconscientes, retratos de um desejo que requer reconhecimento e elaboração. Dockhorn e Macedo (2008) ressaltam que o tratamento psicanalítico precisa situar-se na via contrária aos imperativos contemporâneos, afirmando que “é pela via da transferência que, na Psicanálise, analista e analisando, juntos, no campo intersubjetivo, caminham em direção à
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36 singularidade do sujeito, possibilitando a ele a apropriação de seus desejos” (p. 222).
CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da leitura dos textos freudianos e de autores contemporâneos pode-se sugerir que as ações do ser humano seriam, de alguma maneira, influenciadas pelos desejos inconscientes. Isso se deve ao fato de que, ao engajar-se na ação de reencontrar o objeto de satisfação, o sujeito necessita utilizar as relações de tempo, espaço e causalidade próprias do mundo externo, buscando nestas as representações dos objetos de satisfação originários do mundo interno. Nesta perspectiva, Hanns (1999) considera que “o sujeito, em vez de progredir nas alucinações, procura viabilizar o desejo levando em conta o princípio de realidade” (p. 104). Assim, admitir a imposição da realidade faz com que o desejo perca o caráter imediatista de urgência e consolide-se como um norte daquilo que, para o sujeito, representa simbolicamente o estado de bemestar. Por outro lado, ao considerar a contemporaneidade como um tempo que demanda gozo pleno e ilimitado ao sujeito, pode-se compreender muitas das manifestações sintomatológicas atuais como decorrentes de falhas na instauração do princípio da realidade. Por isso, os sintomas passam a assumir formas que indicam a necessidade de seres perfeitos, completos e constantemente satisfeitos, uma decorrência da não tolerância à falta, à incompletude e ao próprio desejo. Pode-se dizer que, paradoxalmente, é o processo regressivo provocado pelo embate entre os desejos e as realidades que possibilita ao sujeito a aproximação com seu desejo inconsciente. Assim, na impossibilidade de realização imediata deste desejo surge a chance de questionamento do sujeito sobre si próprio, sobre seus sintomas, seus sofrimentos e seus prazeres, assim como sobre suas formas
de ser e estar com os demais sujeitos. Por essas razões, entende-se que a clínica psicanalítica contemporânea revela-se como uma rica ferramenta propulsora de questionamentos do sujeito sobre a sua própria condição psíquica.
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Perfil da clientela atendida numa clínica-escola de Psicologia do interior do Rio Grande do Sul Clientele profile of a Psychology clinical school from the interior of Rio Grande do Sul I
II
Manuele Giacomelli, Ana Patrícia Griebler, Ana Paula Benatti,III IV Mariléia Alflen, Jeane Lessinger BorgesV RESUMO O presente estudo descreve o perfil da clientela atendida no Serviço de Clínica-Escola de Psicologia da Faculdade Três de Maio/SETREM (SERCEPS), localizado num município da Região Noroeste do Rio Grande do Sul. Desta forma, buscou-se descrever as características demográficas da população atendida e as demandas psicológicas neste serviço. Trata-se de uma pesquisa documental, realizada junto aos 173 prontuários no Núcleo de Atendimento Psicológico do SERCEPS, no período de setembro de 2010 a julho de 2012. Em relação ao perfil dos usuários, observou-se que a maioria é de crianças com idades entre seis a 12 anos (24%) e adultos com idade acima de 50 anos (22%). Na faixa etária de seis a 12 anos, 35,8% dos casos foram encaminhados pela rede de ensino, sendo o público predominante de meninos (60,4%). As principais queixas deste público são: dificuldade de aprendizagem (20,8%), comportamento agressivo (20,8%) e sintomas de ansiedade (15,1%). O público acima de 50 anos é predominantemente feminino (78,6%), e a procura de atendimento psicológico deve-se à problemas emocionais (35,7%), depressão (21,4%) e dificuldades familiares (21,4%). Nesta faixa etária, 78,6% dos usuários fazem uso de medicação psicotrópica. Tais resultados podem contribuir para reflexões acerca das intervenções ofertadas pelo serviço.
ABSTRACT The present study describes the profile of the clients treated in the Psychology clinical school service of the Três de Maio College/SETREM (SERCEPS), situated in a city of Rio Grande do Sul's northwest region. We seek to describe the demographical characteristics of the treated population and the psychological demands in this service. It is a documentary research, executed in 173 records in the Psychological Treatment Nucleus of the SERCEPS, in the period of September, 2010 to July, 2012. Related to the user's profile, we observe that the majority is composed of children with ages between six to 12 years old (24%) and adults with age above 50 years old (22%). In the age group of six to 12 years-old, 35,8% of the cases were referred by the education system.Boys were the predominant public (60,4%). The main complaints of this public are: learning disability (20,8%), aggressive behavior (20,8%) and anxiety symptoms (15,1%). The public above 50 years old is predominantly feminine (78,6%), who looks for psychological treatment because of emotional problems (35,7%), depression (21,4%) and family difficulties (21,4%). In this age group, 78,6% of the users use psychotropic medication. These results may contribute to reflections about the interventions offered by the service. Keywords: Psychology's School-Clinic, user's profile, psychological treatment.
Palavras-chave: Clínica-Escola de Psicologia, perfil do usuário, atendimento psicológico.
I Psicóloga graduada pela Faculdade Três de maio - SETREM II Psicóloga graduada pela Faculdade Três de maio - SETREM III Psicóloga graduada pela Faculdade Três de maio - SETREM IV Psicóloga graduada pela Faculdade Três de maio - SETREM V Mestre e Doutoranda em Psicologia - UFRGS.
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39 O presente estudo tem como objetivo descrever o perfil da clientela atendida no Serviço de Clínica-Escola de Psicologia da Faculdade Três de Maio/SETREM (SERCEPS), localizado num município da Região Noroeste do Rio Grande do Sul. Desta forma, buscou-se descrever as características demográficas da população atendida e as demandas psicológicas pela procura de atendimento psicológico neste serviço. Os serviços de clínica-escolas de Psicologia atendem as resoluções que regulamentam os cursos de o Psicologia no Brasil (Lei n 4.119 de 1962), bem como atendem o aspecto social das universidades e faculdades, oferecendo à comunidade local um espaço para atendimentos psicológicos. Conforme apontam Campezatto e Nunes (2007a), grande parte da população brasileira tem acesso aos serviços de Psicologia através das clínicasescolas, uma vez que ainda se trata de um atendimento especializado elitizado. Outro papel das clínicas-escolas é contribuir para a formação profissional dos acadêmicos. O SERCEPS foi inaugurado em abril de 2009, embora as atividades à comunidade fossem apenas iniciadas em setembro de 2010. Este serviço constitui-se como um espaço voltado para a formação profissional dos acadêmicos de Psicologia da SETREM, caracterizando-se pela oferta de diversos serviços psicológicos à comunidade. Este atualmente é composto por três núcleos de serviços: 1) Núcleo de Atendimento Clínico; 2) Núcleo Consultoria em Psicologia do Trabalho e Organizacional; e 3) Núcleo de Projetos Psicossociais à Comunidade. O primeiro consiste em um espaço voltado para atendimento psicológico, psicoterápico e psicodiagnóstico, no qual os usuários são encaminhados pela rede de saúde, de ensino ou da assistência social e/ou a procura ocorre por demanda espontânea. Os atendimentos se configuram por processo de avaliação psicológica ou neuropsicológica, ou atendimento psicológico (psicoterapia individual ou grupal, para crianças, adolescentes, adultos, idosos e de família ou
casal). O segundo núcleo está voltado para o atendimento a empresas fornecendo serviços como recrutamento e seleção de pessoal, análise de funções (responsabilidades e competências), acompanhamento do colaborador no período laboral inicial, entrevista de desligamento, treinamento, capacitação e desenvolvimento, avaliação para promoção, pesquisa de clima organizacional e de satisfação de trabalho e orientação profissional. Por fim, o terceiro núcleo visa atender as demandas da comunidade por meio do desenvolvimento de projetos voltados à prevenção e promoção de saúde, dentro de uma proposta de saúde mental coletiva. Os atendimentos no Núcleo de Atendimento Clínico são realizados por acadêmicos que realizam o Estágio Específico (7º ao 10º semestre), supervisionados por professores que trabalham a partir de quatro linhas teóricas, a saber: Psicanálise, Teoria Cognitivo-Comportamental, Psicodrama e Teoria Sistêmica de Família. Esta pluralidade teórica também tem sido descrita nas clínicasescolas de Psicologia da região metropolitana de Porto Alegre/RS (Campezatto & Nunes, 2007b). Acredita-se que esta característica oportuniza ao acadêmico um espaço rico do fazer psi, bem como de uma ampliação dos conhecimentos teóricos que embasam a clínica psicológica. Este núcleo oportuniza também a discussão de estudos de casos nas reuniões da equipe (professores orientadores e estagiários), sendo que cada linha teórica é contemplada. Os serviços prestados pelo Núcleo de Atendimento Clínico também são embasados pelas ênfases oferecidas no curso de Psicologia da SETREM: Clínica Ampliada e Promoção de Saúde. A ênfase de Clínica Ampliada envolve a concentração em competências para atuar de forma ética e coerente com referenciais teóricos, valendo-se de processos psicodiagnósticos, de aconselhamento, psicoterapia e outras estratégias clínicas, frente a questões e demandas de ordem psicológica, apresentadas por indivíduos ou grupos, em distintos contextos. A ênfase de Promoção de
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40 Saúde consiste na concentração de competências que garantam o desenvolvimento de ações que venham a promover saúde e qualidade de vida em diferentes contextos, de modo a beneficiar indivíduos, grupos, instituições e comunidades, bem como estabelecer estratégias de proteção e promoção de saúde a diferentes contextos, trabalhando a partir das demandadas apresentadas nestes locais. A entrada da clientela no Núcleo de Atendimento Clínico ocorre através do acolhimento. Neste processo recebe-se o cliente, procurando ouvir a sua queixa, o motivo que o faz buscar o serviço e o que espera do tratamento. Também são coletados alguns dados pessoais e do histórico de vida, são esclarecidas informações a respeito do funcionamento do espaço, juntamente com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, na qual o usuário ou responsável legal são informados das especificidades de um atendimento psicológico numa clínicaescola, e demais combinações em relação ao contrato terapêutico. Estudos revisados têm apontado (Campezatto & Nunes, 2007a; Melo & Perfeito, 2006; Romaro & Capitão, 2003) que o perfil da clientela das clínicas-escolas é em geral de criança de 06 a 14 anos e de mulheres dentro da faixa etária que compreende dos 30 aos 50 anos. Sendo as principais queixas apontadas as dificuldades afetivas e problemas de aprendizagem no público infantil e depressão nas mulheres. Na população juvenil, Reppold e Hutz (2008) observaram que entre os principais motivos de encaminhamento de adolescentes para as clínicas-escolas de Psicologia foram conflitos nas relações interpessoais e problemas externalizantes, ou seja, relacionados à conduta como: “mentiras, desobediências, descumprimento de combinações, atos de irresponsabilidade, condutas provocativas e humilhantes (bullying), violência, comportamentos hedonistas indiferentes aos direitos alheios e delinquência” (p. 88). Entretanto, Reppold e Hutz (2008) indicam diferenças entre meninos e meninas no que se
refere aos problemas internalizantes, como baixa auto-estima, desatenção, ansiedade, humor deprimido, apatia, timidez, sento estes mais frequentes no gênero feminino. Campezatto e Nunes (2007a), ao realizarem um estudo documental nas clínicasescolas de Psicologia da região metropolitana do Porto Alegre, apontam que o perfil dos usuários destas foram, em sua maioria, de crianças do sexo masculino, encaminhadas por escolas, devido a dificuldades de aprendizagem ou comportamento. Também é grande a procura espontânea do serviço por mulheres jovens, devido a conflitos relativos ao comportamento afetivo. Neste estudo, dez clínicas-escolas de cursos de Psicologia desta região foram responsáveis pelo atendimento psicológico a 3.372 pessoas, indicando a relevância social destes serviços (Campezatto & Nunes, 2007a). Entre as queixas mais comuns atendidas nestas clínicas-escolas de Psicologia encontram-se dificuldades no comportamento afetivo (27,8%) e dificuldades de aprendizagem (23,9%), seguidas por dificuldades de relacionamento interpessoal (14,5%). Quanto à faixa etária, Campezatto e Nunes (2007a) referem que a grande parte do público atendido foi de crianças com idades entre seis a 10 anos, que compreendem 17,2% da população geral atendida. Além disso, verificou-se que, na amostra geral, 59,7% dos casos são do gênero feminino, se comparado ao masculino (34,9%). Romaro e Capitão (2003) realizaram um levantamento da clientela que buscou atendimento psicológico na clínica-escola de Psicologia da Universidade São Francisco – Campus de São Paulo, entre 1995 e 2000. Para os autores, as cinco queixas mais comuns na população infantil, foram as dificuldades escolares (19%), as dificuldades no relacionamento interpessoal (12,4%), o comportamento agressivo (10,6%), as dificuldades nas relações familiares (10,3%), e os distúrbios relacionados ao sono, alimentação ou controle dos esfíncteres (9,5%). No grupo de adolescentes, predominaram as dificuldades no relacionamento interpessoal
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41 (25,4%), as dificuldades nas relações familiares (22,5%), as dificuldades escolares (9,8%), os distúrbios relacionados ao sono, alimentação ou controle dos esfíncteres e as dificuldades em lidar com as perdas (8,8 %). O estudo realizado por Romaro e Capitão (2003) também aponta que a predominância na busca de atendimentos é maior entre os pacientes do gênero feminino (57,8%). Na infância e início da adolescência, entretanto foi predominante a procura de atendimento por parte de pessoas do sexo masculino, o que praticamente se inverteu a partir dos 15 anos. O estudo de Melo e Perfeito (2006) aponta que a maior parte das crianças trazidas ao plantão psicológico do Centro de Psicologia Aplicada da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia - CENPS, 60,4%, chegou para o atendimento com queixa comportamental e 51% tinham queixas que puderam ser classificadas como emocionais ou afetivas. A idade do público infantil variou entre os seis e os 10 anos. Existe uma prevalência maior de meninos atendidos representando 62,6% enquanto as meninas são 37,4%. Quanto à escolaridade, a maioria das crianças está na pré-escola (28%). No que se refere à busca por atendimento, esta foi caracterizada pela procura espontânea dos pais (33%), seguido por encaminhamentos médicos (22%). Considerando tais aspectos, o presente estudo descreve o perfil dos usuários atendidos numa clínica-escola de Psicologia de uma faculdade privada, de cunho comunitário, no interior do RS. Assim, buscou mapear tal perfil, a fim de compreender a população atendida, comparando-a com os estudos revisados.
MÉTODO Participantes Este estudo se caracteriza por uma pesquisa documental, realizada junto aos 173 prontuários de atendimentos realizados no Núcleo de Atendimento Psicológica do
SERCEPS, no período de setembro de 2010 a julho de 2012. Ao longo deste período foram realizadas 1390 sessões de atendimentos psicoterápicos. O perfil desta clientela é descrito na seção de Resultados e Discussão.
Instrumentos e Procedimentos Inicialmente, foi realizado um levantamento nos prontuários das pessoas acolhidas no período selecionado para a pesquisa. A partir disso, foi construída uma tabela no programa estatístico SPSS versão 13.0, na qual foram inseridas as variáveis de interesse: idade, sexo, escolaridade, profissão, cidade de origem, origem do encaminhamento ao SERCEPS (rede de saúde, por exemplo, ou demanda espontânea), demanda inicial encaminhada, uso de medicação psicotrópica e modalidade de serviço procurada pela clientela. Além disso, buscou-se analisar o número de sessões que a pessoa atendida recebeu no serviço e sobre sua situação atual (em atendimento ou desligada do serviço). Ressalta-se que no momento do acolhimento, o cliente adulto ou pais/responsáveis por crianças e adolescentes assinam um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, informando sobre as características do atendimento prestado na clínica-escola e sobre a eventualidade dos dados informados serem utilizados em pesquisas. Desta forma, todos os prontuários analisados neste estudo possuem assinatura do referido documento.
RESULTADOS E DISCUSSÃO A análise dos 173 prontuários possibilitou uma descrição da clientela atendida no Núcleo de Atendimento Clínico do SERCEPS, ao longo do período de 20102012. Na amostra geral, observou-se que, em relação à idade, esta variou de três a 65 anos
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42 (M= 27,90 anos; DP= 19,10 anos). A maioria dos casos atendidos foi do gênero feminino (60,6%). Em relação à escolaridade, 41,7% possuem ensino fundamental incompleto e 16,6% ensino médio completo. A cidade de Três de Maio foi caracterizada como a principal cidade de origem destes usuários (92,7%). A demanda pela procura por atendimento psicológico foi a mais evidente (97,6%), do que para avaliação psicológica ou neuropsicológica. Além disso, esta provém de demanda espontânea em 41,8% dos casos. Em seguida, observou-se que a rede de saúde (29,1%) e a rede de ensino (17,6%) foram as principais instituições de encaminhamentos. Ainda em relação ao perfil destes, 28,5% fazem uso de alguma medicação psicotrópica, sendo a maioria de antidepressivos (22,4%). Além disso, 12,2% dos usuários fazem uso de mais de um medicamento. Em relação à distribuição da frequência de faixas etárias, a Figura 1 descreve a prevalência destas, indicando que as duas mais frequentes são as que compreendem dos seis a 12 anos (24%) e acima de 50 anos (22%). Na faixa etária de seis a 12 anos, observou-se que a maioria é de meninos (60,4%), sendo 35,8% dos casos encaminhados pela rede de ensino ou por busca espontânea da família (32,1%). Entre as principais “queixas” para tais encaminhamentos, encontram-se as dificuldades de aprendizagem (20,8%), comportamento agressivo (20,8%) e sintomas de ansiedade (15,1%). Tais resultados corroboram os estudos revisados sobre a clientela das clínicas-escolas de Psicologia em outras regiões do RS (Campezatto & Nunes, 2007a), bem como em outras regiões brasileiras (Melo & Perfeito, 2006; Romaro & Capitão, 2003). Conforme Marcelli e Cohen (2009), grande parte das crianças que são encaminhadas para serviços ligados à área de saúde mental é por meio de encaminhamento escolar. Os autores também apontaram que a inadequação escolar quase sempre é tida como primeiro sintoma apresentado, embora na maioria dos casos encubra outra dificuldade.
Para Marcelli e Cohen (2009) a grande maioria dos encaminhamentos infantis é de meninos, como também apontam os dados do levantamento dos usuários do SERCEPS. Nesse sentido, a elevada demanda para atendimento psicológico de meninos por problemas de aprendizagem e por comportamentos externalizantes pode estar associada ao impacto que estes geram na no rendimento escolar, na relação professoraluno e nas relações com os pares no contexto escolar. Ou ainda, pela dificuldade dos educadores frente ao manejo destas questões ou pela supervalorização destes comportamentos como sendo “psicopatológicos”. Conforme argumentam Campezatto e Nunes (2007a), torna-se importante uma visão crítica por parte dos profissionais da Psicologia para entender quais os encaminhamentos realizados pela escola são de fato por origem psicológica ou apenas um encaminhamento maciço, no qual a escola espera que a criança se ajuste ao sistema escolar, através dos ditames do poder institucional. Figura 1. Faixa etária dos usuários atendidos no período de 2010-2012 3 a 5 anos
6 a 12 anos
13 a 18 anos
19 a 30 anos
31 a 50 anos
superior a 50 anos
4% 22%
20%
24%
18%
12% Já o perfil dos usuários na faixa etária acima de 50 anos, é predominantemente feminino (78,6%), a qual busca o serviço tanto pela a demanda espontânea (57,1%), bem como estão associados aos encaminhamentos da rede
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43 de saúde (42,9%). Verificou-se que entre os principais motivos pela procura por atendimento psicológico foram problemas emocionais (35,7%), seguido por depressão (21,4%) e por dificuldades nos relacionamentos familiares (21,4%). Ainda, foi possível observar que 78,6% destes fazem uso de medicação psicotrópica, principalmente antidepressivos. Tais dados podem estar associados à alta prevalência de depressão observada em mulheres que estão na etapa da maturidade, dentro do ciclo vital, bem como à presença de depressão crônica ao longo da vida (Hegadoren, Norris, Silva, & ChiversWilson, 2009; Polisseni, Polisseni, Fernandes, Moraes, & Guerra, 2009). A presença de sintomas crônicos e persistentes da depressão é verificada entre 20% a 30% dos sujeitos com episódios depressivos recorrentes (Bauer et al., 2009). Além disso, histórico de violência e problemas conjugais são eventos estressores associados à depressão feminina (Hegadoren et al., 2009). Este resultado ainda está em consonância com o levantamento do perfil das clínicas-escolas de Psicologia de estudos anteriores (Romaro & Capitão, 2003). Além disso, verificou-se que uma proporção de 10,7% dos casos atendidos nestes serviços refere-se à população adulta com idade acima de 48 anos (Cayeres et al.,1999 citado por Romaro & Capitão, 2003). Romaro e Capitão (2003) sugerem que a procura de atendimento provavelmente esteja relacionada a um aumento da longevidade e da busca por melhor qualidade de vida. O levantamento documental também ofereceu dados referentes ao atendimento psicológico. Desta forma, observou-se que 89,8% dos usuários permaneceram em atendimento por até quatro meses. Destes há uma parcela de 40% dos casos que vieram apenas no primeiro mês, ou seja, ainda no momento de avaliação inicial do caso. O número de sessões frequentadas variou de uma a 33 sessões (M= 5,67 sessões; DP=5,53). Dos casos acolhidos neste período (N=165 válidos), 52,7% (N=87) permanecem atualmente ainda em atendimento. Estes
dados fornecem reflexões acerca do processo de vínculo com o serviço e do processo de vínculo terapêutico, bem como de resistências e desistências do tratamento, podendo se levar em consideração, ainda, o pouco conhecimento dos usuários frente ao trabalho do psicólogo, que pode levar a desistência do tratamento por não cumprir com suas expectativas. A partir do mês de Junho de 2012 foi inserida uma lista de espera para os atendimentos clínicos, uma vez que a demanda da comunidade tem sido expressiva. Ressalta-se, contudo, que o SERCEPS tem como objetivo inicial a formação profissional dos acadêmicos. Acredita-se que a demanda por serviço psicológico deva ser de responsabilidade do município, sendo que o SERCEPS é um dos serviços parceiros da rede municipal de saúde mental. Contudo, no município ainda há uma escassez de serviços públicos na área da Psicologia, o que justifica a grande procura da comunidade pelo serviço.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo buscou descrever o perfil dos usuários atendidos no período de 2010-2012 do SERCEPS. Os resultados indicaram que a maior parcela de usuários encontra-se na faixa etária que caracteriza um público infantil (seis a 12 anos), do gênero masculino (60,4%), por queixas relacionadas à dificuldade de aprendizagem e por comportamento agressivo. Além disso, verificou uma significativa procura por mulheres acima dos 50 anos por atendimento psicológico, por questões familiares e por sintomas de depressão. Nesse sentido, os dados corroboram com os demais estudos sobre o perfil da clientela das clínicas-escolas de Psicologia (Campezatto & Nunes, 2007a; Melo & Perfeito, 2006; Romaro & Capitão, 2003). Dessa forma, cabe pensarmos o significado que as famílias e à escola tem destas principais queixas e como proceder no atendimento a este público. A criança chega até
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44 o serviço por demanda espontânea (dos pais) ou, ainda, encaminhada pela rede de ensino. Esta nunca vem sozinha para o atendimento. Busca-se, então, realizar uma escuta da queixa ou uma avaliação inicial, dependendo dos pressupostos teóricos adotados no atendimento, no qual pais ou demais adultos significativos para a criança, bem como a própria criança, são convidados a participarem das sessões iniciais. O atendimento deste paciente é um pouco diferenciado do atendimento do paciente adulto, uma vez que a criança não pode responsabilizar-se por seu tratamento (Seincman, 2000); por isso, o tratamento da criança envolve também os pais ou cuidadores, e, em algumas vezes, também os professores e outros profissionais que a atendam. O objetivo da avaliação inicial dos encaminhamentos de crianças é discutir os motivos da procura para atendimento psicológico, bem como identificar as variáveis presentes na produção de sofrimento psíquico na infância. Nesse sentido, o brincar é uma das técnicas bastante utilizadas na clínica infantil, independente da linha teórica adotada, uma vez que, através deste, é possível perceber os aspectos emocionais da criança, bem como a sua relação com a dinâmica familiar ou outras variáveis que possam estar interferindo na situação atual. Também é possível a utilização de alguns jogos e livros terapêuticos, técnicas de desenho e testes psicológicos psicométricos e projetivos para auxiliar no processo de avaliação inicial. Por fim, busca-se discutir quem permanecerá em atendimento: a criança ou a família? O segundo público mais frequentemente atendido no serviço refere-se à faixa etária acima dos 50 anos, em geral do sexo feminino, o que também é evidenciado em outros levantamentos de perfil de usuários de clínicas-escolas (Campezatto & Nunes, 2007a; Melo & Perfeito, 2006; Romaro & Capitão, 2003). As principais queixas observadas estão relacionadas a dificuldades afetivas e aos sintomas depressivos. Muito do que é apresentado como queixa pode estar
relacionado a um sintoma social, já que a nossa sociedade exige demasiadamente de uma competência, do sucesso e da beleza. O estudo de Carvalho e Coelho (2005) aponta que a depressão é uma doença mais associada ao gênero feminino. Existem alguns fatores, conforme aponta Diniz (1999, citado em Carvalho & Coelho, 2005), que podem contribuir para o surgimento da depressão em mulheres, os mesmos estão intimamente relacionados às mudanças hormonais, corroborada pela falta de suporte familiar e social, bem como a situação socioeconômica e empregatícia. Para a autora, as mulheres podem ser mais vulneráveis ao desenvolvimento de transtornos depressivos. A afirmação justifica-se pelo crescente o número de famílias monoparentais chefiadas por mulheres, não havendo suporte do companheiro para o cuidado dos filhos e pela grande quantidade de tarefas por elas assumidas, que podem estar sobrecarregandoas. Considerando tais aspectos, entende-se que o atendimento psicológico se torna uma ferramenta importante frente ao bem-estar psicológico destas mulheres, uma vez que permite um espaço de escuta e reflexão. Desta forma, compreende-se que a clínica-escola é um espaço disponibilizado à comunidade local para atendimento psicológico, o qual vem atendendo o público infantil e de mulheres maduras de forma mais presente. Desta forma, ressalta-se que a descrição do perfil dos usuários pode contribuir para reflexões acerca de intervenções preventivas, quanto das especificidades de atendimento psicológico ofertados pelo serviço à comunidade. Os resultados também fornecem subsídios para intervenções preventivas e para além do setting terapêutico, numa interface com a proposta de clínica ampliada, desde atividades educativas e informativas na comunidade, quanto de uma proposta interdisciplinar no atendimento psicológico. Além disso, os dados fornecem elementos para a equipe de profissionais e de estagiários pensarem sobre suas práticas, no sentido de qualificar e repensar as mesmas, a
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45 fim de manejar o abandono do tratamento e desistências, o que se percebe como algo elevado nas clínicas-escolas. Por fim, ressaltase a importância deste serviço à comunidade, sobretudo para aquelas famílias com baixa renda, que podem usufruir de um espaço de atendimento psicológico acessível e de alta qualidade.
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Sentidos da Integralidade no Fazer Psicológico em Saúde Pública Senses of Integrality in Psychological Work in Brazilian Public Health Msc. Ivânia Jann Luna RESUMO Este artigo aponta indicadores do trabalho do psicólogo em saúde pública e problematiza os sentidos da integralidade a partir desses indicadores. Para tanto, realizou-se uma revisão seletiva e sistemática da literatura sobre a atuação do psicólogo nos últimos 11 anos (2000-2011), predominantemente no âmbito da atenção básica à saúde, nas principais bases de dados nacionais. Identificaram-se 18 artigos científicos que problematizaram a atuação do psicólogo e, por meio da análise qualitativa, baseada na teoria fundamentada nos dados, identificaram-se cinco indicadores de trabalho como: o compromisso social e ético, a promoção da saúde, a diversificação de ações, a compreensão interdisciplinar e a participação nas equipes de saúde. A articulação das diversas ações de saúde, a percepção ampliada das necessidades de saúde e a abertura a alteridade foram alguns sentidos da integralidade que foram apreendidos a partir desses indicadores de trabalho. Palavras-chave: integralidade, práticas psicológicas, Sistema Único de Saúde, indicadores de trabalho, saúde pública.
INTRODUÇÃO O psicólogo foi um dos últimos profissionais de saúde a ingressar na saúde pública brasileira (Carvalho & Yamamoto, 1999). Tradicionalmente, a inserção do psicólogo ocorreu no nível terciário e somente a partir da década de 80 o psicólogo inseriu-se
I
ABSTRACT This article points out work indicators for psychologists in Brazilian Public Health System (Sistema Único de Saúde) and outlines the problems of the senses which are related to these indicators, using the principles of integrality. A selective and systematic literature review was undertaken concerning the role of the psychologist predominantly in the primary health care environment in the last eleven years (2000- 2011),, among the main Brazilian databases. Eighteen (18) scientific articles which sought to better understand the role of the psychologist were identified. Through qualitative analysis based on the grounded theory, the following five work indicators were then identified: social and ethical commitment, promoting health, action diversification, interdisciplinary comprehension, and health care team participation. The articulation of diverse levels of health care, increased perception towards health care needs, and opening to otherness were some of the senses of integrality that were gathered based on these work indicators. Keywords: integrality; psychological practices; brazilian public health care system (sistema Único De Saúde); work indicators; public health.
em outros níveis de atendimento, como o primário e o secundário. Spink (2007) aponta para desigualdade dessa inserção, pois no cadastro nacional de estabelecimentos de saúde, em 2006, mais da metade dos psicólogos atuavam na atenção secundária e terciária (65,02%); somente 29,92% atuavam na atenção básica, sendo que no Programa de Saúde da Família (PSF) não
I Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e professora do Curso de Psicologia da Univali
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47 mais que 2,85% estavam inseridos e apenas 2,20% atuavam na gestão de serviços de saúde. Aliada à preocupação com a inserção do psicólogo na rede pública de saúde, a atuação profissional da Psicologia também tem sido alvo de debate e problematização, por diversos profissionais, desde a reforma sanitária, que previu mudanças na forma de conceber a saúde, gerir serviços e recursos em saúde, todos formalizadas por meio de diretrizes e princípios, como, por exemplo, o da integralidade (Lo Bianco, Bastos, Nunes & Silva, 1994; Carvalho e Yamamoto, 1999; Dimenstein, 1998, 2000; Andrade & Dalbello de Araújo, 2003; Bernardes, 2006). Órgãos de classe, como a Associação Brasileira de Ensino em Psicologia (ABEP) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP), realizaram oficinas e fóruns para discutir a formação e a atuação da Psicologia no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do princípio da integralidade (Associação Brasileira de Ensino em Psicologia, 2006 e CFP, 2006; Conselho Regional de Psicologia – 12ª Região [CRP12], 2007). Um dos desafios que permearam as discussões, nos referidos eventos, foi que, entre os próprios psicólogos, percebe-se a ausência de um modelo coerente de atuação comprometido com os ideais democráticos da reforma sanitária e com a cidadania dos usuários. Para Oliveira, Silva e Yamamoto (2007), no município de Natal, a falta de um modelo de intervenção psicológica compatível com a atenção básica não possibilitou a integração dos psicólogos ao Programa de Saúde da Família (PSF) daquele município, quando esse foi implantado, sendo esses profissionais redirecionados para os serviços de atenção secundária e terciária. No Programa de Saúde da família não está previsto a participação formal do psicólogo e somente a partir de 2008, com o surgimento do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), o psicólogo pode ser um dos profissionais da área da saúde mental a ser contratado para realizar o matriciamento das equipes de saúde da família (Brasil, 2008).
No âmbito da atenção básica, segundo Böing e Crepaldi (2011), não se dá a inserção profissional do psicólogo, tendo em vista que os documentos oficiais configuram a prática desse profissional como uma especialidade em saúde mental, portanto, a sua inserção faz sentido somente a partir do âmbito secundário e terciário de atenção à saúde. O desafio atual dessa categoria profissional tem sido ampliar a sua inserção junto à atenção básica, demonstrando o potencial dessa profissão para promover a saúde da população, não configurando a sua prática profissional como característica de uma especialidade (Böing & Crepaldi, 2010). Assim, o fazer psicológico em saúde pública deve refletir, sobretudo, o compromisso do psicólogo com práticas de promoção à saúde, mas também com práticas de prevenção de doenças e agravos à saúde, construindo uma concepção de trabalho que articula a integralidade da atenção à saúde ao fazer psicológico em saúde pública. Neste sentido, torna-se relevante problematizar a atuação profissional do psicólogo no âmbito da atenção básica à saúde, no que diz respeito aos indicadores que emergem desta atuação. Além disso, o que essa atuação significa, tendo como horizonte o conceito de integralidade descrito na atual política pública de saúde, bem como na visão de autores que problematizam este termo como Mattos (2004, 2006), Camargo (2003) e Martins (2006). Portanto, o objetivo geral deste artigo consiste na problematização dos sentidos da integralidade que emergem dos indicadores de trabalho do psicólogo, no âmbito da atenção básica à saúde, e em que medida esses sentidos apontam para uma concepção de trabalho que articula o princípio da integralidade ao fazer psicológico em saúde pública. Nessa direção este artigo visa contribuir com a discussão sobre a inserção do psicólogo na atenção básica a saúde e sua importância na construção de uma assistência à saúde pública, integral e equânime. A seguir apresenta-se a política pública
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48 no qual o princípio da integralidade se faz presente, bem como autores que problematizam esse conceito; em seguida, caracteriza-se o método utilizado para a obtenção dos dados e, por último, os resultados e discussão dos dados.
Políticas públicas de saúde e o princípio da integralidade A saúde como um direito de todos e um dever do estado, com ações de saúde integrando uma rede regionalizada e hierarquizada, representam novos parâmetros para as práticas em Saúde Pública. Com base nesses é criado o Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, pela Constituição Federal, mas apenas em 1990, a partir das leis orgânicas da saúde, 8.080 e 8.142, inicia-se o processo de implantação do SUS, pautado por diretrizes e princípios como integralidade, equidade, universalidade, descentralização política, econômica e administrativa, resolutividade dos serviços, participação popular e controle social (Rodrigues & Santos, 2009). A integralidade está legalmente vinculada à rede de ações e serviços de saúde e à garantia ao acesso e à continuidade destes para todos. A regulamentação da integralidade ocorreu por meio da publicação das Normas Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS) 01/01 e 01/02, em 2001 e 2002, respectivamente. Essas normas propõem a regionalização da atenção à saúde, de forma a organizar as ações e serviços de saúde nos três níveis de complexidade, sob a coordenação das secretarias estaduais de saúde (Rodrigues & Santos, 2009). Do ponto de vista da melhoria da quantidade e qualidade dos serviços prestados à população dos municípios, com base nessas normas, destaca-se a reestruturação da atenção básica, por meio do Programa de Saúde da Família, atualmente denominado de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e a ampliação da oferta dos serviços de alta complexidade. Esta estratégia tem caráter substitutivo em relação à
rede de Atenção Básica tradicional, e isto significa que a consolidação da atenção básica no Brasil viabiliza-se pela transformação do PSF em uma estratégia, que agora não é mais visto como um programa de governo, passível de mudanças conforme interesses políticos transitórios (Brasil, 1998). O Programa de Agentes Comunitários (PACS), implantado em 1991, antecedeu a implantação do PSF, sendo este último lançado em 1994. Trata-se de um modelo de atenção centrado na qualidade de vida e na relação das equipes de saúde com a comunidade, privilegiando a abordagem familiar (Brasil, 1998). A ESF propõe a identificação e intervenção sobre as necessidades de saúde da população considerada vulnerável e fazendo parte de grupos de riscos à saúde; também a construção de uma rede organizada, regionalizada e interligada de serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde. Atualmente a estratégia é desenvolvida por equipes mínimas compostas por 1 médico(a), 1 enfermeiro(a), 2 auxiliares de enfermagem, 6 agentes comunitários para cada unidade de saúde da família. O cirurgião dentista não faz parte desta equipe mínima, mas sim das equipes de saúde bucal (ESB) com trabalho integrado a uma ou duas ESF, também composta por 1 técnico de higiene dental e um auxiliar de consultório dentário (Brasil, 2006). Conill (2004) aponta que a integralidade no Brasil fez parte das propostas de reformas do setor saúde, desde o início da década de 80, surgindo em programas abrangentes para grupos específicos, como a atenção integral à saúde da mulher e a atenção integral à saúde da criança. A integralidade da assistência é “entendida como um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do Sistema” (Lei no. 8.080, art. 7º., II). Mattos (2004), ao problematizar como esse princípio tem sido denominado pelos órgãos oficiais, aponta que a articulação das
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49 diversas ações de saúde é percebida como medida de acesso aos serviços de saúde, ou seja, como se a mesma fosse sinônima da garantia de acesso a todos os níveis de atenção à saúde, como básico, secundário e terciário. A avaliação da integralidade em outros países como Inglaterra e Espanha têm sido localizada na atenção básica, sendo esta medida por meio da quantidade de serviços ofertados à população. No Brasil predomina uma percepção ampliada deste princípio, ou seja, “... significando além da gama de serviços, seu caráter contínuo e coordenado. Além da preocupação em enfocar os cuidados e as condições de gestão que o determinam” (Conill, 2004, p.6). Martins (2006) propõe que a integralidade significa um cuidado permanente em saúde. Na visão desse autor, este conceito foi gestado por vários acontecimentos na arena política da saúde pública brasileira, desde que a corte Portuguesa chegou ao Brasil. Assim, vários fatos políticos e sociais contribuíram tanto para a gestação de uma matriz de pensamento, cujo tema seja uma visão de sujeito integral e humano aplicada à saúde, quanto de uma política pública de saúde, na qual esta concepção se constituiu como um princípio norteador de um novo modelo de atenção à saúde. Não há consenso sobre a definição da integralidade; se é um conceito, uma prática assistencial ou ainda uma diretriz política. Camargo (2003) aponta o que este conceito vem representando na área da saúde; Pode-se identificar, grosso modo, um conjunto de tradições argumentativas [...] ligados às idéias sobre atenção primária e de promoção da saúde; de outro, a própria demarcação de princípios identificada em pontos esparsos da documentação oficial das propostas de programas mais recentes do Ministério da Saúde e, por fim, nas críticas e proposições sobre a assistência à saúde de alguns autores acadêmicos em nosso meio
(Camargo,2003, p. 27)
Na visão deste autor a integralidade não é um conceito fechado, mas sim um ideal regulador, um devir, para a prática e a investigação científica em saúde pública, surgindo num contexto de insatisfação e de vazio que as práticas biomédicas imprimiram na assistência em saúde. Mattos (2006) analisou os sentidos da integralidade que subjazem às práticas de saúde construídas ao longo do século XX, no Brasil, portanto, declarou que alguns deles poderiam ser observados quando se desenvolviam um conjunto de valores orientadores de uma boa prática profissional, um ambiente organizacional que permitia abertura para o novo e se construíam políticas públicas democráticas. O autor aponta ainda que a integralidade refere-se à interdisciplinaridade e a alteridade, pois nestas duas noções se está possibilitando uma relação sujeito-sujeito, que reconhece em si e no outro o direito universal ao atendimento das necessidades de saúde. Num outro trabalho, Mattos (2004) propõe que a integralidade poderia se expressar por meio de duas características como, a construção do diálogo e de projetos terapêuticos singulares, sendo que essas possibilitariam a articulação entre a lógica da prevenção e a lógica da assistência. Assim, caberia ao profissional, diante de suas práticas, responder ao sofrimento manifesto do usuário resultante da demanda espontânea e, ao mesmo tempo, propor ações e procedimentos preventivos.
MÉTODO Trata-se de uma investigação em que se utiliza a pesquisa bibliográfica seletiva e sistemática, associada à análise qualitativa, proposta pela teoria fundamentada nos dados (Strauss & Corbin, 2008). Esse delineamento permite trabalhar com dados de diferentes origens, teóricos e/ou empíricos e possibilita
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50 trabalhar com a organização de dados qualitativos em categorias e subcategorias. Elegeu-se como campo de pesquisa os artigos científicos, publicados em periódicos, disponíveis nas bases de dados (Biblioteca Virtual da Saúde; SciELO Brasil; Portal da Capes) compreendendo o período de 2000 até 2011. Para a identificação desse material foram utilizados como descritores as seguintes palavras-chave: integralidade; atenção primária; atenção básica; saúde da família. Foram selecionados 18 artigos que abordaram a atuação do psicólogo predominantemente no âmbito da atenção básica à saúde, não obstante, verificou-se a inexistência de trabalhos de Psicologia centrados no princípio da integralidade. Selecionaram-se 7 artigos que apresentavam relatos de pesquisas empíricas sobre a atuação do psicólogo nas Unidades Básica de Saúde (UBS) (Dimenstein, 2001; Oliveira et al., 2004; Lima, 2005; Rutsatz & Câmara, 2006; Ronzani & Rodrigues, 2006; Iglesias, Guerra, Soares & Dalbello-Araújo, 2009; Carvalho, Bosi & Freire, 2009). Também foram encontrados 5 artigos que relatavam intervenções psicológicas, também no contexto das UBS, realizadas por meio de projetos de extensão e de estágio, promovidos por convênios entre Universidades e serviços de saúde municipais (Boarini & Borges, 2009; Gama & Koda, 2008; Böing, Crepaldi & Moré, 2009; Souza & Carvalho, 2003; Cardoso, 2002; Pretto, Langaro & Santos, 2009). E, por último, 6 artigos de revisão da literatura que abordaram o papel e as responsabilidades na atuação profissional do psicólogo na atenção básica (Benevides, 2005; Soares, 2005; Camargo-Borges & Cardoso, 2005; Aguiar & Ronzani, 2007 e França & Vianna, 2006). Para proceder à análise qualitativa dos artigos, de acordo com a teoria fundamentada nos dados, foram selecionadas frases, de cada artigo, que tematizaram aspectos comuns e distintos da atuação do psicólogo e, desse processo, surgiram pontos nucleares que se constituíram em categorias principais de análise sobre os indicadores de trabalho na
atenção básica. A seguir caracterizam-se, de forma geral, os aspectos discutidos no conjunto dos artigos, para depois apresentar as categorias de análise sobre os indicadores de trabalho e suas definições e, posteriormente, realiza-se a discussão dos sentidos da integralidade a partir desses indicadores.
RESULTADOS Os artigos que problematizaram aspectos empíricos da atuação do psicólogo, como a trajetória profissional, as concepções de trabalho e as atividades desenvolvidas nas UBS, também discutiram aspectos que deveriam ser incorporados a esta atuação. Assim, Dimenstein (2001) e Oliveira et al. (2004) apontaram que, nos município de Natal (RN) e Teresina (PI), os psicólogos reproduziram modelos teóricos e metodológicos oriundos de outras realidades e clientelas e, dessa forma, não possibilitaram uma intervenção congruente com a realidade e proposta da atenção básica daqueles municípios. Portanto, não relacionavam os princípios do SUS à sua prática profissional, tendo na modalidade da psicoterapia individual e grupal a maioria das atividades profissionais realizadas nas unidades básicas de saúde (UBS). Na cidade de Salvador (BA), Lima (2005) atestou três modalidades na trajetória profissional dos psicólogos, como a de conflito, que tende à ociosidade do profissional; de reprodução, que conduz ao isolamento típico da assistência ambulatorial e de construção, que demonstra certa abertura para a busca de uma atuação fora da clínica tradicional. Rutsatz e Câmara (2006) também descreveram as trajetórias e percepções de psicólogos que atuavam na rede de saúde pública do município de Taquari (RS). Constataram que esses profissionais atuavam em diversos níveis de atenção à saúde, com a sistematização de ações alicerçadas nos pilares da promoção, prevenção e recuperação da saúde e no
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51 enfoque da psicologia comunitária. Iglesias et al (2009) descreveram as ações de promoção da saúde, desenvolvidas por psicólogos nas UBS dos municípios de Vitória e Serra (ES). Também constataram melhor contextualização do trabalho do psicólogo e construção de novas formas de fazer saúde nestes dois municípios. Em Juiz de Fora (MG), Ronzani e Rodrigues (2006) verificaram que todos os sete psicólogos realizavam atividades clínicoremediativas; sendo que a maioria encontrou dificuldade em definir o que significa o trabalho do psicólogo na atenção básica à saúde. Carvalho et al (2009) identificaram sentidos atribuídos às práticas profissionais desenvolvidas por psicólogos, inseridos em diversos níveis de atenção à saúde do município de Fortaleza (CE), como a prevalência do modelo biomédico e as péssimas condições de trabalho. Boarini e Borges (2009) apresentaram a atuação da Psicologia, por meio de um projeto de extensão, numa UBS da cidade de Itambé (PR). Gama e Koda (2008) problematizaram a atenção à saúde mental no município de Itatiba (SP), por meio de atividades de estágio em Psicologia Comunitária, Escolar e Clínica. Souza e Carvalho (2003) apresentaram as atividades de estágio em Psicologia na ESF do município de Alto São Francisco (MG). Cardoso (2002) apresentou os resultados do projeto de extensão que propunha ações do psicólogo, na visão da gestalt-terapia, junto a diabéticos e hipertensos atendidos pela ESF do município de Vespasiano (MG). Pretto et al (2009) problematizaram a experiência de estágio em psicologia clínica, educacional e organizacional, realizada em uma clínica integrada de atenção básica à saúde, no município de Biguaçú (SC). E Böing et al (2009) apresentaram práticas psicológicas pautadas na epistemologia sistêmica e na interdisciplinaridade, desenvolvidas pelo programa de Residência Integrada em Saúde da Família nas UBS do município de Florianópolis (SC). As práticas de estágio, na ESF e UBS,
citadas por vários autores, foram atividades de educação em saúde, acolhimento, reuniões e planejamento conjunto com a equipe de saúde, psicoterapia individual e grupal, grupos de apoio e de reflexão com pessoas portadoras de doenças crônicas, encaminhamentos interdisciplinares, consulta coletiva e visita domiciliar, etc. (Boarini & Borges, 2009; Gama & Koda, 2008; Böing et al., 2009; Souza & Carvalho, 2003; Cardoso, 2002; Pretto et al., 2009) Os artigos que realizaram uma revisão da literatura, como os de França e Vianna (2006) e Aguiar e Ronzani (2007), discutiram aspectos da atuação do psicólogo condizente com os princípios do SUS, especificamente na atenção básica à saúde, demonstrando quais ações podem ser realizadas por esse profissional junto à ESF. Também problematizaram as práticas da psicologia tradicional neste contexto, bem como apresentaram algumas alternativas e propostas de atuação da psicologia na saúde coletiva, centrada principalmente nas ações de políticas de saúde, prevenção de doenças e promoção de saúde, tendo como embasamento teórico principal a psicologia social. Camargo-Borges e Cardoso (2005) referendaram a atuação do psicólogo na ESF por meio do enfoque da Psicologia Social, pois entendem que essa vertente teórica poderia promover espaços mais democráticos de convivência, no trato à alteridade, propiciando conversas mais igualitárias, promovendo integração entre profissionais e usuários do SUS. Por outro lado, Soares (2005) discutiu a possibilidade de que referenciais teóricos, de diversos campos de atuação da Psicologia, como a Psicologia Comunitária e a Psicologia da Saúde, poderiam sustentar as práticas psicológicas na atenção básica, além daqueles tradicionalmente já encontrados na prática dos profissionais, como por exemplo, a Psicanálise. Para essa autora todos esses referenciais poderiam propiciar a construção dos papéis, responsabilidades e ações a serem desempenhadas junto às comunidades de referência da UBS e ESF.
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52 Na visão de Benevides (2005), a Psicologia e seus referenciais teóricos, como qualquer outro campo de saber, não explica nada, mas como qualquer campo de saber se dá numa relação de intercessão com outros saberes, poderes e disciplinas. Portanto, esta autora discute que atuação do psicólogo na saúde pública deve ser norteada por três princípios éticos como: o da inseparabilidade, o da autonomia/co-responsabilidade e o da transversalidade. Isto significa tomar a dimensão da experiência coletiva como aquela geradora dos processos singulares, sendo impossível pensar em práticas psicológicas que não estejam comprometidas com o mundo. Ainda que os 18 artigos abordassem de forma diferente a questão da atuação profissional, ora na percepção de profissionais contratados pelo serviço público, ora por meio do trabalho de estagiários, ou ainda, por meio da revisão da literatura, todos tinham em comum a problematização desta atuação na rede pública de saúde, predominantemente na atenção básica à saúde. Por isso, foi possível evidenciar-se características e indicadores de trabalhos a partir desse material. No processo de seleção das frases evidenciaram-se 5 temáticas principais como: atuação com ética e compromisso social; atuação profissional voltada à promoção da saúde; práticas profissionais de promoção à saúde e prevenção de doenças; atuação baseada na compreensão interdisciplinar e práticas em equipe de saúde. Essas temáticas geraram cinco categorias representativas da atuação do psicólogo no âmbito da atenção básica e que foram definidas como indicadores de trabalho como: 1) compromisso social e ético; 2) promoção da saúde; 3) diversificação de ações; 4) compreensão interdisciplinar e 5) participação nas equipes de saúde. A primeira categoria significa uma prática profissional comprometida com a cidadania, e com o contexto sociocultural, balizados pela ética no cuidado à saúde. A segunda categoria aponta para elementos da
prática profissional favoráveis à qualidade de vida da população e o desenvolvimento de parceria com a comunidade na busca de soluções que impactam o bem estar e a qualidade do viver. A terceira categoria congrega diferentes práticas profissionais, desde as voltadas à promoção da saúde como as de prevenção da doença, portanto, demonstram a variabilidade das práticas que envolvem o profissional psicólogo. A categoria compreensão interdisciplinar descreve uma prática que integra as dicotomias indivíduo x coletividade, saúde física x saúde mental e demanda espontânea x planejamento em saúde. Neste sentido, implica numa prática de ampliação do objeto intervenção. E a última categoria - participação nas equipes de saúde - discorre sobre as ações intersetoriais, ações realizadas junto com as equipes de saúde e ações de construção de equipes interdisciplinares. Esses conteúdos podem ser visualizados quando são descritas algumas frases que congregam significados similares (Anexos A, B, C, D, E).
DISCUSSÃO Os indicadores de trabalho podem ser relacionados a algumas concepções de integralidade, expostas no início do artigo. A seguir delineam-se alguns sentidos que subjazem às práticas profissionais do psicólogo, predominantemente na atenção básica à saúde. O compromisso social e ético na atuação do psicólogo reflete-se pela busca da cidadania ativa e a construção de novas sociabilidades e subjetividades como apontou Dimenstein (2001). Também pela abertura à alteridade, onde ocorre o envolvimento responsável e compromissado de todas as partes implicadas no processo de cuidar, bem como o desenvolvimento de uma intervenção psicológica contextualizada e comprometida com o contexto sociocultural e político como apontaram Boing et al (2009), Carvalho et al (2009) e França e Viana (2006).
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53 Observa-se que esse compromisso aponta para um posicionamento do psicólogo quanto ao direito da população brasileira à saúde e a abertura à alteridade, diante das demandas da sociedade. Todos estes aspectos apontam para uma compreensão da integralidade, como problematizada por Martins (2006), como uma ação permanente do cuidado em saúde e pela busca por novas formas de fazer saúde. Avalia-se que noção de alteridade também está presente, como uma relação sujeito-sujeito e que reconheça em si e no outro o direito universal ao atendimento das necessidades de saúde, sendo esse também um dos possíveis sentidos da integralidade (Mattos, 2006). Na atuação do psicólogo, com o enfoque da promoção da saúde, observa-se uma postura mediadora, de parceria com a comunidade (Souza & Carvalho, 2003), a assunção de responsabilidades e gerenciamento de escolhas (Pretto et al., 2009) e pela busca de saídas coletivas para promover melhorias na qualidade de vida (Iglesias e et al., 2009). A promoção da saúde e a integralidade podem ser vista como um 'ideal regulador', 'um devir', como aponta Camargo (2003), para uma prática psicológica que visa à qualidade de vida e ao bem-estar das comunidades. Nessas três últimas perspectivas da integralidade o indicador participação nas equipes de saúde pode ser discutido, como um ideal regulador, um devir, uma ação permanente de cuidado em saúde e o reconhecimento em si e no outro o direito universal ao atendimento das necessidades de saúde. Os autores apontaram para a necessidade de desenvolver equipes verdadeiramente interdisciplinares, ações com as equipes de saúde e intersetoriais (Böing et al., 2009; Dimenstein, 2001; Souza & Carvalho, 2002). Analisa-se que a discussão realizada sobre a intersetorialidade indica que cabe ao psicólogo construir intervenções junto aos diversos profissionais da equipe e em parceria com a
comunidade, e isso pode representar um desafio que significa trabalhar na perspectiva constante da co-construção dos saberes e das práticas no cotidiano do seu trabalho. A diversificação de ações aponta para um indicador de trabalho que propõe ações preventivas, curativas, mas também de promoção à saúde. Lima (2005) propõe que atuação psicológica coletiva como uma estratégia de organização contextualizada da atuação psicológica para prevenir doenças, promover a saúde, em situações de trabalho em saúde coletiva; essa também é a proposta de Rutsatz e Câmara (2006), Ronzani e Rodrigues (2007) e Cardoso (2002). Nesta situação ocorreria a articulação das diversas ações de saúde, como preconiza a definição de integralidade do Ministério da Saúde (Brasil, 1990). A compreensão interdisciplinar do sujeito pode ser percebida pela contextualização dos indivíduos, famílias e comunidades, a não cisão entre saúde e saúde mental e a escuta e o acolhimento, sejam em situações de urgência ou não. Estes aspectos são assinalados por Boarini e Borges (2009), Gama e Koda (2008), Böing et al (2009), Souza e Carvalho (2003), Cardoso (2002) e Pretto et al (2009). A concepção de integralidade, a partir da interdisciplinaridade, é a que problematiza a percepção ampliada das necessidades em saúde, articulando a lógica da prevenção e a lógica da assistência, proposta por Mattos (2004). Assim, caberia ao psicólogo, nas práticas de assistência em saúde, responder ao sofrimento manifesto do usuário resultante da demanda espontânea, ao mesmo tempo, propor ações e procedimentos preventivos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Na revisão sistemática realizada, observou-se que todos os autores dos artigos selecionados problematizaram a atuação do psicólogo na saúde pública e apresentaram
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54 concepções de trabalho e objetivos no atendimento em saúde pública comprometidos com a saúde coletiva brasileira. A partir dessas identificaram-se alguns indicadores de trabalho em saúde pública que problematizaram o compromisso social e ético do fazer psicológico, que se reflete na aliança com as demandas de saúde da comunidade e com a intersetorialidade. A busca pela promoção da saúde foi bastante enfatizada por todos os autores dos artigos analisados. A diversificação das ações, de cunho preventivo e/ou curativo, também foi assinalada como um indicador importante, bem como, a compreensão interdisciplinar, na qual, a busca pela integração da saúde com a saúde mental, na atenção básica, foi um dos aspectos mais assinalados. E, por último, ações do psicólogo com as equipes de saúde foram bastante enfatizada pelos autores. Nesse artigo, esses indicadores puderam ser relacionados com alguns sentidos do princípio da integralidade. Na atuação profissional do Psicólogo na saúde pública, predominantemente na atenção básica, o princípio da integralidade foi denominado por meio de quatro conceitos como: 1) conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos curativos (Brasil, 1990); 2) na perspectiva da percepção ampliada das necessidades de saúde (Mattos, 2004); 3) como um dispositivo, um ideal regulador, um devir que espelha uma ética na co-construção de novas formas de fazer saúde (Camargo, 2003) e 4) uma ação permanente do cuidado em saúde (Martins, 2006). Refletindo-se sobre os sentidos da integralidade, por meio da análise produção científica sobre a prática dos profissionais da Psicologia na saúde pública, observa-se que os mesmos sugerem três caminhos distintos, sendo que o primeiro refere-se à diversidade/integralidade das práticas (práticas de promoção à saúde e prevenção de doenças). O segundo refere-se à apreensão da integralidade dos sujeitos, via compreensão
interdisciplinar, diante de suas várias necessidades de saúde (percepção ampliada das necessidades de saúde). O terceiro aponta para co-construção de práticas de saúde nas quais a participação nas equipes e o compromisso social e ético representam a intersetorialidade e a abertura à alteridade. Quando se pensa em alternativas para vencer os desafios na inserção e atuação da Psicologia no âmbito da atenção básica à saúde, esses três caminhos, por sua vez, possibilitam a visualização de uma concepção de trabalho que articula o princípio da integralidade no fazer psicológico em saúde pública. Assim, não basta substituir o paradigma de atuação clínico pelo da saúde pública (Dimenstein, 2000), ou seja, transformar uma concepção de trabalho, na perspectiva curativa, assistencial e individualizante, para uma concepção de promoção da saúde e prevenção de doenças, sem antes problematizar os sentidos atribuídos ao princípio da integralidade na atuação profissional. Na apresentação dos indicadores de trabalho, no fazer psicológico na atenção básica, se possibilitou discutir alguns dos caminhos pelos quais os psicólogos brasileiros estão contribuindo para a consolidação da atenção integral à saúde no SUS. Percebe-se que os psicólogos estão investindo em práticas que validam o seu compromisso com o direito da população à saúde, também apontam a necessidade de diversificação das ações, a apreensão integral do sujeito e da coletividade e a participação junto às equipes, propondo então novas formas de se fazer saúde no Brasil. Essa última questão parece ser uma concepção de trabalho que articula o princípio da integralidade ao fazer psicológico em saúde pública e por meio dela referenda o trabalho do psicólogo não apenas no âmbito da saúde mental, mas como produtor de saúde em qualquer situação ou ambiente que se encontre.
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Anexo A – Indicador de Trabalho “Compromisso social e ético” Frases: “[...] o compromisso social não é uma questão burocrática, mas especialmente, o desenvolvimento de ações e reflexões cuja intencionalidade prática e política é produzir cidadania ativa, sociabilidade e novas subjetividades” (Dimenstein, 2001, p. 62). “[...] Nas instituições públicas de saúde, a
intervenção psicológica será mais efetiva quanto mais contextualizada, ou seja, definida a partir das características específicas de cada população que procura seus serviços. Para isso exige-se uma nova mentalidade profissional e organizacional, participação e compromisso social”. (Boing et al., 2009, p.834). “[...] o campo da saúde coletiva demanda um modo diferenciado de estar a serviço do outro. Em relação ao psicólogo, a demanda é por uma postura crítico-reflexiva mais comprometida com o contexto sociocultural e político de sua prática e com o compartilhar de ações e responsabilidades que ultrapassam rótulos e diagnósticos” (Carvalho et al., 2009, p. 71). “[...] cabe ao profissional estar atento à realidade que o circunda, proporcionando reflexões, questionamentos e inquietações face às transformações que se apresentam, o que requer flexibilidade e criatividade, e acima de tudo, compromisso com o social [...]”(França & Viana, 2006, p. 256).
Anexo B – Indicador de trabalho “Promoção da saúde” Frases: “[...] o trabalho da psicologia baseou-se em uma postura mediadora e facilitadora na promoção dos meios que permitiriam a população desenvolverem seu potencial em benefício do seu bem-estar [...]” (Souza & Carvalho, 2003, p.522). “[...] ser saudável significa ser capaz de participar do processo de construção da organização de eventos que acrescentem e garantam qualidade à vida das pessoas e, sobretudo, ao gerenciamento de suas vidas, na autoria e na assunção da responsabilidade por suas escolhas e na compreensão de uma abordagem biopsicossocial em saúde que os contemple em sua totalidade existencial” (Pretto et al., 2009, p. 398). “[...] as ações de promoção da saúde permite que as pessoas possam repensar as suas vidas, trocar experiências e buscar saídas coletivas para promover melhoria na sua qualidade de vida [...]” (Iglesias et al., 2009, p. 121).
Anexo C – Indicador de Trabalho “Diversificação de ações” Frases: “[...] atuação psicológica coletiva (APC) pode ser
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57 ainda entendida como uma 'estratégia' de organização contextualizada da atuação psicológica para prevenir doenças, promover a saúde, em situações de trabalho em saúde coletiva [...]” (Lima, 2005, p.434). “[...] articulação do individual com o coletivo, a promoção e a prevenção com o tratamento e a recuperação da saúde da população, com grande potencial organizador sobre outros níveis do sistema” (Rutsatz & Câmara, 2006, p.62). “[...] destacamos a priorização de práticas que visem mais a prevenção e a promoção do que a reabilitação [...] desenvolvimento de competências sociais e trabalhos que proporcionem parceria com a comunidade [...]” (Ronzani & Rodrigues, 2006). “[...] julgou-se que a inserção do psicólogo na equipe de trabalho poderia contribuir no sentido de ampliar a promoção da saúde dos pacientes portadores de diabetes e hipertensão arterial mediante a atenção para com os aspectos psicológicos, tanto em termos de prevenção quanto de tratamento” (Cardoso, 2002, p. 3).
primeiro nível de atenção, haja verdadeiramente equipes interdisciplinares que desenvolvam ações intersetoriais” (Boing et al., 2009, p. 842). “[...] atuação profissional adequada aos espaços territoriais locais, que demandam um alto grau de potência de resposta-ação, de articulação intersetorial, de mobilização de parcerias e de estratégias específicas” (Dimenstein, 2001, p. 62). “[...] A psicologia tem participado de um trabalho integrado às equipes de saúde, incorporando ações educativas, psicossociais e de planejamento organizacional” (Souza & Carvalho, 2002, p. 519).
Anexo D – Indicador de Trabalho “Compreensão interdisciplinar” Frases: “[...] priorizamos atitudes como escuta e acolhimento em situações de urgência ou não, estimulamos os contatos necessários para o estabelecimento dos vínculos que possibilitem a diminuição do sofrimento psíquico, vivenciado tanto pelo paciente como pelas pessoas que fazem parte das suas relações familiares [...]” (Boarini & Borges, 2009, p. 611). “[...] O psicólogo enquanto integrante da equipe de saúde da família auxilia na compreensão contextualizada e integral do indivíduo, das famílias e da comunidade [...]” (Boing et al., 2009, p.842). “[...] Tendo em vista a compreensão com a promoção da saúde da comunidade compreendida geograficamente na área de atuação do PSF, cabe aqui ressaltar a necessidade de não negligenciar a saúde mental [...]” (França & Viana, 2006, p. 256).
Anexo E – Indicador de Trabalho “Participação nas equipes de saúde” Frases: “[...] Para cuidar da saúde de forma integral, portanto, torna-se imprescindível, que, no
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Satisfação na Escolha Profissional: Jovens que Passaram por Orientação Profissional Satisfaction in Career Choice: Youth who have gone through Vocational Guidance I
Marjane Bernardy Souza, Augusta Cheuiche de Souza RESUMO O objetivo deste trabalho foi verificar a satisfação na escolha profissional com exorientandos que passaram pela Orientação Profissional. Para a realização desta pesquisa, o delineamento utilizado foi qualitativo, e, para a coleta de dados, utilizou-se a entrevista semiestruturada, com três ex-orientandos que se encontram em meio de curso universitário e que participaram do serviço de Orientação Profissional em Grupo do Laboratório de Avaliação e Intervenção Psicológico da ULBRA de Cachoeira do Sul, no ano de 2009. Através da análise de conteúdo das entrevistas, os resultados obtidos mostram que dois dos ex-orientandos estão satisfeitos com o curso atual, mesmo seguindo ou não a indicação, porém, uma entrevistada seguiu a indicação sem nenhuma influência, justificando o gosto pela área. Verificou-se, também, a importância da prática acadêmica, durante o curso universitário, trazendo a experiência práticateórica ao alcance dos jovens, acrescida da oportunidade de investir num curso que está disponível no mesmo município. Em relação às influências, a família ocupa papel importante na escolha profissional dos jovens, principalmente, o pai como sendo principal influenciador, direta ou indiretamente. Acrescentando, ainda, a Orientação Profissional, como um trabalho eficaz para o autoconhecimento, suas habilidades e seus interesses profissionais.
II
ABSTRACT The aim of this work was to verify the satisfaction in career choice with former mentees who have gone through vocational guidance. For this research, the design was qualitative, and to collect data, we used a semi-structured interview with three former mentees who are in the university and participated in the service of Vocational Guidance Group from the Laboratory of Psychological Assessment and Intervention from ULBRA, Cachoeira do Sul, in 2009. Through the content analysis of the interviews, the results show that two of the former advisees are satisfied with the current course, even if not following the indication, but one interviewee followed the indication without any influence, justifying her taste for the area. There was, also, the importance of academic practice during the university, bringing the theoretical-practical experience within reach of young people, plus the opportunity to invest in a course that is available in the same county. Regarding influences, the family occupies an important role in career choice for young people, especially the father as the main influencer, directly or indirectly. Another influence was the Vocational Guidance, as an effective job for self-knowledge, skill awareness and professional interests. Keywords: vocational guidance, influences on career choice, satisfaction in career choice.
Palavras-chave: orientação profissional, influências na escolha profissional, satisfação na escolha profissional .
INTRODUÇÃO O momento de construir, definir, determinar o futuro se dá na adolescência, fase
na qual ocorrem as mudanças corporais e intelectuais, para alguns ocasionando conflitos internos e externos. Durante esse período, o jovem, na maioria das vezes, fica num estado de desequilíbrio, uma vez que seus antigos
I Mestra pelo Instituto Superior Miguel Torga - Coimbra-Portugal (ISMT-2004) e professora dos cursos de graduação em Psicologia e Administração da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Campus Cachoeira do Sul II Graduada em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Campus Cachoeira do Sul
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59 padrões de comportamentos já não funcionam muito bem e os novos, ainda, não estão estabelecidos. Quando o adolescente se coloca no mundo com seu corpo já maduro, a imagem que possui do seu corpo muda, e sua identidade, consequentemente, sofre mudanças, assim, terá de experimentar e lidar com a totalidade de si mesmo, visando alcançar uma razoável estabilidade (Lara & Araújo, 2005). Nesse período de mudanças, grande parte dos jovens se questiona: “Quem sou eu?” e “Quem serei eu?”, ponto de partida para a definição da identidade profissional, buscando o serviço de Orientação Profissional para organizar essas mudanças. A Orientação Profissional é vista pela sociedade como a simples aplicação de um teste, onde a resposta apontaria uma profissão determinada, segundo suas aptidões, em apenas uma sessão. Mas segundo Lehman (2010) é o processo pelo qual o indivíduo é ajudado a escolher e a se preparar para ingressar e progredir em uma ocupação. A avaliação psicológica é uma área da Psicologia que traz contribuições importantes para diversos campos de aplicação profissional. Um dos contextos em que instrumentos de avaliação psicológica são utilizados com objetivo de identificar e/ou qualificar a presença de certas características do objeto em estudo é a área profissional/vocacional (Sparta, Bardagi, &Teixeira, 2006). Segundo Neiva (2007), aplica-se ao orientando uma bateria de testes psicológicos com o objetivo de avaliar, principalmente, sua capacidade intelectual, suas aptidões específicas, a estrutura e dinâmica de sua personalidade, seus interesses profissionais e seus valores. Cabe ressaltar a postura do orientador na utilização dos testes psicológicos, desmistificando a ideia de que os testes funcionam como uma “bola de cristal” que permite magicamente ver o interior das pessoas. Na orientação, realiza-se uma entrevista inicial para coleta de dados e uma entrevista de devolução para a comunicação dos resultados. A escolha profissional do jovem
envolve mudanças, perdas, medo do fracasso e desvalorização, supõe a elaboração de lutos e conflitos consigo mesmo e com outros significativos, ressalta Bohoslavsky (2007), pioneiro e defensor da Orientação Profissional. Implica em deixar para trás as opções que ficaram de fora, para decidir a escolha; contudo, ressalta Santos (2005), é o momento de despedida; decidir é na verdade um ato de coragem. Os lutos a serem elaborados são os lutos básicos da adolescência que emergem face à escolha profissional. A adolescência é a fase do ciclo da vida em que o indivíduo passa por transições e ocorre o abandono das atividades infantis e opta por outras do mundo adulto, vivenciando a magia de vir a ser adulto e o luto da perda da infância, ao mesmo tempo, não deixando de ser criança e ainda não virando adulto (Almeida & Pinho, 2008). Ao término do seu percurso no Ensino Médio, Santos (2005) ressalta que o adolescente intensifica a sua busca por uma carreira – pois é o momento de ingresso na faculdade e/ou no mercado de trabalho –, gera a necessidade de escolha de um curso superior ou de uma profissão. Nessa “luta por uma identidade vocacional”, o adolescente sente vontade de ter apoio, mas a capacidade que a família tem para dar apoio está relacionada com o seu grau de expectativa, com os seus conflitos e com a sua capacidade de manejá-los. Corroborando com o pioneiro Bohoslavsky (2007), a diferença entre a identidade ocupacional da identidade vocacional é, que a identidade vocacional constitui a resposta ao porquê e para quê se escolhe uma determinada ocupação. Essa resposta nem sempre é clara e conhecida pelo adolescente. Muitas vezes ele conhece seus interesses, mas não as suas raízes. A escolha profissional é fruto de motivos conscientes e inconscientes. Já a identidade ocupacional é adquirida quando o sujeito define o que quer fazer; de que modo e em que contexto. Ela inclui, portanto, um com quê, um como, um onde, um quando e um à maneira de quem. A identidade ocupacional é determinada pela identidade vocacional. Considera-se assim que
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60 o processo de escolha profissional implica a elaboração de uma identidade vocacionalocupacional, ou seja, a definição do que fazer, como e onde, e também a compreensão do porquê e para quê dessa decisão (Neiva, 2007). Concordando com Santos (2005), a definição de uma identidade ocupacional se dá nesse período de inúmeras transições, de tal maneira que o momento de uma escolha profissional parece decisivo na vida de um adolescente. A escolha é parte da definição da identidade ocupacional e uma opção que, na visão do adolescente, irá nortear os caminhos a serem percorridos e as escolhas futuras. A estrutura familiar é considerada, pelos autores, como essencial para a passagem por esta fase. Os pais podem reviver os próprios conflitos da adolescência (Santos, 2005). Além da crise da adolescência, Lara e Araújo (2005) ressaltam o surgimento da angústia com relação ao futuro para o qual o adolescente está sendo desafiado, com problemas como a preparação profissional e a independência econômica. O avanço científico dificulta, ainda mais, o momento da escolha, por estar a todo frequentemente, criando, transformando e fazendo desaparecer profissões; e cabe aos indivíduos fazerem suas escolhas de acordo com seus gostos e aptidões. Porém, deve-se levar em conta, as várias influências que agem sobre os que escolhem; influências essas que podem vir de várias fontes. Os psicólogos apontam aptidões, interesses, características de personalidade, atitudes, valores, oportunidades educacionais dadas pelo nível socioeconômico, como fatores que atuam, concomitantemente, sobre o indivíduo na escolha profissional (Lara & Araújo, 2005). Muitos jovens acabam tomando decisões imaturas por serem pressionados a tomar decisões imediatas. Para Lara e Araújo (2005), os adolescentes acabam fazendo escolhas erradas, das quais podem vir a se arrepender mais tarde e ter de retornar ao ponto de partida, ou seguir com uma escolha insatisfatória. Por isso, é importante que o
jovem conheça as várias profissões, a si mesmo e as influências que atuam sobre ele para poder fazer uma escolha satisfatória. Segundo Santos (2005), são muitos os fatores que influem na escolha de uma profissão, desde características pessoais a convicções políticas e religiosas, valores, crenças, contexto socioeconômico, família e pares. Parafraseando a autora citada no parágrafo acima, pode-se referir à família como um poderoso fator de influência na escolha da carreira, por meio de uma certa sugestão social, carregada de mensagens subliminares - valorização ou desvalorização de certas profissões. Freqüentemente, nos processos de orientação profissional as questões familiares não possuem espaço, testes psicométricos são aplicados, a fim de medir os interesses e aptidões dos jovens, de forma a fornecer uma resposta que solucione a problemática da escolha profissional. No entanto, essa solução pode não ser bem vista aos olhos da família, fazendo com que os jovens acabem optando por seguir os desejos familiares. As influências familiares podem ser trabalhadas de diversas maneiras durante o processo de orientação profissional, fazendo o jovem dar-se conta das questões que estão por trás de sua escolha. O filho estabelece conceitos e valores acerca das profissões de acordo com o que é falado pela família (Almeida & Pinho, 2008). De acordo com Almeida (2006), em uma pesquisa, ex-orientandos julgaram que os meios de comunicação não influenciam nas suas tomadas de decisões em nada. Isso talvez possa ser pelo fato de que este tipo de influência muitas vezes nem é percebida. As informações que os meios de comunicação veiculam geralmente acabam sendo introjetadas sem que muitos percebam a influência camuflada e velada no modo de pensar e viver. Corroborando com Esbrogeo (2008), as opiniões dos jovens estão em consonância com a literatura que aponta a importância da informação profissional, seja o recurso impresso e/ou o uso da internet. Indubitavelmente a internet é o instrumento
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61 mais utilizado para a busca da informação. Destaca-se o material informativo impresso tendo sido utilizado em menor proporção, o que era esperado, porém não desejado pelos educadores e orientadores no caso das publicações mais qualificadas, livros, por exemplo. A consulta aos guias apresenta um ligeiro aumento, mas ele não é significativo. A análise comparativa, da mesma pesquisa, pode-se constatar que entre os sexos mostrou a tendência dos rapazes preferirem a internet para jogos enquanto que as moças a utilizam para as pesquisas escolares e para a busca de informação profissional.
MÉTODO O estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa, a partir de 03 estudos de caso, no qual são três ex-orientandos que se encontram em meio de curso universitário e que participaram do serviço de Orientação Profissional em Grupo, em 2009, no Laboratório de Avaliação e Intervenção Psicológicas (LAIP), da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Campus Cachoeira do Sul-RS. Os participantes cursavam o 3º ano do Ensino Médio de uma escola pública do município. Como instrumento de pesquisa, foi utilizada a entrevista semi-estruturada, seguindo dois tipos de modelos: o primeiro modelo foi aplicado para os ex-orientandos que seguiram a indicação feita pela Orientação Profissional e o outro modelo para os exorientandos que não seguiram a indicação feita pela Orientação Profissional. O serviço de orientação profissional está inserido dentro do Laboratório de Avaliação e Intervenção Psicológicas (LAIP), coordenado pela Professora Ms. Marjane Bernardy Souza. O Laboratório que realiza a serviços à comunidade, tais como: Orientação Profissional Individual/Grupal; Avaliações Psicológicas; Avaliações Neuropsicológicas; além de grupos de estudos; supervisões acadêmicas para os alunos. Esses serviços são prestados por estagiários do curso de
Psicologia, momento em que a prática acadêmica durante o curso universitário, traz a experiência prática-teórica ao alcance dos estudantes. O processo de Orientação Profissional em Grupo funciona durante uma hora, em cinco encontros com cerca de 10 a 15 participantes. O processo de intervenção baseia-se em: autoconhecimento, aplicação de testes, jogos, dinâmicas, pesquisas e entrevistas. Após a aprovação do trabalho pelo Comitê de Ética de Pesquisa da Universidade Luterana do Brasil, foi feito o contato com os ex-orientandos, para marcar um encontro com os mesmos e explicar a pesquisa, após foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para assinarem. As entrevistas foram gravadas, pois como ensina Oliveira (2007), a gravação é muito importante para se ter com precisão tudo o que foi dito no momento. Para a análise dos dados foi utilizada a metodologia de análise de conteúdo proposto por Bardin (2010), que é um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Este autor sugere cinco etapas para a organização da análise de conteúdo: preparação das informações, transformação do conteúdo em unidades, classificação das unidades em categorias, descrição e interpretação.
RESULTADOS E DISCUSSÃO Através da análise das entrevistas semiestruturadas, realizadas por uma amostra de conveniência com os ex-orientandos, tornouse possível chegar aos objetivos da pesquisa: verificar se a indicação da escolha profissional foi seguida pelos ex-orientandos, analisar o motivo pelo qual não seguiram a indicação e investigar a eficácia da Orientação Profissional para os ex-orientandos. Primeiramente, serão apresentadas de forma objetiva algumas características dos
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62 participantes entrevistados e, posteriormente, os dados coletados serão discutidos através das categorias levantadas em análise, juntamente com os objetivos. O O1 tem 19 anos, atualmente cursa Direito noturno na ULBRA – Campus Cachoeira do Sul e está no 3º semestre. A indicação feita pela Orientação Profissional foi o Campo Simbólico/Lingüístico (Levenfus & Bandeira, 2009). Ele participou da Orientação Profissional em Grupo no ano de 2009, estudava em escola pública e veio até a orientação através da participante O2. No processo de Orientação Profissional, O1 mencionava cursos como: Psiquiatria, Psicologia e Medicina. A O2 tem 18 anos, atualmente cursa Direito noturno na ULBRA – Campus Cachoeira do Sul e está no 3º semestre. A indicação feita pela Orientação Profissional foi o Campo Comunicação/Persuasão (Levenfus & Bandeira, 2009). A participante O2 era colega de aula e dos encontros da orientação de O1. A O2 foi quem montou o grupo e procurou a orientação. No processo de Orientação Profissional, manifestava interesse por Direito e Jornalismo. E, a O3 tem 18 anos, atualmente cursa o Técnico em Administração de Empresa no SEAC e está no 3º semestre. A indicação feita pela Orientação Profissional foi o Campo Cálculos/Finanças (Levenfus & Bandeira, 2009). A O3 participou da Orientação Profissional em Grupo juntamente com duas colegas de aula. Durante o processo da Orientação Profissional, enfatizava cursos como: Administração e Fisioterapia.
Categorias Construídas a Partir das Entrevistas A indicação da Orientação Profissional
Essa categoria busca mostrar, através das verbalizações dos entrevistados a situação em relação ao segmento da indicação feita pela orientação, demonstrando em alguns casos, a dificuldade para seguirem a indicação da Orientação Profissional. O O1 teve a oportunidade de fazer vestibular em Santa Maria em uma Universidade pública para o curso de Medicina, não passando, o pai o inscreveu no vestibular em uma Universidade privada de Cachoeira do Sul, para o curso de Direito conforme a verbalização: “Eu ainda estava meio assim, se eu ia fazer Psicologia, se eu ia fazer Administração, Direito, se eu ia parar um tempo e pensar no que eu ia fazer melhor. Para não perder tempo eu resolvi já, eu de própria vontade (riso), resolvi fazer o curso de Direito.”, respondendo assim um dos objetivos específicos propostos pela pesquisa de que a indicação não foi seguida pelo participante, destacando o motivo a influência da família, principalmente pelo pai. Concordando com Neiva (2007), a identidade vocacionalocupacional do O1 se determinou inconscientemente, a escolha profissional foi elaborada através do grau de expectativa, com os conflitos e capacidade de manejá-los pelos pais, quando o inscrevem para o vestibular sem consultá-lo. Assim, confirmando que a compreensão do porquê e para quê dessa decisão foi determinada pela família. A O2 também prestou vestibular em uma Universidade pública de Santa Maria e não passou, como já havia feito a inscrição para o vestibular em uma Universidade privada de Cachoeira do Sul, passou e iniciou o curso de Direito de acordo com sua fala: “Deu uma gama assim até bem grande. Desde... alguma coisa mais relacionado a exterior, outras de contato com pessoas mesmo, Direito, deu bem grande. Mas o Direito já era algo mais facilitado, eu até pensei em fazer Relações Internacionais em Santa Maria, mas aí, se relacionado assim, a dificuldade e como eu não passei na primeira vez, eu fiquei aqui em Cachoeira, já que é a minha cidade mesmo, fiquei aqui fazendo Direito”. Para O2 foi importante a visão mais ampla do pai, que sugeriu para ela fazer Direito, porque achava que a O2 tinha perfil para o curso. Mesmo optando por outro curso,
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63 o Direito estava dentro do Campo de Comunicação/Persuasão (Levenfus & Bandeira, 2009) indicado pela Orientação Profissional, onde se encaixam pessoas comunicativas, extrovertidas, com capacidade de induzir pessoas, liderar, comandar. Corroborando Santos (2005), os lutos e conflitos da adolescência foram superados por O2, deixando para trás as opções que ficaram para fora, decidindo por outro curso, que se encontra, realmente, dentro de seu perfil de acordo com a fala: “Não, não fiquei muito triste não”. Já a participante O3 também seguiu a indicação feita pela Orientação Profissional, quando terminou o Ensino Médio entrou para o curso Técnico em Administração de Empresa em uma escola profissionalizante, demonstrando a importância da indicação de acordo com sua fala: “Me ajudou muito, estava como falei, estava indecisa, daí eu fiz a Orientação e me ajudou bastante, me ajudou a escolher, a escolher alguma coisa para eu fazer. E eu optei pelo curso Técnico de Administração (...) Eu não tinha muita, assim, eu gostava um pouco, eu sempre gostei mais de matemática do que português, e deu para mim na Orientação: cálculos. Então na parte de português eu nunca fui... dez, mas de matemática eu gosto, e eu acho que foi isso que me influenciou para fazer o curso, por causa da Orientação.”. Essa confirmação para ambas as participantes da pesquisa foi importante para a superação dos lutos, dos conflitos, das perdas que a escolha profissional proporciona. Corroborando com Spaccaquerche e Fortim (2010), a O2 e O3 conseguiram enfrentar a vivência de sacrifício, que é proposto pelas autoras de que o Ego sacrificou a ilusão de que a escolha passa somente pelos seus domínios, o processo de vida – morte – vida foi superado por elas, constatando que as mesmas podem optar por suas escolhas, que nesse momento de transição, elas conseguiram abandonar as atividades infantis e optar por outras do mundo adulto. Já o ex-orientando O1, de acordo com Almeida e Pinho (2008), ainda se encontra no mundo infantil, essas transformações foram rompidas pela opinião forte da família, e esse
luto ainda não foi elaborado conforme sua fala: “A Psicologia, hoje em dia está difícil de conseguir, tem que batalhar bastante.”. Pode-se notar que as mudanças que ocorrem na adolescência, quando os jovens se questionam: “Quem sou eu?” e “Quem serei eu?”, para os participantes foram respondidos na Orientação Profissional, traçando assim um ponto positivo, onde foi visto que o trabalho de seus interesses e o autoconhecimento foram atingidos, mas os auxiliaram na percepção de si e na amplitude do conhecimento das profissões.
As Influências na Escolha Profissional Essa categoria irá trazer verbalizações dos participantes ligados às influências sofridas na escolha da carreira, respondendo assim a um dos objetivos específicos propostos da pesquisa. A família, principalmente o pai, foi mencionado nas falas pelos participantes como único fator influente nas suas escolhas profissionais. A O2 demonstra certa dúvida em qual profissão escolher e mesmo optando por outro curso, o peso da opinião do pai foi mais forte, conforme sua fala: “ele me influenciou um pouquinho. Porque antes como eu tinha dito, eu havia pensado em fazer relações internacionais, (...) eu pesquisei bastante sobre esse curso, mas daí o pai conversou comigo, ele disse 'se tem a ULBRA ai pertinho de ti, tem um curso que eu vejo que se encaixa contigo, porque tu não faz o vestibular e deixa reservado, como uma segunda opção', então eu disse para ele 'então está bom', um pouquinho foi a influência dele, pouquinho.” Percebe-se através da fala que os jovens, segundo Neiva (2007), em geral, notam a influência ativa dos pais, que nem sempre aparece sob a forma de indicação de profissões, mas muitas vezes retrata o desejo de serem bem-sucedidos, trabalhando em grandes empresas e desfrutando de estabilidade, conforme na verbalização de O1 está clara a visão que seu pai projetou no participante: “Eu acho que eu não segui muito porque eu fiquei com medo, assim dessa coisa,
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64 porque a gente pensa, que as coisas estão cada vez ficando mais caras, a gente quer construir uma família, a gente quer ter uma vida... normal, que tu possa pagar tuas dívidas e sobrar um dinheiro para ti, pode ter as coisas que tu precisa, então a gente pensa, assim, numa função que é ampla e que a gente consegue ganhar um dinheiro, assim, não fácil, mas.. uma segurança maior, e o Direito se tu é advogado”. De acordo com as verbalizações, em algumas situações, os filhos são impelidos a escolher profissões que os mantenham perto da família, afetiva e geograficamente, confirma Bordão-Alves e Melo-Silva (2008) o que pode vir a manter a homeostase do sistema familiar. Nesse momento, os participantes da pesquisa não percebem que devem escolher, apresentam defesas do tipo identificação projetiva e ambigüidade, não sabendo que lado seguir, fazendo então a opção de acordo com a opinião de seus pais: O1 “se tu passa na OAB, a gente sabe que as ações hoje em dia são caras para ti pagar, claro que se eu passar como advogado eu vou fazer muito trabalho da ativa, que é o trabalho que é gratuito para as pessoas (...) Tem coisas que são milhões e às vezes tu tira milhares de dinheiro.. de reais, de dinheiro (riso). E mesmo assim se tu não conseguir passar na OAB e tu for fazer um concurso, tu já tem aquela segurança, da vitaliciedade, da irredutibilidade do salário...” O1 complementa ainda: “Estabilidade, porque a gente sempre pensa um pouco (...)” Neste sentido, é importante que o orientador profissional identifique quais as normas que fazem parte do núcleo familiar do orientando, favorecendo-lhe sua própria percepção e questionamento a respeito das mesmas. Corroborando com Santos (2005), a dificuldade que os ex-orientandos têm de libertar-se da criança que existe dentro de si. Acrescentando ainda, segundo as falas dos participantes O1 e O2, pode-se chegar à conclusão que seus pais se posicionam como pressionadores. Nesse tipo de família, segundo Neiva (2007), existe uma pressão para que o filho escolha ou não determinada profissão, podendo ser direta ou indireta, consciente ou inconsciente. A pressão indireta e inconsciente do pai para O2, foi vista como uma influencia boa, de acordo com a fala: “Foi
tranqüila. Porque ele me colocou algo que o pai enxerga além do filho, com certeza, às vezes nós temos a nossa visão um pouco focada. E daí ele abriu meus olhos, 'se tu tem algo ai perto de ti, um curso que é bom, abre várias áreas, tu além de trabalhar como privado, tu pode fazer concurso, pode trabalhar na área pública, várias coisas, e eu vejo que se encaixam no teu perfil', foi ele que disse para mim. Daí eu fiz, deu certo, graças a Deus.” Já para O1, a influência do pai foi uma pressão direta e consciente, conforme sua fala: “Com certeza (risos)...mesmo saindo daqui abriu vários planos, porque eu acho que a minha folha foi a que deu mais coisas, não sei porque vocês gostaram de botar bastante coisa na minha folha (risos). Daí eu fiquei muito perdido, assim... eu tinha assim aquela, mais ou menos aquela vontade de fazer, mas a gente quando tem vontade, tem vontade de fazer tudo, por mim eu fazia Psicologia, Pedagogia, um monte de coisas. Só que... tem sempre dois lados da moeda, então a gente tem que pensar. Eu estava muito na dúvida do que eu ia fazer e meu pai foi lá e me inscreveu na ULBRA, daí eu 'tá eu vou fazer' caso eu não passe nas outras (risos)”. Questionado sobre essa “própria vontade”, O1 responde: “...ele me inscreveu, daí eu fiz o vestibular, no outro eu não passei (riso).”. Sobre a inscrição, questionado se estava ciente: “Não, ele falou 'eu vou te inscrever que se por acaso tu não passar lá, dai tu vai fazer alguma coisa, enquanto isso, quem sabe dá para ti aproveitar algumas cadeiras'. Daí ta, daí ele pergunto 'o que tu quer fazer?'. Daí eu 'ah, não sei', 'ah, então vou botar Direito'”. Segundo Neiva (2007), essa posição da família contribui negativamente para o processo de identidade vocacionalocupacional do adolescente, podendo levá-lo à elaboração de uma pseudo-identidade vocacional-ocupacional, onde a escolha do adolescente tem como objetivo agradar a família respondendo aos seus desejos e expectativas. Na verbalização de O1, pode-se perceber a importância da opinião do pai, principalmente quando cria expectativas para sua vida profissional de acordo com o “lema” que seu pai prega na fala seguinte: “Não porque ele tinha falado 'na dúvida..', é bom saber as leis de qualquer coisa, que tudo que a gente precisa a gente tem que saber alguma coisa do Direito,”,
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65 questionado sobre quem disse “noção das leis”, O1 complementa: “Que tem que conhecer as leis foi ele que falou.” Para Bordão-Alves e MeloSilva (2008) o adolescente está entrando num mundo novo, o mundo adulto e, dependendo dos conflitos, ansiedades e mecanismos de defesa, configuram tipos de situações: a) prédilemática: o adolescente não percebe que deve escolher, neste momento, apresenta defesas do tipo identificação projetiva e ambigüidade; b) dilemática: percebe que deve fazer algo, sentese invadido por uma urgência e ansiedade, os conflitos são ambíguos e as defesas são negação, dissociação e a identificação projetiva; c) problemática: há preocupação em relação à escolha e as ansiedades manifestamse em persecutórias ou depressivas, há menos confusão, mais discriminação, mas ainda não há integração; e as defesas são a projeção, a negação e, às vezes, o isolamento; e d) de resolução: há busca de solução para o problema, outros problemas de escolha já foram solucionados, isto é, já elaborou a separação do objeto que deixou de lado. Nesta situação os conflitos que emergem são ambivalentes e as defesas podem se apresentar sob a forma de regressões esporádicas ou sob a forma de onipotência. Em relação aos mecanismos de defesa, O1 apresenta o mecanismo de negação quando é questionado sobre a visão que tem de seu pai, conforme na fala: “(...) não é aquele pai que bate, não é aquele pai, claro que ele podia ser mais participativo e amigo mas, tipo, ele faz o que ele pode (...) eu acho que ele é um pai que deveria ser um modelo para alguns outros, ele não é aquele pai assim, que aparece nos filmes brincando com os filhos, a gente sabe que existe, mas ele não é. Mas ele é aquele pai que cuida da família, que vai trabalhar, que se esforça para dar de tudo para gente, ele quer saber as coisas às vezes que a gente está fazendo, mas não... o tempo, o trabalho, essas coisas às vezes impedem um pouco. E ele já é uma pessoa meio séria, meio fechada, na dele, então, tipo, não abre muito espaço. Mas ele é uma pessoa que impõe as coisas para a gente e faz o trabalho dele, que é cuidar da gente, isso eu acho certo.” Para Bordão-Alves e Melo-Silva (2008) os dados evidenciaram dificuldades para a
escolha profissional e dificuldades em assumir os próprios interesses e habilidades, pensando em tomar a decisão a respeito do que fazer e de quem ser, ou seja, isso fica claro na pesquisa quando responde ao objetivo específico se os jovens sofreram influência na escolha profissional. Mostrando comportamentos de regressão à proteção e segurança infantil como defesa contra exigências dos pais, fazendo pensar num retorno ao mundo infantil e uso da idealização como defesas frente à impotência em lidar com o mundo adulto e às perdas que a adolescência impõe ao corpo e à personalidade. Ao contrário, ressalta-se que a participante O3 não menciona nenhuma influência na sua escolha profissional, deixando claro na sua verbalização a sua independência na escolha: O3 “eu mesma decidi isso, pelo resultado e porque eu gosto mesmo.” Conforme a fala da O3 pode-se mencionar Neiva (2007), quando salienta que são escassas as oportunidades proporcionadas à criança de decidir e, consequentemente, de realizar uma aprendizagem do processo de decisão. Assim, confirmando através das verbalizações dos participantes O1 e O2, em que seus pais acreditam que, tendo uma maior experiência, podem tomar decisões mais corretas para seus filhos. Esquecem que, com essa atitude, impedem que eles tenham suas próprias experiências e que possam servir-se delas para aprender e decidir. É importante também pensar que, para muitos pais, permitir que seu filho tome determinadas decisões, pode ser vivenciado como muito ameaçador em diferentes sentidos. Apesar de anteriormente havermos expostos os fatores de influência através dos amigos, dos pares, dos meios de comunicação, da situação socioeconômica familiar e dos familiares. Identificou-se nesse estudo o último fator, apresentado nas falas, a figura paterna.
Satisfação na Escolha Profissional Atual
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66 Essa categoria procura mostrar a satisfação na escolha profissional em que os participantes estão cursando atualmente. A satisfação profissional, segundo Bardagi, Lassance, Paradiso, e Menezes (2006), é um conceito multifacetado e engloba aspectos pessoais, vocacionais e contextuais da realidade do trabalho. A satisfação profissional do indivíduo resulta da percepção de que o trabalho é uma expressão do seu autoconceito, ou seja, de que é possível, através do exercício profissional, expressar os próprios valores, interesses e características de personalidade. Nesse sentido, em um contexto de formação profissional como o período universitário, a satisfação pode ser entendida como um sentimento de identificação, ajustamento à área de formação em termos de bem-estar e comprometimento, segundo a fala de O1: “Eu consigo entender bem o que está acontecendo, eu gosto muito dos professores, da matéria, até quando experimenta aquelas cadeiras que são de outra matéria, daí tem aquela junção, fico meio deslocado, não gosta muito, mas prefere tudo que tem mais haver com a tua faculdade.” Em relação à prática durante a Universidade, O1 faz estágio no Serviço de Assistência Judiciária (SAJ), assistência do curso de Direito prestado a comunidade. E a O3, destaca a motivação durante o curso e o estágio que está fazendo numa empresa, “... é que eu gosto mesmo, e como eu já disse, estou bem motivada pelo técnico e estou fazendo estágio.” Conforme Bardagi et al. (2006), nesta fase, o engajamento em atividades acadêmicas como monitoria, estágios, iniciação cientifica e participação em eventos é fundamental para a satisfação e o comprometimento. A importância da atividade de estágio como exercício do papel profissional e fortalecimento da relação com a carreira, além de facilitar o estabelecimento de metas profissionais realistas. O impacto de atividades não-obrigatórias sobre a formação superior descrevem resultados positivos destas atividades sobre as aprendizagens, o desenvolvimento vocacional e o desenvolvimento pessoal, desde que relacionadas à área de formação, segundo as verbalizações dos participantes.
Corroborando Lara e Araújo (2005), a preocupação com o futuro e a independência econômica que os jovens enfrentam na escolha profissional, também foi percebida neste estudo, onde os ex-orientandos estão tendo essa noção prática de suas profissões já durante a vida acadêmica. Assim, respondendo a satisfação na escolha profissional atual, essa prática durante o curso serve para acalmar as angústias e os conflitos em relação à profissão. Noções básicas através desta prática fazem com que os ex-orientandos ultrapassem esse obstáculo que só é vivenciado após a formação acadêmica, ressaltando a independência do Ego. Mesmo não participando de atividades associadas ao curso, O2 destaca a satisfação na sua opção: “Até que o chute foi certo, (risos) eu gostei, e não trocaria por outro, não trocaria. Pensei, vou começar a fazer Direito me formo e depois mudo de curso, é uma coisa que a gente pensa antes de começar...”, essa frase marca preocupações com uma possível re-escolha profissional da participante, complementando a sua fala: “...mas hoje não, eu pretendo seguir e me especializar, fazer todos os graus de formação e continuar. Não penso em trocar”. Percebe-se um aumento pelo interesse na continuidade do curso, significando que após a formação está disposta a buscar mais conhecimento da sua área, para um ótimo desempenho profissional. Ressalta-se que as dúvidas e as incertezas passam a ser encaradas, como estados que vêm e vão constantemente. Fases distintas na relação dos ex-orientandos, a escolha e o curso se destacam como o entusiasmo pela vitória do vestibular, o ingresso na Universidade e a expectativa com o início da formação.
A Eficácia da Orientação Profissional Para os Exorientandos Nessa categoria procura apresentar através das verbalizações dos participantes a satisfação com as atividades que a orientação profissional proporcionou para esse momento Práxis PSI, Três de Maio, v. 2, n. 2, jan./dez. 2013
67 de busca pelo curso universitário. Confirmando a eficácia das atividades durante todo o processo, respondendo assim a um dos objetivos específicos propostos da pesquisa. Os grupos operativos segundo Neiva (2007), permitem aos adolescentes não só realizarem a tarefa de decidir, como também estabelecer relações com os companheiros e orientadores do grupo. Essas relações facilitam o processo de aprendizagem do adolescente. Com as distintas vivências e realidades de seus companheiros, ele aprende, amadurece e cresce. Aprende a pensar, a observar, a escutar, a analisar, a compartilhar e a relacionar suas opiniões com as dos demais, a admitir que outras pessoas pensam e agem de maneira distinta, a formular hipóteses, a reavaliar a dimensão de seus problemas e, finalmente, a trabalhar em grupo, conforme a fala de O1: “A dinâmica de grupo é boa, tem seu lado negativo, que às vezes a gente não consegue expressar tudo o que a gente gostaria, porque a gente fica um pouco tímido até, pelos outros, porque a gente não pode escancarar a nossa vida, de certa forma, a nossa vida é nossa, assim, a gente pode... às vezes até aquelas pessoas que tu gosta muito, tu não quer revelar tudo, tem umas pessoas que tu fala uma coisa e tem outras que tu fala outra coisa... Mas foi muito bom.” Discutindo a verbalização de O1, pode-se destacar como características pessoais a timidez, submissão, introversão. Características que durante a entrevista apontam como ponto negativo de sua identidade vocacional-ocupacional. Isso, porque em muitas falas O1 destaca o complexo de inferioridade quando questionado sobre como se descreve: “Não sei, até hoje eu me acho assim... meio complexo de inferioridade, eu estou tentando ser psicólogo, eu não faço a mínima ideia, é que eu tenho muito respeito pelas pessoas e tento ser humilde o máximo que eu puder, eu sempre aprendi que quando tu está na casa dos outros, tu tem que respeitar e não tocar em nada, praticamente, ser uma pessoa que não consome nada, e quando tu está na tua casa tu tem que oferecer o máximo que puder para os outros. Então eu sempre tive essa coisa, assim, quando tu... eu sempre nunca tento exigir das pessoas alguma coisa a mais. Sempre tento exigir mais de mim.”
Em relação às atividades proporcionadas pela orientação, os participantes relatam através das falas, a importância que os encontros tiveram no momento em que se encontravam perdidos, em dúvida e, em relação ao autoconhecimento foi dado como superado por eles: O1 “Eu acho que ajudou bastante assim, porque foram situações que a gente acabou tendo que.. entender um pouco o que a gente sentia para se expressar, muitas vezes a gente teve que deixar um pouco a timidez de lado para passar o que a gente estava sentindo, o que a gente estava passando, que a gente pensava, foi interessante.”; para O2: “Ah! Com certeza, as atividades são bem legais, não é só que legal de preencher folhinhas, elas são lúdicas também, faz a gente pensar, ver todas as profissões que tem. Foi bem legal o trabalho. Nós gostamos bastante, não era um dia assim, durou eu acho que quatro encontros, cinco. É cinco, daí não é de 'ah hoje tem aquilo para fazer, que coisa chata', não era um dia que nós não gostávamos, de manhã a gente falava lá na turma 'ah, hoje tem encontro lá, que legal' todo mundo gostava. Era bem legal.”, complementa ainda: “Sim, fiquei satisfeita. Gostei bastante, todos os cursos que eu ganhei na folhinha no dia que eu vim buscar, todos os cursos eram bons, a única coisa o problema que tem é que a cidade mesmo não favorece, a gente tem todos aqueles cursos para fazer, e muita gente tem dificuldade, de sair, ou dificuldade de até mesmo de entrar numa faculdade federal... e um curso que tinha lá, ao meu alcance, e deu certo, gostei de tudo.” O orientador, atuando nesse caso como coordenador do grupo, é aquele que pensa com os outros (co-pensador), que facilita a comunicação do grupo, que analisa, que assinala e que informa (Neiva, 2007). De acordo com a autora, para O3 a orientação foi mais um meio de confirmação em relação à escolha profissional, conforme a sua fala: “É que assim, eu tinha um pouco de noção, eu já tinha pesquisado o que eu ia fazer depois que terminasse o Ensino Médio, só que não tinha aquela certeza, do que eu ia fazer. Então eu optei por fazer a orientação, para ver se me ajudava um pouco, me conhecer, ver o que eu gostava, acabou saindo cálculos, matemática e aí fechou tudo.” Pode-se ressaltar a unanimidade entre
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68 os ex-orientandos nesta categoria, onde apontam as transformações em que a Orientação Profissional sofreu durante décadas, conforme Sparta et al. (2006), a orientação era para detectar trabalhadores inaptos para as realizações de tarefas nas indústrias. E, atualmente, seu objetivo é verificar aptidões, interesses e habilidades através do autoconhecimento para uma realização profissional futuramente. Os métodos utilizados pela Orientação Profissional na clínica-escola ressaltam que a eficácia do trabalho oferecido para ambos os participantes, ajudando ao indivíduo a escolher e a se preparar para ingressar e progredir em uma ocupação, segundo Lehman (2010).
CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho buscou investigar a satisfação na escolha profissional em jovens que passaram pela Orientação Profissional; bem como investigar possíveis influências ao decidirem pela carreira profissional, assim como a verificação da eficácia da Orientação Profissional para suas tomadas de decisões. Os resultados obtidos, através das entrevistas com os ex-orientandos, foram satisfatórios aos objetivos propostos pela pesquisa, confirmando que o serviço de Orientação Profissional foi útil para a compreensão do autoconhecimento de ambos. Para a participante O2, acrescenta-se ao processo de orientação a busca pelo conhecimento das profissões, ampliando através das atividades propostas. E para a participante O3, foi tomada a Orientação Profissional como confirmação do que já estava ciente, apropriado como um tranqüilizador de ansiedade em relação a sua escolha. No embasamento teórico utilizado para a realização desta pesquisa, os autores traçaram vários tipos de influências na escolha profissional dos participantes, mas apenas a influência familiar, principalmente, pelo pai, foi destacada nas verbalizações da pesquisa. Dos três ex-orientandos, uma participante não
verbalizou sofrer influência, enfatizando a escolha independente. Mesmo não aparecendo nas discussões, às influências causadas pelos meios de comunicação, pelos amigos e pela situação socioeconômica familiar, são fatores que não foram destacados ou percebidos pelos participantes do estudo como influenciáveis, pois a família ocupa esse espaço, tornando as outras influências, talvez, inconscientes. Com relação aos participantes, o participante O1 destacou-se mais nas categorias da pesquisa, por ter sofrido a influência de seu pai, de uma maneira mais profunda que as outras participantes. Trouxe nas suas verbalizações, situações importantes para serem debatidas nos resultados, desde a insegurança e a submissão que já apresentava nos encontros da Orientação Profissional, ainda presentes em suas características as quais possam, talvez, ser elaboradas, no futuro. A participante O2, também, teve um destaque na pesquisa, trazendo verbalizações conscientes relacionadas a seu pai. Mesmo ele tendo influenciado de maneira inconsciente e indireta, para a participante essa influência foi boa e tranquila, pois para ela a visão do pai foi de ampliar seus horizontes, através de uma conversa entre adultos. Já a participante O3, suas verbalizações foram objetivas, com pouco material para uma intensa discussão, mas pode-se verificar que a participante confirma a maturidade pela determinação e independência em relação a sua escolha. A respeito da prática-teórica, durante o período acadêmico, ela vem, atualmente, para dar suporte aos estudantes em relação às suas vivências e confirmações de suas escolhas. Entretanto, mesmo com as adaptações pelas quais a Orientação Profissional passou nesses anos, pode-se enfatizar na pesquisa que a orientação é fundamental para ser trabalhada não somente em clínica-escola, mas, também, em ambiente escolar, com projetos que não sejam aplicados, apenas, no último ano do curso, mas que acompanhe esses alunos, desde o final do ensino fundamental, para evitar o sofrimento que os alunos apresentarão, no término do Ensino Médio. Segundo os autores
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69 citados na pesquisa, é importante essa preparação desde criança, porque, além da crise da adolescência onde surgem as mudanças, as profissões, também, sofrem essas transformações, pois esse período é de muita turbulência, de muitos conflitos a serem trabalhados. Para novos trabalhos acerca do tema, sugerem-se estudos que incluam os pais de orientandos, para que a percepção deles em relação a escolha profissional de seus filhos, seja analisada, bem como a vivência dos jovens nesse momento de decisão e a visão dos pais sobre esse período pelo qual seus filhos passam, saindo do mundo infantil para o mundo adulto.
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Grupos de Reflexão Segundo Contribuições da Psicologia Existencial Reflection Groups According to the Contributions of Existential Psychology I
Tatiane Baggio, Rossane Frizzo de Godoy
II
RESUMO Os grupos de reflexão foram instituídos na América Latina nas décadas de 60-70, sendo utilizados no processo de ensino-aprendizagem de médicos residentes de psiquiatria em Buenos Aires. Hoje, são utilizados por psicólogos em diversas instituições. O objetivo deste trabalho é descrever o papel dos grupos de reflexão na reabilitação de pacientes com Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica, segundo contribuições da Psicologia Existencial. Delineamento: pesquisa bibliográfica qualitativa, exploratória e descritiva. O trabalho constituiu-se de quatro partes: Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica, propondo-se uma compreensão dos impactos biopsicossociais percebidos pelo paciente; Grupos de Reflexão, trazendo aspectos históricos, bem como o papel do coordenador; Psicologia Existencial, trabalhandose as premissas básicas de compreensão dessa perspectiva teórica e Síntese integradora, fazendose uma retomada e interligação dos aspectos abordados. Conclusões: os grupos de reflexão, com base na perspectiva da psicologia existencial oferecerão oportunidade para que os pacientes com DPOC trabalhem seus medos e angústias existenciais, tomando consciência de seu ser-nomundo, de sua liberdade e responsabilidade, proporcionando o descobrimento e desenvolvimento de novas possibilidades para viver bem e lidar melhor com suas limitações dentro de suas capacidades reais.
ABSTRACT Reflection groups were instituted in Latin America between the decades of 60 and 70, being first used in the teaching-learning process with psychiatry residents in Buenos Aires and later in the training of group therapists. Currently, they are used by psychologists in several institutions. The goal of this study is to describe the role of reflection groups in the rehabilitation of chronic obstructive pulmonary disease patients, according to the contributions of Existential Psychology. The chosen design was qualitative, exploratory and descriptive literature review. The paper is composed of four parts: Chronic Obstructive Pulmonary Disease, an understanding of the biopsychossocial impacts seen by the patient; Reflection groups, bringing historical aspects, role of the coordinator; Existential Psychology, working the basics understanding premises of this theoretical perspective and the Integrative synthesis, by making a recapture and interconnection of the aspects that were addressed. Conclusions: reflection groups from the perspective of existential psychology will offer opportunity for COPD patients to manage their fears and existential anxiety, becoming aware of their being-in-the-world, their freedom and responsibility, allowing the discovery and development of new possibilities to live well and deal better with their limitations within their actual capabilities.
Palavras-chave: doença pulmonar obstrutiva crônica, grupos de reflexão, psicologia existencial.
Keywords: chronic obstructive pulmonary disease, reflection groups, existential psychology.
INTRODUÇÃO
dentre as doenças que mais atinge os idosos no Brasil, pode-se citar a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), atingindo em média 5,5 milhões de idosos. É a quinta causa de morte no país e a sexta no mundo. Em
Segundo o II Consenso Brasileiro de Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (2004),
I Graduada em Psicologia pela Universidade de Caxias do Sul - UCS II Professora Adjunta do Curso de Psicologia - Universidade de Caxias do Sul (UCS). Especialista em Psicoterapias Humanístico-Existenciais- PUC-RS; Mestre em Ciências do Movimento Humano- UFRGS; Doutora em Ciências Pneumológicas - UFRGS.
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71 média, 290 mil pacientes são internados anualmente, trazendo um gasto enorme ao Sistema de Saúde Pública. Tão importante quanto os gastos diretos são os gastos indiretos, computados como dias perdidos de trabalho, aposentadorias precoces, morte prematura e sofrimento familiar e social. Os fatores de risco envolvem fatores individuais (infecções respiratórias graves na infância, desnutrição, prematuridade, hiperresponsividade brônquica, deficiência familiar alfa-1-antitripsina, etc) e fatores externos (tabagismo, poeira ocupacional, condição socioeconômica, irritantes químicos, poluição ambiental e atmosférica, etc), sendo o tabagismo o principal apontado (Alves de Lima, 2012). O impacto da DPOC sobre o indivíduo não se dá somente na limitação física para a execução das atividades da vida diária, mas, também, nas relações afetivas, conjugais e sexuais, no lazer e no exercício profissional. Em decorrência dessa situação, muitos pacientes tornam-se amplamente dependentes de seus familiares, o que acaba reforçando seu sentimento de incapacidade e contribuindo para a diminuição de sua auto-estima (Godoy & Godoy, 2003) O enfrentamento desses aspectos permitirá ao paciente entrar em contato com situações causadoras de grande sofrimento, exigindo-lhe um novo posicionamento. Neste sentido, percebe-se que a psicologia existencial, por propor ao indivíduo o desenvolvimento de uma maior autoconsciência, autocompreensão e autodeterminação, possibilitará uma postura de maior liberdade e responsabilidade diante de suas escolhas no mundo. O aspecto principal na psicoterapia é o indivíduo e não a patologia. A ênfase engloba as dimensões históricas, de projeto e a responsabilidade individual na construção do sujeito e seu mundo (Teixeira, 2006). Dessa forma, esta pesquisa bibliográfica terá como objetivo identificar e descrever o papel dos grupos de reflexão com pacientes
com Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica em reabilitação, segundo as contribuições da psicologia existencial.
Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica A dispnéia -falta de ar- e a tosse são os dois principais sintomas referidos por pacientes com DPOC e, afetam intensamente a qualidade de vida desses indivíduos. (II consenso Brasileiro sobre Doença pulmonar obstrutiva crônica, 2004). A DPOC mata em média 30 mil pessoas por ano no País. A história clínica é caracterizada por tosse e expectoração por muitos anos, associada ou precedida pelo tabagismo. A partir dos 50 ou 60 anos de idade o paciente passa a referir mais a falta de ar. À medida que a doença se agrava, os períodos de tosse, falta de ar, expectoração purulenta e febre, tornam-se mais freqüentes e com intervalos cada vez mais curtos (Alves de Lima, 2012) O paciente diminui cada vez mais a sua atividade física devido à piora progressiva da função pulmonar, que é traduzida por dispnéia e percepção de cansaço ao realizar qualquer forma de esforço físico. O progressivo descondicionamento físico associado à inatividade dá início a um círculo vicioso, em que a piora da dispnéia se associa a esforços físicos cada vez menores, com grave comprometimento da qualidade de vida (Rabe et al., 2007). Conforme Langer (1994) (em Oliveira, 2000), a pessoa que descobre ter uma doença crônica, depara-se com duas opções: apreender e se adaptar o mais rapidamente possível com as limitações e procurar buscar a sua recuperação ou desistir e aumentar o risco de morte. Neste enquadramento, considera em particular diversas questões a ter em conta no acompanhamento psicológico destes pacientes, entre elas: a evolução da condição da doença (estável, progressiva, aguda, crônica,
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72 episódica, estática); ser ou não acompanhada de dor física e/ou desconforto; tempo de evolução da doença; personalidade prémórbida; recursos sociais disponíveis do paciente, tendo em conta sua idade, estilo pessoal, e a forma como o paciente e a família lidam com a deficiência; significado pessoal da deficiência e da capacidade para o individuo; significado social e cultural da deficiência e da incapacidade onde o sujeito se insere; repercussões da doença noutras dimensões, como por exemplo, a situação financeira, qualidade de vida, contatos sociais futuros, acessibilidade ambiental, às experiências prévias ou contatos em relação à deficiência e incapacidade. Um acontecimento como uma doença, pode ocasionar um sofrimento por vezes brutal, devido aos conflitos psíquicos envolvendo dimensões como a percepção do self, autoestima, a capacidade de lidar com as perdas (físicas, funcionais e outras) e nos relacionamentos interpessoais. A pessoa com alguma deficiência física procura frequentemente apoio psicológico numa unidade de reabilitação (Oliveira, 2000). A maneira como o paciente com DPOC enfrenta a doença depende de vários fatores: personalidade, grau de incapacidade física, recursos socioeconômicos, culturais e educacionais. Nos estados mais graves, é comum os pacientes apresentarem alta ansiedade, maior dependência física e emocional em relação às pessoas ao seu redor, isolamento e baixa autoestima. Devido às crises frequentes, os pacientes sentem-se constantemente confrontados com a morte (Mello Filho, 2007). Pesquisas mostram que estes pacientes apresentam algum grau de ansiedade e depressão, o que pode ser considerado como uma resposta psicológica à medida que os indivíduos se confrontam com suas limitações às atividades de vida diária, com os maiores esforços exigidos pela condição física incapacitante e devido à diminuição dos contatos sociais (Carvalho et al., 2007). Quando a depressão ocorre, o
engajamento do paciente na reabilitação e tratamento fica prejudicado. Dentre os sintomas de depressão mais frequentes encontra-se: falta de apetite, insônia, isolamento, sentimento de fracasso, tristeza, dificuldade de concentração, dispnéia, desesperança, idéias suicidas, etc. (Mello Filho, 2007). A doença acaba proporcionando uma transformação nas relações familiares, o modo como a família irá lidar, perceber e reagir frente ao paciente com DPOC torna-se importante no processo de aceitação da doença. Muitas vezes a família age de forma a reorganizar-se em torno da doença, colocando o paciente em um papel passivo, algumas famílias podem ter comportamentos de rejeição, podendo ser expressa através de superproteção, ansiedade exagerada, o que pode causar estresse no paciente (Mello Filho, 2007). A intensidade da dispnéia sofre interferência e também influencia o estado emocional e psicológico do paciente. Estados de depressão e ansiedade, alterações de humor e motivação podem aumentar ou manter a dispnéia “fora de proporção”. O paciente pode diminuir o envolvimento íntimo com o parceiro atual ou evitar futuros relacionamentos e também evitar cada vez mais o contato social, devido às experiências inibidoras como crises de falta de ar quando está em um grupo ou nos momentos íntimos com o parceiro. Inicia-se um ciclo vicioso de inibição, comprometendo cada vez mais o condicionamento físico e atividades interpessoais, colaborando para o aumento do isolamento (Stoudemire, 2000). Em casos mais graves e, no curso mais avançado da doença, é comum o uso de ventilação mecânica. As queixas mais comuns devido à dependência ventilatória são: o medo da morte, do abandono e da separação, o estresse financeiro, as alterações na autoimagem e a mutilação. O funcionamento neuropsicológico e as trocas de humor variam de modo considerável em pacientes idosos que utilizam a ventilação mecânica (Stoudemire,
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73 2000). Uma pesquisa realizada com 30 pacientes com DPOC, que iniciaram um programa de reabilitação na cidade de Caxias do Sul, mostrou que a ansiedade e depressão estão presentes na maioria dos casos de pacientes com DPOC, o que prejudica ainda mais a qualidade de vida destas pessoas (Godoy, Teixeira, Becker Jr, Micheli & Godoy, 2009). Aposentadorias precoces são comuns nos casos de pacientes com DPOC. Para as pessoas ativas profissionalmente isso é muito difícil de ser aceito, sendo que o trabalho configura para muitos o sentido de utilidade e uma forma de ocupação no seu dia-a-dia. Além de ter que reorganizar o tempo livre, em decorrência da aposentadoria, a pessoa passa a carregar o estigma de inaptidão e invalidez, o que colabora para o aumento da depressão. Muitos passam a delegar suas tarefas a terceiros, o que contribui para a perda da autoconfiança e consequentemente o aumento da dependência de outras pessoas (Teixeira, Godoy & Godoy, 2012) Durante o processo de evolução da doença, podem surgir sentimentos de vergonha, desânimo, desesperança, tristeza, medo da morte, hostilidade, raiva, vazio existencial, choro e ideações suicidas, decorrentes da percepção das limitações e das perdas sofridas nos âmbitos, físico, psicológico e social. (Teixeira et al, 2012; Godoy, 2003). Como decorrência, percebe-se que o suporte social para pacientes com doença física é considerado como fundamental no processo de reabilitação e adaptação às mudanças advindas da doença, pois o isolamento social contribui de algum modo para o agravamento da incapacidade. O que se percebe é que pacientes com doenças físicas ou incapacidades físicas adquiridas, desenvolvem com frequência, além das limitações físicas, incapacidades comunicativas e de relações sociais (Oliveira, 2000). Mello Filho (2007), afirma que, em razão do tabagismo ser responsável por 90% dos
casos de DPOC, o abandono do hábito tabágico é encarado pelos pacientes como um desafio, pois, estes mantêm uma relação de culpa e castigo com o cigarro. O fumo é considerado um poderoso ansiolítico, além de estimular os centros adrenérgicos, que criam um estado de excitação permanente que favorece as atividades intelectuais, de prazer e de vigília. Em razão dos aspectos elencados, percebe-se a necessidade de se propor um tratamento interdisciplinar, pois a reabilitação física do paciente depende da motivação psicológica, pois ele precisa adotar uma postura positiva e disciplinada. Por isso, faz-se necessário reabilitar o emocional do paciente, livrando-o das fantasias de que sua doença é incapacitante e terminal. Dentre os objetivos da Reabilitação Pulmonar estão à redução dos sintomas, a redução da perda funcional causada pela doença pulmonar e otimização das atividades físicas e sociais, traduzidas em melhora de qualidade de vida, proporcionando ao paciente a maximização e manutenção da independência funcional. Esses objetivos podem ser alcançados por meio de processos que incluem o exercício físico, a educação do paciente e de seus familiares e a intervenção psicossocial. A intervenção pela reabilitação pulmonar visa atender aos problemas e queixas individuais e é implementada por uma equipe multidisciplinar de profissionais da saúde (Teixeira et al, 2012). Um programa de reabilitação pulmonar deve durar de 8 a 12 semanas, englobando aspectos psicossociais, vocacionais, oxigenioterapia, treinamento respiratório, educação e exercícios, tendo a participação, no mínimo, de um médico pneumologista, um fisioterapeuta e uma psicóloga, sendo que, a participação de assistentes sociais, nutricionistas, professor de educação física e um grupo de enfermagem torna o programa ainda mais eficaz (Teixeira et al., 2012). A reabilitação pulmonar realizada por uma equipe interdisciplinar tem entre seus objetivos: maximizar a independência
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74 funcional do indivíduo em atividades de vida diária, introduzir o treino físico para aumentar a tolerância ao exercício, proporcionar sessões educativas aos familiares e pacientes, reduzir os sintomas e melhorar a qualidade de vida. A utilização de exercícios físicos na reabilitação é fundamental para a melhora da resistência da musculatura, o que aumenta a capacidade respiratória e a troca gasosa, diminuindo a fadiga muscular, o que é característico nestes pacientes, devido a maioria ser ou terem sido fumantes por anos (Laizo, 2009). O processo de tratamento deve encorajar o diálogo franco entre paciente, família e a equipe de trabalho. Esclarecimentos sobre os efeitos da doença ou da deficiência auxiliam o paciente a manejar melhor com a mesma, visando uma diminuição do isolamento, negação, repressão, deslocamento e raiva, auxiliando-o a motivar-se e manter uma participação ativa no curso da reabilitação. O bem estar emocional do paciente é a chave de todo processo e deverá ser promovido por todos os membros da equipe (Godoy, 2003).
Grupos de Reflexão Os grupos de reflexão surgiram a partir da contribuição da teoria da técnica dos grupos operativos de aprendizagem, através de uma atitude de “re-fletir(se)” sobre a sua experiência enquanto grupo. Neles os supervisionandos utilizavam a própria experiência de participar como membros de um grupo de ensinoaprendizagem como parte do seu treinamento, sendo, portanto, considerados derivados dos grupos T (training groups), introduzidos a partir de 1949 nos laboratórios sociais de dinâmica de grupo inspirados nas idéias de Lewin. Os grupos T passaram a centralizar o aprendizado na questão do que ocorre com os próprios participantes enquanto membros de um grupo de aprendizagem, passando para uma perspectiva dos fenômenos intragrupais. (Osório, 2000).
Na América Latina, os grupos de reflexão surgiram na década de 60, com o objetivo de proporcionar aos médicos residentes em Psiquiatria no Instituto Borda de Buenos Aires um momento para elaborarem tensões geradas no trabalho com pacientes psiquiátricos. Posteriormente, na década de 70, foram incorporados na formação de profissionais para coordenar grupos em geral e grupos terapêuticos, com o propósito de criar um espaço reflexivo para os alunos vivenciarem a experiência de serem membros de um grupo. Em 1979, Alejo Dallarossa, emprega o termo “grupos de reflexão”, no seu livro Grupos de Reflexión, no qual narra o surgimento e desenvolvimento da técnica (Osório, 2003). Dellarosa, ao estudar o funcionamento, a estruturação e as dificuldades enfrentadas pelos terapeutas de grupos nos cursos de formação na Associação Argentina de Psicologia de Grupo, instituiu os grupos de reflexão, de pensar, de meditar sobre as vicissitudes da formação, com seus sofrimentos, dúvidas e insights, cuja tarefa seria pensar determinadas experiências coletivamente. Troca-se a função operar e agir dos grupos operativos comuns, pela função pensar, refletir (Mello Filho, 2007). O foco de atenção do coordenador de um grupo de reflexão está baseado na pergunta: O grupo está conseguindo realizar o que pretende? A resposta a esta pergunta corresponde à etapa chamada de diagnose situacional, ou seja, é a formulação de uma hipótese diagnóstica da situação e de quais são os problemas que estão impedindo o grupo de efetuarem a tarefa. Além disso, a comunicação grupal deve ser bastante valorizada, sendo esclarecidas as dificuldades que surgirem como mal-entendidos, as distorções, os paradoxos, etc. (Coronel, 2007). A comunicação tornando-se mais livre e espontânea no grupo proporcionará a detecção da chamada configuração fantasmática, referente aos fantasmas, às ansiedades, etc. Ou seja, à tensão específica que não está permitindo que o grupo alcance seus objetivos. Após a
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75 identificação destes fantasmas, ansiedades, específicos da situação, podem ser feitas devoluções com o entendimento do coordenador, que poderão fazer sentido para o grupo promovendo uma mudança de atitude mental coletiva. Ao final de cada sessão, é importante ser feita uma síntese do que foi abordado e observado pelo coordenador (Coronel, 1997). Os recursos psicoterápicos habituais como clarificações, confrontações, pontuações, esclarecimentos, perguntas, informações, sugestões, comentários, reasseguramentos, podem ser utilizados quando necessário, visando sempre o grupo como um todo, evitando referências no individual (Escobar, 2007).
Psicologia Existencial A psicologia existencial busca proporcionar ao homem uma reflexão sobre o sentido das coisas, para que assim não se deixe levar pelo determinismo cultural que valoriza mais o ter do que o ser, a beleza do corpo do que a essência do ser, os mitos da juventude eterna, a conquista pelo consumo exagerado, o progresso como o principal projeto do homem, favorecendo o afastamento do homem de sua singularidade e do sentido que lhe é próprio (Feijoo, 2002). Teixeira (2006) descreve a fenomenologia e hermenêutica como método utilizado na psicoterapia existencial, sendo a técnica a análise semântica de autodescrição. A hermenêutica tem como base o discurso, sendo que através dele o homem constrói o seu mundo. O discurso possui o significado e a intencionalidade que relacionam as dimensões afetiva, cognitiva e comportamental, com a experiência psicológica. A autodescrição permite que o indivíduo encontre significados e se coloque diante da maneira como se estrutura no mundo, aproximando-o de seu projeto e tornando-o coerente com suas ações. Na prática o método fenomenológico compreende o existir com base na filosofia da existência, reconhecendo as imensas
possibilidades do homem perante o seu existir, partindo da ideia proposta por Heidegger de que o homem se constitui no mundo: ser-nomundo e também é um ser-para-a-morte. As temáticas discutidas por esta filosofia tratam da vulnerabilidade do homem, do risco, da liberdade, da morte, da solidão e dos paradoxos da existência humana. A sua prática, diante destas reflexões, se voltará para que o homem se torne consciente de que como um ser no mundo, é vulnerável à doença, à velhice, à morte, à fragilidade, porém, possui a liberdade perante suas possibilidades para mudança. (Feijoo, 2002). O confronto com dados da existência, como a consciência da morte, da liberdade, da solidão, da falta de sentido, resulta em constante ansiedade para o homem. A ansiedade está presente em diversos momentos, como em crises pessoais, luto, doença física, fases de transição do ciclo da vida individual ou familiar, etc. Existir envolve a consciência do desespero, da tragédia, da insegurança, das frustrações e perdas irreparáveis em contra ponto com a esperança resultante da liberdade de escolha, da autorealização, da dignidade individual, do amor e criatividade (Teixeira, 2006). Sartre, apesar de também partir da fenomenologia, diferentemente de Heidegger, não usa da hermenêutica para fundamentar sua visão existencialista. Sartre afirmava que o homem está condenado a ser livre significando que está condenado porque não criou a si próprio e livre porque uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo que fizer, tendo a liberdade para assumir a totalidade de seus atos. (Camon, 1998). Para Sartre, o sujeito se caracteriza pela possibilidade de superação de determinada situação, realizando suas escolhas em relação ao que denomina campo dos possíveis. O campo dos possíveis compreende uma dimensão futura. Sartre denomina projeto este movimento em direção ao que ainda não é. (Diogo & Maheirie, 2007). Para Sartre o homem não é nada além de seu projeto de vida. Cada um é aquilo que projeta
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76 para si mesmo, as decisões que toma, o que faz, as experiências que vive, podendo definir-se a si mesmo somente enquanto surge no mundo e se descobre. O homem cria a si mesmo no curso de sua existência. Portanto, sendo o homem livre e responsável pela sua própria existência, ele pode transcender e se posicionar frente às dificuldades biopsicossociais. (Hall, Lindzey, & Campbell, 2000).
Síntese Integradora: Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica, Grupos de Reflexão, Psicologia Existencial. Os grupos de reflexão buscam proporcionar um espaço reflexivo, no qual seus integrantes, através das trocas entre si, possam elaborar suas tensões frente às dificuldades que tenham em comum, favorecendo o desenvolvimento da habilidade de “pensar” o próprio grupo a partir de uma experiência compartilhada, tendo como objetivo a aprendizagem mediante a elaboração de ansiedades decorrentes do processo de transmissão-aquisição de conhecimentos ou devido a alguma patologia (Osório 2000 e Osório 2003). No processo de reabilitação pulmonar com pacientes com DPOC, os grupos podem auxiliar os pacientes a se adaptarem, aprenderem a conviver e a lidarem melhor com suas limitações, desenvolvendo ao máximo seu potencial físico e psicológico (Godoy, 2003). Reabilitação é a restauração do indivíduo ao mais pleno potencial médico, mental, emocional, social e vocacional de que o mesmo é capaz. A reabilitação psicológica, sendo um processo de evolução gradual deve conter estratégias que compreendam as dificuldades do paciente, estimulando-os a superá-las, dentro de suas possibilidades. O paciente precisa aprender a lidar com aquilo que foi perdido, como a perda da capacidade para realizar atividades diárias em um curto período de tempo e no ritmo desejado, o que se
relaciona o importante problema de ordem psicossocial, incluindo ansiedade e depressão (Godoy, 2003). . O paciente com DPOC, durante o processo de reabilitação aprende sobre o uso dos medicamentos, exercícios físicos que aumentam seu condicionamento, alimentação adequada, cuidados diários que o ajudarão a sentir-se menos cansado e a lidar melhor com a falta de ar. No grupo de reflexão pode falar e compartilhar suas dificuldades em virtude da doença, mas também suas conquistas e novas aprendizagens decorrentes do processo de reabilitação. É no grupo que o paciente encontra a compreensão para seus sentimentos e através da identificação projetiva-introjetiva entre seus integrantes, os quais possuem situações semelhantes, e a partir disto conseguem melhor encarar seus receios, raivas, tristezas, perdas e limitações (Mello Filho, 2007). Van Kaan (1966, em Hall, Lindzey & Campbell, 2000), fala sobre a importância da experiência de se sentir realmente compreendido para o ser humano. Quando o indivíduo sente que o outro o compreende, como se coexperienciasse o significado das coisas com o sujeito, passa a aceitar e a sentir alívio da solidão existencial e a sentir uma comunhão experencial segura com aquela pessoa. A solidão é inerente ao ser humano, porém é sentida em alguns momentos mais do que em outros. A voz do Outro é daquele que faz sentir alguém com significação própria. A sensação de acordar e sentir-se sozinho, necessitado de alguém, traz a consciência de que preciso do Outro (Camon, 1998). Um grupo realizado com pacientes com DPOC, juntamente com seus familiares, uma psicóloga e outros profissionais da saúde, no Hospital Pedro Ernesto, comprovou a importância do trabalho com grupos no acompanhamento desses pacientes. Os temas sempre presentes nos discursos destes pacientes atendidos foram: a dispnéia, a limitação no trabalho e na vida sexual, a dependência aos remédios para o resto da vida,
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77 a questão da tosse, a dependência do fumo, sentimentos de medo de morrer, mas também outros assuntos como a vida e a importância da adaptação. Os pacientes se ajudaram mutuamente, trocaram informações e dicas para lidarem melhor com as dificuldades diárias decorrentes da doença e saiam dos encontros com uma nova postura frente às dificuldades discutidas pelo grupo (Mello Filho, 1997). O psicólogo, no grupo de reflexão, irá proporcionar que os integrantes reflitam sobre suas vivências e seus questionamentos comuns ou não, buscando levantar hipóteses diante e somente a partir das questões trazidas pelo grupo, não buscando a interpretação destes conteúdos, mas podendo utilizar de clarificações, confrontações, pontuações, esclarecimentos, perguntas, informações, sugestões, comentários, reasseguramentos, visando sempre o grupo como um todo, no contexto de ensino-aprendizagem (Escobar 2007). As suas intervenções, segundo a psicologia existencial, devem considerar as dimensões: 1) Física- envolve as atitudes do indivíduo em relação ao corpo e aspectos biológicos do existir e do ambiente; 2) Social- é o mundo das relações e significados que os outros tem para o indivíduo; 3) Psicológicaconstrução do mundo pessoal e da relação consigo próprio, da subjetividade, da autopercepção, de seus recursos, e possibilidades em busca da identidade própria; 4) Espiritualrelação do indivíduo com o desconhecido, com o mundo ideal, ideologias, valores e o propósito da existência individual. O indivíduo busca significados e luta contra o vazio e a falta de sentido, sendo responsável pelo seu desenvolvimento Cohn (1997, em Teixeira, 2006). A psicologia existencial defende a idéia de que o individuo é livre e responsável por suas escolhas e busca desafiar o indivíduo a ser um construtor de sua existência e não um ser determinado e dado no mundo e pelas suas circunstâncias de vida. Ele pode transcender qualquer dificuldade, até os seus limites
físicos, considerando sempre suas possibilidades reais na tomada de decisões (Camon, 1998). O grupo de reflexão, no processo de reabilitação, buscará proporcionar que seus integrantes reflitam sobre suas possibilidades físicas, psicológicas, econômicas, sociais, etc. e busquem identificar as dificuldades percebidas durante o processo de reabilitação e no seu dia a dia, desenvolvendo ao máximo suas potencialidades físicas e psicológicas, assumindo sua responsabilidade diante do tratamento e não desistindo de seu projeto de vida, desde que este esteja de acordo com suas capacidades (Coronel, 1997; Galhordas & Lima, 2004). O paciente com DPOC se depara com outras dificuldades em meio à família e à sociedade em que vive. A doença muda toda a dinâmica familiar, transformando as relações familiares. A família pode reorganizar-se em torno da doença, rejeitar o doente, desenvolver superproteção, o impedindo de desenvolver suas potencialidades e superar determinadas dificuldades do dia-a-dia. A preocupação excessiva também é um fator gerador de estresse para o paciente. O grupo de reflexão deve procurar tratar de assuntos referentes a estas dificuldades que o paciente enfrenta no ambiente familiar, podendo abrir espaço em algum momento para esclarecimento de dúvidas, queixas dos familiares, juntamente com outros profissionais da equipe, abordando questões essenciais sobre a doença, a medicação, a dieta, etc. (Mello Filho, 2007). No grupo, os pacientes verbalizam seu sofrimento frente ao estigma da incurabilidade que cerca a doença, oportunizando a discussão sobre o papel ativo e sua responsabilidade na reconstrução de sua saúde (Mello Filho, 2007). O fato de o homem estar no mundo, gera muito sofrimento e desespero, pois o mundo com suas condições éticas, morais, políticas, religiosas, influencia o desdobramento das possibilidades existenciais do homem, o qual existe muito além de sua relação com seu corpo, mas sim em relação ao mundo ao seu
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78 redor (Camon, 1998). Para a análise existencial o homem é um ser-no-mundo, tem um mundo e deseja ultrapassar este mundo, ou seja, seralém-do-mundo. Ele deseja transcender o mundo em que habita e realizar as suas possibilidades, só assim pode viver uma vida autêntica. Quando nega estas possibilidades ou se deixa restringir pelos outros e não luta para realizá-las, está vivendo uma vida inautêntica. O homem é livre para escolher uma ou outra alternativa de vida: viver autenticamente ou inautenticamente Binswanguer (em Hall, Lindzay & Campbell, 2000). É muito difícil uma existência plena e digna no mundo, sendo que o ser-no-mundo implica numa luta constante do homem consigo próprio para não perder sua dignidade existencial e sua individualidade (Camon, 1998). Homens que apresentam DPOC parecem apresentar maiores problemas, devido à expectativa da sociedade em relação à sexualidade masculina, sustentada pela cultura, que coloca o homem em uma posição de potência permanente, aquele que deve tomar a iniciativa e não pode falhar o que gera um sentimento de culpa diante da parceira, quando não consegue chegar ao término de suas relações sexuais. O paciente com DPOC precisa estar preparado para buscar seu novo modo de vida dentro da doença sem medos ou culpas, sendo verdadeiro consigo mesmo, rompendo com o papel de passividade muitas vezes imposto pela família e a cultura em que está inserido (Mello Filho, 2007). As perdas relacionadas à sexualidade também são abordadas nos grupos de reflexão pelos pacientes com DPOC como algo que causa grande sofrimento e que prejudica suas relações com os parceiros, pois devido à tosse, dispnéia e outras limitações advindas da doença, passam a reduzir cada vez mais sua vida sexual (Mello Filho, 2007). A culpa é algo considerado pelos existencialistas como inerente a todo ser humano, porém como não é assumida pode se tornar uma patologia e ser extremamente
prejudicial ao homem e suas relações. Ela está relacionada e se potencializa diante das expectativas dos outros, da sociedade, da família, da escola, etc. e quando o homem não consegue suprir esta expectativa (Camon, 1998). A maioria dos pacientes com DPOC integrantes dos grupos de reabilitação pulmonar são ex-fumantes e mantém com o cigarro uma relação de culpa e castigo, considerando a doença como castigo por ter fumado ao longo dos anos. O fumo é considerado um ansiolítico para tais pacientes, o que potencializa a dependência em relação ao cigarro e muitas vezes é motivo para o paciente decidir romper com o tratamento, pois devido ao avanço da doença, surge a sensação de que não adianta parar de fumar, pois continuam doentes (Mello Filho, 2007). O apoio psicológico do grupo de reflexão que busque proporcionar um momento para que os pacientes falem sobre a dificuldade em parar de fumar, sem preconceitos é muito importante. Além disso, trazer informações e explicar sobre a interferência do fumo para a reabilitação e a função pulmonar para estes pacientes é fundamental para o tratamento, pois ajuda a diminuir a ansiedade e fantasias a respeito da doença (Mello Filho, 2007). O grupo, segundo a psicologia existencial, deverá promover o confronto e a superação desta ansiedade gerada diante dos dados da existência, como a morte, liberdade de escolha, solidão, da falta do sentido para a vida, sentimento de culpa, etc. (Teixeira, 2006). A ansiedade é um sintoma característico do paciente com DPOC, e está relacionada à intensa dispnéia, a qual é considerada como fonte de angústia e constante preocupação, pois remete à idéia da morte, a morte por falta de ar, e isso é um tema constante trazido por estes pacientes para os grupos de reflexão. A falta de ar interfere na realização de várias atividades diárias, sendo que evitam realizar esforços físicos o que colabora para a perda do condicionamento físico, o que agrava ainda mais a dispnéia em qualquer atividade diária
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79 que for realizar (Godoy & Godoy, 2012). A ansiedade é um dado da existência que surge durante toda a trajetória de vida do individuo e se intensifica mais quando se depara com crises pessoais, luto, doença, física e diante da consciência da morte, seja por perdas físicas, de pessoas que ama, devido às mudanças do ciclo de vida, entre outras (Teixeira, 2006). Trazer o tema para discussão e assumir o medo em relação à finitude, alivia o terror original que a perspectiva da morte remete ao individuo, sendo que interiorizando e procurando humanizar a morte como algo universal e inevitável, a assumindo como limite de nossa liberdade, intensifica a autopercepção do indivíduo e o leva a sua singularidade e responsabilidade diante da vida, pois a morte é uma das coisas que ninguém pode fazer pelo outro, assim como experimentar sensações e emoção é algo único (Camon, 1998). Sendo o tema muito discutido por paciente com DPOC, no grupo, o psicólogo deve trabalhar a ansiedade decorrente das fantasias dos pacientes sobre como vão morrer considerando que a morte e sua percepção estão relacionadas com a filosofia de vida de cada um, suas crenças, sua religião e com as experiências individuais e, portanto devem ser respeitados todos os pontos de vista sobre o assunto (Mello Filho, 2007). Outros assuntos que costumam aparecer nos grupos de reflexão com pacientes com DPOC são o problema da dependência dos remédios e a questão da tosse. No grupo discutem sobre as instituições de saúde, criticam os aspectos negativos e o coordenador do grupo de reflexão deve procurar mostrar os aspectos positivos e orientá-los a procurar recursos assistenciais das comunidades em que vivem. Aprendem durante a reabilitação, sobre exercícios respiratórios, como lidar melhor com a tosse e como administrar a dispnéia e a ansiedade ligada a ela (Mello Filho, 1997). A tosse e o excesso de secreção contribuem para aumentar a angústia e isolamento destes pacientes. No grupo e com o trabalho interdisciplinar, o paciente pode
compreender o que é a secreção, para que serve e como lidar com ela, pois são sintomas causadores de constrangimento e vergonha (Mello Filho, 2007). A alta prevalência da depressão em pacientes com DPOC é considerada como uma resposta psicológica do paciente à medida que este tem de enfrentar as limitações para realizar as atividades de vida diária e devido ao esforço para adaptar-se à incapacidade, apresentando diminuição da autoestima e perdas nas diversas áreas de sua vida: lazer, social, profissional, sexual, interpessoal, o que ocasiona o aumento do estado de inatividade (Godoy et al., 2009). O fato de ver o tempo passar e não explorar suas possibilidades de vida leva o indivíduo à sensação de vazio ou tédio existencial, gera grande sofrimento, depressão e sintomas físicos, potencializando a angústia diante do medo do futuro, da falta de perspectiva, da sensação de estar sendo anulada pela vida, da incapacidade de enfrentar a morte, ou todos estes temas juntos (Camon, 1998). Embora seja difícil para o paciente participar do grupo quando está deprimido, é no grupo que encontra compreensão para seus sentimentos por meio das trocas com os outros integrantes (Mello Filho, 2007). Fleming (2003, em Galhordas e Lima, 2004) descreve o ser humano como um ser com capacidade para pensar e falar sobre seu sofrimento, sendo que isso o ajuda a ultrapassá-lo. O suporte emocional e o fato de sentir-se amado e apoiado pelas pessoas que rodeiam o sujeito são muito importantes, pois o medo que uma pessoa que perdeu determinadas capacidades físicas devido à doença, muitas vezes é associada ao medo de ser abandonado. O profissional que trabalha no processo de reabilitação deve desenvolver empatia pelo paciente, respeitando seu sofrimento e dando-lhe espaço para sentir-se triste, sozinho, ansioso, revoltado e ajudá-lo a desenvolver uma maior tolerância à frustração e suportar o sofrimento. Na prática, o grupo na abordagem da
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80 psicologia existencial, reconhece as imensas possibilidades do homem perante o seu existir, partindo da idéia proposta por Heidegger de que o homem se constitui no mundo: ser-nomundo e também é um ser-para-a-morte. As temáticas abordadas através do método fenomenológico e hermenêutica tratam da vulnerabilidade do homem, do risco, da liberdade, da morte, da solidão e dos paradoxos da existência humana. A sua prática, diante destas reflexões, se voltará para que o homem se torne consciente de que como um ser no mundo, é vulnerável à doença, à velhice, à morte, a fragilidade, porém, possui a liberdade perante suas possibilidades para mudança e não é um ser dado pela sua função no mundo (Feijoo, 2002). O homem é um ser dinâmico e um constante vir-a-ser e por estar em constante mudança renova constantemente sua busca ao sentido da vida, o qual difere de pessoa para pessoa em determinado momento de vida, sendo que o individuo é o único responsável por suas realizações e exploração de suas possibilidades, podendo transcender qualquer sofrimento ou dificuldade. Porém, deve buscar as realizações que lhe atribuem sentido à existência, considerando as suas possibilidades reais, pois se decidir por realizações além de suas possibilidades, poderá fazer com que o sentido da vida seja pobre, limitado, e a conseqüência é a geração de muito sofrimento (Frankl, 2008). Deurzen-Smith (1996 em Teixeira, 2006) descreve o trabalho do psicólogo na abordagem da psicoterapia existencial em cinco objetivos: 1) facilitar ao indivíduo uma atitude mais autêntica em relação a si próprio; 2) promover uma abertura cada vez maior das perspectivas do indivíduo em relação a si próprio e ao mundo; 3) clarificar como agir no futuro em novas direções; 4) facilitar o encontro do indivíduo com o significado de sua existência; e 5) promover o confronto com a superação da ansiedade que emerge dos dados da existência, sendo que a palavra chave é a construção, uma vez que o individuo é o
construtor de sua existência. O grupo deverá promover uma abertura cada vez maior das perspectivas do indivíduo em relação a si e ao mundo, autoavaliando suas crenças, valores e sonhos, buscando uma autoconsciência do tempo perdido (possibilidades perdidas) e da necessidade de viver agora e ser um facilitador para que o indivíduo desenvolva uma atitude mais autêntica em relação a si própria, visualizando novas possibilidades de direções para o futuro, de acordo com o seu projeto de vida. O confronto e reavaliação da forma como o individuo vê a vida, os problemas que enfrenta e dos limites impostos por estar-nomundo, buscará ajudá-lo a descobrir seu poder de autocriação e através de sua responsabilidade e liberdade de escolha usar suas próprias capacidades para ir a busca e ao encontro com o significado da sua existência (Teixeira, 2006).
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