Revista Práxis Psi - Vol. 5 - 2020

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Práxis PSI Nº 5 -Vol. 1 - 2020 Três de Maio

ISSN versão eletrônica 2318-0560


2020, Sociedade Educacional Três de Maio Editora-chefe Gabriele Catyana Krause Coordenação do Curso de Psicologia Lissandra Baggio Martha Lorentz Consultores Ad Hoc Aline Wazlawick (Setrem) Rejane Flach Cunegatto (URI) Fernanda Szareski Pezzi (Setrem) Lidiane Mahler (Setrem) Assistentes Karine Klaus Produção editorial


Sumário Editorial

05

Artigos Andanças em atividades culturais e artísticas: qual o sentido para saúde mental?.................. 06 Izamir Duarte de Farias, Liamara Denise Ubessi, Luciane Prado Kantorski, Mário de Souza Maia, Ana Paula Müller Andrade Violência contra a mulher: reflexões sobre um serviço especializado ........................................ 21 Juliana Borges de Souza, Regina Basso Zanon, Fernanda Furini Adolescer no meio rural: uma abordagem psicodramática ........................................................ 35 Luthiane Pisoni Godoy, Lissandra Baggio, Evandir Bueno Barasuol Medidas socioeducativas impostas ao adolescente infrator: considerações sobre o documentário o juízo ...................................................................................................................... 49 Claci E. Venites Casarotto, Regina Basso Zanon, Lao Tsé Maria Bertoldo, Gerson Pereira Toxicomanias .................................................................................................................................... 63 Gisele Pinheiro Voos, Lao Tsé Bertoldo


Editorial A Revista Práxis-PSI é vinculada ao Curso de Graduação em Psicologia da Sociedade Educacional Três de Maio – Setrem que, com a presente edição retoma suas atividades de circulação em formato digital, reafirmando o compromisso com a divulgação científica de trabalhos relacionados à área de Psicologia. Nos últimos 5 anos, a revista passou por um momento de transição e nesse momento passa a contar com uma nova equipe, a qual assume a responsabilidade de publicação dos artigos submetidos e aceitos durante esse período, bem como, da análise de novos trabalhos para que se mantenha o propósito original de disseminar conhecimento. A presente edição (Volume 5, Número 1, 2020) conta com um total de 5 trabalhos recebidos no decorrer dos anos em que a revista esteve sem edição, distribuídos entre trabalhos teóricos e práticos. Dentre os trabalhos, o artigo “Andanças em atividades culturais e artísticas: qual o sentido para a saúde mental?” de autoria de Izamir Duarte de Farias et al. demonstra a importância das atividades culturais para a promoção de relações interpessoais identificando-a como uma maneira de cuidado em saúde mental. No trabalho de Juliana Borges de Souza, Regina Basso Zanon e Fernanda Furini “Violência contra a mulher: reflexões sobre um serviço especializado” ressalta-se o perfil tanto da mulher que sofre violência quanto do perpetrador, dentro do centro de referência estudado, e quais são os possíveis gatilhos de comportamento que predispõe a agressão. A edição, conta ainda, com dois trabalhos sobre a Adolescência. O primeiro “Adolescer no meio rural: uma abordagem psciodramática” de Luthiane Pisoni Godoy, Lissandra Baggio e Evandir Bueno Barasuol traz a pesquisa de campo realizada através de entrevistas com adolescentes que residem no meio rural a fim de identificar suas percepções acerca do meio em que vivem e qual o impacto na fase de desenvolvimento pela qual estão passando. Já o segundo artigo que trata do tema, “Medidas socioeducativas impostas ao adolescente infrator: considerações sobre o documentário o juízo” de Claci E. Venites Casarotto et al., busca compreender as vias que levam um adolescente cometer um ato infracional e quais os aspectos considerados pelos profissionais. No último artigo apresentado nessa edição, temos um trabalho de Gisele Pinheiro Voos e Lao Tsé Bertoldo intitulado “Toxicomanias”, o qual relata um estudo de caso junto a uma revisão bibliográfica demonstrando a relação do toxicômano com a substância psicoativa. Deixamos nosso agradecimento as pessoas que se envolveram na realização dessa edição, bem como aos autores. Aproveitando para ressaltar que a Revista Práxis contará, a partir de agora, com publicações anuais (julho), e edições especiais com temas específicos que podem ser publicadas a qualquer momento, de acordo com a demanda e necessidade a serem avaliadas pela equipe da revista. Convidamos a todos que queiram compartilhar seus trabalhos para que contribuam com nossa revista. O recebimento dos manuscritos segue em fluxo contínuo e já estamos trabalhando na preparação do próximo número. Até breve e uma excelente leitura! Gabriele Catyana Krause Editora - chefe


6 ARTIGO 1 Andanças em atividades culturais e artísticas: qual o sentido para saúde mental? Izamir Duarte de Farias 1 Liamara Denise Ubessi 2 Luciane Prado Kantorski 3 Mário de Souza Maia 4 Ana Paula Müller Andrade 5 Resumo:

Este artigo é resultante de exercícios etnográficos realizados em diversos cenários na cidade

de Pelotas para a disciplina de Música em contextos urbanos e/ou rurais, ministrada pelo curso de Antropologia da UFPel no segundo semestre de 2014. Seu objetivo é proporcionar reflexões sobre manifestações que envolvem ações em saúde mental promovidas pelo transitar em cenários de produção de arte e cultura, e o que suscitam tais andanças pela perspectiva da reforma psiquiátrica. O acompanhamento das “andanças” se deu por meio de observação participativa registrada em diário de campo. Nos cenários em que se transitou, perceberam-se mobilizações em diversos aspectos, observando-se o empoderamento e o exercício da cidadania, a ocupação de espaços e a livre manifestação de subjetividades por meio das artes, da expressão corporal e verbal, além de importantes trocas de experiências e afetos. Consideramos que estes “movimentos” possuem uma relevante importância para promoção de relações interpessoais saudáveis em consonância com a reforma psiquiátrica brasileira. Palavras chave: reforma psiquiátrica; relações interpessoais; música; expressão; saúde mental. Abstract:

This article is the result of ethnographic exercises performed in various scenarios in Pelotas

for the discipline of Music in urban and / or rural settings, given by UFPel anthropology course in the second half of 2014. Its aim is to provide reflections on events involving mental health actions promoted by transition scenarios in the production of art and culture, and which give rise to such wanderings from the perspective of the psychiatric reform. The monitoring of "wandering" was through

Técnico Superior em Artes nos CAPS Porto e Escola na cidade de Pelotas – RS; Doutorando em Ciências da Saúde pela UFPel. 2 Enfermeira e Psicóloga; Doutoranda em Ciências da Saúde pela UFPel. 3 Doutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto; Professora na Faculdade de enfermagem da UFPel. Doutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. 4Doutor em Música pela UFRGS; Professor do Centro de Artes da UFPel. 5 Psicóloga; Doutora pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC. 1

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7 participatory observation journaled field. In scenarios in which they moved, mobilizations are realized in various aspects, observing the empowerment and citizenship, the occupation of spaces and the free expression of subjectivity through the arts, body and verbal expression, as well as important exchange of experiences and emotions. We believe that these "movements" have a great importance for promoting healthy interpersonal relationships in line with the Brazilian psychiatric reform. Keywords: psychiatric reform; interpersonal relations; music; expression; Mental health. Iniciando os caminhos: de quê se “tratam” as andanças?

Para que se compreenda a efetiva importância dos movimentos 6 por distintos espaços

envolvendo as artes e a cultura para a reabilitação psicossocial, é necessária a contextualização do cenário pelo qual iremos transitar ao longo deste texto, no qual se considera a importância e a potência das interlocuções e das interações entre as pessoas para uma vida em sociedade.

A reabilitação psicossocial é uma proposta emergente nos e dos processos de construir

outros modos de entendimento e relação com a loucura na e pela atenção à saúde mental. Se constitui sob significativas influências da Reforma Psiquiátrica italiana e de experiências francesas,

inglesas

e

americanas

no

processo

de

desinstitucionalização

daqueles

considerados loucos. Consiste em “um conjunto de práticas intersetoriais de saúde, previdência, moradia, trabalho, escola, lazer, cultura e outros...” (Goldberg & Pitta, 2001).

Nas palavras de Saraceno (2001), a reabilitação psicossocial é entendida como um conjunto de

ações que consideram a vida em suas diferentes dimensões: pessoal, social e familiar, buscando com isso, viabilizar a reinserção social. Sob a ótica da reforma psiquiátrica brasileira, o cuidado em saúde mental entende que conceito de reabilitação psicossocial considera o sofrimento psíquico da pessoa tendo como ponto de partida a sua história de vida e buscando inseri-la na comunidade em que vive (Kantorski, 2008).

Nesse sentido, considerando a conjuntura política e econômica do Brasil que vivemos

nos dias atuais, é primordial que se considere tais aspectos que constituem avanços na política de saúde mental brasileira e, com isto, que não venhamos regredir ao antiquado e excludente modelo hospitalocêntrico, o qual dizimou milhares de pessoas que, se quer, ao longo da história, foram consideradas como seres humanos com identidade, singularidade ou história.

Considerando o modelo vigente de cuidado em saúde mental, embasado em práticas e

estudos, sabe-se que as artes se constituem como ferramentas com potencialidade para tangenciar o campo da subjetividade, viabilizando a auto expressão do ser humano, a compreensão dos sintomas patológicos e suas causas, bem como o gerenciamento de conflitos, e com seu aspecto lúdico, pode proporcionar relaxamento e bem estar (Guerra, 2004). Dentre estas, a música com suas

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Movimentos – neste texto refere-se às relações interpessoais e aos trânsitos dos participantes nas experiências etnográficas, pelos distintos locais e eventos que foram aqui considerados. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


8 propriedades, pode viabilizar inclusão, relações interpessoais, promover saúde mental e estímular autosuperação e as lutas pelos direitos de cidadão (Silva & Farias, 2013; Farias, 2014).

Essas propriedades das artes implicam que se considere a vida em todas as dimensões

em que o sujeito pode manifestar, de modo que, o viver a vida como ela é e onde ela acontece é exercitar a existência e o proposto pelo modo psicossocial de cuidado como efetiva reabilitação. Por meio da criação do novo, através da produção de acontecimentos, experiências, ações e objetos, a atividade artística “reinventa” o homem e o mundo (Mendonça, 2005).

Muitos são os benefícios de atividades coletivas e/ou que promovem a interação

com os meios sociais, dentre os quais se podem observar a elevação da autoestima, do autoconceito, melhora da imagem corporal, diminuição do estresse e da ansiedade, melhoria das funções cognitivas e socialização da pessoa (Assumpção, Morais & Fontoura, 2002).

Por esta perspectiva de cuidado, o município de Pelotas, RS - Brasil, que possui 341.180

habitantes (IBGE, 2013), é considerado um dos pioneiros no processo de desinstitucionalização no Brasil, contando com uma rede de oito Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), sendo que seis destes são serviços voltados para o atendimento de adultos com sofrimento psíquico recorrente e estão distribuídos em cinco territórios distintos. O CAPS Álcool e Drogas (AD) é especializado no atendimento a dependência química e o CAPS Infantil (i), como o próprio nome denota, pelo atendimento a crianças e adolescentes com até 18 anos incompletos.

Estes serviços são considerados de alta complexidade ou de especialidade, uma

vez que prestam atendimento em saúde mental, tendo a função de articulação da rede que está dentro do seu território de atuação, ou seja, são referência para os serviços de Atenção Primária em Saúde (APS), que se situam nos bairros constituintes do seu território de cobertura (Brasil, 2003), estabelecendo-se assim linhas de cuidado na atenção em saúde mental (Vasconcellos, 2008), que integram a rede de saúde prevista na portaria nº 3088 (Brasil, 2011).

É importante que pensemos a ampliação do número de serviços nos últimos anos no Brasil, o que

traz como consequência o aumento de atividades que envolvem oficinas terapêuticas e a popularização de produções decorrentes destas, em espaços que buscam conhecer e divulgar a proposta do modelo CAPS (Medeiros, 2003), e a consequente ocupação de espaços e possibilidades alternativas de cuidado.

Conforme a análise do processo de trabalho nos CAPS, a partir da teoria sócio

histórica de Vygostky, a reabilitação psicossocial proposta e seu arranjo funcional para a produção de autonomia e cidadania, pode ser representada pelo seguinte esquema:

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(Farias, 2013).

Nesta

perspectiva,

pode-se

observar

o

percurso

da

pessoa ao acessar o CAPS

na condição de usuário 7 (objeto de trabalho da equipe), seu processo de reabilitação ocorre por meio de propostas em que viabilizem outras relações consigo mesma, com os outros e com os territórios que habita, sejam físicos, virtuais, imaginários, etc, sendo este um dos principais objetivos deste modelo de cuidado que se pauta pelo viver em liberdade e incita que todos(as) os(as) atores(as) libertem-se das amarras subjetivas que os(as) contém.

Além do CAPS, pode-se contar com a rede de saúde, a qual pode ser configurada como

formal (composta pelas instituições de saúde do SUS) e/ou informal (composta por diversos espaços de cultura, educação, ONGs, dentre outros) os quais fazem parte do cotidiano do usuário e podem ser considerados também como dispositivos para o cuidado em saúde mental (Farias, 2013).

Com vistas à compreensão do que pode suscitar o trânsito por esta rede informal, como uma

das possibilidades para uma atenção ampliada em saúde mental, seguindo os moldes da reforma psiquiátrica, a considerar que o que nos move neste trabalho é qual o sentido das andanças sob e na perspectiva psicossocial envolvendo a música, objetiva-se refletir sobre o que afetou das andanças na participação com pessoas em atenção psicossocial ou egressas destes serviços, em eventos artísticos e culturais no município de Pelotas/RS, em que o dispositivo de conexão tem sido a música. Metodologia

Este artigo é resultante de exercícios etnográficos realizados em diversos cenários na cidade

de Pelotas para a disciplina de Música em contextos urbanos e/ou rurais, ministrada pelo curso 7

Usuário - termo utilizado pelo Ministério da Saúde para as pessoas que utilizam os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


10 de Antropologia da UFPel no segundo semestre de 2014. Conta com a participação ativa dos autores deste manuscrito nos cenários em questão, cujo objetivo é proporcionar reflexões sobre manifestações que envolvem ações em saúde mental promovidas pelo transitar em locais de produção de arte e cultura, e o que suscitam tais andanças pela perspectiva da reforma psiquiátrica. vivido

Tal no

proposta

acionou

outros(as)

atores(as)

para compartilhar e analisar o

entremeado das vivências com pessoas em escola pública, Centro de Tradições

Gaúchas (CTG), uma viagem para o encontro

de grupos musicais de

CAPS do

cidade de Lajeado e o encontro com um músico renomado da música brasileira musicais locais

em

apresentações

artístico-culturais no município de

RS na e grupos

Pelotas/RS.

De acordo com Geertz (1989), o exercício de etnografar consiste na descrição densa da

realidade que está sendo pesquisada. Nesta perspectiva, todas as “andanças” a seguir mencionadas foram vivenciadas e descritas a partir de exercícios, os quais aconteceram em distintos momentos correspondentes a eventos 8 com a participação dos grupos vocais, ocorridos nas cidades de Pelotas e Lajeado, no Rio Grande do Sul – Brasil, entre os meses de setembro e dezembro de 2014.

Os grupos vocais são compostos por pessoas envolvidas com a saúde mental, as quais

estão em atenção psicossocial, trabalhadoras e usuárias, ou são egressas dos CAPS ou que se envolveram com os grupos pelo mote psicossocial e pela arte/música como um de seus dispositivos. Cada grupo vocal conta com em média com 20 pessoas, provenientes da área urbana e rural do município, sendo que um possui uma trajetória de 14 anos e o outro de dois anos.

São, com frequência, convidados a participar de eventos artísticos e culturais no

município e em outras cidades do estado do Rio Grande do Sul. A participação nestes eventos se dá geralmente mediante apresentação das músicas que compõe o repertório de cada grupo vocal, o qual é escolhido de forma compartilhada, democrática e pela produção de consenso.

Os registros ocorreram por meio de escrita em diário de campo, contando com o aporte de

fotografias e filmagens com celular. Para este artigo, somente se utilizará do conteúdo escrito, inclusive sobre as imagens, mas não as imagens, respeitado a prerrogativa de preservação da identidade das pessoas. Para tal, serão apresentados codinomes para os colaboradores, conforme os registros.

A ação em que se presentificam alguns elementos neste trabalho, e que diz de um

exercício etnográfico, de andantes andarilhos(as), importa-se para este pensar, fragmento do que menciona Deleuze (2007) sobre o “andarilho”: é o que mais “viaja” e menos “sai” do lugar.

Com isso, ele não se refere a andanças no sentido necessariamente físico, mas aquele ou aquela

que consegue ou tenta experimentar em profundidade o vivido. É um pouco disso que se versará por aqui.

8

Mostra de cinema em uma escola pública do município; Festival Farroupilha dos CAPS; Encontro Estadual de Corais de CAPS na cidade de Lajeado/RS; Apresentação de um músico brasileiro no Festival de Jazz na cidade de Pelotas. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


11 Das vivências nas Andanças...

Quando se fala em reabilitação no campo da saúde mental, há de se pontuar

que a referência à subjetividade das pessoas está sempre presente, uma vez que são singulares e permeadas por significados e sentidos que atribuem para os elementos que a vida lhes apresenta, de acordo com suas construções emocionais e conceituais.

Ao longo da história, os “diferentes” do convencionado pelos grupos humanos,

eram vistos como alienados e indignos de transitarem pelo mundo, portanto, eram enclausurados

para

evitar

“desorganizar”

ou

perturbar

tais

grupos

e

organizações.

Atualmente, pessoas com as mesmas manifestações e sintomáticas daquelas outrora

discriminadas, buscam reconhecimento como cidadãs, e, como tais, dignidade, respeito e direito ao exercício da cidadania.

Estes elementos: dignidade, respeito e exercício da cidadania, podem ser vislumbrados por

meio de relatos da participação nas interlocuções, as quais revelam um processo de pertença na sociedade; portanto, necessitam de uma atenção especial para que se pense nas conquistas e nos avanços das políticas de saúde mental e de inclusão, uma vez que estamos falando de pequenas, mas intensas afetações.

No fragmento abaixo, pode-se observar a descrição implícita da ocupação espacial de pessoas

com faixas etárias diversas numa produção de convívio social mediado por uma educadora em espaço escolar de ensino fundamental, em atividade de Mostra de Cinema, produzida por estudantes do ensino fundamental com o temário inspirado pela literatura brasileira.

Estavam participando deste espaço, que foi aberto ao público pelotense, duas pessoas que

estão em atenção nos CAPS da cidade, estudantes, seus pais e mães e outros familiares, trabalhador de saúde, estudante(s) de outra(s) escola(s), educadores(as) e servidores(as) da Escola, todos(as) se comunicando e apreciando tal movimentação promovida por uma mostra estudantil de cinema. Registrou-se o observado. Educadores e educadoras se movendo, tentando equilibrar as energias que vibravam, afinal, a adolescência tem muita pulsação. Eram tempos de vida diferentes reunidos. Então, houve tentativa de mediação dos tempos [de vida] por parte da professora disparadora da Mostra de cinema. Fazia a acomodação dos tempos no mesmo tempo (Júpiter, 2014, p. 16 do registro).

Ocupando um espaço educacional aberto ao público pelotense, lá estiveram participando

usuários dos CAPS da cidade, alunos, professores e servidores da escola e pais de alunos, todos se comunicando e apreciando tal movimentação promovida por uma mostra estudantil de cinema.

A mobilização de pessoas com distintas idades, saberes e procedências, fazia com que a escola

ganhasse uma dinâmica diferenciada naquele sábado de novembro, quando as pessoas presentes contemplaram as produções artísticas, sem rotulações ou distinção de quem seria quem, até porque Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


12 ali, isso não tinha nenhuma importância (se é que deve ter importância quando nos referimos às singularidades humanas). E fragmentos do efeito do assistido comparecem no seguinte registro: Rimos, ficamos impactados, entramos nas histórias e particularmente, não vi o tempo passar. Óbvio que em alguns Curtas viajei noutras histórias com as quais o cinema conversava. Um viajar ali presente. Mais ou menos do que aciona a música. Conversa com a vida da gente. Algumas misturaram o cômico e o trágico. Cada curta metragem tinha algo de singular. Tanto o foi, que não me senti a vontade para votar. Estão nas regras do jogo social escolhas por este caminho, como exercício da democracia, mas que é a democracia? (Lua, 2014, p. 10 do registro).

As lembranças surgiam naquele momento em que observava os filmes e às pessoas que os

assistiam, o que era inevitável. Todos(as) éramos espectadores que partilhavam de manifestações, de emoções em muitos risos e algumas lágrimas, indagações, como todos, sem que essas emoções ficassem localizadas ou caracterizassem a pessoa com transtorno. Então, porque a classificação, se procedemos da mesma natureza – a humana – que compreende o sentir? Cada um(a) sente conforme o “povoado” que habita a sua singularidade naquele momento (Pelbart, 2012).

Ora, certamente todas estas menções são referentes à vida e a saúde humana, que está

associada ao convívio, as interações, a apreciação da arte e das manifestações culturais. Em hipótese alguma, seria coerente pensar nestes movimentos como sendo manifestações de patologia ou de doença mental. De acordo com Pitta (1996), a perspectiva psicossocial pode ser entendida como a viabilização do acesso a participação nos meios sociais, também ao usuário(a) de serviços de saúde mental, de que esta participação, como o vivenciado na escola, não ocorra somente nos dias da semana de segunda a sexta-feira que compreende o recorrente no horário de organização dos CAPS.

Mais que isso, porque o vínculo precisa estar restrito as pessoas que trabalham nos horários

do CAPS? E porque o vínculo não pode ser vinculado ao viver das pessoas que demandam pelo serviço e entre quem opera na função da atenção e outras? Porque este viver não pode estar deslocado inclusive desta função? E, porque ações como estas teriam que fazer parte da ‘função’? Arrisca-se uma resposta: pode! Depende de um desamarrar-se não sem implicações em todos e inclusive nos serviços. Do mesmo modo na construção de outras relações com a loucura e humanas.

Como fecha o fragmento, eis a questão: mas que é a democracia? A que representações

podemos associar este movimento? O que representam estas manifestações para as pessoas envolvidas e o relatar estas experiências para quem não conhece o cenário da saúde mental?

Ora, certamente todas estas menções são referentes à saúde humana, que está associada ao

convívio, as interações e a apreciação da arte e das manifestações culturais. Em hipótese alguma, seria coerente pensar nestes movimentos como sendo manifestações de patologia ou de doença mental.

Como prenunciado nas primeiras palavras, desprendermo-nos das amarras do preconceito

que nos ronda por onde quer que andemos, pode ser comparado ao passar através de uma montanha Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


13 sem que haja uma passagem, porém, mais complexo se esta montanha for invisível, concretizada como referencial em nosso pensamento, o qual se torna uma barreira para que vejamos as diferenças como naturais do ser humano que por sua natureza é diferente, e por sua essência, é singular.

Se as pessoas presentes no referido espaço tivessem como foco as crises pelas quais

aquelas “pessoas com transtornos mentais” sofreram em suas vidas, ou suas passagens pelos manicômios, ou mesmo pelo CAPS, talvez houvesse a produção de afastamentos físicos e de distanciamentos [ou não], devido à construção social em torno de suas “patologias”, como por exemplo, a periculosidade que afetaria a integridade dos seres “normais”.

O transitar pelo campo das hipóteses é para que possamos pensar naquilo que se produziu

ao longo da história e que ainda está latente na sociedade pós-moderna, atravessada pelo preconceito, pela discriminação e pela não aceitação das diferenças (no seu sentido mais amplo).

A ruptura da manifestação do preconceito, das amarras produzidas pela discriminação

construída

historicamente,

passado

de

geração

a

geração,

ainda

é

pertencente

às

culturas, e transcende aos saberes instituídos e aos avanços mensuráveis e quantitativas da ciência e das tecnologias duras de cuidado (Oliveira & Souza, 2012), de modo que deve ser considerado o olhar sensível aos micro espaços e as relações interpessoais.

Então, quanto mais estivermos em contato, os ditos “não loucos” e os ditos “loucos”, na lógica binária

que opera o pensamento ocidental, se pode incitar a reconhecer que compartilhamos da mesma loucura e nas suas singularidades. A de viver! Pois, propiciar o exercício das relações e da construção de identidades por meio de espaços de interação pode ser considerado como oportunizar a expressão do potencial criativo do ser humano, o qual é responsável por sua existência significativa (Castro, Lima & Brunello, 2001).

Nesta esteira, os acontecimentos que envolvem a cultura local também podem ser “poderosos”

aliados para a produção de movimentos de vida e de saúde mental de fato não de doença, como comumente costuma-se fazer alusão quando tratamos de pessoas com alguma “patologia de ordem psíquica”. Igualmente, a participação nestes eventos, pode colocar questões ao enredo deste fazer cotidiano dos serviços de saúde. Este exercício pode ser constatado no fragmento a seguir, a partir da participação em evento denominado de Invernada Artística da Saúde mental, no qual relata que: [...] pessoas com forte emoção e olhares atentos aos elementos culturais presentes no ambiente, entoam o hino e demonstram sua expectativa diante do que estaria para acontecer. Outros observam que no palco do CTG (Centro de Tradições Gaúchas), havia um grupo tocando e cantando, o qual é o mesmo que viria acompanhar uma invernada artística em sua apresentação mais tarde. Todos os presentes são convocados a entoar o hino rio-grandense, com seus olhares voltados para as bandeiras do Brasil, do estado do Rio Grande do Sul e da cidade de Pelotas, as quais se encontravam ao lado da chama crioula, tamanha a reverência a este ritual durante a semana farroupilha.

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Um evento alusivo à cultura gaúcha, permeado por mobilizações como qualquer outro

que siga a mesma lógica, porém, voltado aos usuários dos CAPS de alguns municípios da metade Sul do estado do RS. Todos os ritos e interações ocorrendo e pessoas vivenciando este movimento como um meio de cuidado e de produção de afetos, buscando demonstrar sua valorização pela cultura; momento efêmero no qual, trabalhadores de saúde, usuários dos CAPS e familiares, se envolvem espontaneamente com os acontecimentos durante o dia.

Ritos que parecem tão simples e cotidianos para qualquer sujeito apreciador da cultura do

estado. Para os usuários parece que não é tão simples (embora estes também sejam sujeitos pertencentes à cultura do estado). E não é. Afinal, para ninguém é simples. Talvez, o que pode diferenciar seja a capacidade de sentir. Pois nos informam de nossa (in)capacidade, que muitos de nós emudecemos e endurecemos. Observou-se que o deslocamento das pessoas para o CTG, com o fim de se apropriar dos ritos alusivos a esta cultura só se deu devido à produção de um evento como este, voltado especificamente para as pessoas envolvidas com saúde mental. Um CAPS fora. Talvez seja essa uma de suas funções, andar mais fora. E, da mesma forma, o CTG que se envolve com a saúde mental no favorecimento da produção de um evento cultural que acolha as pessoas sem necessariamente o vínculo a “tradição”, mas como espaço de encontro com traços da identidade de um povo.

Eventos e possibilidades como esta, de acordo com Kantorski (2007), não devem ser

disponibilizados tão somente como forma de ocupação do tempo ou entretenimento por si somente, mas principalmente, constituir-se em meios para a produção de subjetivações, de tratar o sofrimento e incluir o sujeito sócioculturalmente. Deste modo, este ato, constituise em um passo adiante na produção de saúde mental, ilustrado no registro que segue: Aplaudidos pelo público, os músicos se despedem e seguem as apresentações sonoras que desta vez, se dá por meio da declamação de poesias alusivas a cultura gaúcha, cuja música de fundo ocorria por uma improvisação em ritmo de milonga e chamarra com violões e um bombo legueiro. Diversas vozes entoaram poesias, algumas masculinas, outras femininas. Uma ou outra mais trêmula e com apoio de uma bengala (folha de papel com a letra na mão), outras, seguras e bradando fortemente as palavras que manifestavam a apropriação da mensagem e o sentimento de pertença ao contexto do evento (Netuno, 2014, p. 13).

As participações das pessoas no evento, tanto artistas quanto espectadores das

apresentações culturais, ocorriam com a manifestação de grande respeito pela organização e pelas pessoas. É de considerável potência a fala referente à representatividade de um evento como este para a expressão e a sensação de pertença de uma pessoa, quando se refere à apresentação e ao ritual descrito acima, que compõem o exercício etnográfico de registro,

Muitas vezes, lá fora eu sou louco, mas aqui eu sou artista! Olha só, um montão de gente

batendo palmas pra gente! Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


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A observação da manifestação de uma pessoa que se sente valorizada e respeitada pela sua

capacidade, nos permite pensar eventos culturais como potentes meios para olhar o ser humano e suas manifestações fora do CAPS, numa produção de vida presente no mundo real, e avalizarmos as ações e planos de cuidados para que as habilidades dessa pessoa possam ser valorizadas e mostradas a ela como resultantes de sua evolução e inserção social, como cidadã do mundo.

Rauter (2000) refere que, reinserir socialmente o sujeito que foi segregado e reabilita-

lo como cidadão, consiste na articulação entre propostas terapêuticas como atividades artísticas, acesso aos meios de comunicação, dentre outras, com o fim de que a pessoa aproprie-se do meio em que está presente. Este movimento também pode ser observado no fragmento a seguir, o qual se refere à ida de grupos musicais para uma apresentação importante na cidade de Lajeado/RS, ocasionando movimentos significativos na vida das pessoas. Chegada ao local combinado em torno de 05h40min da manhã. Aos poucos as pessoas dos grupos vocais foram chegando, bem cuidadas e preocupadas com sua aparência. Isso mostra, a meu ver, que lhes/nos era um momento significativo, o que estava para se dar no decorrer do dia. Algumas chegavam e cumprimentavam as outras, mas nem todas. Nesse meio tempo avistava-se uma tensão em uma festa que havia na quadra em frente, com a presença da polícia e do SAMU 9. Os/as colegas seguiram chegando. Alguns/as na companhia de familiares, alguns na carona com outros membros/as dos grupos vocais. Mencionava-se que ao mesmo tempo em que era um ponto de referência/localização para saída em viagens, era perigoso e deveria ser noutro local [ainda que se tivesse participado da decisão sobre ser naquele local, mas justamente por ter participado, se dá por conta que talvez em outro local poderia ser melhor] (Marte, 2014, p. 16).

O que seria o agir terapêutico em saúde mental no modo psicossocial se não tangenciar a

inserção das pessoas na sociedade? E os enfrentamentos da(s) [periculosidades] da vida cotidiana, como o do cenário urbano em uma madrugada de sábado? Isso é estar para e na vida e para e no mundo. Aponta então, que viver implica estar na vida e não recluso em instituições. Do mesmo modo, que as soluções que produzimos coletivamente, podem não ser boas, mas que mesmo assim, o processo de um feito em consenso e juntos, ajuda a sustentar(se) nos acontecimentos (im)previsíveis do viver. Para Almeida e Oliver (2001), o trabalho terapêutico deve ser direcionado para a produção de sentido e a possibilidade de interação entre as pessoas utilizando-se dos mais diversificados contextos e recursos.

Assim, atravessar o estado em uma viagem com pessoas de dois grupos de convivência que

não são familiares, representa um avanço na autonomia e na libertação da superproteção das famílias,

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Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


16 de modo que as responsabilidades são partilhadas e o cuidado é mútuo, em que todos cuidam de todos e são responsáveis pela coletividade. É relevante que se pense nos riscos a que se expõem as pessoas em um deslocamento de mais de 400 km com uma estrutura de produção de vida e saúde sem a institucionalização e formalidade de um serviço de saúde, de modo que o cuidado e o autocuidado são compartilhados por todos num processo de autogestão das ações.

Pelos pressupostos da reforma psiquiátrica brasileira, a reabilitação psicossocial deve ocorrer

de maneira em que se utilizem todos os meios quanto forem disponíveis, de modo que as pessoas estejam de fato inseridas nos espaços e movimentos produzidos pela sociedade, e que são para o pertencimento de todos (Amarante, 1997; 2007). O exercício da cidadania e a manifestação do livre pensamento e das subjetividades podem ser vistos no registro dos movimentos que referem afetos e senso crítico.

Nos múltiplos encontros, na volta de uma bela apresentação, ainda que estivesse extremamente cansada, aconteceram rodas não redondas sobre política, eleições, opiniões diversas, problematizações neste sentido, operada por todos que se envolveram nesta conversa, assim como o compartilhamento de elementos da vida cotidiana dos presentes. Noutro círculo de papo, rolou discussão sobre a vida [dos outros], algumas formas de cuidar um pouco moralizante no que se refere à monogamia/plurigamia. Cad’um/a com suas vivências (Lua, 2014).

Discussões estas que remetem a uma consciência crítica e reflexiva sobre questões morais

complexas e, na sociedade moderna, e ainda na pós-moderna, se fazem presentes nas “avaliações” das pessoas com relação às atitudes dos outros, de modo que estas passam pelo crivo moral de base medieval, constituindo-se em tabus para a sociedade. Pode-se observar no relato, o exercício do diálogo e da interação entre pessoas que estavam reunidas pela música, voltando de um importante evento estadual, no qual se apresentaram enquanto grupo musical representante da cidade de Pelotas.

E o dito, presente neste conteúdo, mostra também que por estar em atenção psicossocial,

há elementos que são das relações entre as pessoas, como a “fofoca”. E a representação de uma cidade, no caso da de Pelotas em um evento noutro município do estado, o deslocamento, e a oportunidade de dialogar sobre diversos assuntos e com outras pessoas, inclusive com outros sotaques, por si só, representa um avanço na autonomia dessas pessoas e na oferta de oportunidades para sua reinserção na sociedade, além de que ocorreram manifestações de consciência crítica em relação a diversos assuntos, o que é representativo para a desmistificação do usuário de CAPS como pessoa desprovida de capacidade para a interação com a sociedade.

Um elemento importante no cenário do movimento é o próprio cenário, pois não foi

o público que se deslocou até o artista, mas o artista se deslocou até o público, em uma região conhecida da cidade como de vulnerabilidade social dos moradores, mas de grande riqueza cultural.

Deste modo, pode-se concluir que, o oportunizar acesso de pessoas aos movimentos e produtos

culturais, independentemente das suas condições, contribui para o conhecimento, para o lazer e Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


17 para melhor qualidade de vida das pessoas.

E por fim, mais um registro do exercício etnográfico que merece destaque. Naná Vasconcelos,

considerado importante nome da música brasileira, percussionista reconhecido por sua ousadia, criatividade e ação na música e social, quando esteve no festival de jazz em Pelotas, proporcionou para a população a oportunidade de vivenciar experiências com a música e com a exploração de sons.

Nesta oportunidade, apreciou alguns trabalhos musicais que são desenvolvidos na cidade,

dentre os quais esteve presente um dos grupos musicais vinculados à Saúde Mental. As interações com o público presente e com o artista, por parte dos participantes do grupo foi muito intensa e natural para um contexto, do mesmo modo que com os estudantes de música, os jornalistas locais e a comunidade que conhecia o artista e o queriam acessá-lo. E este artista, após assistir a apresentação do grupo, devolve o que lhe afetou, mencionando “...este grupo, de adultos, fazendo música, que interessante! Isso me tocou de fato. Pessoas tocando e cantando por amor a música...”

Pode-se perceber como houve uma interação, se não diretamente verbal de todos

os participantes do grupo com o artista, mas por meio da apresentação musical, logo, da música, o que, de certa forma, foi relevante ao ponto de afetar o artista, assim como ele afetou aos participantes do grupo com suas propostas de “brincadeiras” sonoras e exercícios musicais, ou mesmo com sua apresentação e representação enquanto artista brasileiro.

Deste modo, pode-se concluir que, ao oportunizar acesso de pessoas aos eventos artísticos e

culturais no município de Pelotas/RS e região, contribui para o conhecimento, o lazer, a qualidade de vida das pessoas e até se “esquece” de sofrimentos que integram a vida, e de que a loucura também está nos olhos de quem vê e de quem é visto e de que a depender do modo que se vê, se vê doença ou viver. Da experiência etnográfica

Sentir as emoções e perceber as manifestações dos participantes nos distintos movimentos

que compreenderam a andança, sendo também participantes, pode ser visto como o efetivo exercício da chamada militância pela reforma psiquiátrica, sendo par junto daquelas pessoas que foram tratadas (e ainda são), como loucas e/ou marginalizadas pela sociedade, devido a quando se reduz a loucura a doença mental.

Na citação de Cook apud Kenneth Gourlay (1978: 8), “o etnomusicólogo está ali e existe

como parte da situação que ele tem por tarefa investigar”, o que pode ser transcrito para a experiência com os movimentos da saúde mental, e de fato pode ser vivido estando ali nas situações promovidas por cada evento e em cada instante.

Então, desse exercício etnográfico, latejam no vivido o vivenciado nas andanças, os

sentidos do sentido. Do experimentado. Tais como indagações, provocações e certezas. Das indagações: que é o tempo? Da possibilidade de (des)acomodação dos tempos, sem que para isso exija procedimentos classificatórios de faixas etárias ou a enunciação de uma identidade como de ‘transtornado mental’; de porque na escola não se precisa descriminar quem é ou não usuário e no Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


18 CAPS precisa; o que é a democracia e o que implica, produção de consenso ou a ditadura da maioria.

Das provocações: que tal os CAPS, e outros dispositivos envolvidos com a saúde mental, como do

próprio controle social, avançarem cada vez mais no agenciamento de encontros para o viver à vida no cenário da vida e não só criar espaços de ‘fuga desta mesma vida que foge junto para onde se foge; que o ‘imperativo’ seja a garantia de que mais e mais diferenças possam fazer a ‘diferença’ nas homogeneidades sociais.

Das certezas, de que o modo psicossocial é o caminho. E que o que nos move como andarilhos(as)

nestas andanças é a produção de outra relação com a loucura, de autonomia e de e principalmente do direito a cidadania, que passa pela concepção de loucura e empoderamento para a autonomia.

Enfim, que esta escrita seja para quem conhece e quem não conhece o cenário da saúde mental

na cidade de Pelotas, no Brasil, e porque não no mundo no prumo de um humano mais humano?! Assim, algumas considerações...

A

partir

da

experiência

etnográfica,

pode-se

concluir

que

a

oportunidade

de participação em eventos culturais para todos é uma potente forma para que se diminua ou se desconstrua o preconceito em relação às diferenças entre as pessoas e, consequentemente, estas possam desfrutar de uma vida com mais qualidade e lazer.

Quanto ao cuidado em saúde mental, é de grande valia que se considerem as possibilidades que

giram em torno de todos, como o acesso, democrático, considerando que a participação das diferenças, o convívio e o respeito a estas, permite o crescimento do ser humano e a dignidade para a sociedade.

Assim, cuidar da pessoa acometida pelo sofrimento psíquico vai além da administração

de medicação e do reconhecimento das manifestações patológicas, devendo-se considerar principalmente suas potencialidades e seu direito a inserção na sociedade e a sua expressão, de forma indiscriminada, em todos os meios/locais que são de acesso de todos, sendo que isto pode ser considerado reabilitação psicossocial de fato, e consequentemente, cuidado em saúde mental. Referências: Almeida, M. C. & Oliver, F. C. (2001) Abordagens comunitárias e territoriais em reabilitação de pessoas com deficiências: fundamentos para a terapia ocupacional. In: M. M. P., De Carlo & C. C. Bartalotti (Orgs.). Terapia ocupacional no Brasil: fundamentos e perspectivas (pp.19-40). São Paulo: Plexus. Amarante, P. (1997). Loucura, cultura e subjetividade: conceitos e estratégias, percursos e atores da reforma psiquiátrica brasileira. In: S., Fleury (Org). Saúde e democracia: a luta do CEBE (pp. 163-185). São Paulo: Lemos Editorial. Amarante, P. (2007). Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz. Assumpção, L.O.T., Morais, P.P., Fontoura, H. (2002). Relação entre atividade física, saúde e qualidade de vida, Notas introdutórias. Revista Digital – Buenos Aires, 52( 8). Assumpção, L.O.T, Morais, P.P & Fontoura, H. (2002). Relação entre atividade física, saúde e qualidade de vida. Notas introdutórias. EF y Desp, 52. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


19 Brasil. (2014). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Retrieved http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2014/default.shtm

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Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


20 Oliveira, E. B. & Souza, N. V. M. (2012) Estresse e inovação tecnológica em unidade de terapia intensiva de cardiologia: tecnologia dura. Rev. enferm. UERJ. 20(4), 457-62. Pelbart, P. P. (2008) Elementos para uma cartografia da grupalidade. Próximo ato: questões da teatralidade contemporânea (33-37). São Paulo: Itaú Cultural. Pitta, A. M. F. (1996) O que é reabilitação psicossocial no Brasil, hoje? In: A, Pitta (Org). Reabilitação psicossocial no Brasil (19-30). São Paulo: Hucitec. Rauter, C. (2000) Oficinas para quê? Uma proposta ético-estético-política para oficinas terapêuticas. In: P, Amarante (Org.). Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade (267277). Rio de Janeiro: Fiocruz. Saraceno, B. (2001) Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de Janeiro: Te Cora. Silva, R. C & Farias, I. D. (2013) Arte como expressão: Oficinas terapêuticas no CaPS Escola. In:. J. C., Carvalho (Org.), Arte e Ciências em Diálogo. Coimbra, Portugal: Grácio Editor. Vasconcellos, V. C. (2008). A dinâmica do trabalho em Saúde Mental: limites e possibilidades na Contemporaneidade e no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. (Dissertação mestrado em Saúde Pública). Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca – Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), Rio de Janeiro.

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21 ARTIGO 2 Violência contra a mulher: reflexões sobre um serviço especializado Violence against women: relfections on a specialized service Juliana Borges de Souza 10 Regina Basso Zanon 11 Fernanda Furini 12 Resumo:

O objetivo da pesquisa foi caracterizar os casos de violência doméstica contra à mulher

atendidas em um Centro de Referência da Mulher, da região noroeste do Rio Grande do Sul, no período de 2008 a maio 2016. Realizou-se um estudo exploratório-descritivo de caráter documental, com abordagem quantitativa. Para tanto, foram identificados e analisados 528 prontuários de mulheres vítimas de violência doméstica, dentre os quais foram selecionados 219 casos onde a denúncia configurasse violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo. Os resultados apontam que a média da idade entre as mulheres foi de 39,7 anos; a maioria apresentava ensino fundamental incompleto e eram diaristas ou do lar. A violência psicológica e física foram as mais prevalentes. O abuso do álcool por parte do perpetrador apareceu como fator que predispõe as agressões. Por outro lado, a média da idade do perpetrador foi 42,3 anos e a maior parte deles trabalhava informalmente. Compreende-se que a violência conjugal deve ser visualizada sob caráter multifatorial, não podendo atribuí-la a uma única causa. Os resultados da pesquisa geram subsídios para a ampliação do conhecimento sobre violência praticada pelo parceiro íntimo e contribuem na elaboração de intervenções específicas relevantes para a população analisada. Palavras chave: Violência doméstica, mulher, parceiro íntimo, Centro de Referência da Mulher. Abstract The objective of this research was to characterize the cases of domestic violence against women attended at a Women's Reference Center in the northwestern region of Rio Grande do Sul from 2008 to May 2016. An exploratory-descriptive character study Documentary, with a quantitative approach. To that end, 528 medical records of women victims of domestic violence were identified and analyzed, of which 219 cases were selected where the complaint set up domestic violence against the woman perpetrated by the intimate partner. Psicóloga/Sociedade Educacional Três de Maio/RS ; Email: julianaborgesdesouza@gmail.com e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Transtornos do Desenvolvimento (NIEPED/UFRGS). Atualmente é professora e coordenadora Curso de Psicologia SETREM e do Núcleo de Atenção a pessoa com TEA (NAP-TEA/SERCEPS/SETREM) 12 Psicóloga; Docente Sociedade Educacional Três de Maio/RS; http://lattes.cnpq br/0182302824932905; Email: psifurini@yahoo.com.br 10

11Mestre

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22 The results indicate that the mean age of the women was 39.7 years; The majority had incomplete elementary education and were either day care or housewives. Psychological and physical violence were the most prevalent. Alcohol abuse by the perpetrator has appeared as a predisposing factor to aggression. On the other hand, the average age of the perpetrator was 42.3 years and most of them worked informally. It is understood that conjugal violence must be viewed in a multifactorial manner, and can not be attributed to a single cause. The results of the research generate subsidies for the increase of the knowledge about violence practiced by the intimate partner and contribute in the elaboration of specific interventions relevant to the analyzed population. Keywords: Domestic violence, woman, intimate partner, Women's Reference Center. Introdução

De acordo com Organização Mundial da Saúde (2012) a violência cometida pelo parceiro

íntimo é compreendida como todo comportamento dentro de uma relação íntima que provoque dano físico, sexual ou psicológico, incluindo atos de agressão física, coerção sexual, abusos psicológicos e comportamentos intimidadores. Dessa forma, a violência conjugal é considerada um sério problema de ordem social, que passou a ser visualizada e estudada de maneira mais expressiva no Brasil a partir dos movimentos feministas (Narvaz & Koller, 2004; Schraiber, Gomes & Couto, 2005).

O estudo acerca deste tema é de grande relevância no cenário atual, já que é notório

o crescente aumento deste fenômeno entre a população mundial, tanto pela amplitude de sua manifestação na sociedade, quanto pelas complexas questões subjetivas e sociais que adquirem, as quais afetam a integridade física e psíquica da mulher, além de constituir um flagrante a violação aos direitos humanos (OMS, 2002). Dessa maneira, é inevitável falar em violência contra mulheres, sem adentrar na questão de gênero, que é entendido como uma construção social, onde a presença de desigualdades de poder dentro das relações precisa ser debatida (Bandeira, 2009; Pougy, 2010).

Conforme Saffiotti (2001, p. 129) “o termo gênero indica rejeição ao determinismo

biológico suposto no uso de palavras como o sexo e evidência que os papéis desempenhados por homens e mulheres são uma construção social”. Assim, pode-se entender que ser homem ou ser mulher, muito mais do que uma determinação biológica, é uma questão ligada aos modelos culturais, impostos e idealizados, ou seja, é um fenômeno social, historicamente construído.

A vida cotidiana, a relação em/entre quatro paredes e consequentemente tudo o que acontece

com/entre um casal, nem sempre pode ser visualizado. No contexto doméstico, a violência conjugal foi entendida, durante muito tempo, como exclusiva do casal, de modo que esse fenômeno mantinhase estruturado sob os princípios da invisibilidade e da naturalização (Cortizo & Gayeneche, 2010).

Existem várias definições para classificar a violência cometida contra as mulheres, uma delas

se refere à Lei Maria da Penha, que compreende como violência doméstica ou familiar contra a mulher, toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


23 relação íntima de afeto, em que, o perpetrador conviva ou tenha convívio com a vítima (Brasil, 2006).

Dentre as categorias de violência definidas pela Lei Maria da Penha estão: agressão

física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Por violência psicológica entende-se toda ação ou omissão que cause prejuízos à autoestima ou ao desenvolvimento da pessoa vitimizada. De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2001), é a modalidade mais difícil de ser identificada, caracterizando-se por humilhações, chantagem, ameaças, discriminação, crítica ao desempenho sexual e privação de liberdade. Pode levar ao isolamento social com afastamento dos amigos e familiares, ou impedir que a vítima faça uso de seu próprio dinheiro.

A violência física é descrita por Fuentes, Leiva e Casado (2008) como a ação voluntária que

provoca danos ou lesões físicas, geralmente através de empurrões, bofetadas e socos. É entendida como qualquer manifestação que ofenda a integridade ou saúde corporal. No caso da violência sexual, a lei considera que é qualquer conduta que constranja a mulher, obrigando a presenciar, a manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante a força ou intimidação. As situações podem envolver estupro, prostituição forçada e coerção à pornografia, entre outras (Rovinski, 2004; Sacramento & Rezende, 2006). A violência patrimonial, resulta em danos, perdas, subtração ou retenção de objetos, documentos pessoais, bens e valores da mulher. Contudo, a violência moral abrange qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (Brasil, 2006).

As violências contra a mulher assumem diferentes significados e múltiplas causas, podendo ser

compreendida como um instrumento de controle viril sobre os corpos femininos (Bandeira, 2009). A violência doméstica caracteriza-se como uma violência silenciosa e invisível, uma vez que inclui um conjunto de representações sociais, emocionais e cognitivas sobre o que é a violência, entrelaçada por definições ambíguas e complexas. Assim, entende-se que a caracterização de uma violência, associase ao contexto social, cultural e histórico no qual ocorre (Narvaz & Koller, 2006; Deslandes, 1999).

Observa-se que a mulher, historicamente, ocupou um lugar de submissão e passividade,

sendo que, nos últimos anos, ocorreram avanços significativos na luta das mulheres pelo reconhecimento de seus direitos (Falcke, Oliveira, Rosa & Bentancur, 2009; Nobre & Barreira, 2008). Foi somente a partir da década de 80, que a violência entre cônjuges passou a ser compreendida como uma questão social (Lamoglia & Minayo, 2009). O movimento feminista foi um dos principais responsáveis por alertar sobre a necessidade de denúncia da violência ocorrida no interior dos lares (Narvaz & Koller, 2004; Schraiber et. al., 2005).

Neste mesmo período, ocorreu à implantação das Delegacias de Atendimento à Mulher,

uma grande conquista na luta contra a violência e reconhecimento dos direitos da mulher. Essas Delegacias de Atendimento à Mulher passaram a dar maior visibilidade aos números de violência ao público, ampliando a discussão política sobre a violência contra a mulher (Costa, Zucatti & Dell’Aglio, 2011). Outro avanço significativo, a partir dos anos 80, se deu com a criação das coordenadorias da mulher em diversos governos municipais e estaduais, campanhas publicitárias nacionais discutindo a violência contra a mulher e a iniciativa da criação da Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


24 Secretaria Especial de Políticas Públicas para a Mulher (Grossi, Tavares & Oliveira, 2008).

Recentemente, o código penal brasileiro sofreu alterações, entrando em vigor em

março de 2015 a Lei 13.104, a qual inclui mais uma modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio, crime praticado contra a mulher por condições de gênero. A Lei 13.104/15 entende que existe feminicídio quando a agressão envolve violência no contexto familiar e doméstico, ou quando comprova qualquer forma de discriminação e menosprezo da condição de ser mulher, caracterizando crime por categoria do sexo feminino (Brasil, 2015).

Reconhece-se que as mudanças na legislação, nos últimos anos, estão associadas às

modificações da sociedade frente à violência contra a mulher. Embora conquistas já tenham sido realizadas, ainda há muitos obstáculos na igualdade de direitos. Um exemplo desses obstáculos refere-se ao relatório do Mapa da Violência, o qual, apontou que entre o período de 2003 a 2013, o número de vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, estas 4.762 mortes em 2013 representam 13 homicídios femininos por dia no Brasil (Waiselfisz, 2015).

Com base na literatura revisada, que destacou, principalmente, aspectos históricos, legais e

dados recentes sobre a violência doméstica, nota-se a importância de conhecer e mapear casos que se enquadram nesse cenário em diferentes contextos. Tal conhecimento é fundamental para se pensar em programas preventivos e interventivos junto à essa população. Sendo assim, o presente artigo teve como objetivo caracterizar os casos de violência doméstica contra as mulheres, atendidos em um Centro de Referência da Mulher, da região Noroeste do Rio Grande do Sul, no período de 2008 a maio de 2016. Método

O presente estudo se insere na linha de pesquisa Psicologia e Políticas Públicas, do Núcleo

de Pesquisa em Psicologia da SETREM, a qual se caracteriza pelo estudo de temáticas que marca a interlocução da Psicologia com as políticas de saúde, educação e assistência social. Trata-se de um estudo de caso exploratório-descritivo de caráter documental, com abordagem quantitativa dos dados.

Foram identificados e analisados 528 prontuários de mulheres vítimas de violência doméstica,

dentre os quais, foram selecionados 219 casos de violência praticados pelos seus parceiros afetivos, que atenderam os seguintes critérios de inclusão: casos de mulheres cujos prontuários estavam com dados completos, mulheres maiores de 18 anos, prontuários onde o perpetuador fosse parceiro íntimo da vítima e casos onde a denúncia configurasse violência doméstica contra a mulher. Os participantes foram mulheres, vítimas de violência doméstica que buscaram atendimento em um Centro de Referência da Mulher, no período de 2008 a maio de 2016. A pesquisa seguiu todos os procedimentos éticos, embasado pela Resolução 510 de 7 de abril de 2016, que regulamenta as questões éticas com seres humanos, considerando as pesquisas cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização em banco de dados, onde as informações são agregadas, sem possibilidade de identificação individual.

Como instrumento para coleta dos dados foi utilizado os prontuários de acolhimento

do Centro de Referência da Mulher, com os dados sócio demográficos das participantes e dos Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


25 parceiros afetivos, bem como, idade, escolaridade, profissão, tempo de união, etc. Os dados foram analisados conforme a análise de conteúdo quantitativa (Bardin, 2010), sendo considerados e categorizados todos os documentos e as informações contidos nos prontuários identificados. Cabe ressaltar que os prontuários são preenchidos pelos profissionais integrantes da equipe técnica do Centro de Referência da Mulher (psicóloga, assistente social e advogada) e contêm, além das fichas de identificação dos usuários, a descrição sintética dos atendimentos, das intervenções e dos encaminhamentos realizados. A escolha da amostra foi de forma intencional, onde os elementos amostrais foram escolhidos pela pesquisadora (Kamphorst, 2016), representando a totalidade dos casos atendidos no local investigado. Utilizou-se da análise de estatísticas descritiva e de frequência simples para as variáveis de interesse, bem como, coleta, organização e descrição dos dados.

Foram considerados para este estudo os seguintes categorias: idade da vítima e do agressor,

tempo da união, profissão, escolaridade da vítima, solicitação de medida protetiva, violências sofridas, uso de substância química pelo parceiro, sentimentos da vítima em relação ao parceiro e problemas de saúde da mulher, as quais foram submetidas a análise de conteúdo quantitativa (Bardin, 2010). Resultados e Discussão

A seguir serão apresentados os resultados referentes às variáveis discretas e

nominais, os quais serão discutidos teórica e empiricamente. No que se refere às categorias onde as variáveis numéricas assumem somente valores pontuais, as variáveis discretas (Kamphorst,

2016)

foram

analisadas

conforme

apresentadas

na Tabela

1

a

seguir:

Tabela 1. Resultados referentes às variáveis discretas

Segundo Zacan, Wassermann e Lima (2013), a permanência das mulheres em um relacionamento

violento por muitos anos, pode estar relacionada à esperança que a mulher atribui a mudança de comportamento por parte do seu cônjuge, bem como, pelo medo das ameaças e do controle manipulado pelo perpetrador. Machado e Magalhães (1999), entendem que os motivos que levam a mulher agredida a persistir no relacionamento violento, podem ser verificados em diversos fatores. Para os autores, as relações devem ser percebidas dentro de uma visão sócio histórica dos envolvidos e não ser pensado apenas individualmente, onde as mulheres ainda são acometidas pelos estilhaços do regime patriarcal. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


26 Pesquisa realizada pelo do DataSenado (2013), refere que mais de 13 milhões de mulheres já sofreram algum tipo de agressão, destas, 31% convivem com seus agressores e continuam sofrendo algum tipo de violência. Para Brandão (1998), quando a mulher faz a queixa na delegacia, não é o rompimento da relação afetiva que ela deseja, e sim, a intervenção e a proteção da polícia em futuras agressões ou auxílio para administrar os impasses domésticos.

A complexidade do fenômeno da violência conjugal é evidenciada pela constituição da dinâmica

de interação entre o casal que alimenta e perpetua as características do vínculo violento. A dinâmica da violência conjugal geralmente revela um processo repetitivo, relacional e progressivo (Falcke et. al, 2009). Sobre esse aspecto Walker (1999) apresenta o ciclo da violência, distinguindo três fases de violência, que variam de tempo e intensidade: 1) Construção da Tensão; 2) Tensão Máxima; e 3) Lua-de-mel.

Na tabela a seguir serão apresentadas as variáveis nominais (Kamphorst,2016) são variáveis

que não possuem ordenamento e nem hierarquia. Estas, por sua vez, foram analisadas com base em frequência e porcentagem. Tabela 2. Dados sócio demográficos da mulher vítima de agressão e do parceiro afetivo

Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


27

Segundo Costa, Serafim e Nascimento (2015), o baixo grau de instrução pode favorecer

para a desqualificação profissional da mulher, motivando em algumas situações o desemprego e a sua dependência econômica, o que pode aumentar sua vulnerabilidade e dificultar o rompimento do ciclo da violência. A baixa escolaridade é apontada por alguns autores como um dos fatores que favorecem a situação de violência, visto que mulheres mais esclarecidas tendem a ter menor grau de tolerância à situação (Adeodato, Carvalho, Siqueira & Souza, 2005; Rabello & Caldas Júnior, 2007). Dado este, o qual não significa que mulheres esclarecidas e com nível superior não venham a sofrer algum tipo de violência doméstica (Gadoni-Costa, 2010). Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


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Pesquisas apontam, que mulheres que desenvolvem alguma atividade profissional

remunerada conseguem buscar estratégias mais eficazes para enfrentar as situações de violência, além de demonstrar atitudes positivas diante do fenômeno da violência, desta forma, garantindo um maior grau de autonomia e autoestima (Debert & Oliveira, 2007; Rabello et. al, 2007). De acordo com os dados apresentados na tabela 2, em 54% dos casos os perpetradores possuem uma atuação profissional, enquanto, as mulheres pesquisadas 18% encontram-se em atividades do lar e 8% desempregadas, observa-se que a maioria das vítimas não possui rendimento, configurando-se uma dependência econômica em relação aos parceiros. Os dados demostram que (7%) dos parceiros afetivos encontram-se desempregados, o que nos faz pensar que nos casos que não há dependência econômica, pode haver uma dependência emocional (Deeke¸ Boing, Oliveira & Coelho, 2009).

Em relação à categoria Problemas de Saúde, algumas participantes relataram mais de uma

condição/doença. Dentre os problemas de saúde mais relatados nos prontuários foram identificados a Depressão (n=36) totalizando 33% dos casos e a Hipertensão como a segunda condição/ doença mais relatada pelas mulheres, configurando 13% (n=14). Estudos apontam a violência contra a mulher como determinante para diversas perdas significativas tanto na saúde emocional, sexual, física e social (Casique & Furegato 2006; Fonseca & Lucas 2006; Monteiro & Souza, 2007). Em relação à saúde física enfatizam-se para o aumento da pressão arterial, dores pelo corpo, principalmente dores de cabeça e dificuldade para dormir (Fonseca et. al, 2006). Contudo, a depressão clínica, os sintomas psicossomáticos e o Transtorno de Estresses Pós-Traumático foram encontrados em estudos em mulheres vítimas de violência (Adeodato et. al, 2005; Deeke et. al, 2009; Hatzaenberger, Lima, Lobo, Leite & Kristensen, 2010; Monteiro & Souza, 2007).

Cabe ressaltar que, de acordo com os dados retirados dos prontuários, 42% das mulheres

relataram possuir algum problema de saúde, enquanto que 38% das mulheres não reportaram problemas de saúde e 20% dos prontuários não constava essa informação, o que corrobora com a revisão da literatura (Adeodato et al., 2005). Os referidos autores em sua análise sugerem que a violência doméstica traz prejuízos intensos a saúde mental da mulher, sendo que 78% apresentavam ansiedade e insônia, 65% sintomas somáticos, 40% depressão grave e 26% disfunção social.

No que refere à categoria dos sentimentos que as mulheres sentem em relação ao perpetrador.

Observa-se que o medo (n=69) e raiva (n=39) foram às emoções mais evidenciadas entre as pesquisadas em uma amostra geral (n=174). Souza e Ros (2006) apontam o medo, a dependência financeira e a submissão como fatores que podem influenciar a mulher manterem-se em relacionamentos violentos. Segundo os autores, o contexto social e familiar, os sentimentos de culpa por não ter obtido êxito no relacionamento e dependência afetiva/emocional interferem diretamente no momento de denunciar ou não o perpetrador.

Em pesquisa feita por Souto e Braga (2009) os autores identificaram a representação da violência

contra a mulher por meio de sentimentos de medo e aprisionamento. O sentimento de medo é atribuído à sensação de ameaça sobre o perigo da agressão, sendo uma maneira de controle e intimidação do perpetrador, desta forma, fazendo com que a mulher não reage frente à situação de violência, Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


29 fazendo com que a mulher muitas vezes silencie e se omita de qualquer atitude (Tavares & Pereira, 2007).

Em relação aos tipos de violência registrados nos prontuários de atendimento, estes dizem

respeito à violência psicológica 44% (n=198), a violência física 27% (n=125), a violência moral 18% (n=81), a violência patrimonial 8% (n=35) e a violência sexual 3% (n=13) em uma amostra geral (n=452), visto que muitas das violências eram vivenciadas no mesmo caso. Estes resultados apontam a significativa presença da violência psicológica e física com maior relevância na amostra estudada. Em relação às violências sofridas, Porto (2004) aponta que as mulheres referiram à violência psicológica como a pior delas, pois se torna constante, caracterizando-se como uma tortura interminável.

Em relação à violência psicológica, estudos demostram que esta deixa marcas profundas

no psiquismo das mulheres em situação de violência, pois não é visivelmente detectada, sendo mais complexa de avaliar suas dimensões. Causando sentimentos de paralisia, impotência, culpa, submissão e medo, sendo provocados por ameaças diárias e constantes por parte do parceiro afetivo. A violência psicológica é muitas vezes percebida somente quando culmina em violência física, gerando assim diversas patologias e déficits em funções cognitivas (Adeodato et al., 2005; Hatzenberger et al., 2010; Porto, 2004; Silva, Coelho & Caponi, 2007).

Por outro lado, a violência física tem sido citada na literatura como sendo a mais notificada nos

serviços de atendimento à mulher (Adeodato et al., 2005; Bruschi & Bordin, 2006; Schraiber et al., 2002). Dessa forma, Silva et. al, (2007) entendem que, embora haja diferença entre os vários tipos de violência, elas se entrelaçam e se misturam de diferentes maneiras. Rosa e Falcke (2014) referem que muitas vezes a prática da violência pode ser entendida pelo casal como uma forma de resolução de seus conflitos, passando a ser naturalizadas pelos conjugues. Estudos referente à temática, apontam a naturalização da violência como um disfarce das taxas da violência conjugal, que por vezes, passam despercebidas, nem mesmo sendo denunciadas, podendo ser um dos fatores responsáveis pela permanecia nesta relação intima violenta (Romagnoli, Abreu & Silveira, 2013). Compreende-se como sendo o companheiro o principal agressor (Godoni-Costa, 2010 & Silva, et al., 2007) onde o perpetrador, em geral, é uma pessoa da convivência da mulher em situação de violência, estando no convívio do lar e da relação intrafamiliar. Segundo Hatzenberger et al. (2010), a violência contra a mulher quando é perpetrada pelo parceiro íntimo além de gerar patologias e déficits em funções cognitivas, também está associada a diversas patologias (Transtorno de estresse pós-traumático, depressão, sintomas de ansiedade).

Na categoria referente a distribuição do uso de substância química pelo parceiro íntimo,

o uso de substância, sobretudo o álcool, na amostra geral (n=219) esteve associado em 31% dos casos, contudo, prontuários 143 participantes não contava o dado, 67 parceiros faziam uso de drogas licitas, 5 pessoas combinavam o uso de drogas licitas e ilícitas e 4 somente drogas ilícitas. Estudos acerca do tema, indicam o uso do álcool pelo parceiro afetivo, desempenha papel importante no contexto da violência, uma vez que o comportamento de beber surge, não só como um papel desencadeador, mas também como o motivo direto das desavenças entre os casais (Gadoni-Costa, 2010; Oliveira et al., 2009; Rabello & Caldas Junior, 2007; Vieira et al., 2008). Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


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De acordo Rabello et. al, (2007), o álcool é consumido na família de 76,2% das mulheres em

situação de violência. Rangel e Oliveira (2010) apontam o alcoolismo como desencadeador da violência por ameaça (50,9%) e lesão corporal (50%). Estes resultados corroboram com estudos anteriores que apontam a presença de álcool em situações de violência conjugal (Deeke et al., 2009; Godini-Costa, 2010). Outros fatores de risco citados na literatura são o uso de substâncias, o desemprego, a baixa escolaridade e o isolamento social e político (Vieira et al., 2008). Para Fonseca, Galduróz, Tondowsky e Noto (2009), ao estudar as situações de violência em 7.939 domicílios, onde o perpetuador fazia uso de álcool, visualizaram que mais da metade dos casos de violência doméstica, o agressor estava sobre efeito de álcool.

Dessa forma, é possível identificar as dificuldades que as mulheres encontram em deixar

um relacionamento de violência associado ao uso de álcool e/ou outras drogas pelo parceiro. Mesmo que as agressões não ocorram com frequência, “o comportamento adicto estimula o sentimento de responsabilização sobre o parceiro, visto como doente” (Deeke et al., 2009, p. 255).

Em relação à Distribuição das participantes de acordo com a solicitação das medidas protetivas

(n=219), 39% das mulheres solicitaram a medida, 8% não solicitaram e 53% não constava essa informação. Para Brandão (2006), refere que as ambiguidades no tocante à punição do acusado, à repercussão familiar da notificação, ao tipo e a intensidade da violência sofrida, bem como a presença de ameaças ou de uma posição de passividade/dependência emocional são verificados na literatura como variáveis que interferem na decisão sobre a medida e a representação criminal por parte das mulheres em situação de violência.

Ressalta-se que a maioria das mulheres não deseja representar criminalmente seus companheiros

abusivos, mas somente solicitar medidas protetivas. Além disso, a desistência da denúncia também é frequentemente observada nestes casos. De acordo com Jong, Sadala e Tanaka (2008), a afetividade que ainda sentem pelo parceiro, o desejo de manter a família ou a dependência econômica são variáveis a serem consideradas. Os autores enfatizam, que muitas mulheres não se percebem seguras o suficiente para darem seguimento ao processo criminal e sentem-se incapazes de enfrentar a situação por medo das constantes ameaças proferidas por seus companheiros (Zancan et. al, 2013).

Dessa maneira, um dos grandes desafios no enfrentamento da violência contra a mulher é

romper com o ciclo da violência, proporcionando subsídios para que as mulheres em situação de violência, transforme a atual situação, alternando o estado de vulnerabilidade para uma postura mais ativa sobre sua própria vida. A compreensão dessa dinâmica por parte dos profissionais envolvidos é de grande importância, uma vez que favorece uma abordagem adequada possibilitando ao profissional que atende essa situação não atue de forma a vitimizar e culpabilizar o homem, e assim compreendendo a sua interação e interdependência na relação violenta (Brasil 2001).

Ressalta-se a relevância desta pesquisa, uma vez que apresenta a caracterização dos casos de

violência praticados por parceiros afetivos em uma região do noroeste do estado do Rio Grande do Sul, proporcionando a visibilidade e a possibilidade de discussões mais acuradas acerca da temática nesse contexto específico, o que pode embasar/fundamentar novas intervenções da rede e reflexões dos profissionais sobre o empoderamento da mulher para não que não seja reforçado o lugar de vítima. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


31 Considerações Finais

Os resultados apresentados nesse estudo demostram a importância de identificar as variáveis

relacionadas à violência contra a mulher, assim como as associações entre as mesmas, que constituem fatores de risco para essa população. Os principais resultados desse estudo apontam para o predomínio da violência psicológica e física entrelaçadas pelos outros tipos de violência. Em consonância com a literatura, o principal perpetrador encontra-se dentro do próprio lar. De acordo com a análise dos registros, o uso de drogas ilícitas, pode ser considerado um fator a ser associado ao fenômeno da violência conjugal.

Os achados relacionados ao levantamento dos casos de violência perpetrada pelo

parceiro íntimo abrangem a reflexão de intervenções não somente com a vítima de violência, mas também com o perpetrador e os filhos, a fim de evitar a perpetuação do ciclo de violência. Nesse sentido, sugerem-se programas de capacitação dirigidos a profissionais, nos municípios que contam com centros de referência no atendimento à mulher, buscando também estender os serviços aos filhos, casais e famílias em situação de violência. Sobre esse aspecto, cabe registrar que algumas iniciativas já vêm sendo idealizadas e desenvolvidas no município, como é caso do estabelecimento de parcerias entre o curso de Psicologia da região e o Fórum desse município, visando o acompanhamento psicológico dos sujeitos envolvidos no contexto de violência.

Cabe ressaltar, que a complexidade das questões envolvidas na dinâmica da violência resulta

em desigualdades de autonomia, de posições e de direitos. Dessa maneira, é importante compreender a violência conjugal sob caráter multifatorial, tendo em vista, diversos fatores correlacionados, não podendo atribuí-la a uma única causa. Por tal razão, ressalta-se a importância do trabalho em equipe multiprofissional a fim de melhor compreender e dar o suporte necessário aos envolvidos.

Entende-se que o estudo é de grande relevância para o Centro de Referência da Mulher

pesquisado, uma vez que apresenta o panorama do perfil da mulher e a caracterização dos casos atendidos na instituição. Destaca-se que o conhecimento do perfil de seu público seja um importante instrumento para que a equipe técnica do local possa direcionar suas ações em pontos estratégicos. De certa forma, esse conhecimento pode gerar subsídios para o aperfeiçoamento de propostas de atendimento e encaminhamento das vítimas a serviços que melhor se adequem a cada situação de violência, garantindo assim uma maior valorização dos direitos das mulheres. Referências Adeodato, V. G., Carvalho R. R., Siqueira, V. R., & Souza, F. G. M. (2005). Qualidade de vida e depressão em mulheres vítimas de seus parceiros. Revista de Saúde Pública, 39(1), 108-113. Bandeira, L. (2009). Três décadas de resistência feminista contra o sexismo e a violência feminina no Brasil: 1976 a 2006. Revista Sociedade e Estado Brasília, 24(2), 401-438. Bardin, L. (2010). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.

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35 ARTIGO 3 Adolescer no meio rural: uma abordagem psicodramática Adolescer in the rural environment: a psychodramatic approach Luthiane Pisoni Godoy 13 Lissandra Baggio 14 Evandir Bueno Barasuol 15 Resumo:

Este trabalho apresenta uma pesquisa sobre a adolescência no meio rural. Entrevistando sete

adolescentes que residem na zona rural do noroeste do Rio Grande do Sul. Trata-se de um assunto pouco abordado no campo da Psicologia. O objetivo desta pesquisa foi compreender o período da adolescência e o seu desenvolvimento em pessoas que vivem no meio rural e poder avaliar a percepção do jovem que vive no meio rural sobre seu cotidiano, entender como se dá o processo do adolescer utilizando como método o sociodrama, sendo facilitador da compreensão sobre as questões da adolescência no meio rural. A pesquisa foi realizada em duas etapas, primeiramente por meio de entrevistas semi-estruturadas e a segunda por encontros em grupo, trabalhando com jogos psicodramáticos onde se abordaram os temas surgidos na entrevista. Os dados foram analisados qualitativa e fenomenologicamente. As conclusões deste estudo apontaram a dúvida que permeia os jovens sobre permanecer ou sair do meio rural. Nos resultados, os que optam por ficar prosseguem o trabalho dos pais, ficarão para cuidar das terras e auxiliar na administração. Aqueles que apresentaram o desejo de sair, o farão para buscar melhores condições para estudar, e pela facilidade que a cidade oferece. Palavras-chave: Adolescência; meio rural; psicodrama; jogos; Abstract

This work presents a research on adolescence in rural environment. Interviewing

seven adolescents living in the rural northwest of Rio Grande do Sul. This subject, has little discussion in the field of Psychology. The objective of this research was to understand the period of adolescence and it’s development in people living in the rural environment and to be able to evaluate the perception of young people living in the rural environment about their daily life, 13 Psicóloga/Sociedade Educacional Três de Maio/RS, Mestranda em Desenvolvimento Rural/ Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Porto Alegre/RS; http://lattes.cnpq.br/2486374323538077; Email: luthianepg@gmail.com. 14 Psicóloga; Docente Sociedade Educacional Três de Maio/RS; Três de Maio/RS; http://lattes.cnpq. br/3664756536231434; Email: lis_baggio@hotmail.com. 15 ³Psicóloga; Docente Sociedade Educacional Três de Maio/RS; Três de Maio/RS; http://lattes.cnpq. br/2912210297442531; Email: vandabarasuol@gmail.com. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


36 to understand how the process of adolescence takes place using as method the sociodrama, facilitating the understanding of the issues of adolescence in rural environment. The research was carried out in two stages, first through semi-structured interviews and the second through group meetings, working with psychodramatic games to approach the themes that emerged in the interview. The data were analyzed qualitatively and phenomenologically. The conclusions of this study pointed out the doubt that permeates young people about staying or leaving the rural environment. In the results, those who choose to stay will continue the work of the parents, will be to look after the lands and support the administration. Those who have expressed the desire to leave, will do so to seek better conditions to study, and the ease that the city offers. Keywords: Adolescence; Rural Environment; Psychodrama; Games; Introdução

Este trabalho propõe conhecer/investigar, por meio de entrevistas e jogos psicodramáticos,

o processo do adolescer em jovens que vivem no meio rural e cujas famílias são vinculadas a um Sindicato dos Trabalhadores Rurais de uma cidade do Noroeste do estado do Rio Grande do Sul. O contexto teórico em torno do tema rural é pouco abordado no campo da Psicologia, e integrando à adolescência, as bibliografias reduzem ainda mais. A adolescência se desenvolve em diversos grupos, comportamentos, valores, culturas e modos de vida. Assim, nas pesquisas bibliográficas realizadas, percebe-se que este assunto é de grande importância, principalmente na região noroeste do Rio Grande do Sul, que possui a maior parte de sua renda advinda da agricultura familiar.

O êxodo da juventude acarreta o envelhecimento da população do meio rural, visões negativas

do trabalho e da vida rural vão torneando esse meio (Costa & Ralisch, 2013). E nesse aspecto vão surgindo questões importantes a serem discutidas e analisadas, dentre estas o papel do adolescente no meio rural, bem como sua participação dentro do Sindicato de Trabalhadores Rurais, o qual, como afirmado, não contempla por vezes as necessidades dos jovens, fazendo com que os mesmos distanciem-se da vida rural. A adolescência

Segundo Ferreira, Farias e Silvares (2010), a adolescência se define como um período que

compreende a segunda década de vida, sendo dos 10 aos 20 anos. A OMS (Organização Mundial da Saúde, 2011), o Ministério da Saúde e o IBGE também adotam este critério. Já o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990) estipula o período entre os 12 e os 18 anos. Nesta pesquisa, utilizar-se-á a definição do ECA. E, no que se refere à uma generalização social, ou por assim dizer, para o social, a adolescência se inicia a partir do momento em que as mudanças corporais e a puberdade começam a aparecer, e finda quando o adolescente adentra na realidade social, profissional e econômica da sociedade adulta. Importante se faz, neste trabalho, diferenciar a puberdade e a adolescência. A adolescência se caracteriza como o salto para a vida, para si mesmo e Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


37 sua individualidade. Já a puberdade está relacionada a fenômenos fisiológicos, mudanças hormonais e corporais, maturação física, podendo variar a idade, nas meninas aos 10 anos e nos meninos aos 12.

A adolescência é permeada por desenvolvimento e mudanças. E, relacionado ao

campo, o adolescente que cresce no meio rural se caracteriza, na maioria das vezes, em meio à uma agricultura familiar e a uma concepção de família que dirige sua propriedade e é sua mão de obra. Assim, jovens rurais se deparam com a realidade do trabalho e com a urbanização, que os mostra a tecnologia e realidades diferentes daquela em que cresceu. O jovem no meio rural

O meio rural caracteriza-se em diversos significados, evocando a agricultura que é

não somente uma atividade econômica, mas um modo de vida. As comunidades rurais onde as famílias estão inseridas vêm modificando seu contexto ao longo dos anos. A redução do número de trabalhadores que se dedicam à agricultura é uma dessas mudanças, além da relação com espaços não-rurais, decorrente da urbanização que acontece na sociedade.

As condições de vida familiar e de contexto rural vão sendo transformadas e os

jovens que vivem neste meio são os mais afetados. Isso acontece pois as relações mudam, sejam elas sociais, pessoais ou trabalhistas e, as relações de trabalho implicam em pensar no papel que o jovem desempenha dentro da comunidade que se insere e da própria família, que produz o seu próprio sustento. Isso por vezes torna-os vulneráveis a tantos acontecimentos e mudanças, principalmente nesta fase de seu desenvolvimento (Gaviria & Menasche, 2006).

Os jovens, além do seu desenvolvimento natural e da apreensão de novos conhecimentos,

também em contato com a terra se veem incitados ao trabalho e aos afazeres do campo. Percebe-se, partindo destes pontos citados, um campo que está em processo de esvaziamento, principalmente de jovens – que buscam melhores condições para a sua vida, acarretando o envelhecimento da população rural e as dificuldades da continuidade no trabalho (Silva, 2011).

A preocupação, segundo Silva (2011), é que o campo se esvazie e envelheça, pois os jovens

estão preferindo sair do meio rural e, sem eles, a sustentabilidade das atividades do campo acaba por enfraquecer. Importante se faz pensar então no papel que o jovem desempenha no campo e as questões que o levam a pensar em sair ou ficar nesse contexto. Na literatura pesquisada, que abrange a área da Psicologia, são poucos os referenciais encontrados sobre o papel do jovem no meio rural. Dessa forma entende-se que ele precisa ser estudado, pesquisado e entendido pelas peculiaridades de sua forma de vida e de desenvolvimento na área rural, enfatizando também que deve ser ouvido, de forma a dar voz às suas vontades e desejos enquanto permanecer ou não no meio rural. Grupos e o Sociodrama, uma abordagem psicodramática

O Psicodrama, segundo Moreno (1984, p.61), “pode ser definido como a ciência que explora a

verdade por métodos dramáticos”. Dentro da teoria Socionômica, existe o Sociodrama, este possibilita Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


38 intervenções interpessoais em grupos. Jacob Levy Moreno, o criador do Psicodrama, construiu a Socionomia, que foca o trabalho do indivíduo em seus meios sociais, objetivos, psicológico e subjetivo. É a ciência de relações e das leis sociais. Propõe à sociedade uma terapia de transformação.

O Sociodrama caracteriza-se como um dos métodos da Socionomia (Gonçalves, Wolff &

Almeida, 1988). O sociodrama, segundo Cukier (2002), trata de relações entre o grupo e da coletividade. Significa, basicamente, uma ação que possa beneficiar outro indivíduo. Partindo dos sonhos morenianos, de realizar trabalhos em comunidade e transformá-la, busca-se então o trabalho em grupo: estimulação de sujeitos para descobrirem formas e maneiras de se encontrar e encontrar seu lugar no mundo. Este movimento facilita ideias, manifesta conflitos, dilemas, dores, sofrimentos e expressões em determinadas situações.

Dentro do Sociodrama se utilizam os jogos psicodramáticos. O objetivo dos Jogos

Psicodramáticos é explorar os ritmos e o reconhecimento dos sujeitos. Estes, em situação relaxada e tranquila, tornam-se mais acessíveis. Os Jogos permitem explorar as tensões presentes nos indivíduos, permitem a livre expressão do mundo interno, concretizando fantasias e atitudes dos sujeitos (Leite, 2014). Os jogos auxiliam, portanto, na adequação dos comportamentos dos sujeitos ao mundo, bem como na descoberta de suas tensões, auxiliando os mesmos a lidarem com seus problemas e dificuldades desta fase (Leite, 2014). Justificativa e objetivos do estudo

Partindo dos pressupostos teóricos pesquisados, pretendeu-se nesta pesquisa, investigar o

processo da adolescência no meio rural, por meio da entrevista e, a partir do sociodrama aplicado ao grupo, trabalhar questões referentes às dificuldades e peculiaridades desse processo de adolescer no meio rural. Objetivo geral

Compreender o período da adolescência e o seu desenvolvimento em pessoas que vivem no

meio rural. Objetivos específicos

1) Avaliar a percepção do jovem que vive no meio rural sobre seu cotidiano. 2) Entender

como se dá o processo do adolescer no campo. 3) Utilizar o sociodrama como método para facilitar a compreensão sobre as questões da adolescência no meio rural. Método e Participantes

Esta pesquisa caracterizou-se como qualitativa exploratória, de caráter transversal. A partir

dessa abordagem, Gil (1999) entende que assim pode-se realizar uma análise geral do tema abordado mas tendo como principal objetivo analisar de forma mais profunda o que está sendo estudado. Participaram desta pesquisa, sete adolescentes que residem na área rural de uma cidade da região Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


39 Noroeste do Rio Grande do Sul. Estes, tendo idades entre 12 e 18 anos. Procedimentos éticos

Este estudo foi embasado pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)

e pela postura ética do estagiário de Psicologia, atendendo às normas do Conselho Federal de Psicologia. O projeto desta pesquisa foi submetido à avaliação de um Comitê de Ética, sob parecer número 1472850. Cuidados foram tomados para garantir o sigilo de informações. Assim, foi entregue um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e de Concordância da Instituição. Procedimentos para coleta de dados

Inicialmente se fez o contato com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais com o objetivo

de apresentar a pesquisa e solicitar a autorização para a sua realização. Após a autorização, seriam realizadas visitas domiciliares juntamente com um técnico do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Contudo, o Sindicato não pôde disponibilizar carro e um técnico para o acompanhamento da pesquisa. Adequando-se a esta condição, as entrevistas foram então realizadas nas dependências do Sindicato. Ressalta-se a dificuldade em contatar os pais, primeiramente por conta da telefonia móvel, pois muitos não possuem sinal na localidade onde moram e também pelo tempo, precisávamos esperar chover, ou adequar a entrevista a um horário em que eles já estivessem na cidade para que não precisassem vir novamente.

Assim, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pais, foi

aplicado o questionário e realizada a entrevista com o participante. O grupo, da mesma forma que as entrevistas, adequando-se aos horários que os jovens poderiam vir com os pais para a cidade, foi realizado nas dependências do Sindicato, uma vez por semana, durante cerca de um mês, caracterizando quatro encontros. Os encontros realizaram-se em duas etapas, por conta da disponibilidade de tempo de cada participante, a cada encontro do grupo, diários de bordo foram feitos para que este elemento e o material obtido, sendo as falas dos participantes transcritas fielmente, fossem analisados e incluídos como dados para obtenção de resultados referentes à pesquisa. Procedimentos para análise de dados

1ª Etapa - Análise por Categorias: Minayo (2011), estabelece a análise de dados por meio

da criação de categorias, estas estão pautadas como classes ou séries. Sendo assim, se estabelecem classificações, compilando ideias, elementos, expressões que abranjam todo o material recolhido na pesquisa. As categorias podem ser analisadas minuciosamente, de acordo com o objetivo proposto antes da coleta de dados, podendo ser divididas (Minayo, 2011). Partindo da análise das categorias e das subcategorias em que as entrevistas foram divididas, as mesmas serviram como base para o trabalho nos grupos, os resultados desta análise, portanto, subsidiaram o trabalho sociodramático, sendo as questões norteadoras do mesmo. 2ª Etapa - Fenomenologia e Diário de Bordo: Esta teoria serviu relativamente à análise do grupo criado e desenvolvido no Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


40 A fenomenologia se refere à investigação de um método existencial, sendo o fenômeno aquilo de que temos consciência. Assim, se busca a essência do pesquisado. Sendo dirigida para significados, esse método busca investigar o que certos fatos significam para o sujeito, transformando aquilo que estava implícito, em explícito (Patzold & Barasuol, 2013, citado em Borges, Winter & Souza, 2013). Resultados e Discussão

O projeto de pesquisa inicial previa dez participantes como público alvo, mas, por dificuldades

relacionadas à distância das moradias rurais e transporte, a análise foi realizada com entrevistas de sete jovens. Seguem, na tabela abaixo, o detalhamento dos jovens, bem como sexo e idade (nomes fictícios):

Godoy, Baggio e Barasuol (2016)

Em relação aos jovens entrevistados, compreende-se uma influência majoritária da visão

feminina sobre o campo. O menino entrevistado é bastante jovem. Há uma maior amplitude da faixa etária das meninas. Púberes e adolescência média e tardia, há um amadurecimento em relação à maioria das meninas. Uma das características deste grupo de adolescentes entrevistados são as descendências italiana e alemã, com todos os seus vínculos familiares ligados à agricultura familiar. Assim, dá-se início a análise categórica e, após, a análise fenomenológica dos encontros realizados. Categoria 1: Percepção do jovem que vive no meio rural sobre seu cotidiano.

Como foi sua infância: A partir do questionamento sobre a infância, fica possível entender

como os adolescentes entrevistados foram criados e se gostavam da realidade na qual cresceram e passando pelo seu desenvolvimento:

“Foi bom, a gente vivia pra fora né, com o pai e a mãe/ Acho que foi mais tranquilo.”

(Gabriel)

“Comer bastante terra, brincar/ Foi viver com os animais, diferente da cidade. / Ter o pai e a

mãe sempre perto porque os da cidade quando trabalham daí fica com uma tata, e os meus pais não, sempre tiveram comigo, brincando, iam pra fora. / Foi mais livre.” (Clara)

Percebe-se nestas primeiras falas a ênfase direcionada aos pais, à tranquilidade

e a liberdade de ter crescido no meio rural. O campo é, acima de tudo, um espaço de cultura e de liberdade, onde as crianças podem crescer aprendendo conhecimentos que são, por vezes, hereditários. Sendo assim, além de ressaltar que a presença dos pais na infância é muito Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


41 importante para o desenvolvimento infantil, a criança que cresce no campo aprende na prática, com animais, cultivo e plantação e são influenciadas pelo seu meio a todo o momento. Isso diferencia tanto seu crescimento como seu desenvolvimento enquanto sujeito, detentor de conhecimentos que “gente que mora na cidade não sabe”, como afirma a adolescente entrevistada. Rotina: Analisando as falas dos adolescentes sobre sua rotina, destaca-se que possuem tempo para os estudos mas também precisam reservar parte de seu dia para as atividades e serviços da lavoura e/ou da casa, auxiliando os pais:

“Isso é, de manhã eu vou na aula, e de tarde eu faço os serviços gerais./ Os serviços que tiver,

tipo qualquer coisa, o que é preciso é feito.” (Gabriel)

“E eu me destaco bem no colégio, mesmo sendo no interior, eu vo melhor que algumas da cidade

porque umas não fazem nada./ E eu vo na roça, eu tiro silagem, eu faço um horror lá em casa” (Amanda)

A rotina dos jovens que vivem no interior se destaca como um processo de aprendizagens,

sejam as atividades na lavoura, no trabalho com os animais ou nos serviços de casa. Isso faz com que desde pequenos os jovens adquiram responsabilidades, valores e comportamentos, colocando-se em desenvolvimento constante. No meio rural, o trabalho aumenta as responsabilidades quanto à escola e também ao serviço desempenhado em casa, fazendo com que o jovem se dedique a esses dois afazeres e se dedique a ele mesmo, pois da mesma forma que ajudam os pais, possuem um tempo para estudar e “ir bem no colégio”. Categoria 2: Como se dá o processo do adolescer no campo. Dificuldades: As dificuldades da adolescência iniciam na modificação do corpo e do pensamento da até então criança e que começa a se deparar com novos olhares sobre si, novas formas de ver o mundo e de se ver nele, bem como o sentimento de estar fora de contexto, justamente por vir do interior:

“Dificuldade talvez também no estudo, estudar e ajudar na lavoura também dificulta um

pouco.” (Daniele)

“Às vezes to meio..me sentindo excluída dos meus colegas porque eu sou do interior né, daí

já muda tudo./ Na minha sala só tem eu do interior.” (Ana Maria)

Essas dificuldades dos jovens se relacionam também ao modo com que vão amadurecendo.

Apontando que no desenvolvimento do adolescente, muitas vezes a mudança que se considera é aquela que entorna o biológico e psíquico, deve-se pensar também na questão cultural, onde podemos perceber que o jovem que vive no meio rural também sofre certo tipo de exclusão, por conta de todas essas modificações a que passa e, principalmente, como se percebe nas falas, por morar no interior, havendo uma discriminação e uma pejoratividade no que falam sobre ele.

Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


42 Como é ser adolescente no meio rural: Quando se propõe a adolescência, precisamos observar que ela depende de questões e inserções culturais e históricas, que por sua vez irão determinar como se vive a adolescência, corroborando com as formas de viver, segundo o gênero, o grupo social e a sua geração (Ferreira et. al, 2010).

“Pra mim é muito bom, mas tem outras pessoas que acham ruim. / Até quando eu estudava

em um colégio particular, eu estudei lá 6 anos, falavam que eu não podia estudar lá porque eu era colona, falava errado, até que um dia eu falei pro meu pai e pra minha mãe e aí eles foram conversar com o diretor e aí o que eles resolveram, de levar todas as crianças do colégio lá em casa, pra ver de onde é que eu vinha, o que eu fazia, e como é que eu vinha pro colégio, tudo.” (Amanda)

“Ah, às vezes dá vontade de sair, fazer uma coisa diferente mas tem que ficar em casa./ Não tem

final de semana legal, tem que ficar em casa ajudando os pais, tirar leite, as vezes é chato.” (Jessica)

A adolescência dos jovens do campo é permeada pelas questões de trabalho e distância

de locais que proporcionam lazer ou entretenimento para eles, o que pode acabar gerando uma pressão neste jovem, que tem o dever de ajudar os pais, mas ao mesmo tempo possui vontades e desejos de poder aproveitar sua juventude. Podendo pensar e concluir que todos estes aspectos podem atuar como geradores do êxodo rural, bem como do desejo dos jovens de mudarem sua realidade. Categoria 3: Planos para o futuro. Ficar ou sair do campo: Neste momento da análise, os jovens dividiram-se em suas opiniões,

primeiramente, apresenta-se aqueles que gostariam de sair do campo e suas razões para esta decisão:

“É estudar./ Pretendo ser advogado./ Vou sair do campo.” (Gabriel)

“Eu queria ser arquiteta. / Daí eu queria ser psicóloga também. Porque tipo, meus colegas

assim, quando eles tem algum problema eu tento ajudar. / Então eu acho que vou seguir na psicologia/ Continuar no campo depende, assim, só se os pais estiverem ainda, mas a minha vontade é ir pra cidade.” (Ana Maria)

Panno e Machado (2014) consideram importante o entendimento dos fatores que fazem

com que os jovens saiam do campo, pois essa decisão acaba afetando a sua família e até mesmo o desenvolvimento da região. Apesar da agricultura familiar ser difundida e organizada e buscar promover a permanência do jovem no campo, nem sempre isso acontece. Assim, outros fatores que favorecem a saída do jovem do campo e sua migração para a cidade são: na cidade se tem a oportunidade do trabalho integral durante todo o ano, com folga ao menos um dia na semana; os jovens passam a não frequentar festas e passam o final de semana em casa por morarem no interior:

“Ah, não sei. Já pensei, e o que eu mais queria era morar na cidade, ter uma

vida mais fácil porque às vezes a gente fica muito desconectado do mundo./ Queria fazer faculdade de gastronomia./ Acho que deve ser difícil morar longe.” (Jessica) aqueles

Contrapondo que

os

desejam

jovens

que

permanecer

verbalizaram no

campo,

querer seja

sair

do

seguindo

campo, e

temos

auxiliando

Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


43 os

pais

e

a

família

ou

montando

sua

própria

fonte

de

renda

no

interior:

“Eu quero fazer faculdade de agronomia. / Daí eu pretendo cuidar das lavouras dos

meus avós da parte paterna, e do meu pai também quando ele não tiver mais condições, ajudar a administrar tudo. / Pretendo continuar no campo, fazer faculdade, sei lá, eu pensei em ter uma loja, alguma coisa na cidade pra ajudar no sustento a mais né, pra poder pagar as coisas pros filhos e tal. / Mas continuar no interior, com certeza, eu gosto” (Daniele).

Capta-se na fala da jovem que ela vê, além dos resultados positivos que é estar ao lado dos

pais, o rentável que pode ser morar no interior, a partir do que foi iniciado pelos pais e avós, a partir de sua infância e sua rotina, que se desenvolveu diferente das demais entrevistadas que desejam sair do campo. Assim se conclui que ela aponta possibilidades de viver bem no campo. Então, os jovens acabam ficando no meio rural para dar sequência a estas atividades. Porém, encontram-se claros os desejos da maioria: é sair do campo pois a cidade, como dizem os jovens “é mais interessante”, “tem mais oportunidades”, e tendo mais possibilidades consequentemente se terá mais emprego e mais chances de estudo, acarretando no crescimento pessoal e profissional.

Autores como Panno e Machado (2014), apontam para os laços históricos e étnicos que

caracterizam-se como fator motivacional e de identificação, importante para a permanência, neste caso, do jovem no campo. A identificação com o local origina vínculos sociais e estes se tornam presente nas famílias agricultoras como forma de garantir sua existência social.

Baseado no sociodrama e nos jogos psicodramáticos, o grupo aconteceu em dois momentos

distintos. A participação dos jovens foi em menor quantidade pois, no primeiro encontro do grupo três jovens participaram e no segundo, duas jovens. Entendeu-se que a Teoria dos Papeis, proposta por Jacob Levy Moreno se faz condizente com o momento vivenciado pelos adolescentes entrevistados nesta pesquisa, pois, a Teoria dos Papeis, como Moreno (1984) define, é o papel definidor das formas reais e tangíveis que o sujeito adota no decorrer de sua vida. Por este viés o grupo seguiu e se desenvolveu. Em relação aos Jogos Psicodramáticos, cabe definir novamente o objetivo do Jogo que, segundo Motta (1995), é envolver emocionalmente o participante, possibilitando que externe as criações de seu mundo interno. Permite uma transformação, desperta a espontaneidade nos jogadores, que faz com que se entre em contato com seu próprio potencial.

Os encontros aconteceram nas dependências do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e os temas e

jogos foram definidos partindo das categorias analisadas anteriormente. Levou-se em conta o roteiro das etapas do processo grupal, sendo estas o aquecimento, a dramatização/jogos e o compartilhar (Cukier, 2002).

Realizou-se o jogo do tapete mágico, onde as consignas foram dirigidas: “Olhos

fechados, relaxados, as coordenadas foram sendo verbalizadas: imaginem um tapete, nas cores e formas que quiserem, esse tapete é mágico, ele voa...subam nele, vocês estão viajando, voando passam por muitos lugares, veem muitas coisas, e começam a aterrissar em algum lugar. Nesse lugar vocês param, descem do tapete, seguem caminhando por algum tempo e encontram um sábio, podem fazer uma pergunta, perguntem ao sábio o que vocês quiserem. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


44 Agora, que

troquem

vocês

tapete,

de

fizeram

subam

no

lugar, a

sejam

ele.

o

sábio,

Retornem

tapete…Regressem

ao para

sendo

o

papel o

sábio, de

lugar

respondam

vocês, de

a

pergunta

jovens...voltem

onde

vocês

ao

saíram”:

Clara: “Perguntei como eu faço para ser feliz. E enquanto sábio, respondi que preciso

viver um dia de cada vez, sem pressa, aproveitando cada minuto do meu dia e da minha vida.”

Ana Maria: “Perguntei por que algumas coisas não dão certo na vida da gente. O sábio respondeu

que nem tudo é como a gente quer, mas que com paciência e tranquilidade as coisas se resolvem.”

Moreno atribui a inspiração da criação da teoria dos papeis ao teatro, pois iniciou o

desenvolvimento do Psicodrama nos teatros de Viena, revolucionando o conceito do teatro, representando uma fusão ator-autor juntamente ao expectador no momento da criação e representação do drama vivenciado pelo participante. Para o autor, papel não se define sociologicamente ou psiquiatricamente, mas sim pelas interações que o sujeito vai tendo e realizando durante a vida. Assim, referente aos papeis, fica claramente exposto os anseios em relação às questões da adolescência, pois a partir dos papeis desempenhados na vida e neste caso, nesta fase, é que vão se construindo as identidades onde o eu de cada sujeito surge das relações e dos papeis que o indivíduo se coloca e atua (Rubini, 2012; citado em Baptista, 2012).

No momento após, fizemos o jogo sobre a linha da vida, que consistia em traçar uma linha

na sala (feita com fita), e nesta linha constavam três momentos: daqui 5 anos, daqui 10 anos e daqui 60 anos. Solicitou-se que cada uma escrevesse sobre si nesses três momentos, em separado, e que colocasse junto à linha:

Amanda: “Eu achei que foi um momento maravilhoso, eu ter que falar sobre mim. Também,

falar sobre mim no futuro, eu espero ser muito bem sucedida, tenho muitas vontades, como ir embora dependendo da minha faculdade, ter muitas terras pra plantar e trabalhar junto com meus pais, é claro!”

Ana Maria: “Foi muito bom ter esses pensamentos hoje, acho que daqui a pouco já tá na

hora da gente decidir muita coisa na vida e o que vai fazer. E isso é legal, quero guardar esse papel que eu escrevi pra poder olhar mais pra frente, porque a gente não se dá por conta do que acontece, do que a gente realmente quer. Isso faz pensar no agora também mas principalmente no futuro.”

O termo papel provém de uma linguagem teatral “Em relação ao teatro, todo papel

necessita de um ator e todo ator tem um papel a desempenhar. O teatro pode sobreviver sem um texto escrito, prescindir da cenografia (representação ao ar livre), e até dispensar a palavra (mímica). Pode existir (como durante séculos) sem o diretor. Mas o teatro jamais viverá sem o ator” (Rubini, 1995, p.09). A proposta foi colocar essas adolescentes como atoras e autoras de sua própria história, ressignificando seus papeis e entendendo como estão desempenhando os mesmos.

No segundo momento conversou-se sobre os papeis que desempenhamos diariamente

em nossa vida, em casa, na escola, e em todo o nosso meio. Foi solicitado que elas pensassem nestes papeis, e os escrevessem em uma folha, citando o mais difícil e o mais fácil: Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


45 Clara disse: “olha, meu papel mais difícil hoje é na escola, enquanto colega, pois não sou amiga, sou apenas colega de alguns, e isso faz eu me sentir mal pois eles “zoam” muito a gente, separaram as turmas e eu fiquei em uma sem amigos, somente com colegas (se emociona), então pra mim esse é o papel mais difícil de desempenhar. O mais fácil acho que é o de filha, porque meu relacionamento com a minha mãe e meu pai é muito bom.”

O papel se estende às características pessoais e subjetivas do sujeito, estas constituem

o mundo interno e revelam a sua personalidade (Rubini, 2012, citado em Baptista, 2012), relacionando este ponto com sua vivência no interior, entende-se a relação de confiabilidade e importância que tem os pais e os amigos na vida desta adolescente, que se coloca em sofrimento por não conseguir desempenhar da forma que gostaria o papel de colega. A teoria psicodramática nos aponta o conceito de papel social que, assim como no teatro há um texto ou script que determina o desempenho do ator em seu papel, na vida os papeis sociais determinam comportamentos e atitudes do sujeito perante e dentro dos grupos socioculturais aos quais pertence.

Chegado o momento do compartilhar, as falas se sucederam sobre o quão importante

foi falar de sua juventude e o quanto ficaram felizes em poder ter momentos como esse:

Clara: “eu me sinto muito bem, esse foi o melhor porque eu pude falar coisas que

não tinha falado antes, sobre a juventude...é difícil explicar, mas estou vivendo até que bem.”

Amanda: “eu to aproveitando! Procuro sempre ir atrás das coisas que eu

gosto e me dedicar também, porque sei que meu futuro vai depender disso e depende só de mim também, se eu não me esforçar, ninguém vai se esforçar por mim.”

Amanda: “é uma pena que os outros não tenham participado, devemos ter momentos como

esse sabe, além da gente se conhecer melhor, a gente se encontra com pessoas que as vezes passam a mesma coisa que nós, que vivem no mesmo lugar, no interior né, e que poderiam falar mais sobre isso.”

Nietszche, em sua obra “Ecce Homo” (1908) incitava que: “Torna-te quem tu

és”. Eis o preceito deste trabalho, poder tornar estes adolescentes quem eles realmente são, perpassando pelos papeis da vida, pelos desafios e até mesmo pelas suas escolhas.

O papel social que estes jovens vivenciam no momento é o rural, este é o papel que conhecem

e que lhes dá segurança. A transição que ocorre, nesta fase da vida, para a tomada de outros papeis exige destes jovens um certo treino, um preparo maior nesse processo de socialização e encontro de novos papeis. Apesar dos poucos encontros, pode se ter uma grande noção do quão importante é atentar para o meio rural e, principalmente, para quem nasce, vive sua infância, e está vivendo o processo do adolescer, em um meio onde as políticas públicas precisam direcionar seu olhar assim como nós, profissionais da saúde, para que possamos auxiliar e entender um pouco da sua realidade. Considerações Finais

A palavra que pode resumidamente falar deste trabalho é desafio. Não somente um desafio

acadêmico, pesquisando sobre um tema que possui pouca produção dentro da Psicologia e também Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


46 a teorização em outras áreas, como a Agronomia, para obter maior conhecimento sobre o assunto.

Importante apontar sobre o acesso aos jovens, o quão trabalhoso se tornou o processo da pesquisa,

conseguindo que os pais dedicassem tempo a trazer seus filhos ao Sindicato para participarem da pesquisa.

Juntamente à questão da pesquisa, o desafio de realizar o grupo, mesmo sendo poucos

encontros e não havendo muitos participantes. Apesar das dificuldades, a prática psicodramática nos grupos sociais, nas políticas públicas e especialmente no meio rural, destacado aqui, se compreende como lançadora da proposta socionômica de Moreno, abrindo caminhos, descobrindo papeis e possibilidades de atuação que podem e devem ter suas histórias conhecidas (Schapuiz & Hadler, 2013).

Com o material obtido, pode se ter uma boa noção das condições em que os jovens passam sua

adolescência no campo e como não somente a terra, mas a família e o contexto exercem influências no seu cotidiano e fazem com que desempenhem vários papeis. Este tema é levantador e proporcionador de várias discussões, partindo dele podemos realmente entrar em diversas linhas de pesquisa e teorização, iniciando pela adolescência, pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais e também pelo meio rural.

O meio rural sempre se fez presente na vida pessoal das presentes autoras, levando

ao embarque profundo neste tema, a questionar o porquê destes jovens estarem saindo cada vez mais do campo e/ou não tendo acessibilidade e visão sobre eles. Desenvolvendo a pesquisa conseguiu-se perceber e aprender sobre suas realidades, não somente pela rotina pela qual vivem, que por vezes é cansativa e desgastante. Tendo que trabalhar e estudar, trabalho este que não é leve, é braçal, com maquinários, alguns também participando ativamente das decisões da família, fazendo-se pensar sobre o peso e a responsabilidade que carregam consigo.

Jovem rural, jovem agricultor, jovem este que possui inúmeros desafios, sejam de locomoção,

de preconceitos ou mesmo de dificuldade de comunicação na localidade onde moram. Merecem uma preocupação, um cuidado, realmente o que foi realizado nesta pesquisa, um direcionamento de olhares para que possa-se entender sobre quais condições nossos jovens rurais estão crescendo e fazendo escolhas, sejam estas de saída ou de permanência na propriedade. Entende-se, desta forma, que esta pesquisa se caracterizou somente enquanto início, pois a psicologia deve sim ser direcionada à questões sociais, àqueles que são esquecidos, ao rural que parece-nos ser tão distante, mas está tão próximo a nós.

Neste ponto pode-se entender claramente a motivação pelo tema apresentado, buscando

visar este meio rural que vêm se tornando tão esquecido e rotulado. Entender os motivos que fazem alguns jovens ficar no campo e também daqueles que afirmaram não querer ficar por vontade de buscar melhores condições e para facilitar o estudo. Poder pensar em possibilidades de estudos maiores sobre o tema central, bem como o incentivo aos jovens que residem no meio rural, atribuição de importância e facilidade para que o campo não se esvazie ou que, os que ficarem, também tenham oportunidades e facilidades para prosseguirem esta atividade tão importante, mas que infelizmente não acaba tendo a merecida consideração.

Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


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em

Sociodrama.

Retirado

do:

Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


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49 ARTIGO 4 Medidas socioeducativas impostas ao adolescente infrator: considerações sobre o documentário o juízo Socio-educational measures imposes on the adolescent offender: considerations on the documentary the judgment Claci E. Venites Casarotto 16 Regina Basso Zanon 17 Lao Tsé Maria Bertoldo 18 Gerson Pereira 19 Resumo:

O estudo tem como objetivo analisar o que leva um adolescente a praticar um ato infracional,

e os aspectos considerados por profissionais de múltiplas especialidades no momento da decisão das medidas socioeducativas. Realizou-se um estudo de caso intrínseco, partindo de um caso verídico apresentado no documentário O juízo. O dados foram analisados qualitativamente, com base na análise de conteúdo, partindo de uma matriz estruturada por dois grandes eixos- temáticos: 1) O que leva o adolescente a praticar um ato infracional e a 2) Decisão das medidas socioeducativas por parte dos profissionais. Constatou-se que essas situações são extremamente delicadas, por envolver a interação de diferentes fatores. Concluiu se que a decisão ocorreu de forma prudente e acertada, sendo que os profissionais tiveram uma visão ampla do contexto cultural, familiar e afetivo do menor. Palavras-chave: adolescente infrator e medidas socioeducativas. Abstract

The study aims to analyze what leads an adolescent to commit an infraction, and

the aspects considered by professionals of multiple specialties at the moment of the decision of socioeducative measures. An intrinsic case study was made, starting from a true case presented in the documentary The Judgment. The data were analyzed qualitatively, based on the analysis of content, starting from a matrix structured by two major axes: 1) What leads adolescents to commit an infraction and 2) Decision of socio-educational measures by professionals. Psicóloga/Sociedade Educacional Três de Maio/RS; Email: claci.venites@gmail.com; e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Transtornos do Desenvolvimento (NIEPED/UFRGS). Atualmente é professora e coordenadora Curso de Psicologia SETREM e do Núcleo de Atenção a pessoa com TEA (NAP-TEA/SERCEPS/SETREM) 18 Psicóloga/Sociedade Educacional Três de Maio/RS; http://lattes.cnpq.br/8584756241819170 Email: latsebertoldo@yahoo.com.br 19 Psicólogo; Email:gersonspa@yahoo.com.br 16

17 Mestre

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50 It was found that these situations are extremely delicate, since they involve the interaction of different factors. It was concluded that the decision occurred in a prudent and correct manner, and the professionals had a broad view of the cultural, family and affective context of the minor. Introdução Adolescente infrator

A infração na adolescência é uma temática que mobiliza vários segmentos da sociedade

brasileira. O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA, 1990) contém, entre outros aspectos, as medidas socioeducativas e penalidades que podem ser importas a adolescentes que cometem infrações. A transformação na mudança da estrutura do adolescente, divulgada pela mídia, demonstra a alarmante realidade social. Com tanta repercussão, surge o questionamento de como este adolescente praticou tal ato, e as consequências deste, e qual medida é imposta pela equipe de profissionais que compõe a justiça, para impor a medida mais adequada.

O declínio para a marginalidade deriva de vários fatores que interatuam e interferem

gradativamente no adolescente e compõe a sua subjetividade, através do seu contexto familiar, social, cultural, etc. Assim, pode-se considerar que a marginalidade depende da formação de sua estrutura como sujeito, que é único. Entretanto, ao praticar o ato infracional, o adolescente sofrerá as consequências de seus atos. Para melhor compreender esse adolescente é explanado sobre o que ocorre com o adolescente antes de este deslizar para a marginalidade. Reflexões sobre o adolescente de acordo com a perspectiva psicanalítica

Segundo Nasio (2011), é uma fase delicada, obrigatória, com a perspectiva de alcançar a

maturidade. O autor destaca que os jovens atuais podem ser considerados como seres conturbados, que correm à frente da vida e freiam de repente, abatidos, desesperados, para deslanchar para além de seus planos, arrebatados pela explosão da ação. Para eles, os comportamentos e emoções são, geralmente, marcados por contrastes e contradições. Por conta do adolescente muitas vezes não conseguir traduzir para si seus sentimentos, torna-se difícil para ele pôr em palavras o que sente, assim agem mais do que fala. Não sabe identificar seus sentimentos, nem descrever seu sofrimento sentido. As emoções, assim, surgem de forma que ele próprio não consegue nomear, de forma inconsciente, e podem desencadear comportamentos impulsivos. Esse sofrimento oriundo de questões inconscientes do adolescente é apresentado e, dependendo da sua quantidade e intensidade, pode se apresentar como moderado, intenso ou extremo, comandando o comportamento do adolescente sem que este tenha controle. O sofrimento moderado pode ser identificado como a neurose juvenil saudável, uma vez que a agitação deste período é necessária para que seja consolidada sua personalidade e, para que o adolescente consiga tomar posse de si mesmo, sendo por ele denominada como neurose do crescimento.

A aflição do adolescente vem de um estado inconsciente de sofrimento, quando sentido,

ainda não verbalizado, tornando-o intenso. É algo que não se exterioriza, mas se apresenta Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


51 através de comportamentos, o que coloca alguns adolescentes em riscos, e não pensam no outrem. Na ação não sentem medo, dor, ou culpa. Esta falta de consciência esclarece porque o adolescente desesperado, não pensa em solicitar ajuda, insiste em sua solidão, alimentando seu ódio, prevalecendo o receio em relação aos adultos. Fornecendo outra explicação para a violência, que invade a consciência do jovem, de forma repetida inconscientemente, esse assume riscos, necessitando pôr-se à prova do próprio valor, demonstrando sentimentos que comprovem sua existência, diferenciandose dos adultos e procurando pelo reconhecimento dos outros. Então, Nasio (2011) nos faz refletir a dura realidade dos menores encarcerados, grande parte sem escolaridade e abandonados à própria sorte, dependendo de si mesmos, precisam encontrar no uso de substâncias aditivas uma forma de lidar com as situações difíceis, ingerir bebidas alcoólicas fazendo uso de coquetel de drogas para aniquilar toda e qualquer consciência e assim enfrentar todo o medo do perigo. Frente a essas atitudes, o supereu ou superego faz o papel de assimilável ao de um juiz ao ego (consciência), Freud, vê na moral, na auto-observação, na formação de ideais. As vítimas são, ao mesmo tempo, vítimas e também agressores. São agressores pelas atitudes contra outros, como na prática de vandalismos e são vítimas contra si, quando utilizam de crueldade contra seu próprio corpo, por exemplo, ao colocar piercings na língua, órgãos genitais, de forma que fazem sangrar, formando lesões definitivas na pele. Outro assunto ignorado é a depressão disfarçada, que, ao contrário de como é comumente pensada, não vem acompanhada de abatimento e tristeza. Nasio (2011, p.23) propõe: “Diante de um jovem violento, pergunte-se sempre qual é a decepção que, em vez de torná-lo triste, gerou seu ódio. Em vez de sofrer a dor da perda, ele conservou dentro de si o rancor de uma ofensa”.

Por outro lado, os comportamentos perigosos intensos, incluem o uso exagerado de chats

de caráter erótico, tornando-se completamente dependentes de jogos eletrônicos, por exemplo, os videogames. Desta forma, o adolescente vê-se não somente dependente de um produto, mas sim, de um comportamento que não tem mais controle (Nasio, 2011). Alguns adolescentes começam a apresentar comportamentos depressivos e isolamento; tentativa de suicídio; polidependência; consumo de drogas pesadas; bebedeiras reiteradas; pornografia em excesso; anorexia; bulimia; apatia escolar e absenteísmo; fugas repentinas; vandalismos; violência contra os outros; estupros; esses comportamentos atingem em torno de um milhão de jovens na faixa dos onze aos dezoito anos (Nasio, 2011). Ainda podemos citar os comportamentos extremos, entre os distúrbios que ocorrem em partes dos adolescentes, os transtornos mentais que se apresentam como um sofrimento inconsciente, no qual, a esquizofrenia ou dissociação esquizofrênica, juntamente com delírios e alucinações. Sendo que, em outros momentos, estes também podem apresentar transtorno obsessivo compulsivo (TOC), distúrbios ansiosos e fóbicos, distúrbios alimentares, sendo que em algumas situações em níveis crônicos. Não esquecendo de citar a anorexia e a bulimia que levam alguns adolescentes a ficar deprimidos, chegando ao ato suicida, ou ao desencadeamento para a marginalidade. É importante referir também, uma patologia associada à prática de abusos sexuais, que envolve a pedofilia. Esta é menos frequente, mas não descartada, contendo atos abusivos praticados por adolescentes baby-sitter, Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


52 que ficam com a responsabilidade de cuidador de crianças menores na ausência dos pais (Nasio, 2011).

Ainda segundo Nasio (2011), o adolescente pode oscilar entre três estados:

estado angustiado, triste e revoltado, o que é uma característica do adolescente histérico. Podemos descrever o estado revoltado como o mais presente na histeria juvenil. O estado angustiado impede o adolescente de atuar, desejar, sonhar ou até idealizar seu futuro, demonstrando um sujeito tímido, covarde, com dificuldade de tomar decisões. O segundo estado é um adolescente triste, decepcionado consigo e com a vida, retraído em sua personalidade melancólica. O autor descreve-o como desencorajado e fechado aos outros, dominado por um supereu inflexível. Este pode vir a alimentar ideias suicidas sem passar ao ato, passando por uma autodesvalorização. O adolescente torna-se vítima da depreciação comandada por um supereu tirânico. O terceiro estado apresentado no adolescente é um eu revoltado, que vem depender de seu contexto familiar, sua formação de personalidade e ainda o meio social em que este está inserido. O adolescente com “neurose de crescimento” vai sentir a oscilação da angústia, da tristeza e da revolta (Nasio, 2011). Adolescente infrator

O tema “adolescente infrator” nos faz pensar naquele adolescente que passa dos limites,

infringindo a lei e é punido socialmente e interiormente. O ECA alavancou a norma que estabeleceu a proteção da criança e do adolescente, que vivia em situação irregular, proporcionando força a esses como sujeito de direito, defendendo a fase que mais necessita de proteção, que é a do desenvolvimento (infância-adolescência). Essa lei proporcionou a desintegração da situação irregular, para a proteção integral, pela qual, toda criança ou adolescente é considerado sujeito com sentimentos. Tanto que permeia o direito de ser visto como pessoa, e por se encontrar em fase de desenvolvimento necessita, portanto, da proteção do Estado (Borges, 2015). Com o surgimento do ECA, em 1990, foi repensado a circunstância do adolescente que praticou algum ato infracional. Segundo a legislação descritas na constituição, apresenta aos vários profissionais do saber científico como direito, psicologia, entre outros, o direito de olhar suas próprias verdades no que acarreta para a sociedade esse adolescente infrator. Conforme o ECA, é necessário analisar que medida educativa e cultural será adequada e disponível para a reinserção do adolescente infrator. Para então, pensar nesta medida como forma de segurança, para o momento que foca os objetivos e potenciais possa se pensar a reestruturação e construção do adolescente infrator, para que tenha possibilidade de reinseri-lo no social, oportunizando-o a uma vida mais digna, com a perspectiva de retirá-lo do estereótipo de sujeito anormal, voltando a enxergá-lo como ser humano, e como sujeito. Tanto que Borges (2015) infere que o adolescente que pratica um ato infracional (que é o termo legal utilizado pelo ECA para definir crimes cometidos por menores de dezoito anos) é considerado um marginal perante os olhos dos “cidadãos de bem”, pois são postos à margem da sociedade é vistos como anormal. O sujeito se sujeita a um domínio determinado, imposto por uma lei.

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53 Medidas socioeducativas

As medidas socioeducativas são medidas jurídicas que oportunizam ao adolescente

a retornar à sociedade com responsabilidade, proporcionando oportunidades como forma de integrá-lo na comunidade. Está descrito no art. 118, do ECA, as medidas de liberdade assistida, a qual a autoridade designará um acompanhante pelo prazo mínimo de seis meses, podendo haver modificações. A MSE de semiliberdade, constada no artigo 120 do ECA, possibilita atividades de reestruturação, e a medida não comporta prazo determinado, sendo averiguado a conduta com possível internamento em um local fechado, de acordo com o art. 121, que priva o adolescente da liberdade. Esta medida comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada no máximo a cada seis meses, não ultrapassando o prazo de três anos. A medida de internação acontecerá diante de casos graves e descumprimento das medidas anteriores, ficando evidente que existem normas, regras e leis, apostando em uma possível intervenção sancionatória e pedagógica.

Os artigos 118 e 119 do ECA descrevem a possibilidade de liberdade assistida através da

medida socioeducativa, desde que, está se torne apropriada ao adolescente infrator que praticou delitos com uma abrangência de maior gravidade. Diante desta situação, este adolescente será acompanhado por profissionais qualificados para trabalhar no sentido de fortalecer os vínculos do adolescente com seus familiares e resgatar a convivência na comunidade, criando possibilidades de construir metas em vida, que seja capaz de superar e quebrar o estigma de continuar com a prática de delitos (Borges,2015). Segundo o autor, diante de tais situações, o caso será designado a pessoas capacitadas para continuar com o processo de reinserção, inserindo-os em programas de ajuda, como forma de auxílio, oferecido pela assistência social. Da mesma maneira, eles poderão ser matriculados em escolas regulares, onde serão supervisionados e avaliados segundo seu interesse no âmbito escolar de forma assistida, como forma de oportunizar-lhe uma profissão, para um futuro mercado de trabalho, retornando à avaliação de seus atos através de relatórios, informando a forma de conduta apresentada, para que seja analisada pelas autoridades competentes. Porém, está descrito no artigo 121 do ECA que: "A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita a princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento". E ainda, segundo art. 123, parágrafo único, "Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas". Nos espaços fechados, os adolescentes infratores são supervisionados por profissionais de diversas áreas, que trabalham com os mesmos e são as pessoas que mais estão próximas. Pela convivência estes multiprofissionais agregam a esses adolescentes a única chance de apresentar algum valor, sendo mediadores dos resquícios de valor da sociedade da qual estão afastados.

Segundo Borges (2015), no que se refere às políticas públicas, pode-se dizer que o Estado

é responsável pela implantação de suprir as necessidades que envolvam o ser humano. A educação juntamente com as técnicas do esporte, proporcionadas aos adolescentes, surge como uma maneira de reinserção do sujeito ao seu convívio social. Pensando no sujeito em construção, vítimas em seu ambiente familiares e desrespeitados como cidadão, até chegar à idade adulta, as políticas públicas surgem como Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


54 oportunidade através destes programas como uma chance de chegar à vida adulta de forma mais digna.

Atualmente, percebe-se movimentos das políticas públicas, como uma visão de

responsabilidade única, e com obrigações de modificar o comportamento das crianças e adolescentes. As famílias são participantes dos programas sociais, incluídas no bolsa família, ficando dependente, pertencentes à sociedade. Para que, ocorra mudanças é preciso uma transformação na maneira de pensar, que engloba toda uma cultura social, com perspectivas de modificar essa concepção através de uma educação diferenciada, abrangendo um todo (Borges, 2015).

Ainda de acordo com Borges (2015), as estratégias elaboradas por instituições de

comissões de pais, como “Amigos da Escola” e “Mais Educação”, aproximam as famílias de seus filhos, oportunizando uma convivência de pais e filhos com a escola. Pais e alunos se unem e oferecem sua força de trabalho de forma voluntária, transferem ao adolescente jovem um sentimento de pertencimento ao local em que estão inseridos, onde possa transparecer todos seus sentimentos negativos. É de suma importância, que o adolescente expresse nas práticas esportivas suas pulsões, como forma de manter-se distante da criminalidade.

Nessas condições, o objetivo do estudo é verificar o que leva o adolescente a

praticar um ato infracional, com base na teoria psicanalítica, e a forma como profissionais de

múltiplas

especialidades

trabalham

na

decisão

das

medidas

socioeducativas.

Método Delineamento O presente projeto se caracteriza como uma pesquisa documental de caráter qualitativa e de cunho exploratório, sendo empregado como delineamento o estudo de caso único. O estudo de caso foi realizado com base na análise do documentário “O Juízo”, mais especificamente no caso de um menino que comete o ato de assassinar o pai. De acordo com o livro Pesquisa em Psicologia: Pressupostos teóricos e Metodológicos, segundo Fachinetto (2013), trata-se de um estudo de caso intrínseco, sendo que este tipo de estudo busca melhor compreensão em função do interesse despertado de um caso em particular. O filme “Juízo (O maior exige do menor)”, tem produção dirigida por Diler e Associados/ NOFOCO FILMES. O filme o Juízo, foi desenvolvido com base em histórias verídicas, sendo que os personagens desempenharam seus papeis sociais reais, com exceção dos adolescentes que foram substituídos por outros a fim de preservar a identidade dos menores. O filme destaca claramente o que ocorre com adolescentes infratores que convivem com o crime desde que nascem. A agressão está presente diariamente nas crianças por pais desestruturados, que lhes obrigam as tarefas, impõem responsabilidades, e não lhes permitem que sintam medo. As crianças desde muito cedo são jogados para sobreviver, sem ao menos saber a gravidade e o valor do preço a pagar, tornam-se presas fáceis de aliciadores pela sua inimputabilidade, não possuem em casa uma figura de pai que lhes mostre a diferença de amor e autoridade, preferindo viver de ação e reação, pois é na agressividade presente em casa que preferem romper laços familiares. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


55 Esses, por sua vez, irão se estruturar psicologicamente com o desejo de vingança por estar diante desta condição de vida. Nos participantes, o caso investigado é de um adolescente denominado Alexandre, bem como a Juíza responsável pelo processo, dois advogados (defesa e acusação), um promotor da justiça, uma defensora pública da criança e do adolescente, e duas testemunhas (mãe e irmão do infrator). Todos estes participantes estiveram envolvidos no momento da audiência, reportada no documentário do filme analisado. No que se refere aos instrumentos foi inicialmente, o documentário foi transcrito na integra, pela pesquisadora deste estudo, constituindo o corpo de análise. No Filme escolhido, a cena selecionada está na parte central do vídeo (0.48:00 - 1:03,17), e foi transcrita na sua íntegra utilizandose o total de aproximadamente 10 horas não corridas. Para fins de compreensão dos procedimentos técnicos do filme Juízo e contextualização inicial do mesmo, foram utilizados artigos já publicados sobre esse material. Da mesma forma, recorreu-se para a literatura, a fim de compreender a ideia da autora em relação ao filme, e a forma de como foi aplicada a medida socioeducativa ao adolescente infrator, e quanto os profissionais debateram para delinear a medida socioeducativa imposta. Foi elaborada uma matriz com duas grandes categorias, formulada com base nos objetivos do presente estudo e utilizada para análise do material transcrito. A matriz foi composta por duas grandes áreas temáticas/categorias: O que leva o adolescente a praticar um ato infracional? Decisão das medidas socioeducativa por parte dos profissionais. De acordo com as questões éticas, foram atendidas e respeitadas as diretrizes da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e a Resolução 510 de 2016. Destaca-se que, conforme a resolução 510/2016, pesquisas que utilizam informações de acesso público, não precisam ser registradas e nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP, como é o caso do presente estudo. De acordo com análise de dados foi utilizada a Análise de Conteúdo Qualitativa de Bardin (1977), para a avaliação das transcrições referente ao caso escolhido. A análise de conteúdo faz parte da pesquisa científica e é elaborada por pesquisadores de diversas áreas, como forma de inovação, com objetivos de agregar o crescimento e o desenvolvimento de um todo. Resultados Sinopse do documentário: O Filme o juízo

No filme: O documentário, o Juízo, descreve a trajetória de adolescentes menores de 18 anos,

frente ao peso da lei. Meninas e meninos pobres, como demonstra nas cenas presentes no instante da prisão, os quais estão em julgamento por roubo, tráfico, homicídio. Destaca-se fortemente como ocorre a identificação destes jovens infratores, e a forma como é vedada por lei. No filme os menores são representados por adolescentes não-infratores que vivem em condições sociais idênticas. O julgamento dos menores visualizada no filme, corresponde os mesmos corredores sem saída e as mesmas pilhas de processos, da vida real. As cenas apresentadas no final do filme: O juízo, tornarse visível, as consequências demonstradas pela sociedade, mas que recomenda "o juízo" a seus filhos, mas não o pratica. No processo da elaboração e vivencias da autora, a mesma relata o quanto marcante foi, alavancar o filme, deixa evidente em uma de suas falas. Como demonstrada a seguir: Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


56

Maria Augusta Ramos, relata: "Há imagens que não esquecemos, que ficam conosco para sempre. A primeira vez que assisti às audiências na 2º Vara da Infância e da Juventude, os rostos dos menores ficaram na minha mente durante dias. Quando decidi fazer JUÍZO, me vi diante de um desafio: como fazer o filme sem mostrar seus rostos? A solução foi substituir os menores em questão por jovens que vivem em circunstâncias similares de risco social, e que poderiam eles mesmos estar naquela situação. Estes jovens compartilham o mesmo conflito e agonia dos menores que eles estão representando. A veracidade do filme resulta disso. Eles não atuam, eles são eles mesmos. Suas personalidades são fundamentais no filme."

A seguir serão apresentados os resultados do presente estudo de acordo com a matriz de

categorias elaborada para análise dos dados. Para tanto, optou-se por trazer recortes de falas dos personagens do filme para exemplificar os conteúdos existentes e analisados (i.e. vinhetas). Categoria 1: O que leva o adolescente a praticar um ato infracional Subcategoria 1.1 História familiar pregressa

A análise do material transcrito mostrou experiências prévias negativas entre o adolescente

e o seu pai, como é o caso de relatos indicando o comportamento agressivo constante do pai e o abuso de álcool. Tais aspectos são apontados como motivos da história pregressa, que contribuíram para o desencadeamento da infração. Por exemplo, tem-se os seguintes recortes de falas do adolescente, que ilustram essa categoria de análise: “Por que ele me batia muito em mim e na minha mãe” (sic) (O pai o agredia e agredia a mãe); “Ele tava doidão, chegava do serviço doidão e me batia” (sic) (O pai se apresentava diariamente agressivo);“Cerveja e de cachaça” (sic) (Resposta do menino, indicando que o pai chegava alcoolizado).; Por que eu tinha chegado atrasado no colégio e ele disse que era pra chegar na hora certa, na hora que ele mandava”. (sic) (O pai havia batido no adolescente antes deste ir dormir); Todos os dias. (Sic) (O adolescente responde a pergunta do promotor, quando este pede à juíza, quantas vezes o pai lhe batia). Subcategoria 1.2 Considerações de familiares

Ao analisar a fala de familiares que ocupavam o mesmo espaço do adolescente que praticou

o ato infracional, pode-se alavancar dados que evidenciam situações inadequadas ao adolescente, ou melhor, o não posicionamento familiar diante dos fatos que vinham ocorrendo neste contexto. Notouse que a mãe e o irmão demonstraram-se distantes, apesar de presenciarem situações de agressão que o adolescente vinha sofrendo ao longo dos anos. Conforme as falas, eles sabiam e percebiam os fatos, mas preferiram não se posicionar, deixando o caso chegar ao extremo que chegou. É possível observar nos relatos a seguir: “Bibia, ele trabalhava numa lojinha de eletrônica, até dele, o ponto era alugado.” Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


57 (sic) (A mãe relatando sobre o pai do adolescente); “Batia, batia muito nele ... de cinto ... acabava com o sinto todinho de quebrar a fivela do cinto”. (sic) testemunho da mãe); “Já.” (sic) (Quando a juíza pergunta se a vítima havia batido no adolescente até ele desmaiar); “Não... eu não sinto, eu não me conformo com a situação que ele me deixou, que eu acho que não merecia passar por tudo isso.” (sic) (A mãe desabafa); “Não, eu não me conformo porque acho que foi ele que causou tudo isso. Porque ele não deu amor.” (sic) (A resposta da mãe após a pergunta da juíza, se ela se arrepende do filho ter matado o pai); “Não! Ele só batia na minha cabeça e no ouvido, dava soco assim, no pé do ouvido.” (sic) (Foi perguntado porque ela não denunciou na delegacia da mulher); “Amo, ele é meu filho”. (A Juíza pergunta se a mãe ainda ama o filho) (sic); “Creio eu, porque, que ele me disse que ele batia nele”. (sic) (O irmão responde a pergunta do promotor: Você sabe por que ele fez isso? Por que ele fez?); “Acho que ele batia atoa, ele falava pra mim, que batia nele atoa.” (sic) (Fala do irmão). Categoria 2: Decisão das medidas socioeducativas por parte dos profissionais Subcategoria: 2.1 Considerações da juíza

A decisão judicial tomada juntamente com a equipe de multiprofissionais demonstra

como e quanto é delicada a situação apresentada e discutida pela equipe. São várias as formas de pensamentos e opiniões, por vezes contradições, demostradas pelos profissionais de diferentes especialidades, conforme apresentado no decorrer desse estudo, com os relatos de cada profissional presente no momento da audiência. Desde o início, a juíza deixou claro ao menor (e para todos) o quanto o acontecimento marcará a sua vida para sempre, independente das medidas. O fato em si terá consequências diante do social, atingindo e afetando com repercussão a sua vida particular, marcado com uma cicatriz o qual o social não deixará esquecer. O lado humano e justo, mesmo diante de uma real situação agravante, foi de total compreensão por parte da juíza que estava frente ao caso. A juíza frisa ao adolescente o quanto isso ficará marcado em sua vida, se esse deveria ou não ter feito o que fez, pois ficará para sua consciência, por se tratar de um homicídio que é pior do que seu pai, e declara não saber o que ocorria dentro de sua casa, mas que indiferente da medida aplicada, e o alivio de não ter alguém lhe batendo, o que ocorreu não tem como apagar.

Os profissionais presentes escutam e interagem atentamente a cada detalhe presente

na audiência, falando com sinais corporais em certos momentos de forma negativa e positiva. No qual o doutor promotor não concorda com a medida tomada, por se tratar de fundamentos jurídicos de forma prematura, não podendo se apegar somente nestes, ocorrendo uma troca de ideias dos profissionais envolvidos. Sendo decidido pela liberdade assistida provisória, no qual o adolescente sai do Padre Severino (instituição) mas, com ordem de não frequentar bailes funk, fliperamas; locais não adequados, por ter pessoas, as quais esse não deve se enturmar. Subcategoria 2.2 Considerações da promotoria (acusação e defesa)

A Promotoria em real situação apresentada, diante de evidências e relatos, com o objetivo Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


58 de compreender e delimitar a medida a ser concedida, apresentou argumentos indicando a liberdade provisória ao adolescente e a inserção ao tratamento psicológico, como fonte de reabilitação ao menor, diante de tais agressões sofridas ao longo de sua infância. A promotoria que interrogou o caso vem em defesa ao menor como forma de recolocá-lo na sociedade, como um sujeito de direito e não como infrator, primando pela liberdade assistida, para fins de não direcioná-lo a seguir na marginalidade, por um ato de impulsividade que o levou a cometer um ato irreversível. Um dos promotores presentes, relata que, qualquer pessoa que estivesse em uma situação semelhante seria suscetível a tal ato, sem ser censurado, no qual apela pela liberdade provisória ao adolescente e a inserção ao transtorno psicológico.

A promotoria, juntamente com a equipe chega a um consenso sobre a medida debatida.

Para tanto, pesou-se o fato do adolescente viver em um contexto marcado por conflitos emocionais. Visando a oportunidade de reinserção, para que o mesmo pague e tome consciência do que fez, foi concebido ao adolescente ir para o CRIAN, (CRIAN- foi pesquisado sobre a sigla CRIAN, no qual não se encontrou discrição, fazendo-nos pensar que seja Centro de Referência a Infância e Adolescência), local onde o adolescente terá atendimento psicológico uma vez por semana, sendo que nos finais de semana vai pra casa. O adolescente pareceu estar mortificado diante do judiciário, perdido em seu eu interior, não percebia-se em si a gravidade do fato, o qual, a equipe percebe, e chega numa concepção sobre a medida imposta. A medida é aceita pela equipe, por ser a melhor a ser tomada no momento. A juíza preocupada com os dias vagos do adolescente em casa, delibera a entrada do adolescente no CRIAN, para que o adolescente comece com a reestruturação psicológica, necessária para sua formação como sujeito único, e perceba o quanto de grave foi o ato cometido. Sendo que o mesmo, terá que comparecer no local uma vez por semana, para conversar com a psicóloga e nos finais de semana poderá ficar em casa e não sair em bailes funk e lojas de fliperamas. Outro promotor que acompanhou atentamente o caso sugeriu que fosse escutado o relato do irmão, para se ter mais dados, para ter uma assertividade mais precisa da medida imposta, mas fornece sua opinião até ali, optando pela medida da liberdade assistida provisória.

A Promotoria da Infância e da Adolescência alavanca o fato com uma precisão em relação a

ressocialização do adolescente, mostrando aos colegas de equipe, o olhar no adolescente contemporâneo, no que este pode vir a se tornar diante da medida que a equipe delinear, podendo este adolescente tornar-se marginal e vir a praticar atos consecutivos após a internação, por não pertencer ao grupo dos infratores perigosos. Apesar do caso ser delicado, ao ser considerado uma perspectiva futura, e mediante ao oferecimento de intervenções adequadas ao menor, acredita-se que o mesmo poderá ser ressocializado e não mais gerar riscos de segurança à sociedade, tampouco cometer ato infracional. A defensora expõe o que pensa, deixando claro aos colegas se tratar de uma ressocialização, oferecer suporte, descrevendo um futuro agravamento de conduta em caso de internação, pois o mesmo não é um menino voltado ao crime, ficando claro ser um problema inteiramente emocional, foi educado assim, com agressões, obtendo somente a resposta negativa. Tendo a compreensão dos multiprofissionais presentes.

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59 Subcategoria 2.4 Ministério Público: Advogado de acusação

O ministério público, com a visão do direito, misturada com questões da área da psicanálise

(linha teórica da psicologia) traz a gravidade do caso apresentado, deixando influenciar pela teoria e análise de uma figura superior que é o pai, o qual, demonstra evidências nas falas, a falha da função paterna, que jamais se sentiu pai do adolescente, agredindo-o em situações banais que este cometia, ficando claro, por não agir do mesmo modo com o filho mais velho, para o qual tinha um certo respeito, ao impor regras somente quando necessário. A advogada de acusação apropriada dos conhecimentos da psicanálise, relata o devido simbolismo do poder da figura paterna, sendo assim requereu a internação do menor infrator, devido ao poder que a figura paterna representa. Subcategoria 2.5 Desfecho – medida socioeducativa escolhida

Após escuta e levantamento de dados por parte uma equipe multiprofissional, decidiu-se a

medida. E mesmo com pontos de vista diferentes, notou-se respeito por todas as partes (especialidades) na decisão. Então o promotor informa a mãe que o adolescente não vai pra casa, e sim vai ficar no CRIAN, e que nos finais de semana vai para casa; diz ser um caso difícil de se obter o resultado, sendo que levou horas para se chegar ao um desfecho adequado. Comentam entre si que tiveram a impressão que o menor não se deu conta da gravidade do caso, e que não tem consciência da repercussão do fato.

Os multiprofissionais presentes após a audiência trocam informações referente a

decisão da medida imposta ao menor, por estar engolfados de informações de um caso grave, no qual aparentemente somente a equipe ali presente tinha noção do fato ocorrido e do tamanho da gravidade que o mesmo representava. Percebendo a mortificação presente no menor, sendo que o mesmo não tinha noção até aquele momento de como seria sua vida a partir das normas impostas a ele socialmente e interiormente. Os profissionais dialogam entre si com opiniões divergentes, mas com um posicionamento de respeito entre si, demonstrando ética. Discussão

No documentário, a juíza exerce seu oficio com profissionalismo, investiga cada qual

com sua subjetividade. Colocando-os a frente de suas atitudes, mostrando de fato o quanto grave é, e as consequências e responsabilidades de seus atos, como forma de reestruturação. Neste caso apresentado diante do júri, o adolescente matou o pai a facadas, em um ato de impulsividade, pelas agressões acumuladas ao logo dos anos. Mantinha-se arredio ao pai, por saber que este lhe agredia mesmo por pequenas situações. O pai era um homem que bebia e ficava agressivo; ao sair do trabalho, chegava em casa alcoolizado, agredia a mãe e o menino, desde sua tenra idade. O menor não lembra do pai lhe proporcionando um gesto de amor. Cresceu internalizando somente raiva, rancor e ódio

O adolescente, tomado pelas pulsões, com sentimentos conflitantes a respeito de si, de

forma incontrolável, comete um ato de tremenda gravidade contra seu próprio genitor, por uma carga pulsional que saiu do seu controle. De acordo com Laplanche (2001), compreende-se por. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


60 pulsão ou carga pulsional: Método dinâmico que incide numa força interna (carga energética, fator de motricidade) que conduz o organismo, desviar-se para um objetivo. Parafraseando Freud, “uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); seu objetivo é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir a meta” Pode-se analisar a raiva enraizada no adolescente, desde a mais tenra idade, não sendo oportunizada uma infância com condições propícias ao desenvolvimento saudável. Isso pela falta de estruturação psicológica, por parte do pai e por negligência da mãe, que se submeteu às agressões passivamente, sem forças de reação. O poder machista falou mais forte sobre a mulher, fazendo-a vítima e vitimizando o filho. Com isso, pensa-se que o adolescente não conseguiu estrutura para fortalecer seu supereu, ocorrendo uma falha, elevando sua força para determinado ato, não tomando consciência imediata da gravidade do delito cometido. Laplanche (2001), descreve a função do superego ou supereu, afirmando que é o papel de analisar e ter o poder de assimilar a ordem de um juiz ao ego (consciência). Freud acredita na moral como uma auto-observação na concepção de ideais. “As funções do superego: definindo-o como o herdeiro do complexo de édipo, constitui-se por interiorização das exigências e das interdições parentais”. A formação do superego é o declínio do complexo de édipo, no qual a criança renuncia aos seus desejos. As exigências sociais, familiares e o contexto em que estão inseridos, fazem com que os adolescentes imponham criticamente regras a si mesmos, comandados por uma voz interior, que é o supereu. O supereu acompanha o sujeito, surgindo como juízo crítico socialmente derivado. Uma autocrítica que vem de forma negativa e explica o porquê do adolescente imaturo ter dificuldade de conciliar as injustiças exigidas com ações pulsionais, com as exigências do supereu. (Nasio, 2011).

Observa-se que o adolescente em questão nesse estudo vivenciou situações difíceis

na infância, nunca observou nada de bom, revoltando-se com a vida e com a família, na qual estava inserido. Sentia-se diferente do irmão, pois era tratado de forma diferente, vivia em completa oscilação, entre angústia, tristeza e revolta, o que o deixava confuso, brigando com seu próprio eu interior. Uma parte dizia para “escutar e aceitar”, enquanto a outra para “se rebelar”. Percebia-se fraco diante do pai, e não era visto pelo olhar do outro de forma positiva, como um sujeito de direito, não se encontrava em lugar algum e não possuía identidade, sendo que hoje possui uma das mais cruéis: o menino que matou o pai. Entretanto, podemos dizer que o terceiro estado, apresentado no adolescente, é um eu revoltado, que deriva de seu contexto familiar, sua formação de personalidade, e ainda o meio social em que este estava inserido. O adolescente com “neurose de crescimento” sente a oscilação da angústia, da tristeza e da revolta (Nasio, 2011).

A forma trabalhada pela equipe multiprofissional pra determinar a medida mais cabível,

e com possibilidades de ser considerada mais justa e correta, foi avaliada no decorrer, com as medidas socioeducativas presentes na lei do ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), os quais em debates e observações, chegam a um consenso comum em relação à medida, que se direcionou da melhor e mais adequada forma, sendo imposto, a semiliberdade Assim sendo foi deliberado que o menor permanecesse no CRIAN casa aos finais de semana..

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61 Esta medida foi escolhida por ser um caso considerado grave. Foram apresentados e discutidos muitos fatores a fim de se compreender os motivos pelo qual o adolescente, através de um impulso de agressividade, cometeu o bárbaro assassinato de seu próprio pai, lembrando que a medida escolhida seria reavaliada em seis meses. A MSE de semiliberdade, que consta no Art. 120 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), permite atividades para a reestruturação de adolescente fora da lei. Essa medida não comporta prazo determinado, sendo examinada a conduta deste menor, com possível internamento, em local fechado. Faz parte do Art. 121, a privação de liberdade. Esta medida comporta prazo determinado, precisando sua manutenção ser reavaliada no máximo a cada seis meses, não ultrapassando o prazo de três anos.

Entretanto, está descrito no artigo 121 do ECA que: "A internação constitui medida

privativa da liberdade, sujeita a princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento". E ainda, segundo o Art. 123, parágrafo único, "Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas". Nos espaços fechados, os adolescentes infratores são supervisionados constantemente por profissionais de diversas áreas. Esses profissionais que trabalham com esses adolescente são as pessoas que fazem parte de suas vidas, ocorrendo vínculos, por estarem mais próximas. A convivência destes multiprofissionais agrega nos adolescentes a única chance de apresentar algum valor, sendo mediadores dos resquícios de algo vindo da sociedade da qual estão afastados. Considerações Finais

Com base em uma análise profunda da temática contemplada nesse estudo, reconhece-

se o quanto enriquecedor foi o processo investigativo. O trabalho agrega a psicologia, diante de situações vivenciais do sujeito em sua individualidade e na sociedade, alavancando a ideia de trabalhar o ser na sua especificidade, mesmo vivendo em grupo ou no contexto familiar, o sujeito dono do seu próprio desejo, escrevendo seu próprio destino. Com base na observação da forma de trabalho da equipe envolvida no caso estudado, como está se posiciona diante da situação do ato infracional cometido por um adolescente, notou-se total profissionalismo e respeito à opinião do colega. Para delimitar a medida ao menor, percebe-se a dimensão de responsabilidade e ética de todos os profissionais, respeitando os pensamentos dos colegas. Desta forma, entende-se que a medida socioeducativa foi mais adequada para o desfecho do caso relatado.

Ao dar procedimento à pesquisa e aprofundamento este documentário em específico, foi

de profunda importância para a psicologia, pois o mesmo demonstra o quanto é delicado, o que há por trás de uma infração e, do mesmo modo, o quanto de responsabilidade existe em uma decisão. Neste caso, conclui-se que foi mais prudente e acertada decisão tomada pela equipe, pois os profissionais tiveram uma visão ampla do contexto cultural, familiar e afetivo do menor. Ao escutar e visualizar o documentário, percebeu-se a importância que agregaria se fosse feito uma análise de todos os casos apresentados, ficando como recomendação para estudos Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


62 futuros. Ainda cabe registrar que a escolha do filme e, em especial, do caso do adolescente que mata o pai, foi adequada para responder aos objetivos inicialmente propostos. A visão dos diretores do filme foi de profundo estudo das situações reais, conseguindo passar ao expectador uma realidade doída e sofrida tanto do lado do infrator, como dos profissionais que estão envolvidos. Assim, através desta pesquisa, evidenciou-se a importância de alavancar investigações em estudos futuros sobre a mesma temática, mas envolvendo contextos e metodologias diferenciadas, a fim de se aprofundar situações reais. Por exemplo, pensa-se que seria interessante estudos futuros envolvendo entrevistas com menores e profissionais, para discussão mais ampla das questões inerentes à situação. Referências Bardin, L. (1977). A análise do conteúdo. São Paulo: Martins Fontes. Borges, É. A. L. (2015). Adolescente infrator e políticas públicas ressocialização. Revista Âmbito Jurídico. Retirado do: http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_ leitura&artigo_id=13694&revista_caderno=12. Acesso em julho 2015. Borges, J. L. , Winter, L. E. , Souza, C.D. , Barasuol, E. B. , Fachinetto, L. , Patzold. J. C. , et. al. (2013). Pesquisa em psicologia: Pressupostos teóricos e metodológicos (p. 35-36). Sociedade Educacional Três de Maio – SETREM. Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990, disponível em http://www4.planalto.gov.br/legislacao. Nasio, J. D. (2011). Como agir com um adolescente difícil?: um livro para pais e profissionais. Rio de Janeiro: Zahar.

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63 ARTIGO 5 Toxicomanias Addictions Gisele Pinheiro Voos 20 Lao Tsé Bertoldo 21 Resumo:

O presente artigo conta com uma revisão bibliográfica e um estudo de caso, de um toxicômano e

sua relação exclusiva com a substância psicoativa, o álcool neste caso. Verificou-se as possíveis relações da dependência com os fatores intrapsíquicos e de contextos sociais que interferem na possibilidade do sujeito tornar-se um toxicômano. A substância psicoativa atualmente está cada vez mais em alcance da sociedade onde merece a atenção para os prejuízos que a mesma pode causar na vida de quem faz o uso. O estudo de caso traduz as consequências abusivas do alcool, como também fatores que contribuíram para chegar a dependência. Através da revisão bibliográfica observou-se que existem níveis diferentes de relação com a substância, como também o processo de recaída que faz parte do processo de mudança da relação com a droga. Comtempla ainda as alternativas existentes que contribuem para o tratamento do toxicômano que traz as redes de apoio como alternativas de recuperação do sujeito. Palavras-chave: Toxicômano, substância psicoativa, contexto social, tratamento. Abstract

This article includes a literature review and a case study, a drug addict and his unique relationship

with psychoactive substance, alcohol in this case. It is possible dependence on relationships with intrapsychic factors and social contexts that affect the ability of the subject become a drug addict. A psychoactive substance is currently increasingly reach the society in which deserves attention to the damage that it can cause in the lives of those who make use. The case study reflects the consequences of alcohol abuse, as well as factors that contributed to reach dependency. Through literature review revealed that there are different levels in relation to the substance, as well as the process of relapse part of the process of changing ratio with the drug. Further contemplates the alternatives which contribute to the treatment of drug addict who brings the support networks such as the subject's recovery alternatives. Key Word: junkie, psychoactive substance, social, treatment.

20

Psicóloga/Sociedade Educacional Três de Maio/RS ; http://lattes.cnpq.br/1195016664790229; Email: systen_jisy@hotmail.com 21 Psicóloga; Docente Sociedade Educacional Três de Maio/RS; Três de Maio/RS; http://lattes.cnpq.br/8584756241819170; Email: laotsebertoldo@yahoo.com.br Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


64 Introdução

A discussão sobre a questão das drogas tem ocupado boa parte das estratégias das políticas

públicas e do cenário geral sobre saúde e cidadania. Com esta percepção, acredita-se que cada vez mais a sociedade consiga lidar com os desafios ligados a esta questão. Muitos são os questionamentos acerca de que lugar ocupa as substâncias psicoativas para o sujeito em sua dinâmica subjetiva e para a sociedade em geral.

Percebe-se a cada dia mais fenômenos alcançados pelo uso de drogas. A cada avanço do que

a droga pode fazer com a sociedade, médicos, educadores, assistentes sociais e psicólogos, são mais requisitados para tratar desta temática, sendo que desta forma o consumo destas substâncias psicoativas estão sendo consideradas como um problema de saúde mental e de segurança pública (Ribeiro, 2009).

Frente a esta problemática, um elemento a se considerar deve estar no rompimento do

cuidado fragmentado que foca somente na substância e não nas necessidades e as questões de vida do sujeito. A sociedade enfoca a substância psicoativa em si, tomando-a como inimiga, parecendo ignorar as questões do sujeito que dela faz uso (Eslabão et al, 2014).

O abuso e dependência de substâncias psicoativas tornam-se preocupantes, pois conta

com o apoio da lógica capitalista que utiliza-se de avanços científicos e tecnológicos promovendo a industrialização com a distribuição e venda destas substâncias, gerando lucros para quem comercializa. Apesar de ilegal, para Ribeiro (2009), esta prática está totalmente instalada em nosso sistema econômico. Portanto, além do consumo gerar grandes problemas para as pessoas que fazem o abuso ou tem dependência da substância psicoativa, também se torna um comércio atraente pelo acesso fácil aos lucros.

No entanto, a discussão e reflexão em relação ao uso abusivo de drogas acabam envolvendo

importantes perspectivas tornando-se necessário o conhecimento do contexto que envolve esta questão, tanto nos aspectos psicossociais, quanto ao que se refere aos mecanismos fisiológicos da dependência química.

Conforme Orth e Moré (2008) é importante notar que as drogas sempre foram utilizadas

no decorrer da história da humanidade, o que diferencia as formas de uso estão relacionadas ao contexto de cada época, passando do uso ritualístico, que vem desde os tempos primórdios até o consumo contemporâneo, passando por diferentes formas de consumo, manuseio e função. Este percurso do uso de substâncias psicoativas chega até os dias atuais com inúmeros significados sendo o mais comum entre eles a busca pelo prazer e alivio imediato. O Abuso e Dependência de Drogas como um Sintoma Social

Viver na civilização nunca foi tarefa fácil. Segundo Freud (1930), em “O mal-estar na

Civilização” existe um mal estar inerente à vida em sociedade, sendo assim pode o sujeito recorrer aos mais diversos recursos para tentar aliviar este sofrimento. Sendo um deles para Freud, o uso das drogas para aplacar o mal estar da civilização. Segundo o autor, recorrer a esta alternativa pode ser Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


65 considerado uma solução bastante eficaz no que diz respeito de aplacar rapidamente um sofrimento.

Freud na mesma obra ressalta o uso de drogas como sendo uma maneira de suspensão da

existência frente à dor de existir: A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. (...) Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável (Freud, 1930, p. 83).

O mal estar surge porque precisa-se aprender a lidar com a falta para poder conviver em

sociedade, e para próprio bem estar do sujeito. A falta faz com que o sujeito busque maneiras das mais diversas, para tamponar aquilo que está de alguma forma deixando de ficar “desequilibrado”, e para cada desequilíbrio, as drogas atuariam como uma proteção contra a angústia do momento.

Para Freud (1930), a droga por sua função imediata promove a sedação no corpo e causa um

prazer imediato. A intoxicação se apresenta como uma maneira de aguentar o mal estar necessário associado ao ser humano que vive em uma determinada civilização. As drogas sendo capazes de tamponar esta falta, estimulam de certa forma, a tentativa neurótica de remediar o mal estar.

Segundo Melman (2003), na atualidade parece que quando o sujeito se vê em algum

problema emocional, procura aliviar o sofrimento da forma mais rápida possível. Nunca foi tão demandado ao sujeito, que tentasse tamponar sua falta com diversas ofertas dentro da mesma lógica do consumo excessivo que é a principal característica da lógica social atual. O sujeito quer, a qualquer custo, se livrar da ameaça do desamparo, sem considerar que a condição de sujeitos, sempre diz de se haver com a falta. Na relação deste com os objetos, o mal estar só surge quando o objeto cai em desuso, não servindo mais aos propósitos do gozo.

A grande questão em relação ao tamponamento da falta, é que se trata de uma tarefa

impossível, pois segundo Freud (1930), não é possível a satisfação completa. Sempre haverá algo aonde o sujeito vai se deparar com alguma dificuldade, onde ficara angustiado, e imerso novamente no mal estar. Sempre haverá algo dissolúvel naquilo que o sujeito traz como algo opaco, vazio e desconhecido. Colocando em prova, tudo que for da subjetividade do sujeito. O Toxicômano

Em uma sociedade, onde o consumo exacerbado acaba gerando problemas gigantescos,

e a droga ingressando como solução para muitos problemas, a toxicomania representa um lugar de fragilidade de vulnerabilidade, tornando-se assim um novo sintoma. A droga vem como uma nova forma de responder a esse sofrimento. O toxicômano não quer saber, e não se submete a nenhum interdito, que se inscreve em um mais gozar absoluto (Lemos, 2004). Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


66 Cruz (2003) reflete acerca do trabalho com os dependentes de substâncias psicoativas, pela perspectiva de que o trabalho pode se mostrar como um fracasso, “quando propõe a inclusão em um sistema cujo ato de nomeação vem, antes, reafirmar o poder daquele que o confere”. Ao pensar nas teorias dos modelos terapêuticos para tratamento da dependência química baseados na abstinência, aparece por si, o próprio fracasso do tratamento, onde esse ideal de abstinência total é inserido dentro de uma lógica normalizadora.

Assim, a prática psi tem muitas barreiras, tornando-se um trabalho limitado, tendo a

limitação da prática, a limitação da clínica por possuir um trabalho aprofundado em concepções dicomizantes, disciplinadoras que obedecem a lógicas casuais. Com isso, é importante pensar a clínica ampliada, como uma forma de expandir mais ampliações para além do que ela apresenta, para assuntos com questões tão contundentes e de difícil resolução, que envolvem situações de dependentes químicos, caminhando num avanço para a construção de novos saberes. Método Delineamento

Foi

percorrido

realizada uma teórico

e

pesquisa

uma

qualitativa, de

entrevista

estudo

semiestruturada,

de

caso,

através

o

tema

da

sobre

de

um

toxicomania

pelo viés psicanalítico. A entrevista contou com um participante que fez o uso de uma substância psicoativa, no caso o álcool, estabelecendo relação de dependência. Participantes

O participante, com idade 48 anos que tinha uma relação de dependência

com

uma

substância

psicoativa,

o

álcool. A

amostra

se

deu

a

partir

de

uma

indicação da Secretaria de Saúde de um município do Estado do Rio Grande do Sul. Instrumentos e Procedimentos

Foi utilizada uma entrevista semiestruturada, aplicada ao participante a fim de investigar a

relação do sujeito com a droga, e suas determinações intrapsíquicas e sociais. A entrevista foi gravada e logo após transcrita. O primeiro contato foi com a Secretaria de Saúde do município onde ocorreu a pesquisa para acessibilizar o participante. Mediante a explicação dos objetivos da pesquisa e o aceite, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A coleta dos dados se deu com 1 encontro, em um local que preservou o sigilo, sendo que o encontro teve duração de 2 horas. Análise do estudo de caso A história de João: Construindo um olhar sobre o alcoolismo

João, 48 anos de idade, fez uso de álcool a primeira vez aos 14 anos. Desde então o álcool

esteve presente de diversas formas em sua vida. Atualmente, João é vendedor como meio de Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


67 sobrevivência e monitor de uma comunidade terapêutica. Também dirige o grupo de A.A (Alcoólicos Anônimos) do seu município, onde nessas atividades, compartilha o olhar que pôde construir sobre o alcoolismo, ajudando outros a dar sentidos sobre esta que foi e é uma grande questão em sua vida. História familiar e inicio do uso: uma entrada precoce

“Como começar né, é tão difícil e tão, como vou te dizer, o momento exato não se tem,

mas.” João teve contato muito cedo com o álcool, seu pai tinha produção de alambique, para consumo próprio e para venda. “Eu tive na minha infância, eu dormia no meio da cachaça. Eu tinha, o pai produzia as cachaças, e guardava nos garrafões no meu quarto. Então eu tinha minha cama e tinha espaço pra cachaça, mais tinha minha cama. Sempre querendo ser bem claro que não procuro culpado disso, ele guardava cachaça lá, mas não era pra me prejudicar, ele guardava lá porque era o único lugar que tinha espaço”. A produção de cachaça era ligada às tradições familiares. Entre os descendentes de italianos o consumo do vinho e da cachaça fazia parte da tradição da família. João traz em sua entrevista a questão da masculinidade presente naquela época. Sua família levava essa questão muito à sério.

Aos 14 anos João saiu de casa onde ingressou em um colégio agrícola, e foi nesse momento

que começou a beber realmente. Ele já fazia o uso antes, mas foi a partir daí que começou a ingerir com mais frequência o uso do álcool. Relatou que sair de sua casa, ajudou a ir para o “fundo do poço”. Como tinha a necessidade de fazer o uso de álcool todos os dias, era mais em conta comprar a cachaça.

Casou tempo depois, mas não por isso deixou de beber: “Aí depois que eu casei, aí quando eu

ia pro bar tinha que tomar ligeiro, e daí tomava um monte (...) eu acabei me viciando na cachaça, eu acho que pelo custo né, não era um custo muito grande, e pra mim me pego assim, demais, o vício da cachaça, do álcool”. Abuso e dependência e as repercussões sociais

João casou e foi morar com sua esposa. Passou a ingerir uma quantidade maior de cachaça

em tempo menor, já tinha era uma rotina em sua dia-a-dia. Com o tempo a relação com a substância passou a ficar mais intensa prejudicando significativamente seu relacionamento com esposa e filhas. João nesse período já se encontrava em total dependência numa relação exclusiva com a droga.

Sua família não o pressionava, mas relata que foi um pai ausente em momentos que ele sabia

que precisavam dele: “Eu acredito e tenho quase certeza pra mim que eu deixei muito a desejar né, como pai principalmente pra minhas filhas. Talvez assim numas horas que elas precisavam quando terminaram o segundo grau pra começar um faculdade, foi o momento que eu mais estava inteirado com o problema né”.

João trabalha para uma empresa como representante de produtos agrícolas. Durante todos

esses anos ele nunca deixou de faltar o serviço por causa da bebida. Mas a rotina que tinha com a vontade de beber era mais forte, então passou a procurar saídas para conseguir ir beber. Sempre passava nos bares antes de visitar os clientes, ou de manhã cedo antes de chegar ao serviço. Todas essas Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


68 estratégias organizadas em meio ao serviço chegaram à direção da empresa para qual ele trabalhava.

Teve início a cobrança dos chefes para que este comportamento não se repetisse, mas garantiu

que iria parar sozinho. João relata que nos primeiros dias tentou se “controlar”, mas não conseguia ficar sem a bebida. Com a cobrança de seus superiores passou a beber escondido, mas, algo que ele fazia com “naturalidade” antes, passou a ser mais desafiador. Conseguiu esconder o comportamento por cerca de três meses, até que seus superiores descobriram e o “colocaram contra parede”: “Eu dizia eu vou PARA. E isso não aconteceu coisa nenhuma, eu, vamos dizer, eu tentei me controlar, e a partir desse momento parece que foi pior, porque eu comecei a sair beber escondido mais ainda, porque antes eu fazia isso com naturalidade, imagina até que estava fazendo uma coisa certa né, e a partir do momento que isso começou a afetar o meu trabalho e meus superiores descobriram, eu bebia em menos tempo, mas mais quantidade. Bebia rapidinho pra ninguém me pegar num bar ou coisa parecida, inclusive com o auto da empresa e tudo né, aí já me colocaram contra a parede ou eu procurava ajuda médica ou psiquiátrica coisa assim, par ver se eu me tratava dessa doença”. João sentiu, nesse momento, que sozinho não conseguiria. Foi a partir desse momento que começou a etapa de sua recuperação (ou de busca de tratamento...), com tentativas de parar de beber. Tentativa de recuperação: as internações

Durante todo o processo de recuperação, o entrevistado passou por várias desintoxicações

passando por hospitais, ficando lá por alguns dias e depois retornando: “Essa foi minha primeira internação, aí eu acabei voltando ficando uma semana de pé, eu acho que nem isso. Recai de novo. Fiquei mais dois três meses na rua, ai a empresa começou a me cobrar de novo”.

O processo relatado por João como mais doloroso, refere-se ao período que ficou internado em

um hospital para desintoxicação vinte e seis dias. Depois foi encaminhado para uma fazenda terapêutica, e ficou dezesseis dias sem fumar, como é um depende ainda do cigarro, foi a etapa mais difícil, teve alucinação e sofreu muito: “Até hoje minha esposa fala que se ela não me tirasse de lá eu ia fazer uma coisa com ela, coisa assim que eu não me lembro, eu acho que a turbulência do álcool, a pressão então”.

A família o tirou da fazenda terapêutica. O primeiro dia não bebeu nada, mas

logo começou a rotina de beber. Voltou a trabalhar na empresa, com o mesmo “sistema”, bebia antes do serviço, no meio dia, e a noite, durante as horas do serviço se “controlava”. Ficou assim pelo tempo de um ano, quando a empresa onde trabalha deu a última chance, compreendendo que o que ele tinha era uma doença e que ele precisava de um tratamento.

A partir disso, procurou uma comunidade terapêutica, só que ele não sentia a

necessidade de estar fazendo o tratamento. Ficou nessa comunidade por cinco meses:

“Eu fiz cinco meses de tratamento terrível também, sofrimento só pensando na rua, só, eu

não admitia, eu não me colocava no lugar que eu tinha que me colocar, parece que eu não sentia a necessidade de fazer aquele tratamento. Sempre quando a família me visitava, dizia que já tava pronto, que não ia mais beber, daí a família também não conhecia muita da doença, perguntava tá Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


69 preparado? Eu, estou preparado”.

Nessa fala fica evidente um mecanismo bastante comum na questão da dependência,

especialmente em relação ao álcool, a negação. Sendo assim, João acreditava que não necessitava de ajuda para aprender a lidar com a dependência e tentava fazer sua família perceber a situação do mesmo modo que ele, insistindo que já estava pronto para lidar com o álcool de outra maneira afirmando inclusive que não faria mais uso.

Ao sair da comunidade, em uma semana já tinha voltado a beber, e com uma

intensidade maior. Foi quando percebeu que realmente precisava de ajuda, pois todas as tentativas de que “amanhã não irei beber”, não funcionavam. Voltou para a comunidade terapêutica, onde começou a participar do tratamento que a comunidade oferece. Passou a ler sobre o alcoolismo, e a compreender que a dependência se trata de um adoecimento.

“É uma doença que não escolhe religião, raça não escolhe dados sociais se é rico se é

pobre, mas eu cai na realidade que eu necessitava daquilo e botei na cabeça que um ano é pouco de tratamento. Quando eu acabei o tratamento, eu achei que assim, passo muito rápido o tratamento”. No oitavo mês de comunidade, tornou-se parte da equipe como monitor na rotina de serviços do local. Também fazia serviço fora da comunidade, como levar algum interno ao dentista, consultas médicas. Um novo momento: o partilhar da experiência

Hoje, fora da comunidade leva o que aprendeu, fazendo o que ele chama de

cronograma de seu dia. Ele se organiza logo ao acordar, de como será seu dia, de suas tarefas: “Assim, eu tento fazer um cronograma do meu dia, porque eu acho que aprendi isso da doença, e na comunidade, trabalhar sempre as vinte e quatro horas”.

Foi a partir de todas as experiências vividas, como consequência do abuso do álcool,

que João percebeu que podia fazer mais para a comunidade. Atualmente João reativou o grupo de Alcoólicos Anônimos (AA) de seu município onde coordena, para ajudar outras pessoas que sofrem, em função do uso abusivo de álcool. Além disso, participa de outros grupos de apoio como o Grupo Terapêutico de Alcoolismo, também de sua cidade, fazendo troca de experiência para que a sociedade consiga entender o problema que é o alcoolismo.

João sabe da importância do apoio de um grupo e da importância que sua experiência tem

para a comunidade, onde fala que tem muito a oferecer: “Eu tenho muito pra dar ainda, coisa que eu tinha perdido, que eu achei que já havia feito que chega, e acho que estou engatinhando ainda na vida né, e aprendendo né, depois que você aprende o que é o alcoolismo eu acho que tem que se dobrar pelo álcool. Admitir que fomos impotentes perante o álcool, de minha parte é isso”.

Percebe-se que para João a comunidade terapêutica representou uma alternativa de aprender

a lidar com a dependência em relação a si e em sociedade. Em um contexto de rede que não se contam com outros serviços como um CAPS ou outros pontos de apoio mais especializados para esta demanda, percebe que esta foi uma via encontrada por João em relação ao alcoolismo. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


70

Nessa

vivencia

da

comunidade,

o

principal

ganho

parece

ter

sido

aprender a refletir sobre os prejuízos que o álcool trouxe para a sua vida e o que desejava para o seu futuro, mas não relatou contato com o psicólogo dentro da comunidade.

Durante esse percurso relatado por João destacam-se, suas vivências iniciais marcadas

pelo convívio íntimo com o álcool dividindo o mesmo quarto, a luta contra a dependência e a mudança de posição para alguém que pode ajudar nessa luta. Em meio a narrativa observa-se a dificuldade imposta pelas recaídas, pelos mecanismo de negação, pelo apelo social ao uso do álcool em meio a isso nas tentativas de recuperação a importância da rede social de apoio. Com o discurso do entrevistado percebe-se também certa ausência do profissional psicólogo inserido nessas redes sociais, entende-se como de suma importância o trabalho da psicologia com esta demanda. As (Re)caídas

A recaída representa o insucesso ao tentar atingir algum objetivo após um período

estabelecido. No caso da dependência, é um regresso à substância consumida da mesma maneira que o sujeito usava antes de iniciar um programa de tratamento ou recuperação. Para ser considerada uma recaída, o sujeito deve ter conseguido ao menos, dois meses de abstinência. A recaída faz parte do processo de reabilitação e não no final do processo, onde não significa que a pessoa tenha fracassado ou que não possa recuperar-se com o tempo (Álvarez, 2007).

A recaída ocorre por algum motivo. Há muitos fatores que contribuem para que

isto aconteça, como também existem evidências ou sinais de advertência que indicam que um paciente pode estar no perigo do retorno ao abuso da substância (Álvarez, 2007).

Para sujeitos que fazem uso do álcool, e que possuem dificuldades em lidar com situações

estressantes, podem buscar no consumo dessa substância uma forma de responder a esse tipo de situação para torná-la melhor, que junto com as expectativas positivas quanto ao consumo de álcool, acabam diminuindo o sentimento de culpa, que com o efeito positivo de álcool lhe induzirão a seguir bebendo (Álvarez, 2007).

Segundo Álvarez (2007), esses fatores são de duas classes: determinantes imediatos e

antecedentes ocultos. Entre os determinantes imediatos estão às situações de alto risco, como estados emocionais negativos, situações de conflito interpessoal, situações de pressão social e estados afetivos positivos. Entre os antecedentes ocultos, está o estilo de vida do paciente, os tipos de afrontamento ao estresse, o sistema de crenças etc., que mediam a resposta aos fatores imediatos. Depois acontece o deslize (consumo ocasional de álcool), que pode não conduzir a uma recaída, mas é um risco muito grande. Frequentemente, depois do deslize, aparece sentimento de culpa que, com as expectativas positivas do álcool, levam ao consumo, que finaliza na recaída.

Para Marcal (2014), a prevenção da recaída entra como um programa de autocontrole e manutenção

para que o sujeito possa saber lidar em lidar com situações de risco e também a modificar o seu estilo de vida para seu melhoramento com sua relação com a substância. Pode reconhecer uma situação de risco, como qualquer situação que coloque em perigo o controle e a manutenção do seu objetivo. Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


71 Redes Sociais de Apoio

Sabe-se que uma rede social de apoio bem organizada, é importante para que o sujeito

inicie uma reflexão sobre sua relação com a substância psicoativa. Assim como o é, ao término de programa terapêutico, fator imprescindível na manutenção da abstinência do paciente. Pois é onde o sujeito vai estabelecer um alicerce como base para se apoiar durante o processo de sua recuperação.

Segundo Duarte (2006), essa rede social tem como objetivos: favorecer o estabelecimento

de vínculos positivos, por meio da interação com outros indivíduos, onde se tem um espaço para reflexão, troca de experiências e busca de soluções para problemas comuns, grupos e instituições para a utilização de recursos existentes na própria comunidade; estabelecer parcerias entre setores governamentais e não governamentais para implementar programas de orientação e prevenção pertinentes a problemas específicos apresentados pelo grupo. Dentre todas as intervenções terapêuticas, uma das mais utilizadas em grupos de A.A, são os modelos de tratamento baseados nos Doze Passos. Essa intervenção é baseada em um confronto, buscando neste que o sujeito assuma sua dependência e assumindo-se como portador de uma patologia (Kantorski, Lisboa & Souza, 2002).

Os modelos terapêuticos do A.A são voltados para a recuperação individual e pessoal de

seus participantes que “parecem ter perdido o poder de controlar o número de doses ingeridas” (Alcoólicos Anônimos, 2002). Entendendo que o alcoolismo é como uma “doença incurável, progressiva e fatal”, que se caracteriza pela “perda de controle sobre o álcool”, levando a beber de maneira compulsiva, o que pode vir a conduzi-lo a “loucura” ou à “morte prematura”.

Outras instituições que fornecem apoio para alcoolistas são os CAPS que tem um modelo

terapêutico diferenciado, na qual o sujeito não precisa sair do seu contexto social. Os CAPS funcionam como um serviço aberto, com ligação no espaço social, atuando como um lugar de passagem (Santos & Duarte, 2009).

Dentre os tipos de CAPS, se tem o CAPS AD onde oferece atenção secundária à saúde mental

e o sofrimento psíquico ligados ao uso de substâncias psicoativas associada as políticas públicas e ações sociais visando a prevenção do abuso destas substâncias. Dentro do CAPS AD, contam com uma equipe multiprofissional formada por médicos, psicólogos, técnicos em enfermagem e enfermeiras, assistentes sociais, farmacêutico, auxiliares de administração, serviços gerais e um coordenador.

As redes de apoio são essenciais para o processo de recuperação do sujeito que tem

dependência de alguma substância psicoativa, pois ajudam esse sujeito com propostas alternativas, para que sua recuperação siga com uma qualidade de vida melhor, tanto para que consiga parar com o uso da substância, quanto para que o mesmo possa viver em sociedade de uma forma tranquila. O papel do psicólogo para o tratamento e manejos possíveis

Segundo Santo e Duarte (2009), existem diferentes linhas de trabalho possíveis para o

psicólogo frente as diversas proposta de abordagens e linhas teóricas. Sendo assim, a abordagem será Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


72 de acordo com a linha teórica de referência do psicólogo. Pode-se pensar a partir do referencial da psicoterapia psicanalítica algumas linhas de abordagem mais clássicas e outras mais atuais e breves.

Os tratamentos breves envolvem procedimentos de ensino de métodos de autocontrole para

atingir objetivos de abstinência ou moderação. Eles são mais indicados nos casos em que existe uma expectativa de para com uso, por parte do paciente sobre a necessidade de alguma ajuda externa maior, envolvendo a consciência do sujeito no processo de tratamento (Souza, 2006).

Existem vários modelos de terapias breves concebidos especificamente para a

abordagem dos problemas relacionados ao uso de álcool e drogas. A grande maioria dos modelos possui características básicas semelhantes: são intervenções limitadas no tempo, têm como foco a redução do consumo e dos problemas associados e são dirigidas primariamente a não-dependentes, ou os assim chamados “bebedores-problema” (Souza, 2006).

A interdisciplinaridade deve se fazer presente na prática do psicólogo quando

atuar com esta demanda. Segundo Santos e Duarte (2009), a possibilidade de diferentes olhares permite que se possam enxergar as diferentes demandas do sujeito e assim compor um projeto terapêutico individual que estará orientado pela singularidade da história de vida e identificações próprias desse sujeito, tornando mais eficácias as ações propostas.

O tratamento psicoterápico de um dependente de substância psicoativa pressupõe,

através das diferentes etapas de seu desenvolvimento, a manutenção da vida em abstinência, a capacidade de lidar com a frustração decorrente da perda do prazer associado ao consumo de substância psicoativa; e a aquisição ou recuperação de mecanismos psicológicos que ficaram disfuncionais ou não foram devidamente desenvolvidos em função de sua dependência, ou mesmo previamente a ela (Pechansky, Luborsky et al, 2005). O sujeito que vem para o tratamento, é aquele no qual tal balanço se desorganizou, e, portanto, faz-se necessário um novo equilíbrio, ai sim com tentativa de exercitar um novo balanceamento sem o uso de substância psicoativa.

Os sujeitos que fazem o uso de substância psicoativa, descrevem a dificuldade de

lidar com sentimentos novos na sua face de recuperação em abstinência, mesmo que eles sejam prazerosos. A questão segundo os autores Pechansky e Luborsky (2005) não é tanto se os sentimentos são bons ou ruins, mas sim se eles já pertencem a uma relação de sensações previamente reconhecidas e identificadas ou se são elementos novos a serem incluídos no arsenal.

Para tratar com eficácia de sujeitos com dependência em algum tipo de substância,

é importante combinar o conhecimento geral de psicoterapia com elementos específicos de abordagem. Deve-se considerar a intensidade da dependência, a perda de controle em diferentes fases da evolução da dependência do paciente e suas consequências, além

de

uma

adaptação

do

setting

para

uma

otimização

da

técnica

terapêutica.

Considerações Finais

A problemática do uso de substância psicoativa tratado ao longo do estudo é pertinente Práxis PSI, Três de Maio, nº 5, vol. 1 - 2020


73 na medida que tem-se consciência do problema do uso em abundância dentro do contexto social, sendo um assunto sério real, e que deve ser percebido em sua grande totalidade.

A abordagem do estudo de caso sobre a Toxicomania permitiu um olhar diferenciado

sobre esta problemática, sendo que cada vez mais vem crescendo no contexto social, onde vem contribuindo para o fortalecimento da relação do sujeito com a substância psicoativa. Além disso, permite verificar os aspetos sociais influentes que podem dar origem a dependência.

As consequências do uso vêm trazendo prejuízos graves, sua relação com a família,

que entram junto no sofrimento do sujeito. No caso estudado observou-se a história de João e sua dependência em relação ao álcool. Este estudo possibilitou uma melhor compreensão dos prejuízos causados pela dependência. Como também foi observado a questão da recaída como parte do processo de mudança da relação com a droga envolvendo diversos fatores.

Em meio a este processo de luta contra a dependência observou-se no caso estudado

a importância das redes de apoio como alternativas para a recuperação. Apesar de algumas destas instituições ainda possuírem um enfoque tendencioso para as questões religiosas e morais, pode no caso estudado ser uma via para o sujeito pensar sua relação com a droga.

O olhar sobre esta questão e as mobilizações que surgirem a partir daí, podem reduzir

substancialmente os danos que são causados, assim como são úteis os vários tipos de tratamento que hoje existem, bem como são cruciais novas pesquisas sobre este tema. Apesar disso muitos são os desafios diante o incentivo desenfreado, cabe ao sujeito e a rede de apoio que lhe dá suporte, encontrar uma via singular, um caminho possível como alternativa à dependência.

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