Anos da Constituição Cidadã: avaliação e desafios da Seguridade Social
ANFIP - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil Conselho Executivo Assunta Di Dea Bergamasco - Presidente João Laércio Gagliardi Fernandes - Vice-Presidente Fábio Galízia Ribeiro de Campos - Vice-Presidente de Assuntos Fiscais Maria do Carmo Costa Pimentel - Vice-Presidente de Política de Classe e Relações Interassociativas Marcelo Oliveira - Vice-Presidente de Política Salarial Sandra Tereza Paiva Miranda - Vice-Presidente de Assuntos da Seguridade Social Armando dos Santos - Vice-Presidente de Cultura Profissional Nildo Manoel de Souza - Vice-Presidente de Aposentadorias e Pensões Antônio Silvano Alencar de Almeida - Vice-Presidente de Serviços Assistenciais Manoel Eliseu de Almeida - Vice-Presidente de Assuntos Jurídicos Miguel Arcanjo Simas Nôvo - Vice-Presidente de Assuntos Tributários João Alves Moreira - Vice-Presidente de Administração, Patrimônio e Cadastro Luiz Mendes Bezerra - Vice-Presidente de Finanças Eucélia Maria Agrizzi Mergar - Vice-Presidente de Planejamento e Controle Orçamentário Ovídio Palmeira Filho - Vice-Presidente de Comunicação Social Maruchia Mialik - Vice-Presidente de Relações Públicas Rodrigo da Costa Possas - Vice-Presidente de Assuntos Parlamentares Maria Bernadete Sampaio Bello - Vice-Presidente de Tecnologia da Informação Conselho Fiscal Carlos Roberto Bispo (MG) - Coordenador Ary Gonzaga de Lellis (GO) - Membro Jorge Cezar Costa (SE) - Relator Conselho de Representantes Dulce Wilennbring de Lima (RS) - Coordenadora Ana Mickelina B. Carreira (MA) - Vice-Coordenadora Rozinete Bissoli Guerini (ES) - Secretária Léa Pereira de Mattos (DF) - Secretária-Adjunta AC – Heliomar Lunz PR - Ademar Borges AL - Francisco de Carvalho Melo PE - Abias Amorim Costa AP - Emir Cavalcanti Furtado PI - Guilhermano Pires F. Correa AM - Cleide Almeida Novo RJ - Sérgio Wehbe Baptista BA - Luiz Antônio Gitirana RN - Maria Aparecida F. Paes Leme RO - Eni Paizanti de Laia Ferreira CE - Eliezer Xavier de Almeida RR - AndreLuiz Spagnuolo Andrade GO - Nilo Sérgio de Lima SC - Pedro Dittrich Júnior MT – Manoel de Matos Ferraz SP - Edgard dos Santos MS - Cassia Aparecida Martins de A. Vedovatte SE - Jorge Lourenço Barros MG - Lúcio Avelino de Barros PA - Maria Oneyde Santos TO - Márcio Rosal Bezerra Barros PB - Maria Janeide da C. Rodrigues e Silva
Fundação Anfip de Estudos da Seguridade Social CONSELHO CURADOR Assunta Di Dea Bergamasco - Presidente Ovídio Palmeira Filho - Secretário Sandra Tereza Paiva Miranda Maria do Carmo Costa Pimentel Amauri Soares de Souza Pedro Dittrich Júnior Miguel Arcanjo Simas Novo SUPLENTES Eurico Cervo Aloísio Jorge Holzmeier DIRETORIA EXECUTIVA Floriano José Martins - Diretor Presidente Ana Lúcia Guimarães Silva - Diretora Administrativa Gláucio Diniz de Souza - Diretor Financeiro Márcio Humberto Gheller - Diretor de Planejamento e Projetos Rosana Escudero de Almeida - Diretora de Eventos e Cursos SUPLENTES Décio Bruno Lopes Vanderley José Maçaneiro CONSELHO FISCAL José Helio Pereira Ennio Magalhães Soares da Câmara José Geraldo de Oliveira Ferraz SUPLENTES Paulo Freitas Radtke José Avelino da Silva Neto
ANFIP - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil
Anos da Constituição Cidadã: avaliação e desafios da Seguridade Social
Flávio Tonelli Vaz Juliano Sander Musse Rodolfo Fonseca dos Santos Coordenadores
Brasília - 2008
Copyright © 2008 - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil - ANFIP Permitida a divulgação dos textos contidos neste livro, desde que citadas as fontes. Disponível em: www.anfip.org.br ISBN: 978-85-62102-00-4 Tiragem desta edição: 1.000 exemplares impresso no Brasil 1ª edição: 2008 Grupo de trabalho constituído para realização do estudo: Coordenadores: Flávio Tonelli Vaz - Juliano Sander Musse - Rodolfo Fonseca dos Santos Revisão ortográfica: Raquel Zanon Capa e editoração eletrônica: Gilmar Eumar Vitalino Fotos da capa: Acervo/Câmara dos Deputados e Arquivo Fotográfico/Jornal do Senado Assessoria de Estudos Socioeconômicos da ANFIP: Rodolfo Fonseca dos Santos Juliano Sander Musse Amanda Guedes (estagiária)
Normalização bibliográfica: Bibliotecária com registro CRB1-1159 Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) 20 anos da Constituição Cidadã : avaliação e desafios da Seguridade Social / Flavio Tonelli Vaz, Juliano Sander Musse, Rodolfo Fonseca dos Santos (Coords.). Brasília : ANFIP, 2008. 270 p. ISBN 978-85-62102-00-4 1. Seguridade Social 2. Previdência Social 3. Saúde Pública 4. Assistência Social I. Título. II. Vaz, Flávio Tonelli (Coord.) III. Musse, Juliano Sander (Coord.) IV. Santos, Rodolfo Fonseca dos (Coord.) CDU 369
Sumário
Apresentação.................................................................................................................................................................................9 Assunta Di Dea Bergamasco
Introdução.......................................................................................................................................................................................11 Flávio Tonelli Vaz, Juliano Sander Musse e Rodolfo Fonseca dos Santos
Parte1. A ordem econômica e os direitos sociais: relação intrínseca Direitos sociais no fio da navalha........................................................................................................................................... 23 Eduardo Fagnani
A Constituição de 1988 e a Seguridade Social: uma disputa em meio à financeirização do Estado........... 45 Denise Lobato Gentil Gilberto Maringoni
Crescimento, emprego e renda e os desafios para o desenvolvimento com maior igualdade..................... 55 Claudio Salvadori Dedecca
Sustentando a Seguridade Social do século 21................................................................................................................ 75 Marcio Pochmann
Artigo 170: a busca do pleno emprego e a redução das desigualdades................................................................. 81 João Sicsú
Parte 2. Seguridade Social: um sistema para assegurar direitos Inclusão e progressividade: os desafios da Seguridade Social brasileira................................................................ 89 Lena Lavinas
Seguridade Social: um conceito e uma prática da civilização (ainda) moderna................................................. 97 Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna
Seguridade Social 20 anos depois: caminhos do desmonte........................................................................................ 103 Ivanete Boschetti
Avanços e limites no controle social da Seguridade no Brasil.................................................................................... 109 Evilásio Salvador
A Constituição Cidadã e a institucionalização dos espaços de participação social: avanços e desafios.... 131 Enid Rocha
Seguridade Social: direitos constitucionais e limites orçamentários...................................................................... 149 Arthur Oscar Guimarães
O ajuste como prioridade, a Seguridade Social como instrumento......................................................................... 159 Flávio Tonelli Vaz
Parte 3. Previdência Social: o desafio da inclusão Previdência é mais do que seguro: é Seguridade e desenvolvimento.................................................................... 171 Milko Matijascic
Desafios à previdência social no início do século XXI.................................................................................................... 177 Guilherme C. Delgado
A previdência rural: um dos grandes avanços da Constituição Federal de 1988................................................ 185 Jane Lucia Wilhelm Berwanger
O financiamento da Seguridade Social e os vinte anos da Constituição de 1988.............................................. 197 Wagner Balera
Direitos previdenciários, previsibilidade e eficácia......................................................................................................... 203 Wladimir Novaes Martinez
Os desafios da previdência social na agenda recente do movimento sindical brasileiro................................ 211 Clemente Ganz Lúcio
Parte 4. Saúde Pública: o desafio da resolutividade O Sistema Único de Saúde e o processo de democratização da sociedade brasileira....................................... 221 Rosa Maria Marques Áquilas Mendes
Rompendo com as amarras no financiamento das políticas públicas de saúde................................................. 233 Sérgio Francisco Piola Solon Magalhães Vianna
Políticas públicas em busca da qualidade dos serviços de saúde ............................................................................ 241 Sonia Fleury
Parte 5. Assistencia Social: gerando cidadania e disseminando desenvolvimento 20 anos de Constituição: a hora dos deveres sociais...................................................................................................... 249 Marcelo Neri
Entre a pobreza e a cidadania: a política pública de assistência social no pós-1988......................................... 255 Luciana Jaccoud
Posfácio.............................................................................................................................................................................................267 Flávio Tonelli Vaz, Juliano Sander Musse e Rodolfo Fonseca dos Santos
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Apresentação
Em seu dia-a-dia atribulado, o cidadão brasileiro nem sempre se dá conta da importância da Constituição promulgada em 1988, cognominada “Constituição Cidadã”. Foi a partir dela que começaram a ser implantados no país os pilares da Seguridade Social em sua feição mais moderna e abrangente, determinando a universalização do atendimento nas áreas da saúde, da previdência e da assistência social. A ANFIP, entidade que representa os Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, tem na sua história a defesa intransigente da Seguridade Social. Dessa forma, não poderia deixar de comemorar tão importante data, nem tampouco de homenagear o povo brasileiro, que heroicamente foi à luta pelo resgate da democracia; e os constituintes, que também lutaram, elaboraram e aprovaram o texto da nova Constituição. A maneira que a associação encontrou de celebrar os 20 anos da conquista desse novo conceito de cidadania foi lançar o livro “20 anos da Constituição Cidadã: avaliação e desafios da Seguridade Social”, que reúne artigos de acadêmicos e de estudiosos comprometidos com as causas sociais, como forma de tornar mais abrangente o debate do tema e de enraizar, em cada cidadão, a consciência quanto à importância de se dotar o país de mecanismos que efetivamente promovam a justiça, o progresso social e a prosperidade de forma igualitária. Este livro serve ao passado, pois homenageia aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a compleição de uma cidadania plena. Serve ao presente, como alerta para que eventuais mudanças na Constituição não venham a agredir ou descumprir seus princípios básicos, que norteiam a construção de um Brasil renovado e mais justo. E serve ao futuro, de modo que as novas gerações possam perceber o alcance dos princípios fundamentais, dos direitos, das garantias e da nova ordem social democrática, emanada da Constituição Cidadã. Por fim, cabe lembrar a importância de preservá-la e de aperfeiçoá-la, cuidando para que não ocorram desvirtuamentos que coloquem em risco as grandes conquistas que haverão de despertar as consciências e ampliar horizontes sempre a serviço das grandes causas e de um projeto nacional efetivamente destinado a atender todos os brasileiros, sem distinção de etnia, sexo, idade, procedência, renda, religião ou qualquer outro parâmetro que possa representar qualquer resquício de discriminação.
Assunta Di Dea Bergamasco Presidente do Conselho Executivo da ANFIP 9
Introdução A Constituição Federal de 1988 é um marco na construção da cidadania em nosso país. Um verdadeiro avanço frente às Cartas anteriores. Representa, ao mesmo tempo, um resgate da democracia e dos direitos políticos e uma transformação substantiva na perspectiva de acesso a direitos sociais. Numa concepção mais estruturada e integralizada de cidadania, a Lei Maior estabeleceu direitos individuais, coletivos, sociais, políticos, e deu nova roupagem ao Estado brasileiro para cumprir funções variadas com o objetivo de assegurar direitos, prestar serviços públicos universais, garantir o desenvolvimento nacional, combater desigualdades regionais e sociais. Exatamente por conter todos esses importantes instrumentos, visando à construção de uma Nação mais justa e solidária, que a Constituição recebeu tamanha oposição dos setores liberais. Quando, a partir da década de 90, os liberais se constituíram num campo político hegemônico, a Constituição foi submetida a um grande número de alterações. Destacam-se as que modificaram competências do Estado e princípios da ordem econômica, objetivando privatizações; princípios da ordem financeira, para assegurar maior liberdade ao Banco Central e suprimir garantias de proteção das empresas nacionais e da economia popular; mudanças na ordem social, para retirar direitos. Do “Emendão” do Governo Collor, passando pela Revisão Constitucional de 1993, pelas emendas da Ordem Econômica do Governo FHC e pelas mudanças previdenciárias (nos Governos FHC e Lula), foram aprovadas ao todo 62 modificações (56 Emendas Constitucionais e seis Emendas Constitucionais de Revisão), numa média anual de três modificações. Alguns dispositivos foram revogados ou alterados antes mesmo de serem regulamentados. A experiência das lutas contra a ditadura levou à fixação no texto constitucional de vários dispositivos voltados para a aplicabilidade imediata dos direitos e para o controle social sobre o Estado. Para outros direitos, o constituinte optou apenas por enunciá-los, traçando preceitos a serem cumpridos pelo poder público para a sua materialização. E foi mais além. Importantes mecanismos foram criados para assegurar todos esses direitos, com destaque para as vinculações de recursos públicos a programas e ações de Governo. Ao estabelecer essas vinculações, reafirmou o papel do orçamento público como importante instrumento para concretizar direitos e alterar a realidade sócio-econômica do país. Não é por outro motivo que uma das mais importantes criações da Carta de 1988 é o Orçamento da Seguridade Social. Um instrumento eficaz para dotar o Estado brasileiro de recursos em volume suficiente para assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e assistência social. Foram estabelecidas contribuições sociais pagas pelas empresas e 11
pelos trabalhadores para - na contramão do pensamento liberal - financiar ações do Estado em prol desses direitos. Por envolver uma parcela substantiva dos recursos públicos, essa vinculação destoa do modelo político e econômico em curso, que privilegia os gastos financeiros do Estado. Não é por acaso que o Orçamento da Seguridade Social foi alvo de inúmeras manipulações, que resultou na subtração de receitas e no uso irregular de suas dotações. Decorridas duas décadas, é adequado fazermos um balanço da Constituição e da eficácia de suas postulações, especialmente no campo da Seguridade Social. Esse é o objetivo dessa coletânea: homenagear a sociedade brasileira pelos vinte anos da Constituição Cidadã e, ao mesmo tempo, oferecer contribuições para um debate sobre a Seguridade Social, o estágio atual de implementação das conquistas sociais e as perspectivas de lutas pela sua efetividade e ampliação. Pelo menos dois fatos tornam evidente a atualidade desse debate. O primeiro é a reforma tributária enviada ao Congresso em 2008. Sob o argumento de simplificar o nosso sistema tributário, a proposta acaba com as contribuições sociais sobre o lucro e faturamento e deforma o Orçamento da Seguridade Social, pondo fim ao seu modelo de pluralidade de fontes exclusivas. A conseqüência natural desse desmonte é um enorme risco aos direitos sociais, novamente sob orientação liberal. O segundo é a crise financeira que eclode a nível mundial neste segundo semestre de 2008. Fruto direto da desregulamentação dos mercados financeiros, já não se resume a uma crise de liquidez ou de solvência das instituições financeiras, pois afeta amplos setores produtivos nos maiores centros - Estados Unidos, Europa e Japão –, alastrandose pelos cinco continentes. Até o fechamento dessa Edição, perto de dois trilhões e meio de dólares já haviam sido disponibilizados –somente nos EUA, zona do Euro, Inglaterra, Rússia, Japão e outros países asiáticos e do oriente médio– para a capitalização de bancos, seguradoras, companhias hipotecárias e para garantia de depósitos bancários. Na incapacidade de recuperação via mecanismos de mercado, muitas dessas instituições foram simplesmente estatizadas. Mas, a incerteza permanece. Essa fabulosa quantia ainda pode demonstrar-se insuficiente para cobrir os desequilíbrios promovidos pelo atual modelo e ainda é prematuro falar nos custos de recuperação das economias e de enfrentamento aos nocivos efeitos sociais desse furacão. O que parece ser uma crise terminal para as idéias e políticas que pregam a superioridade racional do mercado pode se transformar em uma grande oportunidade para resgatar os instrumentos de desenvolvimento econômico e social contidos na Constituição Cidadã. Esse colapso deve ser utilizado para um julgamento generalizado de seus pensadores e políticos, suas idéias, seus interesses, dos resultados desastrosos de suas 12
políticas e, naturalmente, de suas críticas e oposições ao texto da Constituição Federal de 1988. Todos aqueles que se opuseram às transformações pretendidas pelos neoliberais estão de parabéns: a nossa Constituição ainda contém os instrumentos necessários para que o país apresente maior grau de resistência a essa crise global e a seus efeitos. O eixo perseguido nesta publicação explora a relação intrínseca entre o desenvolvimento da Seguridade Social e as políticas econômicas que, aplicadas simultaneamente, determinaram a redução da produção e do emprego e opuseram-se, das mais diversas formas, à conquista e implementação do conjunto dos direitos, especialmente aqueles relativos à saúde, previdência e assistência social. Dividido em cinco partes, o livro reúne artigos para debater a estreita relação entre as políticas econômicas em curso e os direitos sociais; os princípios da Seguridade Social, que organizam e informam todo esse sistema; e questões relativas ao estágio atual de implementação das políticas de cada uma das três áreas da Seguridade. Na primeira parte, os autores estabelecem o custo social dessas políticas econômicas de cunho restritivo, a que o país esteve subordinado na maior parte desses vinte anos, e defendem a importância de um projeto de desenvolvimento identificado com uma fase duradoura de crescimento econômico com distribuição de renda. Eduardo Fagnani faz um histórico pormenorizado das mudanças a que a Constituição foi submetida, ressaltando os interesses envolvidos. Discute como as reformas atenderam a opções macroeconômicas adotadas, que minaram a capacidade do Estado em atender às políticas sociais e ainda se demonstraram incompatíveis com possibilidades de desenvolvimento econômico. Já o texto de Denise Gentil e Gilberto Maringoni expõe os argumentos utilizados na busca de desmontar o Orçamento da Seguridade Social, cobiçado pelos interesses financeiros por conter um grande volume de recursos destinado a programas e direitos sociais. Buscavam subjugar a Seguridade, seus recursos, suas ações e seus programas aos interesses do capital financeiro. O mercado de trabalho é objeto de análise dos textos de Claudio Dedecca e Marcio Pochmann. Os autores examinam as perspectivas desse mercado e os desafios para um projeto de desenvolvimento com justiça social. Os artigos mostram que as políticas do Governo de FHC partiam de pressupostos que nem sempre se confirmavam. Seguiam postulações das agências internacionais, que indicavam o fim do emprego, restando para o Brasil, uma adequação produtiva rumo ao trabalho informal e de baixo rendimento. João Sicsú analisa a evolução das políticas macroeconômicas de FHC a Lula. Localiza uma lenta, mas nítida, transição de um modelo liberal-conservador para um modelo desenvolvimentista, que coincide com uma desobstrução dos debates sobre macroeconomia. O Programa de Aceleração do Crescimento é um dos marcos dessa 13
mudança, pois demonstra uma clara opção governamental pelo crescimento, com geração de emprego e distribuição de renda. A segunda parte reserva espaço para as análises do modelo constitucional da Seguridade Social, mostrando e analisando seus princípios, sua forma de financiamento, suas políticas e a busca pela democratização do seu controle e da sua gestão. Lena Lavinas abre essa parte analisando os desafios da universalidade e da progressividade, instrumentos ativos do princípio da justiça social. Os dados por ela apresentados demonstram como os benefícios da Seguridade (previdenciários e assistenciais) assumiram um papel substancial na diminuição da pobreza em nosso país, ressaltando, porém, o fato de estarmos longe de incorporar à realidade o princípio constitucional da justiça social. A autora identifica como desafios a universalização da previdência e das políticas assistenciais e as transformações no nosso sistema tributário rumo à sua progressividade. Os artigos de Maria Lucia Werneck Vianna e Ivanete Boschetti discutem como as políticas liberais aplicadas posteriormente à Constituição estavam em oposição à Seguridade Social, seus princípios fundamentais e à articulação de suas políticas. Dessa forma, muitos de seus postulados não se concretizaram. Ambas concluem mostrando os desafios de uma Seguridade Social pública e universal, contestam premissas e formulações que ainda predominam em nosso país, pois, para elas, é preciso implementar políticas econômicas a serviço do crescimento e da redistribuição da riqueza. Evilásio Salvador e Enid Rocha, por sua vez, apresentam textos sobre o controle social da Seguridade e a institucionalização dos conselhos e das conferências, instrumentos importantes para a participação da sociedade civil na definição e na avaliação de políticas públicas.. Identificam muitas tarefas a cumprir para que todo o ideal de participação social contido no texto constitucional se materialize. Ressaltam a importância de dar mais eficácia às deliberações dos conselhos e conferências, dado o grau de experiência diferenciada que ainda predomina nas diferentes áreas da Seguridade. Evilásio ainda defende a recriação do Conselho Nacional de Seguridade Social, extinto no período FHC, e a incorporação de uma agenda que priorize a defesa do financiamento da Seguridade e da exclusividade do uso de seus recursos. O paradoxo entre políticas sociais exitosas e limites orçamentários que predominaram nos vinte anos de Constituição é explorado por Arthur Guimarães. Ele mostra como medidas de ajuste conseguiram romper com um modelo de vinculação de recursos. Enfatiza a importância dos movimentos sociais organizados intensificarem a luta pela garantia e ampliação dos direitos sociais. Em outro texto, a utilização do Orçamento da Seguridade no processo de ajuste fiscal, com a depreciação dos direitos e a precarização das políticas da seguridade, é discutida por Flávio Vaz. A análise aponta como a implementação de muitos dos postulados constitucionais foi dificultada por idéias e políticas neoliberais, que priorizaram o ajuste das contas públicas e o desmonte da capacidade estatal de promover o desenvolvimento e prestar serviços públicos universais. Essas idas e vindas, que resultam 14
de uma disputa sobre o projeto de sociedade e a apropriação do lucro, terão um novo episódio com a atual crise e as definições sobre a imputação de seu ônus e sobre os rumos para a sua superação. A terceira parte discorre sobre os desafios da previdência social, diante da grande exclusão previdenciária e da nova realidade do mundo do trabalho. Milko Matijascic analisa que, diante da atual crise e do fiasco das políticas liberalizantes, há um real espaço para discussão mais profícua sobre a previdência, que deve ocupar um lugar de destaque num projeto pelo desenvolvimento. Para tanto, propõe medidas para universalizar a cobertura, garantindo renda mesmo para aquelas famílias com inserção precária no mercado de trabalho. Essa é uma proteção social que cria condições e oportunidades para o desenvolvimento do país. Também centrado na necessidade de universalização da renda, está o texto de Guilherme Delgado. O autor lança uma proposta para romper o estágio atual de desproteção, aumentado por duas décadas de precarização do trabalho e desfiliação previdenciária. Como instrumento de planejamento de longo prazo, considera importante, dentro do objetivo da inclusão, remodelar o plano de benefícios e constituir um fundo garantidor de direitos para cobrir as demandas futuras. A previdência rural e o grande significado econômico e social da sua universalização são discutidos no texto de Jane Berwanger. As inovações de 88 são apresentadas como instrumentos de ampliação do ambiente de cidadania no campo brasileiro. A adoção do direito previdenciário, em substituição ao benefício assistencial, condiz com o reconhecimento da condição de trabalhador e levou dignidade para o campo. A autora afirma ainda que maiores são os efeitos sociais e econômicos da previdência rural na distribuição de renda e na interiorização da riqueza. O texto de Wagner Balera analisa aspectos constitucionais do financiamento da seguridade e a exclusividade das contribuições sociais. Identifica no efeito das desvinculações desses recursos e no estabelecimento de descabidas exigências para o acesso aos benefícios elementos que retardam a universalização da cobertura. Wladimir Martinez faz um apanhado crítico sobre o plano de benefícios da previdência social, identificando elementos para a sua atualização, o que considera uma necessidade permanente de um sistema dessa natureza. Retratando uma experiência recente no Fórum Nacional de Previdência Social, Clemente Lúcio apresenta o papel das entidades sindicais de aposentados e pensionistas na resistência das reformas, na defesa da previdência pública e na ampliação da sua cobertura. A integração da previdência no sistema da Seguridade e a sua associação a um projeto de desenvolvimento marcou a atuação dessas entidades. Afinal, cabe à riqueza socialmente gerada também financiar um amplo sistema de proteção social.
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A quarta parte debate a saúde diante dos problemas atuais de restrição ao financiamento e os desafios da resolutividade do setor. Num artigo conjunto, Rosa Marques e Áquilas Mendes analisam como são coincidentes as lutas pela universalização da saúde e pela democracia. Avaliam tanto a necessidade de ampliação da cobertura quanto a descentralização da gestão do sistema. Abordam ainda a luta do setor pela ampliação do seu financiamento. Esse é também o enfoque de Sérgio Piola e Solon Vianna. Esses autores ressaltam como o Brasil, frente a outros países, tem ao mesmo tempo baixos níveis de gastos públicos em saúde -frente ao PIB- e pequena participação do financiamento público nos serviços de saúde. Destacam a regulamentação da Emenda Constitucional 29 como fundamental para corrigir essas distorções e garantir um financiamento estável para que o setor possa enfrentar os seus problemas. Sônia Fleury aborda a luta pela qualidade dos serviços de saúde, a sua construção histórica e os avanços da universalização, descentralização e democratização da gestão. Analisa os problemas que resultaram do desfinanciamento do setor, que não permitem resolver questões como a necessidade de equalização da rede, a precariedade das relações de trabalho dos profissionais do sistema público e a falta de qualidade das políticas e ações. Hoje o desafio de tornar o direito à saúde é uma demanda exigível, assegurado por um atendimento seguro, humanizado e de qualidade. A quinta parte examina a assistência social como geradora da cidadania e como mais um instrumento para o desenvolvimento econômico. Marcelo Neri debate a importância dos gastos sociais, pelo que resultam em melhoria nas condições de vida, e defende o monitoramento de resultados e a imposição de incentivos para a boa aplicação dos recursos na área social, especialmente nas áreas de educação, saúde e de assistência social. A atribuição de deveres sociais ao setor público é uma medida importante que complementa a descentralização de recursos da União. O texto de Luciana Jaccoud analisa como as políticas assistenciais inovaram e se consolidaram como instrumentos de proteção social e de garantia de cidadania. A autora aborda as ações de enfrentamento à pobreza e desigualdade dentro das referências de direitos à cidadania e as suas relações com as políticas de desenvolvimento e de geração de ocupação e renda em atenção aos segmentos mais vulneráveis da sociedade.
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Esperamos que esse livro possa contribuir para o debate sobre os desafios e as perspectivas da luta em defesa da Seguridade Social. Neste momento, ampliam-se as discussões sobre as políticas que dominaram o cenário político e econômico nos últimos 20 anos, seus pressupostos e seus resultados. Embora a Constituição tenha sido muito alterada por toda essa hegemonia liberal, a resistência de amplos setores fez com que remanescesse a maior parte de importantes dispositivos. Direitos individuais, coletivos, sociais, políticos e, como objetivos fundamentais do nosso país, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação da pobreza e a garantia de um desenvolvimento nacional que estabeleça para a ordem econômica a prioridade do pleno emprego e a redução das desigualdades regionais e sociais, garantindo, assim, a construção de um novo projeto de Nação. Flávio Tonelli Vaz Juliano Sander Musse Rodolfo Fonseca dos Santos Coordenadores
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“A vida sem luta ĂŠ um mar morto no centro do organismo universalâ€? Machado de Assis
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Apresentação Os 20 anos da Constituição devem ser celebrados, em primeiro lugar, porque significaram um marco no processo civilizatório brasileiro. Pela primeira vez conquistamos a cidadania plena (civil, política e social), segundo a concepção clássica de Marshall (1967). Além da restauração do Estado Democrático de Direito, o legado dos movimentos sociais foi a construção de um razoável sistema de proteção social conquistado na contramão do pensamento neoliberal hegemônico em escala mundial e do movimento em direção ao Estado mínimo a que foram submetidos os países subdesenvolvidos, incluindo os da América Latina. Em grande medida, isso decorreu do fato de que a agenda da redemocratização do País, impulsionada pelo movimento social, não abriu brechas para os experimentos neoliberais – pelo menos até o final dos anos 80. O cenário hostil, a partir de 1990 e até os dias atuais, não impediu que parcela significativa das conquistas de 1988 fosse consagrada. Em segundo lugar, e mais importante, porque essa celebração é uma oportunidade de conscientizar os segmentos que lutam pela justiça social sobre a urgência de se construir uma trincheira pela defesa dos direitos que ainda restaram da Carta de 1988. As classes dominantes jamais aceitaram tais avanços que, em última instância, apenas asseguraram as bases para a construção de uma sociedade democrática e justa. Na Assembléia Nacional Constituinte (ANC) usaram todos os meios disponíveis para impedir esses avanços. Desde então investem – e lograram êxitos – para retroceder a cidadania social recém conquistada. Nos últimos 20 anos, no tocante aos direitos sociais, a Constituição Cidadã viveu um calvário e sobreviveu mutilada e transfigurada. Este texto tem por objetivo trazer uma síntese dessa procissão de mutilações, apresentada nos seguintes tópicos 2: 1. Oposição na Assembléia Nacional Constituinte 2. As Primeiras Transgressões (1989) 3. A Primeira Etapa da Contra-Reforma (1990/92) 1. Professor do Instituto de Economia da Unicamp 2. Baseado em Fagnani (2005). 23
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4. O Funeral Adiado (1993) 5. A Segunda Etapa da Contra-Reforma (1993/02) 6. Novas Tentativas de Contra-Reforma (2003/06) Na parte final (Conclusões e Perspectivas) são tecidas considerações sobre o pano de fundo – sempre omitido pelos setores conservadores – para a compreensão da questão financeira das políticas sociais: a consolidação do sistema de proteção social coexistiu com a degradação das bases financeiras do Estado, conseqüência das opções macroeconômicas adotadas, sobretudo, a partir do início da década de 90.
1. Oposição na Assembléia Nacional Constituinte Na ANC as forças conservadoras se opuseram à agenda de reformas progressistas formulada no final dos anos 70 (PMDB, 1982). A formação do “Centrão” e a ameaça do fechamento do Congresso Constituinte por um ato de força do governo, feita pelo líder do PFL, deputado José Lourenço, são emblemáticas (Matemática confusa. Veja, 27/7/1988). Mas nada se compara a um ato do presidente da República que, numa derradeira tentativa para modificar os rumos da ANC, convocou a cadeia nacional de rádio e televisão para “alertar o povo e os constituintes” para “os perigos” que algumas das decisões contidas no texto aprovado no primeiro turno representavam para o futuro do país. Sentenciou que o país tornar-se-ia “ingovernável”, pois os novos direitos sociais causariam uma “explosão brutal de gastos públicos” (Sarney vai à TV criticar o projeto. Gazeta Mercantil, 27/7/1988).3 Após quase 20 anos, não se pode afirmar que a Seguridade Social tenha quebrado o país, ou que ela seja a principal vilã do ajuste fiscal e do desgoverno. Por outro lado, ela é, sem dúvidas, um dos principais pilares da governabilidade. Atualmente, a previdência social (urbana e rural) e a assistência social beneficiam direta e indiretamente cerca de 90 milhões de pessoas, por exemplo. Quase 70% dos benefícios são equivalentes ao piso de um salário mínimo. Sem ela, a população em situação de pobreza seria 11% maior.
3. O discurso de Sarney provocou a histórica defesa da ANC feita pelo deputado Ulysses Guimarães, que fulminou, magistralmente, a tese do ‘desgoverno’: “Senhores constituintes: a Constituição, com as correções que faremos, será a guardiã da governabilidade. A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença são ingovernáveis. A injustiça social é a negação do governo e a condenação do governo (...). Repito: esta será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros. Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros segregados nos guetos da perseguição social. Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo. (...).” (Ulysses Guimarães. “Esta constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo. Folha de São Paulo, 28/7/1989). 24
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2. As primeiras transgressões (1989) A ofensiva dos conservadores não impediu que a maior parte da agenda de transformação formulada pelo movimento social fosse inscrita na Constituição. Tiveram êxito, apenas, na Reforma Agrária (Gomes da Silva, 1987 e 1989). Todavia, antes que a nova Carta começasse a ser impressa na gráfica do Congresso, esses segmentos voltaram a agir deslocando suas baterias para embaraçar o processo de regulamentação da legislação constitucional complementar. O argumento do “país ingovernável” foi retomado pela área econômica. Difundiam previsões catastróficas acerca do “alarmante déficit da previdência”, por exemplo, e de seus impactos na “explosão das contas do setor público”. Dado esse pano de fundo, diversas manobras foram utilizadas com o propósito de retardar a efetivação desses direitos e desvirtuar o espírito de alguns dispositivos. Observese, a seguir, os casos mais exemplares. 2.1 Seguridade Social A Constituição estabeleceu que a organização da Seguridade Social fosse competência do Poder Público. A Carta definiu prazos para que essa organização se fizesse (art. 59 dos Atos das Disposições Constitucionais Provisórias). Entretanto, esse artigo foi olimpicamente descumprido. O Executivo não formulou o Projeto de Lei de Organização da Seguridade Social. Optou por formular projetos de lei setoriais (saúde, previdência, assistência social e seguro-desemprego), separados e desarticulados, fragmentando a Seguridade Social. Da mesma forma, o Orçamento da Seguridade Social (OSS) foi incluído na Carta entre as três peças que integravam a “Lei Orçamentária Anual”, que o Executivo Federal passou a ser obrigado a submeter ao Congresso Nacional. O texto constitucional também determinou que o OSS fosse elaborado de forma integrada pelos ministérios das quatro áreas envolvidas. Todavia, o Executivo também descumpriu essa determinação. A área econômica caminhou na posição oposta, visando a capturar os recursos vinculados ao OSS. Nesse sentido, destacam-se as seguintes práticas adotadas nos orçamentos da União em 1989 e 1990 (Azeredo, 1989 e 1990; e Teixeira, 1991): i. centralização das Receitas do OSS no Tesouro Nacional pela transferência do IAPAS para o Ministério da Fazenda; ii. descumprimento da obrigatoriedade de transferência de recursos fiscais para financiar a Seguridade Social; iii. uso de fontes do OSS no custeio dos servidores inativos da União. 25
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2.2 Previdência Social Destacam-se duas manobras que visavam a deformar e retardar a regulamentação do Plano de Benefícios e Custeio da Previdência Social: i. a primeira foi a edição de sucessivas medidas provisórias pelo Executivo federal, visando desvincular a correção dos benefícios da previdência social do salário mínimo; ii. a segunda consistia em embaraçar o processo de negociação com o Congresso Nacional para a definição das fontes de financiamento. Esse Plano, que deveria ser apresentado pelo Executivo ao Congresso Nacional no início de abril de 1989, só foi submetido no final de junho. Por sua vez, o Congresso Nacional, que deveria apreciá-lo em seis meses, não o fez em boa parte por causa das restrições orçamentárias. 2.3 Seguro-Desemprego Com a Constituição, parte dos recursos do PIS-Pasep passou a financiar o segurodesemprego e o abono anual. Essas mudanças também não foram assimiladas pela área econômica do governo, que desencadeou manobras para impedi-las, com destaque para: i. a centralização das receitas do Ministério da Fazenda; ii. a retenção e a demora nos repasses; iii. a redução das alíquotas do PIS-Pasep. Posteriormente, o Projeto de Lei que regulamentava o seguro-desemprego foi aprovado em dezembro de 1989 pelo Congresso Nacional. Entretanto, em janeiro de 1990, o presidente da República sancionou a Lei n. 7.998, vetando os artigos que permitiam ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) administrar recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), descaracterizando o projeto do Congresso Nacional. 2.4 Sistema Único de Saúde – SUS Em agosto de 1989 o Executivo Federal encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei Orgânica da Saúde (LOS). Em função das restrições financeiras do orçamento, a Comissão Mista de Saúde, Previdência e Assistência Social da Câmara dos Deputados só conseguiu aprovar o projeto da LOS em dezembro de 1989. Depois, o projeto teria de ser submetido à Comissão de Finanças da Câmara e ao Senado Federal. Entretanto, isso não ocorreu no Governo Sarney. 26
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2.5 Assistência Social A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) também não foi aprovada dentro dos prazos estabelecidos. A Comissão de Saúde, Assistência e Previdência Social da Câmara aprovou a LOAS no final de novembro de 1989. Antes da sanção presidencial, o projeto teria ainda de ser submetido à Comissão de Finanças da Câmara e ao Senado Federal. Em grande medida, isso aconteceu porque o projeto de Orçamento Geral da União para 1990, enviado ao Congresso, não reservou recursos para financiar a concessão de um salário mínimo aos deficientes físicos ou mentais e aos idosos que comprovassem condições de pobreza (atual Benefício de Prestação Continuada).
3. A primeira etapa da Contra-Reforma (1990/92) A partir de 1990 abriu-se um novo ciclo de reformas liberais e conservadoras. No plano internacional, esse ciclo foi condicionado pela ruptura dos compromissos selados entre capital e trabalho, nos “anos de ouro”, entre 1945 e 1975, sob a hegemonia do pensamento neoliberal. Em suma, só em 1988 o Brasil incorporou o paradigma adotado pelos países desenvolvidos a partir de 1945. Quando o fez, esse paradigma já estava na contramão do movimento do capitalismo em escala mundial. No campo social, os princípios do paradigma neoliberal eram absolutamente antagônicos aos da Carta de 1988. A “Constituição Cidadã” se transformou na ‘Constituição anacrônica’ (Campos, 1994; Giambiagi, 2007). Assim, desde o início dos anos 90 a política social brasileira vem sendo submetida a tensões entre dois paradigmas antagônicos: o Estado mínimo versus o embrionário Estado de bem-estar social; a Seguridade Social versus o seguro social; universalização versus a focalização; a prestação estatal dos serviços versus privatização; os direitos trabalhistas versus a desregulamentação e flexibilização. 3.1Fundamentalismo de uma Nota Só Para os defensores do Estado mínimo4, o gasto social aplicado em políticas universais está “desfocado”. Esses recursos existem, são apropriados pelos “privilegiados que estão no topo da pirâmide de distribuição da renda”. Omitem que os 20% mais ´ricos` são os indivíduos com rendimentos superiores a pouco mais de R$ 500. Assim, para “erradicar a pobreza”, o fundamentalismo de uma nota só defende uma única estratégia: programas focalizados de transferência de renda. Elegem um único público-alvo: as famílias que estão “abaixo da linha de pobreza”. A definição é subjetiva: 4. Consultar, entre outros: Henriques (2000); Paes de Barros e Fogel (2000); Ferreira e Litchfield (2000); Scheinkman e outros (2002); Giambiagi, Reis e Urani (2004); e Paes de Barros e Carvalho (2004). 27
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aqui, a tecnocracia arbitrou que a linha que divide os miseráveis dos afortunados é a renda de R$ 120. Quando se diz que a pobreza no Brasil foi reduzida, significa que alguns indivíduos passaram a ganhar mais que esse valor. Quem passou a ganhar R$ 150, por exemplo, “deixou de ser pobre” e teria adentrado o admirável mundo da prosperidade. Logo, qualquer programa social que tenha impactos sobre a população que ganhe mais de R$ 120 é considerado não “focalizado”: o seguro-desemprego, por exemplo, seria apropriado pelas “elites dos trabalhadores” (aqueles que possuem carteira de trabalho). A ‘solução’ para “erradicar” a pobreza é simples: destruir as políticas universais e transferir esses recursos exclusivamente para os programas focalizados. Essa corrente desconsidera o crescimento econômico e os seus impactos sobre o emprego e a renda. Desqualifica a importância da reposição do valor real do salário mínimo. Descarta a necessidade de políticas sociais que assegurem direitos universais. Prega que apenas com políticas “cientificamente focadas” será possível pôr “fim à exclusão social” e “erradicar” a pobreza. A competência em convencer o senso camufla o fato de se tratar de uma sedutora versão da agenda em favor do Estado mínimo pela via da destruição do embrião do projeto de Estado de bem-estar social. Atuam como um exército que visa, em última instância, ao ajuste fiscal pela subtração de gastos sociais universais. Políticas de transferência de renda são baratas. O gasto anual com o Programa Bolsa Família é de cerca de R$ 10 bilhões, enquanto os gastos previdenciários (INSS e Previdência Rural) atingem mais de R$ 160 bilhões. Essa é verdadeira razão que move a suposta opção pelos mais pobres. Entendo que uma efetiva estratégia de combate à pobreza no Brasil não pode prescindir de programas emergenciais focados naqueles que estão à margem do trabalho e submetidos à miséria extrema. O equívoco é pretender fazer desse eixo a própria ‘estratégia’ de enfrentamento do problema social, como preconizam os “economistas da pobreza”. Lamentavelmente, essa perspectiva tem sido preconizada por instituições internacionais de fomento (Banco Mundial, 2001, por exemplo) e defendida por inúmeros especialistas. E, não se pode acusar o atual Governo brasileiro de estar cometendo esse equívoco. Dado este pano de fundo, assiste-se, a partir de 1990, a uma contínua tentativa de fazer regredir a cidadania conquistada em 1988. Há um longo processo de negar direitos constitucionais, em favor do reforço da opção (exclusiva) pelos programas focalizados. A primeira etapa do contra-reformismo ocorreu durante o curto Governo Collor de Mello (1990-1992). Á exemplo do governo anterior, o Executivo deflagrou uma estratégia que visava a obstruir ou desfigurar a legislação constitucional complementar. Observem-se os casos mais exemplares: 3.2 Seguridade Social 28
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O Plano de Organização e Custeio da Seguridade Social só foi regulamentado em julho de 1991.5 A Lei sancionada tornou constitucional algumas das transgressões adotadas no final do Governo José Sarney e já referidas aqui, com destaque para: i. determinou o uso dos recursos provenientes da Cofins e da CSLL para pagar os encargos da Previdência dos Servidores Públicos Federais (na proporção de até 55% do total dessa despesa, em 1992; de até 45%, em 1993; de até 30%, em 1994; e de até 10%, a partir de 1995). 6 ii. a “Contribuição da União” para a Seguridade Social deixou de integrar o Orçamento da Seguridade Social. Ela seria adicionada a ele, na cobertura de eventuais insuficiências financeiras, desde que decorrentes do pagamento de prestação continuada da previdência, não se considerando insuficiências geradas nas políticas de saúde e assistência social. iii. a reforma administrativa empreendida por Collor também desconsiderou a Seguridade Social. Teixeira (1991:31) sublinha que o Governo Federal, “ao invés de constituir o Ministério da Seguridade Social”, optou “pelo caminho da fragmentação, abandonando o conceito de seguridade e empreendendo uma volta atrás na própria concepção do sistema de proteção, reforçando a velha idéia de seguro. Reunindo os antigos INPS e IAPAS em um único instituto, que não por acaso chamou de Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e, ademais, colocando toda a estrutura previdenciária sob a jurisdição do velho Ministério do Trabalho e da Previdência Social”. 3.3 Previdência Social A desfiguração do Orçamento da Seguridade Social, acima referida, impactou as possibilidades de financiamento da previdência. Não foi outra a razão de ambos os projetos de lei terem sido negociados pelo Executivo como imbricados e sancionados no mesmo instante. Especificamente no caso da previdência social, destacam-se as seguintes manobras: i. em agosto de 1990 o Executivo editou a Medida Provisória n. 225/90, desvinculando os benefícios previdenciários e o salário mínimo e estabelecendo a variação da cesta básica, calculada pelo IBGE, como indexador. ii. o Executivo vetou integralmente o Projeto de Lei n. 47/90, que havia sido aprovado pelo Congresso em agosto de 1990, que regulamentava o Plano de Benefícios, 5. Lei n. 8.213/91. 6. Observe-se que a Seguridade Social consagrada pela Constituição de 1988 não incorpora a Previdência do Servidor Público Federal como seu componente. Esses gastos sempre foram cobertos por recursos fiscais da União, considerados na rubrica “Encargos Previdenciários da União” (EPU). 29
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Custeio e Organização da Previdência Social. Posteriormente, em dezembro de 1990, o Congresso derrubou esse veto. Após uma nova rodada de negociações, foi somente em julho de 1991 que o Plano de Benefícios da Previdência Social foi regulamentado.7 iii. o Governo optou por “represar” a concessão desses benefícios. Impelido por sentença do Supremo Tribunal Federal, em 1993 o Governo Itamar Franco inicia o pagamento dos direitos assegurados desde 1988. 3.4 Sistema Único da Saúde - SUS
para:
O SUS também foi objeto de inúmeras transgressões nesta fase, com destaque i. o reforço do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) – símbolo da política de saúde da ditadura -, ressuscitado como órgão central de planejamento, gestão e financiamento do SUS. ii. o veto presidencial a 25 itens da Lei Orgânica de Saúde (LOS) aprovada pelo Congresso Nacional, a maior parte concentrada nos dispositivos sobre o financiamento do SUS e na participação dos segmentos sociais8 no gerenciamento do sistema. A Lei n. 8.080/90 atingiu, portanto, a espinha dorsal do SUS. iii. este desvirtuamento prosseguiu com a Lei n. 8.142/91 e com a Norma Operacional Básica (NOB) n. 1, de 1991, regulamentadas por uma série de portarias ministeriais, que introduziram novas deformações nos mecanismos de financiamento do SUS. 3.5 Assistência Social
No setor da assistência social, destaca-se o veto integral do presidente Collor, em setembro de 1990, ao projeto de regulamentação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), elaborado e aprovado pelo Congresso Nacional. Esse processo foi iniciado em meados de 1989, com a proposta do então deputado Raimundo Bezerra, a qual tramitou no Congresso e foi aprovada (dois turnos de votação) pela Comissão Temática (novembro de 1989) e pela Comissão de Finanças (maio de 1990).
7. Respectivamente, pelas Leis n. 8.212/01 e n. 8.213/91. 8. A participação da comunidade foi reincorporada pela Lei n. 8.142 de 28/12/1990, de iniciativa do Congresso Nacional. 30
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3.6 Seguro- Desemprego A Lei n. 8.019, de 11/4/1990,9 sancionada pelo Governo Collor, reestruturou parcialmente o FAT, recuperando aspectos do projeto original que havia sido aprovado pelo Congresso no início de 1990. No entanto, prevaleceu o veto do Executivo a um mecanismo central para o financiamento do seguro-desemprego, qual seja a instituição de um fundo único, cujos recursos seriam aplicados no seu conjunto pelo BNDES. Além disso, o Executivo autorizou a utilização de recursos do FAT para finalidades não previstas pela Constituição: aplicações no Banco do Brasil e empréstimos para o INAMPS (Azevedo e Chahad, 1992). 3.7 Políticas Urbanas Na transição democrática (1985-1990), foram feitas tentativas que visavam à reforma estrutural do Sistema Financeiro da Habitação, do Sistema Financeiro do Saneamento e da política nacional de transporte público. Todavia, na contramão desses ensaios de reformas progressistas, no final de 1986, o Executivo Federal extinguiu o BNH e esvaziou a referida estratégia. Desde então, assiste-se à sobreposição da crise institucional à crise financeira herdada do autoritarismo. A extinção do BNH foi o estopim de um longo período de desmontagem da capacidade de intervenção do Estado nos setores de habitação popular, saneamento e transporte público que se estende até os dias atuais.
4. O funeral adiado (1993) Os constituintes de 1988 determinaram que a Constituição fosse revisada em 1993, integralmente, pela maioria absoluta dos votos do Congresso Nacional. Esse seria o momento aguardado pelos conservadores para, de uma vez por todas, enterrar a “anacrônica” Constituição da República. A correlação de forças conspirava a favor dos poderosos. Viviase o auge do pensamento único e a mitigação do extraordinário movimento social que lutou contra a ditadura militar. Nesse contexto, a estratégia do Governo Collor para a política social era a formulação de nova agenda de reformas, na expectativa dessa revisão constitucional prevista para 1993. Entretanto, as turbulências decorrentes do impeachment do presidente Collor ao longo de 1992 e as indefinições e instabilidades presentes em 1993 acabaram inviabilizando a revisão constitucional. Assim, o funeral da Carta de 1988 teve de ser adiado. Refeito o impasse, os conservadores voltaram à carga nos anos seguintes. 9. A legislação referente ao seguro-desemprego e ao FAT é composta de duas leis: Lei n. 8.287, de 20/12/1991, e Lei n. 8.352, de 28/12/1991. 31
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5. A segunda etapa da Contra-Reforma (1993/02) O impedimento de Collor truncou temporariamente a contra-reforma que vínhamos acompanhando. O intervalo entre outubro de 1992 e meados de 1993 é marcado pela instabilidade política e pela indefinição acerca da estratégia econômica do Governo. Com a gestão de Fernando Henrique Cardoso (FHC) no comando do ministério da Fazenda, em maio de 1993, o contra-reformismo foi retomado, agora de forma homeopática. No primeiro mandato presidencial de FHC (1995-1998), esse ciclo foi intensificado e se estendeu ao longo do seu segundo mandato (1999-2002). 5.1 Captura de Recursos Constitucionais Uma das medidas que contribuíram para desestruturar as bases financeiras das políticas sociais (e dos Estados e municípios) foi a captura, pela área econômica, de parcela das fontes de financiamento vinculadas pela Constituição de 1988. Nesse sentido, destaca-se a instituição do Fundo Social de Emergência (FSE) (EC n. 01/94). Esse fundo “emergencial” foi, posteriormente, renomeado como Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, mais à frente, Desvinculações de Recursos da União (DRU). O FSE aumentou a carga tributária (aumento de 5% da alíquota sobre todos os impostos e contribuições) e ao mesmo tempo desvinculou receitas constitucionais garantidas aos Estados e municípios (15% das transferências constitucionais a Estados e municípios, oriundas de recursos do FPE e FPM) e aos programas sociais do Governo Federal (20% da arrecadação de impostos e contribuições federais). Nesse último caso, isso representou a captura de parcela dos recursos do Orçamento da Seguridade Social (FPAS, CSLL, COFINS, PIS-Pasep) e da educação (salário-educação), dentre outras. 5.2 Retrocesso nos Direitos Previdenciários A Reforma da Previdência realizada em 1998 (Emenda Constitucional n.20) enterrou parcialmente o legado da Constituição de 1988. Dentre o conjunto de medidas adotadas, destacam-se: i) substituiu-se a comprovação do “tempo de serviço” pelo “tempo de contribuição”; ii) eliminou-se a aposentadoria proporcional; iii) desvincularam-se o benefício previdenciário e o salário mínimo, para os benefícios acima do piso; e iv) rebaixou-se o teto nominal dos benefícios. Por razões de espaço, comentamos aqui apenas as mudanças introduzidas na idade mínima e no tempo de contribuição. Para os contra-reformistas, uma das distorções do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) era a aposentadoria em idade considerada precoce. Essa crítica estava parcialmente correta. De fato, não houve consenso na ANC para introduzir o limite de idade (55 anos para aposentadoria). Sem a fixação da idade mínima, prevaleceu a aposentadoria 32
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“por tempo de serviço” aos 35 anos para o homem e aos 30 anos para a mulher. Todavia, para corrigir essa distorção, a EC n. 20/98, proposta pelo Executivo, preconizava regras draconianas de acesso: acumulavam idade mínima (65 anos para homens e de 60 anos para mulheres) mais tempo de contribuição (35 anos para homens e 30 anos para mulheres). Felizmente, não houve consenso em torno desse ponto no Congresso Nacional. Com o texto final aprovado, a partir de 1998 passaram a existir duas alternativas para a aposentadoria: i. a aposentadoria “por idade” – 65 anos para homens e 60 anos para mulher, além da exigência de contribuição mínima por 15 anos; e ii. a aposentadoria “por tempo de contribuição” – 35/30 anos e idade mínima de 53/48 anos. Nesse caso, até que os contribuintes atinjam 65/60 anos, passou a incidir o chamado “fator previdenciário”, criado posteriormente (1999), que suprime parcela expressiva do valor do benefício, incentivando a postergação da aposentadoria. No caso da “aposentadoria por idade”, conseguiu-se transpor para este nosso país de miseráveis padrões semelhantes ou superiores aos existentes em países desenvolvidos. A idade mínima de 65 anos não era adotada sequer em países como a Bélgica, Alemanha, Canadá, Espanha, França e Portugal (60 anos) e os EUA (62 anos), por exemplo; e equivale ao parâmetro seguido na Suécia, Alemanha, Finlândia e Áustria (65 anos), por exemplo. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) faz uma distinção, ao definir a população idosa, entre países desenvolvidos (acima de 65 anos) e países em desenvolvimento (acima de 60 anos) (FIBGE, 2002:9). No caso da “aposentadoria por tempo de contribuição”, passou-se a exigir a comprovação de 35 anos para os homens e de 30 anos para as mulheres. Esse patamar é superior ao estabelecido, por exemplo, na Suécia (30 anos) e a Finlândia (30 a 39); e se aproxima do nível vigente em outros: EUA (35 anos), Portugal (36), Alemanha (35 a 40) e França (37,5), dentre vários. Nesse caso, até que os contribuintes atinjam 65/60 anos, passou a incidir o chamado “fator previdenciário” (criado em 1999) que suprime parcela do valor do benefício e posterga o início da aposentadoria. Assim, tanto a idade mínima para homens e mulheres (65 e 60 anos), quanto o tempo de contribuição (35 e 30 anos), são elevados em relação aos padrões estabelecidos em países desenvolvidos. A vigência dessas regras mostra-se paradoxal, se consideramos que não há como demarcar qualquer equivalência entre esses países e o nosso contexto socioeconômico e demográfico de capitalismo tardio. A implicação desse quadro é óbvia para a proteção social: a maior parte dos trabalhadores brasileiros dificilmente terá condições de comprovar tempo de contribuição para o sistema de previdência.
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5.3 Direitos trabalhistas O panorama sombrio do baixo crescimento econômico dos anos 90 - implícito ao Plano Real – e a conseqüente crise do emprego e da renda enfraqueceram o poder dos sindicatos. Com os sindicatos na defensiva, intensificou-se o processo de desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho. As negociações coletivas passaram a ser descentralizadas e pulverizadas entre setores, no interior de cada categoria profissional ou até dentro de uma empresa. Para justificar a desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho, os interlocutores do projeto liberal difundiram a idéia de que o desemprego e a informalidade decorreriam da ‘rigidez’ da legislação trabalhista, de um lado; e, do ‘elevado custo do trabalho’, de outro. Segundo essa visão, o emprego aumentaria num contexto de liberdade irrestrita de contratação e de redução dos encargos sociais. Ambas as formas conduziriam à supressão de direitos trabalhistas. Nessa perspectiva, duas das orientações centrais da política trabalhista nessa etapa foram, precisamente, a tentativa de reduzir os encargos sociais (combate ao ‘elevado custo do trabalho’) e a flexibilização (combate à ‘excessiva regulamentação’). Klein (2003) faz um amplo balanço das medidas de flexibilização das relações de trabalho implementadas entre 1994 e 2002. O autor demonstra que esse objetivo foi logrado mediante “inúmeras medidas pontuais” que, embora pulverizadas, “apresentam uma coerência na perspectiva de redesenhar o sistema de relações de trabalho vigente no país”. Além disso, elas “colocam novos pontos na agenda das negociações coletivas, induzindo uma mudança no comportamento dos autores sociais no processo de negociação coletiva”. 5.4 Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional No setor da educação, destaca-se a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e sua promulgação pelo presidente da República, em dezembro de 1996. A tramitação da LDB no Congresso Nacional levou oito anos. Ao longo desses anos, houve intenso debate e interlocução constante entre representantes do Governo Federal e da sociedade civil, com destaque para o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública.10 Todavia, o projeto de LDB aprovado em 1996 (substitutivo do Senador Darcy Ribeiro) estava claramente articulado com a estratégia do Executivo Federal e representou um retrocesso em relação ao anteprojeto de LDB apresentado em 1988 pelo deputado 10.O Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública é constituído de 26 entidades nacionais(TEM UMAS 40 REVER) : Ande, Andes-SN, Anpae, Anped, CBCE, Cedes, CGT, CNTE, CNTEEC, Conan, Conarcfe, Consed, Contag, CRUB, CUT, Fasubra, FBAPEF, Fenaj, Fenase, Fenoe, OAB, SBPC, Ubes, Unidime e UNE, e tem por objetivo discutir diferentes propostas e defender aquelas consideradas consensuais no setor educativo. 34
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federal Otávio Eliseu (PSDB/MG); e pelos substitutivos ao anteprojeto de autoria do deputado Jorge Hage (PSDB/BA) (1989) e da deputada Ângela Amim (PPR/SC) (1993). Exceto o substitutivo aprovado (Darcy Ribeiro), os demais preservavam os consensos entre os constituintes e as organizações da sociedade civil, obtidos após mais de uma década de negociação (Souza e Maluf, 1996 e 1998). 5.5 Saúde Em 1993 o Governo Federal decidiu utilizar integralmente as fontes do Fundo de Previdência e Assistência Social (FPAS), parte do OSS, na cobertura dos benefícios previdenciários. Com isso, o SUS deixou de contar com essa importante fonte de seu financiamento. A subtração da sua base financeira comprometeu estruturalmente a sua implantação, ao provocar uma crise sem precedentes no setor. Desde então, o SUS passou a depender das disponibilidades financeiras do Tesouro Nacional, sofrendo significativa redução no seu patamar de gastos. Esse ‘buraco negro’ permaneceria até o final de 1996, quando o Congresso Nacional aprovou a Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF). Posteriormente, a área econômica também capturou os recursos da CPMF e, em 2007, essa fonte de recursos foi extinta. Por outro lado, a despeito das restrições financeiras, o SUS experimentou uma progressiva reestruturação dos seus mecanismos institucionais e de gestão. A partir de 1993, nota-se inflexão positiva na postura do Governo Federal, que amplia seu papel na condução e na coordenação em plano nacional. Esse processo foi retomado no início do Governo Itamar Franco (1993-1994), pela pressão dos setores organizados comprometidos com a Constituição de 1988. Uma medida de grande alcance para resgatar e consolidar o SUS foi a extinção do INAMPS, pela Lei n. 8.689/93, sancionada na Gestão Itamar Franco, em meados de 1993.11 Como mencionei, o INAMPS, símbolo da política de saúde privatista do regime militar e antítese do SUS, havia sido revitalizado pelo Governo Collor. Ainda em 1993, o ministério da Saúde divulgou dois documentos que visavam àquela reorganização. O primeiro, com o contundente título de “Municipalização das ações de saúde: a ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”. O segundo foi a Norma Operacional 11.Posteriormente, foram editados novos dispositivos legais disciplinando esta matéria. Consultar especialmente: Decreto 907 de 31/8/1993 – Regulamenta a Lei n.8.689 de 27/7/1993; Medida Provisória n. 379 de 30/11/1993 (nova redação ao art. 3o da Lei n.8.689 – extinção do Inamps); Medida Provisória n. 405 de 30/12/1993 (nova redação ao art. 3o da Lei n.8.689 – extinção do Inamps); Decreto n. 987 de 17/11/1993 – Altera Decreto n. 907 de 31/8/1993 (regulamenta a Lei n. 8.689 que trata da extinção do Inamps). 35
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Básica (NOB) n. 1/93, que procurou detalhar e operacionalizar as idéias explicitadas no documento anterior. Com a mudança no comando do Ministério da Saúde, após a queda de Collor, o próprio Executivo buscou retomar o processo original de consolidação dos princípios constitucionais do SUS. O Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) também desempenhou papel relevante nesse processo de reorganização da agenda federal nesse campo. 5.6 Assistência Social Na área da assistência social destaca-se a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (1993).12 A partir de 1995, deram-se passos adicionais nesse processo de planejamento das bases do novo modelo de gestão da assistência social. Uma inovação da LOAS foi a instituição do programa Benefício de Prestação Continuada (BCP), regulamentado em 1995. 5.7 Seguro - Desemprego No caso do seguro-desemprego, a atuação do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) foi ampliada, e o Executivo redimensionou as ações de combate ao desemprego, mediante o aumento da cobertura do programa de segurodesemprego. O Sistema Nacional de Empregos (Sine) foi transformado em uma agência pública de emprego, que operaria de forma descentralizada. A partir de 1995, o espaço de políticas “ativas” de emprego foi ampliado, com a instituição de programas voltados ao treinamento e qualificação de mão-de-obra e à concessão de microcrédito.
6. Novas tentativas de Contra-Reforma (2003/08) Entre 2003 e 2008 novas tentativas de desconstrução foram ensaiadas. As mais emblemáticas foram o “Programa do Déficit Nominal Zero”, o Fórum Nacional da Previdência Social (FNPS) e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 233/2008, que trata da Reforma Tributária e se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados. 6.1 O Programa do Déficit Nominal Zero Em meados de 2005, ganhou força a conhecida proposta do “déficit nominal zero” 12. Lei n. 8.742 de 7/12/1993. 36
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impulsionada pela área econômica do Governo (Fagnani, 2006). De forma simplificada, tratava-se de um programa de ajuste fiscal a ser executado por um período de 10 anos. O objetivo era reduzir a razão dívida/PIB de 51,5% para 30%. Ao invés de focar no crescimento do PIB, o plano privilegiava a redução da dívida, aumentando o superávit fiscal (de 4,5% para cerca de 7% do PIB). Essa meta seria obtida pela redução das despesas correntes – exceto despesas financeiras – (corte de 6,5 pontos percentuais do PIB). Para o plano dar certo, não poderá haver nenhuma turbulência econômica externa e interna nos próximos dez anos. Se assim fosse, em 2015, o superávit primário poderá ser reduzido, sobrariam recursos para os investimentos em infra-estrutura e estariam dadas as condições para o crescimento econômico sustentado. Um ponto que esteve submerso no debate é que a variável de ajuste repousava no que restou do sistema de proteção social. Em última instância, o ‘sucesso’ dependia da redução do patamar do gasto social e da desvinculação de suas fontes de financiamento (aumento da DRU de 20% para 40%). De forma surpreendente, a proposta foi duramente criticada pela ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, que colocou o dedo na ferida, apontando que a pretendida redução da razão dívida/PIB dependia, fundamentalmente, da queda dos juros: “Para crescer, é necessário reduzir a dívida pública. Para a dívida pública não crescer, é preciso ter uma política de juros consistente, porque senão você enxuga gelo. Faço um superávit primário de um lado e aumento o estoque e o fluxo da dívida. Eu me fechei em mim mesma. É uma discussão que tem de ser feita com muita cautela. Discutir ajuste fiscal de longo prazo não é fazer projeção para dez anos com base em planilha. Fazer um exercício de números dentro do meu gabinete e achar que ele será compatível com o nosso País não é consistente.” (O Estado de S. Paulo, 9 nov. 2005). Felizmente, em meio a tanta divergência interna ao próprio governo, o programa foi arquivado. Todavia, voltou ao centro do programa de governo do candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2006. 6.2 O Fórum Nacional da Previdência Social - FNPS No início de 2007 o Executivo Federal instituiu o FNPS. De caráter tripartite – governo, empresários e trabalhadores – o Fórum pretendia gerar consensos para a implantação de uma nova rodada de reformas da Seguridade Social. Essa iniciativa proporcionou outra oportunidade para que os setores conservadores tentassem concluir o serviço que vinham fazendo desde a Assembléia Nacional Constituinte. No debate proposto por esse segmento transparece uma construção ideológica baseada em mitos e fatos parciais. Tentam “comprovar” inviabilidade financeira da Seguridade Social 37
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e fazer retroceder conquistas - muitas das quais já efetivadas. Prevaleceu a visão de que a natureza da questão financeira da previdência social decorreria exclusivamente de fatores endógenos ao próprio sistema: em síntese, o desequilíbrio financeiro seria conseqüência exclusiva do crescimento dos gastos com benefícios, reflexos da suposta “generosidade” do atual plano de benefícios (Tafner, 2007). Omitem que a natureza da questão do financiamento da previdência social é preponderantemente exógena. Está relacionada ao estreitamento das fontes de financiamento do sistema, conseqüência das opções macroeconômicas adotadas nas últimas décadas que resultaram em baixo crescimento e estreitaram as bases de financiamento da previdência. Ressalta-se aqui que compreender a natureza da questão financeira do sistema previdenciário – endógena ou exógena – é ponto crucial para definir os rumos do planejamento governamental. O diagnóstico que privilegia a preponderância dos fatores endógenos implica fazer reformas que cortem os gastos correntes. Entender que os fatores exógenos prevalecem aponta para a alternativa do desenvolvimento econômico. Concluise que a alternativa mais eficaz e justa para enfrentar a questão financeira da previdência é crescimento da economia. Sem crescimento não há saídas civilizadas para a previdência social – nem para o país (Fagnani, Henrique e Lúcio, 2008). 6.3 A Proposta de Reforma Tributária (PEC 233/08) Atualmente há um novo espectro de desconstrução da cidadania social – o projeto de Reforma Tributária que tramita no Congresso Nacional (PEC 233/08) (CESIT, 2008). Em termos sintéticos, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 233/2008, que trata da Reforma Tributária e se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados, prevê: i. a criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA-F), com a extinção de quatro tributos federais: Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS); a contribuição para o Programa de Integração Social (PIS); a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a Importação e a Comercialização de Combustíveis (CIDE); e a Contribuição Social do Salário-educação; ii. a extinção da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL), incorporada ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ); iii. a destinação de percentuais da arrecadação do IVA-F e as do IR e IPI para as ações de governo antes atendidas pelas contribuições – definindo a emenda 38,5% para Seguridade Social e 6% para o amparo ao trabalhador, e, enquanto não editada Lei Complementar, 2,5% para o ensino fundamental. iv. a desoneração gradativa da folha de contribuição dos empregadores para previdência social; 38
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v. a unificação nacional da legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), eliminando-se a “guerra fiscal”; O principal objetivo da PEC é a simplificação da estrutura fiscal, extinguindose tributos e reduzindo-se cobranças cumulativas sobre um mesmo produto, em diversas etapas de produção e circulação da mercadoria. A simplificação da estrutura tributária é alvissareira. Todavia, há dois pontos cruciais que gostaríamos de assinalar. Em primeiro lugar, a ausência de objetivos voltados para a justiça fiscal, na medida em que a PEC não sinaliza a construção de um sistema tributário progressivo, pautado pela tributação da renda e do patrimônio. Em segundo lugar, a ameaça latente de desmonte das bases de financiamento das políticas sociais conquistadas pela Constituição de 1988. Observe-se que por detrás da simplificação e racionalização esconde-se o fim das vinculações, a desoneração da folha de contribuição dos empregadores para previdência social e a extinção de fontes de financiamento do Orçamento da Seguridade Social (COFINS; PIS; Contribuição Social do Salário-educação; e CSLL). A concretização dessas mudanças – sem a garantia constitucional de vinculação de recursos num patamar adequado para fazer frente aos gastos – fragiliza o financiamento da educação e enterra o Orçamento da Seguridade Social (artigo 195 da Constituição Federal). Assim, afeta a sustentação dos gastos em setores como previdência social (INSS urbano e Previdência Rural), assistência social, saúde, seguro-desemprego, geração de emprego e capacitação profissional (Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT). Eliminar a vinculação constitucional de fontes de financiamento significa ampliar o poder discricionário da área econômica. A sociedade dará um cheque em branco para a ortodoxia econômica, para que ela possa coroar, sobre o manto da racionalidade do sistema tributário, um longo processo de tentativas desses segmentos pela “flexibilização” da gestão orçamentária. Todos sabemos que em momentos de aperto fiscal os gastos sociais são os mais penalizados.
Conclusões e perspectivas O pano de fundo para a compreensão da atual questão financeira das políticas sociais no Brasil é presença de dois movimentos com vetores opostos: a consolidação do sistema de proteção social conquistado pelo movimento social em 1988 coexistiu com a degradação das bases financeiras do Estado, conseqüência das opções macroeconômicas adotadas, sobretudo, a partir do início da década de 90. Com a Constituição de 1988, o Brasil conseguiu construir um razoável sistema de proteção social, na contramão do neoliberalismo. Esse processo teve início com o movimento social que emergiu no final dos anos 70, no bojo da luta pela redemocratização do país. No início dos anos 80, ainda sob o regime militar, as forças políticas que protagonizavam 39
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essa luta desenhavam um amplo projeto de reformas progressistas apoiado em três núcleos centrais (PMDB, 1982): i. a restauração do Estado democrático de direito. ii. a construção de um sistema de proteção social, inspirado nos princípios do Estado de bem-estar social implantado nos países europeus nos “anos de ouro” do pósguerra (1945/75). iii. a concepção de uma nova estratégia macroeconômica, plenamente direcionada para o crescimento econômico com distribuição de renda. Nos dois primeiros núcleos, o desaguadouro desse difícil percurso foi a Assembléia Nacional Constituinte. Como se sabe, com a Constituição de 1988, a sociedade brasileira restabeleceu o Estado democrático de direito, primeiro núcleo do referido projeto. A nova Carta também consagrou o segundo núcleo: estabeleceu princípios e diretrizes inspiradas no Estado de bem-estar social. Todavia, se a sociedade brasileira teve êxito na viabilização de dois núcleos centrais da referida estratégia reformista progressista (restauração do Estado democrático de direito e construção de um razoável sistema de proteção social), o mesmo não se verificou no tocante ao terceiro núcleo: o desenho de uma nova estratégia macroeconômica totalmente direcionada para o crescimento e o desenvolvimento econômico com distribuição de renda. Como se sabe, o Brasil acumula 26 anos de estagnação da economia e mais de uma década de ajustes liberalizantes. Esse quadro tem apresentado crescentes limites financeiros para a manutenção das conquistas no campo da proteção social. Faltou, portanto, avançar na construção das bases financeiras que dariam sustentação para cidadania recém conquistada. Esse é o pano de fundo para se compreender a real questão do financiamento da Seguridade Social. A crise do Estado Nacional Desenvolvimentista – a partir do colapso da dívida externa (1982) e seus impactos restritivos sobre os mecanismos de financiamento do setor público – criou um campo fértil para os experimentos liberalizantes no campo macroeconômico, intensificados a partir de 1990. Nesse cenário, o objetivo do desenvolvimento foi marginalizado dentre as prioridades da agenda governamental em favor do ajuste macroeconômico e da reforma do Estado segundo os princípios liberais. Nesse contexto, observa-se a extrema incompatibilidade entre a estratégia macroeconômica e de reforma do Estado e as possibilidades efetivas de desenvolvimento e inclusão social (Fagnani, 2005). Em primeiro lugar, em decorrência da estagnação da economia, que ampliou a crise social, percebida, sobretudo, pela desestruturação do mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, fragilizou as bases de financiamento do gasto 40
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social, dependente, em grande medida, das contribuições incidentes sobre o mercado formal de trabalho. Em segundo lugar, em função dos juros elevados e dos seus efeitos sobre a dívida pública, a estratégia macroeconômica também minou as bases financeiras do Estado – União, Estados e municípios – restringindo as possibilidades do financiamento público, em geral, e do gasto social, em particular. Esses dois fatores estruturais influenciaram os rumos da política social nessa fase, estreitando as suas margens de financiamento e colocando em risco a própria sustentação das conquistas obtidas no sistema brasileiro de proteção social. Ambos os fatores tiveram impacto decisivo sobre as fontes de financiamento do gasto social e explicam, em grande medida, o caráter exógeno da crise nessa etapa. O início do segundo mandato do presidente Lula teve o mérito de recolocar a questão do crescimento econômico no centro da agenda governamental. Trata-se de fato alvissareiro e bem-vindo que não ocorria há mais de duas décadas. Assim, após 26 opções macroeconômicas inspiradas na cartilha neoliberal, esses sinais de reversão da tendência de estagnação contradizem as profecias pessimistas de que a economia não poderia crescer mais de 3,5% ao ano porque geraria inflação; de que sem as “reformas” no campo social o país não cresceria e não haveria espaços orçamentários para o investimento na infra-estrutura econômica, dentre tantos outros mitos difundidos como cortina de fumaça, por trás da qual se escondem os objetivos de capturar esses recursos do gasto social para a gestão financeira da dívida. Todavia, as perspectivas não são animadoras. A crise financeira global terá repercussões sobre a economia brasileira e poderá abortar o recente ciclo de crescimento. Novas investidas contra a cidadania social – reformas, corte de gastos correntes e desvinculação de receitas – já estão sendo novamente receitadas pelas forças do mercado.
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A Constituição de 1988 e a Seguridade Social: uma disputa em meio à financeirização do Estado Denise Lobato Gentil 1 Gilberto Maringoni 2 Uma intensa campanha tem se repetido no Brasil há quase vinte anos. É a de que a Constituição de 1988 teria criado obrigações impagáveis para os governantes e que seria preciso modificar sua essência populista e perdulária. Os dois adjetivos são repetidos à exaustão por parcelas da mídia, por políticos conservadores e lideranças empresariais. Na alça de mira desses setores está o sistema de Seguridade Social, criado há duas décadas. Este artigo navega na contra-corrente de tais argumentos. Parte de um princípio contrário. A Constituição de 1988 deve ser vista como um dos pontos mais altos de conquistas institucionais obtidos pelos setores populares em toda a história do Brasil. Toda a sua gestação se deu embalada pelas lutas políticas, sociais e econômicas que resultaram no fim do regime ditatorial. O auge das mobilizações aconteceu em 1984, quando milhões foram às ruas exigir Diretas Já e mudanças em um projeto econômico que entrava em seu declínio irreversível. Além de dedicar todo um capítulo ao alargamento dos direitos sociais e da cidadania, a Carta Magna preparou o país para o convívio democrático após duas décadas de ditadura. Várias de suas conquistas têm sido atacadas desde então, entre elas o sistema de Seguridade Social. Motivos não faltam. Suas fontes de financiamento, amplas e diversificadas, fazem dele o maior orçamento do setor público. E se constituem em um objeto de cobiça para representantes do capital financeiro, que buscam apropriar-se de bens e serviços públicos como forma de maximizar lucros. Não se trata de uma mera opinião. Quando se examinam os números do orçamento público, os gastos sociais e as despesas financeiras do Estado brasileiro, pode-se ver claramente que estas últimas têm preponderância absoluta sobre todo o resto. Eles serão mostrados mais adiante e tornarão evidente algumas afirmações. Primeiro, é preciso dizer 1. Professora do Instituto de Economia da UFRJ e Diretora-Adjunta da Diretoria de Macroeconomia do IPEA. 2. Historiador, pesquisador do IPEA e professor da Fundação Cásper Líbero 45
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que a Seguridade não só não é deficitária, como é folgadamente superavitária. Na última década e meia, ocorreram reduções de direitos sociais e desvio de vultosos recursos tributários destinados a investimentos na área social e de infra-estrutura em favor dos gastos com juros e amortizações da dívida pública. Múltiplas causas estão na origem deste processo. As principais são o avanço de políticas favorecedoras da acumulação financeira e a conseqüente retração do caráter público do Estado pela via fiscal. Antes de seguir adiante, voltemos à Carta Cidadã.
Período de disputas Os vinte anos de vigência da Constituição brasileira de 1988 coincidem com a implantação definitiva do neoliberalismo e da hegemonia da acumulação financeira em várias partes do mundo e em especial na América Latina. A eleição de Collor de Mello, no final de 1989, consolida a vitória da última vertente. Um discurso comum animava os partidários da ortodoxia monetarista: era urgente reformar a Constituição recém promulgada, que tornara o país “ingovernável”. Mudara o balanço de forças no Brasil e a direita resolvera quebrar contratos selados um ano antes. A construção do discurso conservador, de que a Lei Maior colocava obstáculos intransponíveis à boa administração pública, ocorreu simultaneamente à crescente financerização da economia brasileira. O mote da necessidade de contenção de uma suposto excesso de gastos públicos passou a ser ventilado ao mesmo tempo em que direitos de Seguridade Social eram estendidos a parcelas dos trabalhadores que não tinham cobertura previdenciária ou do sistema de saúde pública. Era perceptível que a acusação buscava mitigar tais conquistas. No início da década de 1990, uma visão de Seguridade democrática e justa, inspirada no sistema de proteção da social-democracia européia, entrava em conflito com a perspectiva liberalconservadora. A reação não tardou. Entre 31 de março de 1992 e 20 de dezembro de 2007, a Carta de 1988 sofreria 62 emendas que visavam, em boa parte, a mitigar conquistas democráticas3. Todas foram decididas sem nenhum tipo de consulta popular, na contramão do que ocorrera entre 1987 e 1988. A relação que se estabelecia entre inserção internacional, financeirização das contas públicas e reformas da Seguridade Social, tem uma importância crucial na análise que aqui se propõe. 3. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/quadro_emc.htm 46
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A política econômica de controle do processo inflacionário nos anos 1990 apoiouse no uso da âncora cambial, em taxas de juros elevadas e na rigidez fiscal. Aprofundavase, na mesma época, a adesão ao livre-comércio, a liberalização da conta de capital, a desregulamentação do sistema financeiro doméstico e a reforma do Estado, incluindo as privatizações de ativos públicos. A reforma do sistema de Seguridade Social passou a ser ventilada como urgente. Quando se implantou o Plano Real, em 1994, várias de suas estratégias para a estabilização dos preços conduziram a economia do país a uma grande vulnerabilidade externa. Essa era a conseqüência da intensificação do processo de abertura comercial combinada com a política de valorização cambial. Os juros, por conseqüência, eram mantidos em patamares elevados para contornar as ameaças de crises externas. A dinâmica da financeirização do orçamento público avançava velozmente, provocando impactos contracionistas em gastos essenciais à manutenção dos serviços públicos. O desfecho já é há muito conhecido: a economia passou a conviver com crescentes déficits no balanço de pagamentos e ficou perigosamente vulnerável. No início de 1999, uma crise cambial, seguida de ataque especulativo, resultou em perda de reservas e desvalorização cambial. Havia uma hierarquia de causalidade que ia da vulnerabilidade externa da economia brasileira até sua posição de desequilíbrio fiscal, impactada pela taxa de juros e pela desvalorização cambial. O elevado grau de abertura consolidara um processo de financeirização por juros na economia nacional. A dívida pública cresceu.
Os gastos Mas a ortodoxia financeira não se voltava para nada disso. Alardeava um suposto descontrole nas contas públicas, por conta do “excesso de gastos”. Na verdade, não existia nenhuma relação entre o desenho fiscal de desequilíbrio e as contas supostamente deficitárias da Seguridade Social, como se alardeava. Eram os gastos financeiros que determinavam o desequilíbrio fiscal, mas o “mercado” exigia ajustes nas contas da previdência. As despesas financeiras eram, e são, tidas como irredutíveis. Foi por esse mecanismo de transmissão que a política econômica afetou profunda e negativamente o sistema de proteção social nos anos 1990 – 2000, revertendo parte das conquistas da Constituição de 1988. Persistiu, ao longo dos anos 90 e neste início de século, o debate sobre a viabilidade econômica do sistema de proteção social diante dos direitos assegurados em 1988 e do progressivo envelhecimento da população. Colocava-se em questão o salário mínimo adotado como piso no cálculo dos benefícios, a aposentadoria por tempo de serviço, a ausência de idade mínima e as aposentadorias especiais. 47
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Aspectos contábeis Os ataques conservadores à Seguridade limitavam-se, e limitam-se, aos aspectos contábeis e atuariais. Ignoram o papel fundamental do sistema previdenciário para a acumulação de capital, particularmente no que diz respeito aos seus efeitos impulsionadores da demanda interna. Desconsiderava-se também o potencial distributivo do sistema. Segundo Pochmann (2007), 87% da queda de 6,5% no Índice de Gini verificada entre 1995 e 2004 pode ser explicada pela contribuição conjunta do aumento do gasto social e do salário mínimo. A Seguridade Social garante, portanto, as bases de coesão social da estrutura produtiva, ao assegurar a manutenção das relações de produção e promover a reprodução de longo prazo da força de trabalho. Vale sublinhar novamente: a crítica ao sistema de proteção social passa ao largo dos efeitos negativos das elevadas taxas de juros sobre a deterioração do resultado fiscal, bem como dos impactos perversos da financeirização da economia brasileira. Estes se traduziam na manutenção em patamar muito baixo da taxa de acumulação de capital fixo produtivo e na redução da participação dos salários na renda nacional. A absorção e esterilização na circulação financeira e na acumulação patrimonial de parte expressiva da renda era (e ainda é) a razão fundamental para o baixo crescimento econômico brasileiro (BRUNO, 2008). Ao longo dos últimos anos, o superávit primário assumiu patamares progressivamente ascendentes, tendo passado de 3,3% em 1999 para 4,6% do PIB em 2004. Não há compromisso com crescimento, emprego e renda por parte da política fiscal. Há o comprometimento explícito com a trajetória de sustentabilidade da dívida pública e com a contenção da demanda agregada. Implicitamente, porém, o comprometimento não é este, é com a liquidez dos títulos da dívida pública. A atuação do Banco Central também se modificou. O Governo associou o regime de câmbio flutuante ao regime de metas de inflação, e o que se verificou, posteriormente, foi a manutenção de uma política prolongada de juros altos. Novas rodadas de reformas redutoras dos gastos públicos foram exigidas, pelo conservadorismo, para contornar os impactos fiscais negativos dos juros. Seguindo essa lógica, as reformas da previdência em 1998 e 2003 foram feitas, essencialmente, por razões fiscais. Porém, a justificativa era a necessidade de se assegurar a viabilidade de longo prazo do sistema. Mais emblemático ainda para o conjunto do ajuste neoliberal foi a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000. Esse dispositivo legal limitou as despesas com pessoal, dificultou a realização de investimentos públicos e restringiu a geração de novas despesas de custeio, de forma que as metas anuais de resultados fiscais mantivessem o montante da relação dívida pública/PIB sob controle. Não havia nenhum limite aos gastos com juros. Os 48
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dispêndios com proteção social foram, assim, atingidos por esse “senso de responsabilidade fiscal”, que exige mudanças estruturais e quebras de contratos com a cidadania.
Números devastadores As tabelas a seguir mostram uma sequência dos efeitos devastadores que a liberalização comercial e financeira causou sobre a dívida pública e sobre os gastos sociais e financeiros da União. A dívida pública líquida mostra uma trajetória explosiva entre o lançamento do Plano Real e 2003. De 29,3% do PIB em 1994, chega, em 1999, a 49,7%, e, em 2003, ao patamar de 58,7% do PIB, ou seja, cresceu 29 pontos percentuais nesse intervalo, como mostra a Tabela 1. Nesse período, o peso da dívida externa e da dívida interna indexada à taxa de câmbio fazia com que mudanças bruscas no ambiente externo resultassem em forte impacto na dívida do setor público. Havia estreita articulação entre juros, flutuação do câmbio e o valor da relação dívida/PIB. Tabela 1 Dívida Líquida do Setor Público - final de período - 1994 a 2007 (em % PIB)
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Dívida Interna Líquida
20,8
24,5
29,4
30,2
36,9
39,2
39,7
42,7
42,0
46,7
44,2
48,9
47,6
51,8
Dívida externa Líquida
8,5
5,4
3,9
4,4
6,5
10,5
9,7
10,5
14,6
12,0
7,5
2,6
-2,7
-9,0
Dívida Líquida Total
29,3
29,9
33,3
34,6
43,4
49,7
49,4
53,2
56,6
58,7
51,7
51,5
44,9
42,8
Fonte: Banco Central. Vários Boletins
A partir de 2004, em função da melhora do cenário internacional e da redução da fragilidade externa da economia brasileira, o indicador dívida/PIB sofreu paulatina redução. Caiu a participação da dívida externa e da dívida indexada ao dólar. Tal estratégia, entretanto, implicou custos elevados, uma vez que o Governo, ao fazer a mudança para títulos em reais, trocou uma dívida antiga e barata por uma dívida nova e cara. Contudo, não está eliminada a possibilidade de recomposição do perfil anterior da dívida pública – ou seja, o aumento de sua dolarização - na ocorrência de nova fragilidade externa, dada a ausência de controles de capitais na economia brasileira. Assim, a fragilidade da gestão da dívida, embora mais reduzida, persiste, especialmente em cenários de instabilidades externas. O aprofundamento da contenção fiscal, com a forte elevação do superávit primário, veio para contra-restar os impactos negativos da conta de juros. 49
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
Ressalte-se, aqui, mais uma vez, que esse desenho fiscal nada tem a ver com a suposta situação deficitária da previdência ou com o tamanho desproporcional do Estado. Os juros se mantiveram altos em função do peso da acumulação financeira sobre a gestão da política macroeconômica numa economia aberta e da adoção do regime de metas inflacionárias. Os títulos vinculados à Selic compõem a maioria esmagadora dos títulos públicos, o que contribui para deteriorar as condições financeiras do Governo diante de uma política de juros altos. O ônus dessa política sobre o conjunto das despesas públicas é impactante. A Tabela 2, a seguir, mostra a evolução dos gastos, medidos em valores reais (usando o IGPDI como deflator), em áreas essenciais ao bem-estar da sociedade e, simultaneamente, dos gastos com juros e amortização da dívida pública. O método de agregação proposto para mensurar gastos sociais selecionados utiliza os registros de despesas por função do Governo Federal. Os gastos financeiros foram coletados das tabelas de despesas da União por grupo de natureza, pelo conceito de despesa executada/despesa liquidada em cada exercício. Os gastos financeiros com juros e amortização da dívida subiram de R$157,7 bilhões, em 2000, para R$236,9 bilhões, em 2007, um crescimento real de 50%. Os gastos sociais selecionados na Tabela 2 cresceram muito menos, em 35% em valores reais, sustentados pelos gastos previdenciários. A despesa com previdência social cresceu em 40,13% entre os anos de 2000 e 2007, e os gastos com assistência social evoluíram consideravelmente. Observa-se que, enquanto subiam os gastos financeiros, houve uma queda nos gastos com educação e cultura (-6,7%) e habitação e saneamento (-98,8%). Tabela 2 Gasto Social e Financeiro do Governo Federal - 2000 a 2007 Em R$ milhões a preços reais de 2007 (deflator: IGP-DI) 2007/2000 (var. real %)
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
210.838
217.606
218.302
209.864
226.824
245.288
280.791
285.150
128.751
134.004
136.011
135.848
142.610
154.909
176.547
180.420
40,13
8.466
9.151
9.911
10.430
15.703
16.896
22.646
24.649
191,13
Saúde
38.638
40.821
38.704
33.672
37.349
38.999
41.756
39.434
2,06
Educação e Cultura
20.691
20.581
20.486
17.914
16.829
17.832
18.797
19.304
-6,70
Habitação e Saneamento
3.370
1.020
341
224
641
704
1.285
40
-98,81
Organização Agrária
2.084
2.297
2.101
1.771
2.965
3.830
4.402
3.485
67,22
Abono e Seguro-Desemprego
8.837
9.732
10.747
10.005
10.728
12.119
15.358
17.818
101,63
157.706
185.593
189.031
180.005
165.348
148.680
285.908
236.937
50,24
74.026
91.225
84.091
81.424
84.244
96.034
158.833
140.079
89,23
83.680
94.368
104.939
98.580
81.105
52.647
127.075
96.858
15,75
Gasto Social
1
Previdência Social 2 Assistência Social3
Gasto Financeiro
4
Juros e Encargos da Dívida Amortização da Dívida
5
35,25
Fonte: SIAFI - STN, Min. da Fazenda 1Despesas por Função e Resultado Fiscal do Governo Central a 2 Inclui apenas o Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Não inclui o Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos (RPPS) 3 Inclui o programa Bolsa Famlia, LOAS, RMV e todos os demais gastos da área de assistência social. 4 Despesas Liquidadas por Grupo de Natureza 5 Excetuados os valores referentes ao refinanciamento da Dívida Pública.
50
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
O que se pode constatar é que o conjunto dos gastos com o sistema de Seguridade Social só se expandiu porque a Constituição Federal assegura direitos sociais e vincula as receitas de contribuições às despesas. O país gastou menos em outros setores da área social porque o avanço dos gastos financeiros limitou os recursos destinados às ações do Estado nessas áreas. No ano de 2007 foram gastos, com juros, seis vezes mais recursos do que tudo o que foi dispendido conjuntamente na função assistência social, a qual abarca os programas de transferências a pessoas com aguda insuficiência de renda, incluindo os idosos e portadores de deficiência, os atendidos pelo bolsa família e os que recebem renda mensal vitalícia. Apenas o programa bolsa família atinge 11,1 milhões de famílias, perfazendo uma população total estimada em 45,8 milhões de pessoas. Os gastos com juros atendem aos interesses de 20 mil clãs parentais (POCHMANN, 2007). A luta contra a miséria e a pobreza está em plano secundário. O regime de acumulação financeira por juros manifesta-se através de uma política macroeconômica cerceadora dos avanços no sistema de proteção social. Se mensurados de acordo com a participação no PIB, os dados da Tabela 3 revelam que os gastos com juros e amortização são os mais elevados do Governo Federal: equivaleram a 11,7%, em 2006, e a 9,3% do PIB, em 2007, enquanto os gastos com previdência ficaram, em média, em 7% para igual período. Os gastos com saúde e educação permaneceram estagnados num patamar médio de 1,7% e 0,8% do PIB, respectivamente, ao longo dos oito anos. Tabela 3 Gasto Social e Financeiro do Governo Federal - 2000 a 2007 2000 Gasto Social 1 Previdência Social 2 Assistência Social 3 Saúde Educação e Cultura Habitação e Saneamento Organização Agrária Abono e Seguro-Desemprego Gasto Financeiro
4
Juros e Encargos da Dívida Amortização da Dívida5
9,38 5,73 0,38 1,72 0,92 0,15 0,09 0,39 7,01 3,29 3,72
2001 9,68 5,96 0,41 1,82 0,92 0,05 0,10 0,43 8,25 4,06 4,20
2002 9,71 6,05 0,44 1,72 0,91 0,02 0,09 0,48 8,41 3,74 4,67
(em % PIB)
2003 9,96 6,45 0,43 1,40 0,74 0,01 0,07 0,42
2004
2005
10,31 6,48 0,71 1,70 0,77 0,03 0,13 0,49
10,69 6,75 0,74 1,70 0,78 0,03 0,17 0,53
7,52
6,48
8,54 3,87 4,68
3,83 3,69
4,18 2,29
2006 11,45 7,20 0,92 1,70 0,77 0,05 0,18 0,63 11,66 6,48 5,18
2007 11,14 7,05 0,96 1,54 0,75 0,00 0,14 0,70 9,26 5,47 3,79
Fonte: SIAFI - STN, Min. da Fazenda. 1Despesas por Função e Resultado Fiscal do Governo Central 2Não inclui o Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos (RPPS)
3Inclui o programa Bolsa Família, LOAS, RMV e os demais gastos da função assistência social. 4Despesas Liquidadas por Grupo de Natureza 5Excetuados os valores referentes ao refinanciamento da Dívida Pública.
Embora o conjunto de fatores econômicos acima descritos determinem impactos negativos sobre as variáveis de sustentação do sistema previdenciário – nível de emprego 51
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
formal e patamar de salários – o desempenho do sistema de Seguridade Social foi apenas parcialmente prejudicado ao longo dos últimos anos. A Tabela 4 contém um demonstrativo do resultado do sistema de Seguridade Social para o período 2000 a 2007, com suas receitas estabelecidas na Constituição: contribuição ao INSS, COFINS, CPMF, CSLL, PIS/PASEP e a receita de concursos de prognósticos. Constata-se, pela penúltima linha dessa tabela, que o sistema foi superavitário durante todo o período. O Governo pôde dispor de recursos excedentes em montantes consideráveis. O superávit foi de R$ 58 bilhões em 2005; de R$ 50,9 bilhões em 2006, e R$ 69 bilhões no ano de 2007. Ao decidir sobre sua utilização, no entanto, o Governo deixou de gastá-los com serviços de saúde, previdência e assistência social, para aplicá-los no orçamento fiscal em despesas arbitrariamente escolhidas e para o acúmulo dos superávits primários elevados dos últimos tempos (GENTIL, 2006 e 2007). Tabela 4 Resultado da Seguridade Social - 2000 a 2007 RECEITA Conbtribuição p/ INSS
(em R$ milhões correntes)
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
(1)
55.715
61.060
71.028
80.730
93.765
108.434
123.520
140.412
Cofins
38.707
45.507
50.913
58.216
77.593
87.902
92.475
102.463
CPMF
14.395
17.157
20.265
22.987
26.340
29.230
32.090
36.483
CSLL
8.750
9.016
12.507
16.200
19.575
26.323
28.116
34.411
923
1.028
1.062
1.276
1.450
1.564
1.410
1.890
5.791
6.700
7.498
10.011
11.650
13.228
14.566
16.025
124.281
140.468
163.273
189.420
230.373
266.681
292.177
331.684 24.649
Receita de Concursos de Prognósticos PIS/PASEP(2) TOTAL DA RECEITA DESPESA Assistência Social
(3)
4.442
5.298
6.513
8.416
13.863
15.806
21.551
Saúde
20.270
23.634
25.435
27.172
32.973
36.483
39.736
39.434
Previdência Social (4)
67.544
77.584
89.380
109.625
125.901
144.918
168.009
180.420
4.636
5.635
7.062
8.074
9.471
11.337
11.927
17.957 262.460
Abono e Seguro Desemprego TOTAL DA DESPESA
96.892
112.151
128.390
153.287
182.208
208.544
241.223
RECEITA - DESPESA
27.389
28.317
34.883
36.133
48.165
58.137
50.954
69.224
RECEITA COM DRU (5) - DESPESA
13.675
12.435
16.434
14.395
20.844
26.488
17.222
30.970
Fonte: Receita da Seguridade Social: Ministério da Fazenda, Receita Federal e Estudos Tributários www.receita.fazenda.gov.br/Publico/EstudoTributario; Receita de Contribuição ao INSS - Fluxo de caixa do INSS/MPS, Receita Previdenciária Líquida. Despesa da Seguridade Social: Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro, Contabilidade Governamental - Despesa da União por Função www.stn.fazenda.gov.br. Elaboração da Autora (1) Exclui a contribuição à Seguridade Social do Servidor Público - CSSS e a contribuição ao custeio de pensões militares.A contribuição ao INSS é a soma da Receita Própria menos Transferências a Terceiros. (2) Inclui apenas 60% da receita com PIS e PASEP. Os 40% restantes são destinados ao BNDES - www.stn.fazenda.gov.br, estatística, contab. governamental, receita de contribuição. (3) Despesa liquidada por Função, inclusive pessoal e dívida. Seguro-desemprego é da função Trabalho, mas foi incluído por ser um evento da Seguridade Social. Excluídas as despesas com FAT. (4) Exclui os gastos com inativos do Regime Próprio de Previdência dos Servidores (RPPS) e inativos militares www.planejamento.gov.br, orçamento, estatísticas orçamentárias, evolução das despesas sociais - por função. (5) Receita total deduzida da DRU (Desvinculação das Recursos da União no valor de 20%). Obs.: A Contribuição para a previdência social não está sujeita a DRU. O valor da despesa permanece o mesmo no cálculo do resultado considerando a DRU. Dados de seguro-desemprego em www.stn.fazenda.gov.br, estatística, resultado do tesouro nacional,resultado primário. Receita de concursos de prognósticos em www.stn.fazenda.gov.br, estatistica, contab.governamental, receita de contribuição 52
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
Com o excedente de recursos do sistema de Seguridade Social, o Governo poderia ter aumentado em 75% o sistema de saúde pública ou ter elevado as transferências de renda a pessoas carentes em quase três vezes.
A desvinculação Há que se fazer menção ao mecanismo fiscal mais importante de alimentação desse processo de financeirização do orçamento público. Para que parte substancial da arrecadação do Orçamento da Seguridade Social se tornasse fonte de financiamento de outros propósitos fiscais, foi criada a Desvinculação de Recursos da União (DRU), estabelecida através de emenda ao texto constitucional, autorizando o Governo a utilizar 20% dos recursos arrecadados de forma livre de qualquer vinculação a despesas específicas. Com esse mecanismo, receitas da Seguridade Social passaram a ser legalmente deslocadas do seu orçamento próprio para o orçamento fiscal, destinadas a qualquer uso. Entretanto, têm sido desviadas muito mais, conforme fica demonstrado na última linha da Tabela 4. Apenas no ano de 2007, o Governo Federal desvinculou R$ 30,9 bilhões acima do limite de 20% que lhe é legalmente permitido. Valores significativos também foram excluídos nos anos anteriores, chegando a um montante de R$ 152 bilhões no espaço de oito anos.
Conclusão Os dados revelam que o sistema de Seguridade social foi criado com uma estrutura de financiamento apoiada em sólidas e diversificadas bases de arrecadação que, até o momento, estão preservadas no texto da Constituição. O sistema não é e também não tende para uma situação deficitária como apregoa o discurso padronizado da mídia. As investidas liberais-privatizantes da política econômica desencadeadas nos três últimos governos não conseguiram ou, pelo menos, ainda não conseguiram viabilizar econômica e politicamente sua alteração. O sistema de Seguridade Social sobreviveu a vinte anos de predomínio de políticas econômicas conservadoras, sofreu algumas reformas paramétricas, mas seus alicerces permanecem intactos na letra da Constituição. Sob a vigência de um regime de acumulação financeirizado, entretanto, a expansão e o aperfeiçoamento das políticas de proteção social esbarram em limites muito estreitos, porque os recursos do sistema de Seguridade Social são crescentemente drenados para dar suporte aos gastos financeiros do orçamento público. Além disso, o sistema de assistência social se configurou, na prática, fortemente cercado de condicionalidades e acessos restritivos, ainda distante do espírito universalista e redistributivo da Constituição de 1988. O sistema de previdência permanece, em grande parte, voltado para os segmentos 53
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
formais da economia, com transferências de cunho contributivo. O ritmo de acumulação de capital fixo produtivo teria que ser muito mais elevado para provocar um crescimento veloz do emprego formal e do salário médio, de forma a elevar o grau de cobertura proporcionado pelo sistema de previdência. Nos marcos do atual regime de acumulação financeirizado, entretanto, o crescimento econômico mantém-se contido, em função da elevada carga de juros sobre o PIB e pela instabilidade da demanda efetiva, determinada, em parte, pelo comércio externo. A superação dessa estrutura econômica exige luta política e social de envergadura por parte dos trabalhadores e do povo brasileiro em defesa dos direitos sociais e das conquistas políticas da Constituição de 1988. Essa luta política implica também libertar o funcionamento da economia dos interesses financeiros que têm prevalecido. Comemorar os vinte anos de existência da Constituição é mais que uma manifestação coletiva em defesa de seu fortalecimento. É uma comemoração das vitórias dos movimentos populares do passado que deixam um rastro de esperança para o futuro.
Referências Bibliográficas BRUNO, Miguel (2008). Transição Demográfica e Regime de Acumulação Financeirizado no Brasil: ‘bônus` ou ‘ônus’ para a Previdência Social?”. In: FAGNANI, E.; HENRIQUE, W.; LÚCIO, C.G. Previdência Social: Como Incluir os Excluídos? Campinas, Instituto de Economia – Unicamp, Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho – CESIT. GENTIL, Denise L. (2006). A Política Fiscal e a Falsa Crise da Seguridade Social Brasileira – Análise Financeira do Período 1990-2005. Tese de doutorado – Instituto de Economia/ UFRJ, Rio de Janeiro. ________________ (2007). Seguridade Social no Brasil: análise financeira do período recente. In: SICSÚ, J. (Org.). Arrecadação (de onde vem?) e Gastos Públicos (para onde vão?). São Paulo, Boitempo. POCHMANN, M. (2007). Gasto Social, o nível de emprego e a desigualdade da renda do trabalho no Brasil. In: SICSÚ, J. (Org.). Arrecadação (de onde vem?) e Gastos Públicos (para onde vão?). São Paulo, Boitempo.
54
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
Crescimento, emprego, renda e os desafios para o desenvolvimento com maior igualdade1 Claudio Salvadori Dedecca2 A trajetória recente da economia brasileira tem sido caracterizada por uma recomposição acelerada do mercado de trabalho, em particular de seu segmento formal. Ao contrário do que prognosticava o pensamento dominante dos anos 90, capitaneado pela estratégia de inserção internacional conduzida pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, o país não está fadado a uma perspectiva de baixo crescimento e de deterioração inexorável do trabalho assalariado formal. Sob a égide de uma política de emprego de natureza meramente compensatória, o governo da época despejou recursos públicos ponderáveis em ações de fomento ao empreendedorismo, como possível solução para a destruição do trabalho assalariado. Essa estratégia era vendida como inabalável em um mundo globalizado altamente flexível que tornava o trabalho sob proteção social mera memória de um passado de industrialização nacional fundada nos processos produtivos e de trabalho fordistas. O movimento recente mostra que é possível ao país buscar desdobrar sua estrutura produtiva ampliando o segmento formal do mercado de trabalho. Ademais, evidencia ainda que ele não é incompatível com a manutenção da base de direitos do trabalho social consolidada pela Constituição Federal de 1988. Indica ainda a clara possibilidade de uma estratégia de desenvolvimento que contemple o crescimento sustentado com políticas de emprego e renda que, em conjunto, venham criar melhores condições de trabalho e uma distribuição de renda menos desigual. Este ensaio perfaz a trajetória dos anos de pensamento perdido da década de 90 aos desafios que o crescimento presente coloca para a nação. Espero que, ao rememorar um período sombrio da história brasileira, seja possível impedir que caia no esquecimento a brutalidade de uma política que desprezou as conseqüências sociais da destruição 1. Uma análise mais detalhada dos argumentos encontrados neste ensaio e a bibliografia referente aos temas aqui tratados encontram-se organizadas em C. Dedecca, A Redução da Desigualdade no Brasil: Uma Estratégia Complexa. In: Ricardo Paes de Barros; Miguel Fogel; Gabriel Ulyssea (Org.), Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília - DF: IPEA, 2007; C. Dedecca, Economia, Mercado de Trabalho e Distribuição de Renda - 2002-2005, in Análise da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2005, CGEE, 2007. 2. Professor Titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. 55
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
do mercado formal de trabalho. Por outro lado, espero que a reflexão sobre o presente desloque visões ufanistas sobre o processo atual de crescimento que acabam por acobertar os desafios que nós, brasileiros, temos para a próxima década, ao menos, e os riscos que o não enfrentamento dos mesmos pode criar em favor da perpetuação de uma sociedade excludente e desigual para as futuras gerações.
A perspectiva liberal sobre desenvolvimento, emprego e renda: anos perdidos com um debate e ações de políticas públicas medíocres Uma reflexão sobre a trajetória recente do mercado nacional de trabalho merece ter como ponto de partida a memória das perspectivas que o pensamento dominante dos anos 90 reservava ao país em termos de emprego e renda, a qual encontra nas palavras do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso sua síntese lapidar. Como relatou o jornalista Igor Gielow na Folha de São Paulo de 8 de abril de 1997: A realidade econômica do chamado neoliberalismo criou uma casta de pessoas “inempregáveis” no Brasil. Esse é o mais recente neologismo do presidente Fernando Henrique Cardoso, após chamar de “neobobos” aqueles que o criticam. O “inempregável” foi forjado ontem em uma palestra na qual desempenhou o papel em que fica mais confortável: o de sociólogo. “O processo global de desenvolvimento econômico cria pessoas dispensáveis no processo produtivo, que são crescentemente “inempregáveis’’, por falta de qualificação e pelo desinteresse em empregá-las”, disse. Os “inempregáveis” de FHC são aqueles trabalhadores que foram “engolidos” pelo desenvolvimento tecnológico e não têm mais lugar natural na economia. Ele não citou nenhuma categoria. Para FHC, não é possível agir “como avestruz”. Diz que a globalização e o neoliberalismo são fatos. As considerações, de tom crítico com a própria realidade do governo federal, foram feitas na abertura do “Seminário Internacional de Emprego e Relações de Trabalho”, realizado pelo Ministério do Trabalho no Memorial da América Latina (zona oeste de São Paulo). O encontro visa buscar opções justamente para integrar os “inempregáveis” de FHC. Foi o segundo discurso sociológico de FHC em menos de 24 horas. Na noite de domingo, ele abriu a conferência da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) falando sobre exclusão social e falhas dos governos latinoamericanos na área. O primeiro discurso foi mais contido. Ontem, FHC abandonou a modéstia e fez citações a sua experiência pessoal repetidas vezes. “Escrevi isso há dez anos’’, disse ao falar sobre relações de trabalho. Em outro momento, FHC lembrou o impacto da transmissão de notícias sobre a Guerra do Vietnã na década de 56
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
60 ao falar do poder da informação. “Eu morava nos EUA, era professor em Stanford, e lembro que o impacto era terrível”. Fora as citações. Os filósofos Hegel, Marx e Montesquieu, além do escritor Charles Dickens, foram alguns dos contemplados nos 56 minutos de discurso. A platéia, sonolenta pelo horário do evento (9h), acompanhava da melhor forma possível. “Ótimo discurso, só que me lembrou as aulas de sociologia matinais na faculdade. Deu sono”, disse um delegado do Ministério do Trabalho. FHC também negou ser um adepto cego do mercado e fez autocrítica. “A discussão sobre o neoliberalismo é uma questão retórica inútil. O que ocorre hoje não se trata do triunfo do neoliberalismo. É também a reemergência de uma ação política que gere um novo poder público, um novo empresariado e um novo sindicalismo. Ainda não temos nada disso. Ainda falando em sindicalismo, FHC afirmou que o “novo sindicalismo brasileiro envelheceu, em momentos é reacionário”. O presidente, antes de encerrar e voltar a Brasília, defendeu a educação como forma de garantir a inserção social dos “inempregáveis” no futuro. “Mas sofremos críticas quando propusemos um piso de R$ 300,00. Isso é muito em boa parte do país, mesmo sendo pouco. Não é como São Paulo”, disse FHC, que então consultou o governador Mário Covas sobre o piso do professor estadual paulista. “R$ 560,00 mensais” por 40 horas semanais, disse FHC. Escorregou: esse valor é para o piso com gratificações e complementos. O piso simples, segundo o sindicato dos professores, é R$ 334,00. A recuperação dessa manifestação do então Presidente Fernando Henrique não tem por objetivo mostrar o ataque à língua pátria de pessoa letrada e que argumentava que o problema de emprego era a baixa educação dos trabalhadores, mas a interpretação sobre o problema de emprego que dominou as diretrizes das políticas públicas do Governo Federal entre 1990 e 2002 e que encontrou, inclusive, defensores nos diversos meios de reflexão intelectual. No primeiro semestre de 1996, o tema sobre as pesquisas conjunturais de emprego havia sido objeto de uma das principais mesas redondas da II Conferência Nacional de Estatística – Confest -, realizada pelo IBGE. A divergência entre os indicadores da Pesquisa Mensal de Emprego – PME-IBGE e da Pesquisa de Emprego e Desemprego – PEDSEADE/DIEESE - levava representantes do Governo Federal a argumentar que a segunda estava captando como desemprego parte do trabalho precário existente nos mercados metropolitanos de trabalho e que, portanto, o problema não era de falta de emprego, mas de qualidade das ocupações criadas. Tais representantes argumentavam que a defesa do indicador da PED expressava saudosismo daqueles analistas que não enxergavam o desemprego captado como expressão de um mundo do trabalho em extinção, isto é, estruturado a partir da relação formal de trabalho. Para o Governo Federal, expresso inclusive pelas próprias palavras do Presidente da República, não havia mais lugar na economia para boa parte dos trabalhadores brasileiros. 57
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Essa situação era vista com resignação, aceitando-se ser inevitável um padrão de crescimento de baixo desempenho econômico incapaz de dinamizar o mercado de trabalho. A crescente barbárie no mercado de trabalho era vista como incontornável, restando aos trabalhadores elevar, ao máximo, seu nível educacional com o propósito de ter alguma chance de competir com os milhares de inempregáveis criados pelo admirável mundo novo da globalização. Ao Estado caberia realizar políticas compensatórias que atenuassem as mazelas da globalização, fomentando o empreendedorismo dentre o exército de inempregáveis. Adotando esse figurino de política pública, o Governo Federal desativou as políticas de desenvolvimento setorial, abandonou qualquer veleidade de estabelecer uma política de emprego atrelada ao desenvolvimento econômico, esvaziou as funções de controle e fiscalização do Ministério do Trabalho sobre o mercado e as relações de trabalho, tudo isso sob o argumento da inevitabilidade da precariedade do mercado de trabalho construída no mundo globalizado. A ação do Ministério do Trabalho foi dominada pelo Plano Nacional de Formação Profissional – PLANFOR -, que tinha como objetivo qualificar 10%, a cada ano, da força de trabalho para formas não assalariadas de ocupação. A política pública do Governo para o mercado de trabalho chancelava a crescente informalidade e desprezava o progressivo desemprego e as conseqüências presentes e futuras para a previdência social. Apesar da tendência de crescimento do desemprego evidenciada pela pesquisa do IBGE e reiterada pelos resultados do levantamento da Fundação Seade/ Dieese, o Governo continuava desconsiderando o movimento perverso observado no mercado nacional de trabalho (Gráfico 1). Gráfico 1 Taxas Médias Anuais de Desemprego Aberto Regiões Metropolitanas, 1991-2007 14,00 12,00 10,00 8,00 6,00 4,00 2,00 0,00 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Fonte: PME -Pesquisa Mensal de Emprego, IBGE; Pesquisa de Emprego e Desemprego na Grande São Paulo, Seade/Dieese. (1) Metodologia antiga para o período de 1991 a 2001 e metodologia nova para o período de 2003 a 2007
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O fim do sonho (ou pesadelo) de verão de um país globalizado A desvalorização cambial de janeiro de 1999 acabou com o pequeno sonho de verão de país globalizado, que havia, nos quatro anos anteriores, ignorado déficits elevados nas contas correntes e de serviços que eram, inclusive, avaliados como positivos pelo Presidente do Banco Central da época. A queima brutal de reservas acumuladas em um movimento frágil de ingresso de capitais alimentado pelos mercados financeiros e pela privatização, e um pouco pelo ingresso de investimento direto estrangeiro, havia sido aplaudida pelo Governo como um custo transitório do processo de globalização da economia brasileira, rumo a um padrão mais competitivo. Ao começar seu segundo mandato, a arrogância do Governo foi obrigada a restabelecer alguns instrumentos de política pública em favor do desenvolvimento industrial e mesmo forçar uma renacionalização da produção, em face da escassez de divisas. A própria desvalorização cambial criou barreiras naturais à competição externa, reduzindo a dimensão de bens importados no mercado nacional, estimulando empresas estrangeiras a retomar planos de produção e mesmo de investimento internos. A partir de 1999, o vendaval de destruição de empregos formais, que caracterizou o período de auge do Plano Real, foi contido. Mesmo em um contexto de ausência de crescimento, o nível de emprego formal ficou estável graças ao processo de re-nacionalização da produção. Os ajustes do mercado de trabalho foram realizados através da desvalorização dos salários e das demais remunerações do trabalho. Apesar da contenção da queda do nível de emprego formal, se reproduziu a tendência de crescimento do desemprego, em face do incremento natural da população economicamente ativa. Tabela 1 Crescimento Anual do Produto Interno Bruto Brasil, 1952-2007 Taxas Anuais de Crescimento Total (A) 1951-1955 1956-1961 1962-1966 1967-1973 1974-1980 1981-1984 1985-1989 1990-1993 1994-1998 1999-2003 2004-2007 (1)
7,2 8,2 3,9 10,2 7,1 -0,3 4,4 0,3 3,2 2,1 4,5
Indústria Serviços 8,2 10,2 4,0 12,0 7,2 -2,1 4,3 -1,0 3,1 1,1 4,4
6,8 7,5 3,1 10,9 7,9 1,1 4,8 0,9 2,6 2,1 4,3
Agropecuária
Pib Per Capita
6,2 4,5 3,7 3,7 4,8 2,5 4,0 1,0 4,1 5,5 3,0
4,0 5,0 0,9 7,3 4,5 -2,5 2,3 -1,4 1,5 0,4 3,0
População Economicamente Ativa (B) 2,9 2,8 2,6 3,1 3,7 3,0 3,0 2,9 2,9 2,0 2,3
(A)/(B) 2,5 2,9 1,5 3,3 1,9 -0,1 1,5 0,1 1,1 1,0 2,0
Fonte: Contas Nacionais, IBGE e Conjuntura Econômica, FGV. Elaboração do autor. (1) Dados Preliminares.
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Os resultados desse movimento podem ser sinteticamente evidenciados pelo desempenho do Produto Interno Bruto per capita. Analisadas as Contas Nacionais desde 1951, nota-se que a pior evolução do PIB per capita foi observada na década de 90. O baixo desempenho econômico, em um contexto de abertura externa e de valorização cambial, provocou uma destruição de empregos formais sem precedentes. No período 1990-2003, o crescimento médio do PIB foi insuficiente para superar o incremento da População Economicamente Ativa, tendência que, independentemente da taxa de aumento da produtividade, foi, per si, desastrosa para o mercado de trabalho. A partir do segundo semestre de 2003, a economia brasileira iniciou movimento de recuperação econômica que, desde 2005, tem se transformado em uma tendência de crescimento com elevação da taxa de investimento. A recomposição da atividade econômica foi acompanha da reversão do processo de deterioração do mercado de trabalho percorrido pelo país ao longo dos anos 90. Mesmo sob o acicate de uma política econômica prisioneira da obsessão monetarista, presente desde o Governo Collor, o Governo atual tem acionado as políticas setoriais e sociais em favor do crescimento com objetivo claro de viabilizar a recuperação do segmento formal do mercado brasileiro de trabalho.
A recuperação econômica amparada no mercado interno e no investimento Tanto as políticas setoriais como os instrumentos de política de emprego têm sido valorizados pelo Governo, desde 2003, que contou ainda com cenário econômico externo muito favorável para as exportações e o ingresso de capitais. A valorização das políticas em favor do crescimento não tem criado efeitos mais robustos para a produção e o emprego devido ao freio imposto pela política monetária, que tem tido sua influência parcialmente esterilizada por uma política fiscal relativamente expansiva. As diferenças do comportamento da economia brasileira sob a égide do Plano Real e do atual Governo são imediatamente reveladas pelos diversos indicadores de desempenho do Produto Interno Bruto em ambos os períodos. Analisando-se os três períodos contidos no Gráfico 2, notam-se incrementos médios do PIB de 1,7% a.a. para os anos 1995-98, 2,8% para 1999-2002 e 4,2% para 2003-2007. É inegável a mudança de direção da economia a partir de 1999, com o fim da exaltação globalizante dos anos de auge do Plano Real. A alteração de rumo fica mais evidente quando se analisa as taxas de crescimento do consumo das famílias e de formação bruta do capital fixo. As taxas de crescimento desses componentes do PIB corresponderam, no último período, ao dobro do observado em 1995-1998. Já sob a ótica do desempenho dos diversos setores, observa-se maior crescimento 60
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no último período para a maioria dos setores, exceto agricultura, extrativo mineral e serviços de informação. Os desempenhos desfavoráveis dos primeiros encontram-se associados à valorização bruta do Real, enquanto o do último setor encontra-se relacionado ao fim das privatizações, que turbinaram o crescimento setorial após 1997. Gráfico 2 Taxas Anuais de Crescimento do Produto Interno Bruto, 1995-2007 Importação de bens e serviços (-) Exportação de bens e serviços Formação bruta de capital fixo Despesa de consumo da administração pública Despesa de consumo das famílias PIB a preços de mercado Impostos líquidos sobre produtos Valor adicionado a preços básicos Administração, saúde e educação públicas Atividades imobiliárias e aluguel Outros serviços Intermediação financeira, seguros, previdência complementar e ... Serviços de informação Transporte, armazenagem e correio Comércio Serviços - total Produção e distribuição de eletricidade, gás e água Construção civil Transformação
2003-2007
Extrativa mineral
1999-2002
Indústria
1995-1998
Agropecuária
-2,0
0,0
2,0
4,0
6,0
8,0
10,0
12,0
14,0
16,0
Fonte: Contas Nacionais Trimestrais, IBGE.
A similaridade entre os períodos de 1995-1998 e 2003-2007 é encontrada para o crescimento das importações, também alimentadas pela valorização cambial. Contudo, o desempenho das exportações nos últimos dois períodos é claramente mais acentuado que aquele encontrado para 1995-1998. Análises recentes indicam que o aumento das importações encontrase relacionado ao desempenho da formação bruta de capital fixo, sugerindo uma desaceleração da dependência externa com a entrada em atividade da nova capacidade produtiva em constituição. 61
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As características que diferenciam a recuperação atual daquela observada durante o Plano Real encontram-se na raiz da determinação do crescimento do produto com recomposição ponderável do emprego formal. Em 1995-98, as importações provocaram a redução da produção ou uma modernização a qualquer custo, com conseqüências fortemente negativas sobre o emprego formal. Entre 1999 e 2002, o superávit comercial externo e a reinternalização produtiva sustentaram a atividade em um contexto de forte instabilidade econômica. A partir de 2003, inicia-se uma retomada do crescimento resultante da associação dos efeitos dinamizadores do superávit comercial, inicialmente, e a retomada do mercado interno e do investimento, ao menos desde 2005. A comparação entre os desempenhos do produto e do emprego formal constitui uma evidência incontestável das vantagens do padrão atual de crescimento, em comparação àquele observado entre 1995 e 1998 (Gráfico 3). Verifica-se uma clara convergência entre os comportamentos do produto e do emprego na atual fase de crescimento, jogando por terra a tese da impossibilidade de relacionar a recuperação econômica com a do mercado de trabalho. Gráfico 3 Evolução do Produto Interno Bruto, do Emprego Formal e da Relação entre as Variações do Emprego Formal e do Produto Interno Bruto Brasil, 1990 180 160 140 120 100 80 PIB
60
Emprego
40
Emprego/PIB
20 0 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Fonte: Contas Nacionais, IBGE; Relação Anual de Informações Sociais - RAIS, MTE.
É importante ressaltar que o crescimento atual poderia produzir efeitos ainda mais positivos sobre o mercado de trabalho se fosse superada a obsessão monetarista da política econômica com vistas a um maior equilíbrio entre seus diversos instrumentos. Essa continua sendo a contradição da política do atual Governo, que busca fomentar o 62
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crescimento e o emprego e, ao mesmo tempo, reitera instrumentos de política econômica que freiam o processo, colocando em risco a continuidade do movimento em um novo contexto de crise das economias desenvolvidas.
Recuperação do mercado de trabalho: desafios A convergência entre os crescimentos do PIB e da ocupação, em especial do emprego formal, tem ocorrido em um patamar que vem permitindo progressivamente absorver o aumento da População Economicamente Ativa e, ao mesmo tempo, reduzir a grave situação de desemprego herdada do longo período de instabilidade vivido pela economia brasileira nos anos 80 e 90. Como mostram os resultados compilados na Tabela 2, somente nos últimos anos tem se observado uma expansão da ocupação relativamente superior à encontrada para a População Economicamente Ativa (PEA), permitindo a redução do desemprego. Tabela 2 Taxas Anuais de Crescimento das Populações Economicamente Ativa, Desempregada e Ocupada segundo Região Geográfica (1) Brasil - 2002-2006
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Total
2002 - 2006
PEA Desempregados Ocupados
4,1 -0,9 4,6
2,2 2,2 2,2
2,6 -0,4 3,0
1,9 0,5 2,0
2,7 3,3 2,6
2,5 0,6 2,6
PEA Desempregados Ocupados
0,6 -14,7 2,3
0,3 -7,5 1,1
2005 - 2006 2,4 -9,4 3,8
2,0 -0,1 2,2
1,2 -11,7 2,6
1,6 -8,4 2,6
Fonte: PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE. Microdados. Elaboração do Autor. (1) Exclusive a zona rural da Região Norte.
Os resultados revelam ainda que o movimento alcança todas as regiões geográficas, sinalizando portanto a capacidade do crescimento presente irradiar efeitos positivos em termos de geração de oportunidades ocupacionais para o território como um todo. Contudo, é importante perceber que a Região Nordeste vem sendo menos favorecida com a recuperação e seus efeitos em termos de geração de oportunidades ocupacionais. Em uma perspectiva mais ampla, os resultados apontam, ademais, uma taxa de crescimento da PEA, nas diversas regiões, expressiva. Na média do período 2002-2006, a PEA brasileira cresceu 2,5% ao ano, explicitando que qualquer redução do desemprego e da informalidade requer uma geração de ocupações formais que supere razoavelmente a evolução da disponibilidade populacional para o mercado de trabalho. 63
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Essa situação encontrada para o momento presente deverá se reproduzir, mesmo que menos intensivamente, para a próxima década, quando a PEA continuará a crescer 1,5% a.a. Ademais, a pressão para a geração de oportunidades ocupacionais se realizará tanto no meio urbano como no rural. Segundo os dados da Tabela 3, o país não deverá conhecer nem crescimento, nem redução da PEA rural entre 2010 e 2050. Tabela 3 População Total e População Economicamente Ativa Brasil, 1980-2050
1980 1990 2000 2010 2020 2030 2040 2050
População Economicamente Ativa
População Total
Total
Rural
Urbana
121.671.674 149.689.806 174.719.024 199.991.561 221.450.331 238.326.479 249.758.355 256.159.659
45.057.509 62.433.963 82.662.182 99.552.662 113.469.424 124.242.038 131.289.685 133.584.583
13.974.330 15.204.810 15.545.990 14.898.455 14.747.355 14.740.285 14.770.869 14.456.242
31.083.179 47.229.153 67.116.192 84.654.207 98.722.068 109.501.754 116.518.815 119.128.341
Razão de Rural/Total Dependência 31,0 24,4 18,8 15,0 13,0 11,9 11,3 10,8
0,6 0,7 0,9 1,0 1,1 1,1 1,1 1,1
Taxa Anual de Crescimento 1980-1990 1990-2000 2000-2010 2010-2020 2020-2030 2030-2040 2040-2050
2,1 1,6 1,4 1,0 0,7 0,5 0,3
3,3 2,8 1,9 1,3 0,9 0,6 0,2
0,8 0,2 -0,4 -0,1 0,0 0,0 -0,2
4,3 3,6 2,3 1,5 1,0 0,6 0,2
Fonte: Celade/Cepal. (1) Razão entre a população de 10 a 65 anos e a população com menos de 10 anos e com mais de 65 anos.
Assim, a necessidade de reproduzir um crescimento econômico que sustente a geração de oportunidades ocupacionais nas próximas décadas será incontornável para o país. Essa necessidade também se deve à oportunidade que o crescimento com geração de ocupação poderá criar para o financiamento da Seguridade Social. Afinal, a razão de dependência da PEA em relação à população inativa continuará ao menos igual a um até 2050, garantindo uma condição demográfica que pode ser relativamente favorável ao financiamento da Seguridade Social em um contexto de crescimento com dinamização do mercado nacional de trabalho. Contudo, o desafio que se apresenta em termos de crescimento e sua relação com o mercado de trabalho não se resume à capacidade de geração de novas oportunidades ocupacionais que atenue a precariedade nele presente e permita o financiamento da Seguridade Social, mantidas as atuais determinações constitucionais. Esse crescimento precisará ser ainda robusto para permitir que a geração de postos de trabalho se realize 64
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como parte de uma trajetória de aumento recorrente da produtividade que abra perspectivas de elevação da renda média com redução da desigualdade da distribuição de renda. Mais a frente, essa questão será retomada na análise.
A formalização do mercado de trabalho com os “inempregáveis” Como já apontado anteriormente, uma dimensão relevante do crescimento atual tem sido sua capacidade de dinamização do mercado de trabalho e, particularmente, de seu segmento formal expresso pela contribuição para a Seguridade Social. Felizmente, o país não está fadado a uma trajetória “low road” para a maioria da população brasileira, como prometia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O contexto atual revela que temos aberta a possibilidade de crescimento com progressiva recomposição do grau de formalização do mercado de trabalho. Segundo a PNAD, enquanto a ocupação com contribuição para a previdência social cresceu 21%, em termos acumulados, entre 2002 e 2006, aquela sem contribuição teve um incremento de 1,1%. Tabela 4 População Ocupada e Variação Acumulada da Ocupação segundo Posícão na Ocupação e Contribuição para a Previdência Social (1) (2) - Brasil, 2002-2006 Valores Absolutos Total Com Contribuição Emprego agrícola Empregado setor privado Empregado público Empregado doméstico Conta-própria Empregador Sem Contribuição Emprego agrícola Empregado setor privado Empregado doméstico Conta-própria Empregador
Variação Acumulada
2002
2005
2006
2002-2005
2005-2006
73.389.322 35.607.673 1.643.599 23.302.998 5.038.467 1.711.664 2.170.275 1.740.670 37.781.649 11.208.896 9.995.599 4.398.423 11.003.682 1.175.049
79.278.973 40.961.747 2.035.966 27.236.797 5.430.551 1.909.292 2.398.881 1.950.260 38.317.226 10.739.587 10.108.270 4.688.267 11.619.364 1.161.738
81.412.774 43.222.260 2.218.166 28.557.792 5.822.743 2.006.202 2.424.349 2.193.008 38.190.514 9.922.290 10.569.134 4.709.651 11.745.125 1.244.314
10,9 21,4 35,0 22,5 15,6 17,2 11,7 26,0 1,1 -11,5 5,7 7,1 6,7 5,9
2,7 5,5 8,9 4,9 7,2 5,1 1,1 12,4 -0,3 -7,6 4,6 0,5 1,1 7,1
Fonte: PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE. Microdados. Elaboração do Autor. (1) Exclusive a zona rural da Região Norte. (2) Esclusive as formas de ocupação sem permissão para contribuir para a Previdência Social, como o trabalho não remunerado, o para próprio consumo e o para construção para uso próprio.
O baixo incremento da ocupação sem contribuição esteve associado, particularmente, à queda observada no setor agrícola de 11,2 milhões para 9,9 milhões de 65
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pessoas, entre 2002 e 2006. Mesmo considerando a importância desse movimento negativo, observa-se que a ocupação sem contribuição teve incrementos relativamente mais baixos, comparativamente aos observados para a ocupação com contribuição, para todas as demais posições na ocupação. O principal fato a ser tomado refere-se ao diferencial das taxas de crescimento para a ocupação de emprego doméstico, que corresponderam, entre 2002 e 2006, a 17,2% para a ocupação com contribuição e a 7,1% para a sem contribuição. Sabendo ser uma forma de trabalho pouco protegida, é relevante que o emprego doméstico tenha conhecido uma expansão mais significativa daquele seu segmento com contribuição para a previdência social, evidenciando a extensão do movimento recente de formalização do mercado de trabalho brasileiro. Ao contrário do que afirmava aos quatro ventos a visão pessimista dominante nos anos 90, e pode-se dizer mesmo destrutiva, são evidentes os sinais da possibilidade de se reconstruir o combalido mercado formal de trabalho. Tais sinais apontam ainda que esse processo de reconstrução pode ser conquistado sob a égide do marco atual de regulação do mercado e das relações de trabalho e sem o desmonte, que tal visão afirmava ser imperativo fazer, da proteção social de natureza universal inscrita na Constituição Federal de 1988.
A recuperação do mercado de trabalho com reiteração do baixo rendimento A importante recuperação do mercado nacional de trabalho como parte da trajetória de crescimento da economia brasileira apresenta, entretanto, uma característica que merece atenção em uma estratégia de desenvolvimento (Tabela 5). A ocupação gerada nos últimos anos absorveu especialmente população com o segundo grau completo, tendo ocorrido o predomínio das oportunidades criadas com remuneração máxima de dois salários mínimos. Apesar do melhor perfil educacional da população que ingressa nos postos criados, nota-se que a remuneração auferida não condiz com a qualificação, mesmo que formal, da força de trabalho. Pode-se afirmar que o perfil da geração das oportunidades ocupacionais revela um limite relevante do processo de crescimento atual com relação ao mercado de trabalho. A expansão da economia tem sido capaz de estimular a geração de novas ocupações, especialmente de empregos assalariados formais, mas não tem sido ainda suficiente para provocar uma recomposição generalizada dos rendimentos do trabalho. Somente nos últimos anos tem se observado um movimento com essas características, apontando que a recuperação dos níveis de remuneração parece estar dependente de um crescimento mais robusto e sustentado. Apenas com a aproximação da taxa de crescimento ao patamar de 5% a.a., aparecem sinais de que a recomposição do nível de ocupação passa a ocorrer concomitantemente à recuperação dos diversos níveis de rendimentos do trabalho. 66
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Tabela 5 Perfil da Ocupação Gerada segundo Escolaridade e Remuneração por Classes de Salário Mínimo Brasil, 2002-2006 Sem instrução ou menos de 1 ano
Total Menos de 1 SM 1 SM Acima de 1 até 2 SM Acima de 2 até 3 SM Acima de 3 até 5 SM Acima de 5 SM
-8,4 0,6 -2,1 -3,7 -2,0 -1,0 -0,4
Total Menos de 1 SM 1 SM Acima de 1 até 2 SM Acima de 2 até 3 SM Acima de 3 até 5 SM Acima de 5 SM
-15,2 2,1 -9,5 -3,4 -1,7 -2,3 -0,3
1º incompleto
1º completo
2002-2006 -6,7 17,1 0,3 1,0 -11,5 -10,4 -3,3
2º completo
Superior
Total
20,5 13,4 5,3 12,3 -2,8 -5,4 -2,2
61,6 11,1 13,1 37,9 5,1 -2,5 -3,1
33,1 2,8 2,4 12,7 7,6 5,5 2,1
100,0 45,0 19,0 60,2 -3,5 -13,8 -6,9
19,5 18,8 -5,3 16,3 1,4 -12,1 0,3
56,5 14,6 5,7 41,4 9,3 -21,7 7,2
43,8 6,2 1,3 12,2 16,3 -8,7 16,5
100,0 70,2 -28,3 67,6 31,2 -64,2 23,5
2005-2006 -4,5 28,5 -20,5 1,1 5,9 -19,3 -0,2
Fonte: PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE. Microdados. Elaboração do Autor. (1) Exclusive a zona rural da Região Norte e os ocupados sem declaração de renda.
Tabela 6 Evolução do Rendimento Real de Todas as Fontes Brasil, 1995-2006 1º Decil
2º-3º Decil
4º Decil
5º Decil
6º Decil
7º Decil
8º Decil
9º Decil
10º Decil
683 702 634 605 606 638 692
966 980 890 831 818 898 889
1.536 1.545 1.404 1.293 1.278 1.349 1.368
4.589 4.566 4.024 3.888 3.668 3.775 3.991
2,9 -9,7 1,4 9,2 14,4 14,2 8,6
1,5 -9,3 -7,9 0,0 7,0 8,7 -0,9
0,6 -9,2 -10,9 -2,5 5,9 7,0 1,4
-0,5 -11,9 -13,0 -0,8 2,7 8,8 5,7
Valores Abolutos (1)
1995 1998 2002 2003 2004 2005 2006
109 118 79 60 63 73 73
253 249 250 244 281 276 349
314 319 317 300 315 330 370
412 436 390 362 378 393 420
523 537 501 461 484 493 542
Variações Percentuais
1995-1998 1998-2002 1995-2006 2002-2006 2003-2006 2004-2006 2005-2006
7,5 -33,2 -32,9 -6,7 23,3 16,6 0,1
-1,6 0,6 38,0 39,4 42,8 24,3 26,3
1,4 -0,6 17,9 16,8 23,2 17,6 12,2
6,0 -10,6 2,1 7,8 16,2 11,3 7,0
2,5 -6,6 3,5 8,1 17,6 11,9 9,8
Fonte: PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE. Microdados. Elaboração do Autor. (1) Valores a preços de agosto de 2005. Deflator utilizado: INPC.
Esse argumento fica evidente quando se analisa a evolução recente dos diversos níveis de renda para o período de 1995 a 2006 (Tabela 6). Note-se que a recuperação de todos os estratos de renda é observada, de modo mais pujante, entre 2004 e 2006, sendo que os ganhos para os estratos inferiores são mais expressivos que aqueles observados para os estratos superiores. 67
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
O resultado recente da evolução da estrutura de rendimento mostra uma recomposição generalizada dos níveis de rendimento, apontando que o crescimento começa a permitir uma melhora do bem-estar que abarca a totalidade da população com renda. Por outro lado, esse resultado evidencia também que os estratos inferiores estão sendo mais beneficiados pelo crescimento em termos de ganhos de renda. A dificuldade que se apresenta, como já indicado anteriormente, remete-se à discrepância entre o aumento da escolaridade e a remuneração das ocupações criadas. É fundamental consolidar uma perspectiva de crescimento com o objetivo de melhorar o desempenho produtivo, com o aumento da produtividade e com vistas a fortalecer tanto a negociação coletiva como individual, de modo a permitir uma elevação mais expressiva dos níveis de renda. A reiteração do perfil de baixo rendimento tem sido ainda mais acentuada em razão da política de valorização do salário mínimo, que tem viabilizado ganhos relativamente mais expressivos para os estratos inferiores da estrutura ocupacional. A importância do salário mínimo para o comportamento dos níveis de remuneração fica evidenciada com a comparação dos rendimentos dos decis enquanto múltiplos do piso legal, particularmente durante a recuperação econômica recente, quando se acelerou a recomposição de seu valor real. Os dados mostram que a influência do salário mínimo tende a alcançar 60% da estrutura ocupacional, pois a relação entre o rendimento e o salário mínimo se mantém relativamente estável até o 6º decil (Tabela 7). Esse resultado reitera a importância do salário mínimo para a evolução da renda no mercado de trabalho nos últimos anos, papel que atinge, inclusive, a evolução das aposentadorias e pensões. Tabela 7 Relação Rendimento e Salário Mínimo no Brasil, 2002-2006 Relação Rendimento Médio e Salário Mínimo 1º Decil 2º Decil 3º Decil 4º Decil 5º Decil 6º Decil 7º Decil 8º Decil 9º Decil Média
2002
2003
2004
2005
2006
0,5 1,0 1,0 1,4 1,7 2,0 2,6 4,0 6,5 3,2
0,5 0,8 1,0 1,3 1,6 2,0 2,5 3,3 6,3 2,9
0,5 0,9 1,0 1,2 1,5 1,9 2,3 3,5 5,8 2,8
0,5 0,9 1,0 1,2 1,5 1,8 2,3 3,3 5,3 2,7
0,5 0,9 1,0 1,1 1,4 1,7 2,3 3,1 5,7 2,5
Fonte: PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE. Microdados. Elaboração do Autor. (1) Exclusive a zona rural da Região Norte e os ocupados sem declaração de renda.
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Seguridade Social
A recuperação do mercado de trabalho e a massa de rendimentos A análise realizada até o momento apresenta um quadro abrangente da importância do crescimento atual para a evolução do mercado de trabalho e da principal política de determinação do piso legal. A recuperação do nível de emprego e o comportamento relativamente mais positivo das remunerações mais baixas têm contribuído para uma evolução mais positiva da massa de rendimentos do trabalho e também, como será visto mais a frente, para a redução da desigualdade de renda entre assalariados e aposentados. Quanto à massa de rendimentos, sua elevação tem alimentado a expansão do mercado de consumo interno, especialmente daquele segmento de bens de consumo de menor preço. Isto é, a evolução da renda, determinada pelo aumento do emprego e do salário mínimo, tem contribuído para o desempenho do produto, em razão do aumento do poder de compra se realizar principalmente na base da estrutura ocupacional e se concretizar imediatamente como consumo, o qual vem sendo amplificado pela manutenção da renda real e pelo aumento expressivo do crédito em suas diversas modalidades. Portanto, a dinamização do mercado de trabalho e a política pública são partes das determinantes do crescimento, deixando de ser resultados, como apresentado até o momento. Não cabe minimizar a importância desse processo se considerado o debate ocorrido no Brasil nos anos 90. A desestruturação do mercado de trabalho ocorrida naquele período, aplaudida pelo pensamento dominante, se constituiu parte do baixo crescimento da economia da época. A subordinação do pensamento dominante à lógica da globalização, a qualquer custo, não só irresponsavelmente deflagrava a precária base de trabalho assalariado que o país havia construído durante os anos de industrialização, como chancelava uma política de baixo crescimento ao enfraquecer a renda da população brasileira e comprometer o desenvolvimento produtivo do mercado interno. Tabela 8 Evolução da Massa Real de Rendimentos do Trabalho Brasil, 2002-2006 Ocupação 2002 2003 2004 2005 2006 2002-2006 2005-2006
Massa Salarial Real Total
Líquida (1)
100,0 102,4 106,5 109,1 112,3
100,0 94,0 97,9 105,5 116,7
100,0 91,8 100,1 105,3 107,4
12,3 2,9
16,7 10,5
7,4 2,0
Fonte: PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE. Microdados. Elaboração do Autor. (1) Exclusive a zona rural da Região Norte e os ocupados sem declaração de renda. (2) Deflator INPC.
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Seguridade Social
A recuperação econômica atual tem sido retroalimentada pelos incrementos da massa de rendimentos decorrentes da dinamização do mercado de trabalho. No período 2002-2006, a massa de rendimentos do trabalho cresceu 3,9% a.a., contra um aumento do PIB da ordem de 2,3% a.a. Se descontada a contribuição decorrente do aumento da ocupação, a massa de rendimentos teve um incremento anual de 1,8% a.a. Esses resultados revelam a importância da dinamização do mercado de trabalho para a recomposição da massa de rendimentos do trabalho nesse período de retomada da economia. A massa de rendimento cresceu significativamente mais que o produto, tendo seu comportamento determinado especialmente pela elevação do nível de ocupação conhecido durante o período. A relevância desse movimento se torna ainda mais visível quando analisada a evolução da apropriação da massa de rendimento segundo estratos de renda. Para o período 2002-2006, os estratos inferiores da distribuição ampliaram sua participação na massa de rendimentos do trabalho, movimento induzido pela política de valorização do salário mínimo. A recuperação da massa de rendimento e a ampliação da participação dos estratos inferiores tendem a fortalecer o desempenho da economia, em razão de a parcela da população beneficiada alocar os ganhos de renda auferidos no consumo corrente, que, como já apontado anteriormente, foi potencializado pela ampliação do crédito. Ficam, portanto, evidentes os benefícios para o país do comportamento recente da economia e sua relação com o mercado de trabalho, na medida em que vem se estabelecendo uma relação virtuosa entre produção, emprego, renda e consumo, com foco privilegiado nos segmentos menos favorecidos da população. Tabela 9 Distribuição da Massa de Rendimentos de Todas as Fontes Brasil, 1995/2006 1º Decil
2º Decil 3º Decil
1995 1998 2002 2003 2004 2005 2006
1,2 1,3 1,0 0,8 0,8 0,9 0,8
3,9 4,3 7,1 8,0 2,5 9,3 2,6
0,9 0,3 5,5 1,8 7,2
1995 1998 2002 2003 2004 2005 2006
1,2 1,3 1,0 0,8 0,8 0,9 0,8
5,2 5,7 8,1 8,8 3,3 10,2 3,4
6,1 6,0 8,1 8,8 8,8 12,1 10,6
4º Decil 5º Decil
6º Decil
7º Decil 8º Decil
Distribuição da Massa de Rendimentos 4,8 4,3 7,1 3,2 4,3 4,8 7,5 4,0 3,9 7,2 5,7 2,5 4,4 5,9 9,7 1,7 3,9 7,7 6,1 2,7 4,9 9,3 4,7 1,0 4,6 7,6 6,4 0,9
10,3 10,1 12,5 7,8 10,6 10,1 9,6
9º Decil 10º Decil 16,1 16,0 13,1 18,3 15,8 15,5 15,8
48,1 47,4 47,1 43,4 44,5 42,5 44,5
51,9 52,6 52,9 56,6 55,5 57,5 55,5
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Distribuição Acumulada da Massa de Rendimentos 9,3 10,0 10,5 10,5 11,5 13,1 11,5
14,1 14,2 14,4 15,0 15,3 18,0 16,1
18,4 19,0 21,7 20,8 23,0 27,4 23,8
25,6 26,6 27,4 30,5 29,1 32,0 30,2
35,8 36,6 39,8 38,3 39,8 42,1 39,7
Fonte: PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE. Microdados. Elaboração do Autor.
70
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
A recuperação econômica e a desigualdade A principal dimensão desse movimento de recuperação do mercado de trabalho que revela as vantagens do crescimento atual é sintetizada pela queda da desigualdade ocorrida de modo recorrente nos últimos anos (Gráfico 4). A redução da desigualdade tem sido expressiva e generalizada, quando se toma seu comportamento segundo as regiões geográficas. Gráfico 4 Indice de Gini segundo Regiões Geográficas, Brasil, 2002-2006
0,5412
0,5560
0,5509
0,5776
0,5485 0,5074
0,5020
0,5219
0,5148
0,5211
0,5259
0,5228
0,5228
0,5413 0,5041
0,5123
0,5354
0,5651
0,5689
0,5574
0,5742
0,500
0,4983
0,520
0,5637
0,5459
0,5176
0,5408
0,5468
0,540
0,5439
0,560
0,5544
0,580
0,5631
0,600
0,480 0,460 0,440 Brasil
Norte
2002
Nordeste
2003
2004
Sudeste
2005
Sul
Centro-Oeste
2006
Fonte: PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE. Microdados. Elaboracão do Autor.
Essa trajetória tem sido determinada seja pela dinamização do mercado de trabalho em termos de aumento do nível de ocupação, seja pelo papel da política de salário mínimo de elevação relativamente mais expressiva dos rendimentos da base da estrutura ocupacional. Ademais, é importante relembrar que a queda da desigualdade vem associada à recuperação do segmento formal do mercado de trabalho, beneficiando o financiamento da previdência social, bem como dos demais fundos públicos que têm nos salários sua fonte principal de financiamento. Contudo, é fundamental explicitar que os resultados distributivos observados têm caráter parcial, em razão das limitações do levantamento domiciliar cujos dados vêm sendo explorados neste ensaio. Como consolidado na Tabela 10, a queda da desigualdade no 71
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
mercado de trabalho expressa somente a modificação da distribuição da massa de renda de uma parcela correspondente a 34% da renda nacional. Infelizmente, só é possível conhecer a evolução da desigualdade no interior da renda do trabalho e daquela de aposentadorias e pensões, por serem esses rendimentos abarcados pela PNAD. Quanto à distribuição de renda entre capital e trabalho, nada se pode dizer sobre seu comportamento nos últimos anos, em razão dessa informação ter como último dado disponibilizado o ano de 2004. Tabela 10 Valores Agregados do Produto Interno Bruto e da Renda Total (1) Brasil, 2005
Total - Contas Nacionais Total - PNAD Trabalho Aposentadorias e pensões Aluguéis Doação Juros
em R$ 1.000.000
%
178.936,6 80.455,6 61.117,1 15.877,1 1.461,0 577,8 1.422,5
100,0 45,0 34,2 8,9 0,8 0,3 0,8
Fonte: Contas Nacionais e PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Elaboração do Autor. (1) Produto Interno Bruto e massa de rendimentos mensais.
Portanto, é possível conhecer as implicações do crescimento atual para o mercado de trabalho e para a distribuição de renda a ele associado, mas nada se pode dizer sobre a relação que ele estabelece com a distribuição de renda oriunda da repartição do produto.
Considerações finais A avaliação recente da evolução da economia e do mercado de trabalho evidencia a reabertura de uma perspectiva favorável para a população brasileira, em termos de trabalho e renda. A superação dos longos anos de discurso sobre a inevitabilidade do processo de globalização e de seus efeitos negativos reabre a possibilidade de alguma esperança para o país em termos de desenvolvimento nacional, com redução da elevada desigualdade social. Até o presente momento, essa possibilidade tem se mostrado bastante positiva, ao menos sob duas dimensões. O crescimento tem dinamizado o mercado de trabalho, provocando o aumento da formalização da estrutura ocupacional. Ademais, tem permitido, 72
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
em associação com a política pública, estabelecer uma trajetória mais positiva da renda dos estratos inferiores do mercado de trabalho, como também da estrutura social brasileira. Tais características têm retroalimentado o crescimento, fortalecendo o mercado interno e, especialmente, aquele segmento orientado para a população de mais baixa renda. Além disso, a trajetória de crescimento tem restabelecido condições favoráveis de financiamento da previdência social e das demais políticas sociais, reduzindo o estrangulamento que a proteção social sofreu, ao longo da década de 90, com o baixo crescimento e a deterioração do mercado de trabalho. Apesar da inegável importância do crescimento atual para restabelecer alguma esperança para o futuro social do país, não se pode desconsiderar que ele carrega limitações que devem ser objeto de atenção da sociedade e foco de ação das diversas políticas públicas sociais e econômicas. A recuperação atual ainda tem sido limitada para alterar o quadro de precariedade social dominante no país, sendo um alerta sobre a necessidade de se fortalecer não só o investimento produtivo e em infra-estrutura, mas também as políticas educacionais e de qualificação, a política de salário mínimo conjugada com o desenvolvimento da negociação coletiva, dentre outras iniciativas que possam alargar o horizonte de crescimento e as perspectivas de redução mais rápida da situação de precariedade e de desigualdade social existente.
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74
avaliação e desafio da
Seguridade Social
20 Anos da Constituição Cidadã:
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Sustentando a Seguridade Social do século 21 Marcio Pochmann1 Vinte anos após a aprovação da Constituição Federal, constata-se que se encontra em curso um novo e intenso embate em torno de distintas idéias e projetos de construção da sociedade. Em conformidade com o receituário neoliberal, o potencial da Seguridade Social foi contido pela subordinação do país ao processo de globalização financeira mundial. Os seus protagonistas defenderam a prevalência das regras da competição despolitizada da repartição da renda e riqueza pelas corporações transnacionais em consonância com o enxugamento do Estado e orientado por ações pontuais e focalizadas na regulação competitiva dos capitais e nas políticas sociais distanciadas da universalidade. Ademais, percebe-se que assume relevância o salto tecnológico associado à difusão de múltiplas cadeias de produção no espaço mundial que diferencia o trabalho de concepção do trabalho de execução. Geograficamente, então, assiste-se à conformação de uma nova Divisão Internacional do Trabalho – DIT - que concentra, sobretudo nos países ricos, o trabalho de concepção, que exige crescente educação e qualificação profissional e oferece mais remuneração acompanhada de condições e relações de trabalho mais civilizadas; enquanto os países periféricos terminam se especializando no trabalho de execução, geralmente desqualificado, sub-remunerado e associado a condições de exploração não muito distintas do século 19. Da mesma forma, como fruto do espraiamento hegemônico da globalização financeira que constitui e isola uma casta política e econômica privilegiada mundialmente - beneficiária dos novos ganhos da financeirização da riqueza em larga escala -, destaca-se a reformatação das políticas sociais nacionais de caráter universal. Os próprios organismos multilaterais se encarregaram de difundir como projeto de sociedade possível, a limitada escolha entre desemprego ou emprego precário (trabalho de execução). Assim, nota-se o inegável esforço pela acomodação política em contextos nacionais marcados pela maior polarização política e pela exclusão social. Esse contexto termina sendo responsável por certa regressão das estruturas sociais que anteriormente encontravam-se fundamentadas nas lutas sociais que se sucederam ao desenvolvimento fordista do capitalismo do final do século 19. Ou seja, o velho padrão de Seguridade Social (estudo na faixa etária dos 7 aos 1. Professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). 75
20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
14 anos, trabalho regulado, ingresso no mercado de trabalho a partir dos 15 anos de idade, jornada de 48 horas semanais e aposentadoria no fim da vida, acompanhada da segurança social contra os riscos do trabalho), que proporcionava certa homogeneidade social propagada pelo consumo de massa dos bens duráveis, é forçado a dar lugar às novas formas regressivas de desaburguesamento das classes médias assalariadas e da desproletarização da classe operária. O sentimento da maior desconexão entre o que o mundo é e o que realmente poderia ser gera crescente mal estar no interior da humanidade. Sem uma inflexão política de maior porte, dificilmente poderá ser aproveitada a oportunidade de conceder um passo fundamental na construção de um novo padrão de Seguridade Social, capaz de aliar o salto nas forças produtivas (materiais e imateriais) com uma inovadora relação da vida com a educação e trabalho. Cada vez torna-se mais evidente que o avanço da economia pósindustrial segue acompanhado de uma inegável elevação nos padrões de produtividade física e imaterial da humanidade. De um lado, constata-se que todo conjunto de inovações tecnológicas aplicado no processo produtivo amplia generalizadamente a capacidade de produção com uma significativa economia no uso da força de trabalho. Da mesma forma, o avanço do setor terciário na economia a torna cada vez produtora de riqueza imaterial associada à recolocação da mão-de-obra para além do espaço tradicional do local de trabalho. Na antiga indústria ou nas atividades agropastoris, o trabalho somente era contabilizado como gerador de riqueza a partir da presença do empregado no próprio local de trabalho (fábrica ou fazenda), o que permitia indicar os parâmetros da repartição da renda segundo os ganhos de produtividade física (produto gerado por trabalhador ou por horas trabalhadas). No trabalho imaterial (serviços de maneira geral), não somente o resultado físico deixa de ser identificável, como a sua realização pode se dar em qualquer local (na casa, rua, praça, aeroporto, entre outros locais) para além do próprio local de trabalho. Com a internalização das novas tecnologias de comunicação e informação no processo produtivo (internet, telefone celular, entre outras) e a generalização de inovadores modelos de gestão da mão-de-obra e de remuneração variável (gestão participativa, re-engenharia, terceirização, metas de produção e vendas etc.), explodiram os ganhos de produtividade imaterial, sem serem percebidos, nem mesmo contabilizados. Ou seja, seguem fora da agenda redistributiva dos trabalhadores e do poder público. Ao contrário das medidas cada vez mais sofisticadas de aferição da produtividade física, pouco se avançou, até o momento, na definição e medição da produtividade imaterial, o que bloqueia, inclusive, o seu reconhecimento e a disputa interclasses sociais. Mas a produtividade imaterial expande-se, justificando o enorme diferencial entre as riquezas materiais e imateriais. Em 2006, por exemplo, observa-se que para cada dólar equivalente à riqueza gerada no mundo a partir do esforço físico do trabalho do homem, já havia nove dólares de responsabilidade do trabalho de natureza imaterial. Isso resulta da consideração 76
20 Anos da Constituição Cidadã:
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Seguridade Social
a respeito da composição do Produto Interno Bruto (PIB) acrescida pelo conjunto de ativos financeiros em circulação no planeta, o que permite incorporar o trabalho imaterial decorrente das atividades terciárias na estrutura de produção mundial de riqueza. No ano de 1950 havia a cada dez dólares equivalentes de riqueza gerada no mundo, somente quatro dólares provenientes do trabalho imaterial. Como se pode constatar, essa verdadeira metamorfose do trabalho humano não é de hoje, embora tenha ganhado enorme rapidez somente mais recentemente com a diferenciação do valor do trabalho na produção da riqueza no mundo, proporcionado pelo avanço da sociedade pós-industrial. Assim, destaca-se cada vez mais o papel da revolução e circulação do capital que impulsionam a mutação transgressora do valor do trabalho na definição das novas formas de riqueza, responsável pela forte expansão recente das economias modernas. Nesse sentido, o PIB dos países torna-se mais leve e com elevada produtividade, tendo no trabalho imaterial a principal força geradora de riqueza no mundo. O trabalho imaterial exige, em contrapartida, amplos e constantes investimentos aplicados em infra-estrutura e em ciência e tecnologia para que o valor agregado gerado no interior das atividades econômicas encontre no esforço humano imaterial o seu pleno protagonismo na produção da riqueza em expansão. A chamada economia do conhecimento responde, em síntese, pela potencialidade renovada da ampliação fantástica da riqueza fundamentalmente proporcionada pela existência de uma base industrial consolidada pela estrutura produtiva existente. Por isso, pode-se perceber como em 2006 havia a cada grupo de dois ocupados no mundo, somente um dizia respeito ao trabalho material, enquanto em 1950 eram três a cada grupo de quatro trabalhadores. Nas economias capitalistas avançadas, somente um a cada três ocupados desenvolvem atualmente o trabalho material. Se, de um lado, o avanço da demanda de trabalho imaterial pressupõe o desempenho econômico favorável, com investimentos elevados em tecnologia e educação, de outro, a oferta de mão-de-obra relaciona-se com o fortalecimento cognitivo e demais habilidades laborais. Por conta disso, a aprendizagem e a qualificação tendem a exigir um novo reposicionamento frente à diversidade do local de trabalho e às oportunidades variadas de formação e capacitação de seus quadros, bem como outro olhar sobre o papel da escola tradicionalmente utilitária e funcional para o trabalho do século 20, prisioneira exclusiva da educação às fases precoces da vida humana (crianças, adolescentes e jovens). A educação para a vida toda, comprometida com a sociabilidade humana, com a preparação para o conhecimento para além do mero adestramento ao exercício do trabalho material, torna-se cada vez mais fundamental. Isso porque, diferentemente da sociedade industrial, quando havia para a expectativa média de vida de 60 anos de idade uma nítida separação entre os tempos de trabalho material e de inatividade (educação infantil, aposentadoria, férias, feriados), percebe-se, no presente, com longevidade humana se aproximando dos 100 anos de idade, uma fronteira menos clara entre os tempos de trabalho imaterial e de inatividade. 77
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Na medida em que o desenvolvimento técnico e material avançou, encorpado pela inexorável intensificação do trabalho, a história das lutas sociais indicou a invenção de novos caminhos para que a relação do trabalho heterônomo com a vida possa ser encurtada. Para quem vivesse – no máximo – até os 40 anos de idade na sociedade agrária (século 19), a jornada de trabalho alcançava quase 2/3 do tempo de vida. Quando o Brasil era um país agrário, por volta do começo do século 20, a jornada de trabalho podia ultrapassar as cinco mil horas ao ano. Considerando que a expectativa de vida girava em torno dos 35 anos e, ainda, o ingresso na vida laboral ocorria aos 5/6 anos de idade e se encerrava somente com a morte, pode-se entender porque viver há cem anos era fundamentalmente trabalhar. Também não havia escola para as crianças, tampouco previdência e assistência social para amparar o conjunto de riscos associados ao exercício do trabalho, tais como a invalidez, a morte, o desemprego, desqualificação entre outros. Aos ocupados, muito menos havia regulação pública que reduzia a intensificação do trabalho, como a jornada semanal máxima, as férias, o descanso semanal, além da idade mínima para ingresso no mercado de trabalho. Desde a década de 1930, com o início da transição da sociedade agrária para o Brasil urbano-industrial, o homem tornou-se ainda muito mais produtivo, com novas formas de organização do trabalho e avanços tecnológicos intrínsecos ao trabalho manufaturado, inteligentemente percebido por Charles Chaplin em Tempos Modernos na apreciação precisa da sociedade industrial. Na seqüência da expectativa de vida acima dos cinqüenta anos, assistiu-se à diminuição do tempo de trabalho, com a postergação do ingresso na vida laboral para 15 anos de idade e a saída após 35 anos de contribuição para aposentadoria. Se acrescido da regulação do tempo máximo de trabalho (48 horas semanais, férias, descanso semanal, feriados), a jornada de trabalho decaiu de cinco mil para 2 mil horas ao ano, o que permitiu que o peso do trabalho fosse reduzido para cerca de 1/5 do tempo total de vida. Nos dias de hoje, não fosse a pequenez do pensamento neoliberal dominante, a perspectiva da sociedade não estaria tão submetida à falsa disjuntiva limitadora das possibilidades do trabalho: desemprego ou precariedade da ocupação. Tudo isso em meio à marcha de uma profunda revolução tecnológica, responsável pela reorganização do trabalho e por fantásticos ganhos de produtividade. Assim, nota-se como se trabalha bem mais do que há duas décadas. Isso porque ao se fazer mais em menos tempo (maior produtividade) e não somente no próprio local do trabalho, passa-se a estar plugado no trabalho quase 24 horas por dia: acorda-se com o trabalho, dorme-se e sonha-se com o trabalho. Por conta disso, a produtividade do trabalho imaterial cresce e praticamente não é considerada ainda nas negociações salariais travadas pelos sindicatos, tampouco alimenta a utopia de se trabalhar muito menos do que as possibilidades anteriormente abertas pela sociedade urbano-industrial. Especialmente no Brasil, entre outros países prisioneiros de visões atrasadas, nem mesmo a jornada de 40 horas semanais se entende como algo possível do parâmetro civilizatório de modernidade. Parece seguir a máxima da República de Fraque de desejar mais ao trabalhador o exclusivo dever de trabalhar. 78
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Nesse contexto geral de transformação da realidade econômica e social, a reinvenção de outro padrão de Seguridade Social torna-se possível e necessário. Concomitante com os inegáveis ganhos de produtividade (física e imaterial) eleva-se a expectativa de vida, o que permite diminuir o peso do trabalho para somente 5% do tempo total de vida. Para isso, contudo, o ingresso na vida laboral deveria ser postergado para além dos 25 anos de idade e a jornada semanal deveria atingir as 12 horas semanais (três dias por semana, quatro horas diárias). O que já é tecnicamente possível encontra pela frente uma enorme barreira atrelada à ignorância, à mesquinhez e à mediocridade histórica, que continua a impedir a proliferação de diversas modalidades emancipatórias da condição do trabalho humano. Em função disso, ganham relevância os limites gerados, por um lado, pela disforme relação crescimento-desigualdade. Sabe-se, por exemplo, que somente 25% da população concentra 75% da produção mundial, enquanto 250 mil clãs de famílias (0,2% da população mundial) respondem por quase 50% da riqueza global. Simultaneamente percebe-se o destino econômico e político de concentrar nas 500 principais corporações transnacionais o domínio de quase todos os setores econômicos do mundo. Instala-se, em conseqüência, uma nova fase de fracasso global da governança frente ao fato das corporações transacionais serem maiores que muitos países. Somente as três maiores transnacionais apresentaram, em 2006, faturamento superior ao Produto Interno Bruto brasileiro (décima economia do mundo). Na toada de corporações mundiais maiores do que países, as organizações multilaterais constituídas no pós-guerra (ONU, BIRD, FMI, etc.) para tratar da governança mundial entraram em xeque. A pequenez do espaço público convive com nova fase de maior poder econômico e crescente concentração da riqueza no mundo. Por outro lado, reforçaram-se os limites produzidos pela relação crescimentosustentabilidade ambiental. Na organização da economia do “ter”, a tendência de destruição dos recursos naturais como base do progresso material produz catástrofes observáveis, sem contar com aquelas já antecipadas pelos estudos sobre o aquecimento global. Nessa marcha, a Sibéria vira pântano e a Amazônia, savana, o que indica o quanto as mudanças climáticas tendem a alterar profundamente as posições geopolíticas, econômicas e sociais do mundo contemporâneo. Nessa marcha organizacional da economia dos países ricos não será possível universalizar homogeneamente o bem estar global. Ao contrário, conforme explicou Celso Furtado na década de 1970 (O mito do desenvolvimento econômico), a reprodução mimética do padrão de crescimento dos países ricos entre as nações periféricas resulta tão somente na internalização aprofundada do subdesenvolvimento, com a necessária marginalização de parcelas crescentes da população para viabilizar o regozijo do consumo conspícuo de poucos. Ademais, destaca-se a maior tensão política derivada do avanço desse modelo de desenvolvimento com a insustentabilidade ambiental da economia do ter. 79
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Outro padrão de Seguridade Social está por ser constituído no mundo. Do contrário, tende a prevalecer, além das duas categorias básicas da humanidade: os excluídos da dignidade humana e os ricos condenados à solidão e à lógica da rivalidade, a insustentabilidade ambiental. Enquanto a elite dominante parece aguardar o ressurgimento de outros Mártires de Chicago, a intensificação brutal do trabalho segue solta e contemporânea de um mundo em que a riqueza cresce e concentra-se aceleradamente na mesma medida que gera um crescente excesso de trabalho. Frente a isso, parece anunciar-se uma fase de jornadas de lutas pela libertação do trabalho heteronômico, permitindo consagrar - na prática - o que Marx antecipatoriamente já havia vislumbrado quando afirmou em pleno século 19 que a liberdade seria real somente quando se encerrasse o trabalho pela sobrevivência. Abre-se a perspectiva da maior efetivação simultânea da ampliada do trabalho autônomo, própria da organização emancipatória, socialmente útil e criativa da sociedade. A sociedade da nova economia está em construção, permeada por doenças profissionais depressivas, pela solidão e pela devastadora crise de sociabilidade. A escassez do trabalho autônomo (socialmente útil) parece inegável e constrangedora, indicando o quanto se faz necessária a implementação de um novo padrão de seguridade social plenamente compatível com os avanços materiais do século 21. Essa luta é de todos aqueles que não se enquadram na República onde só os reacionários sentem-se tão bem.
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Artigo 170: a busca do pleno emprego e a redução das desigualdades1 João Sicsú2 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. A arquitetura macroeconômica é a estrutura básica de qualquer modelo econômico. Para serem alcançados, os princípios estabelecidos no artigo 170 da Constituição Federal dependem, em última instância, das políticas macroeconômicas adotadas. Por exemplo, um modelo cujo objetivo é unicamente manter a inflação sob controle, por definição, não busca o pleno emprego e, portanto, não pode alcançá-lo. A Constituição precisa deixar de ser, em certos aspectos, peça de ficção para ser transformada em peça de realização individual, social, de cidadania e felicidade. Até recentemente, a busca do pleno emprego e a redução das desigualdades eram quase que desconsideradas pelos governos brasileiros. Cabe lembrar que durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso era comum a sociedade assistir a governantes, no pleno exercício da sua função pública, criticando a Constituição Federal. É surpreendente, mas as críticas não eram sequer pontuais e construtivas. Eram ataques frontais à concepção cidadã, ou seja, à base Beveridge-keynesiana de bem-estar escrita na Constituição. Entre 1988, ano da proclamação da Constituição, e 1999, a economia brasileira não teve um conjunto de políticas macroeconômicas bem definido. Embora nebulosas e indefinidas, sempre foram orientadas por vetores conservadores, em confronto claro 1.Este capítulo foi escrito com base em informações oficiais e públicas divulgadas até o dia 20 de setembro de 2008. Cabe ser ressaltado ainda que não expressa opiniões de qualquer instituição. As opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva do autor. 2.**Diretor de Estudos Macroeconômicos do IPEA. Professor licenciado do Instituto de Economia da UFRJ. Autor e co-organizador do livro “Economia do Desenvolvimento”, Campus-Elsevier, 2008, entre outros. 81
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e direto com o princípio mais básico da Constituição expresso pelo rótulo Constituição Cidadã (esse foi o termo utilizado por Ulysses Guimarães para sintetizar a concepção expressa na Constituição). Exceto o Plano Real, lançado em 1994, cuja concepção, mas não sua execução, tinha uma base cidadã, todas as demais medidas macroeconômicas daquele período sempre tiveram um sentido anticonstitucional de cidadania. Tais medidas não visavam ao pleno emprego, à soberania nacional, ao planejamento ambiental, à redução das desigualdades sociais e regionais e ao favorecimento da empresa de pequeno porte nacional. Em 1999, no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, foi adotado um modelo macroeconômico de contornos nítidos, um modelo liberal-conservador. Não foi uma criação da equipe econômica do presidente. Foi uma cópia sugerida pelos organismos multilaterais, pelos manuais americanos de macroeconomia, por economistas e intelectuais respeitados nos meios financeiros e por grandes corporações financeiras. Foi estabelecido o seguinte tripé macroeconômico: i
política fiscal – realizar superávits primários fiscais necessários para reduzir a relação dívida/PIB;
ii política monetária – utilizar a taxa de juros como único instrumento de controle da inflação (tal política foi sintetizada no que se chamou de regime de metas de inflação); iii política cambial – estabelecer um regime de câmbio flutuante em que o mercado determinaria a taxa de câmbio e, portanto, o Banco Central não precisaria acumular reservas em grandes volumes. Esse tripé era tratado como solução definitiva. Essas idéias não podiam ser sequer debatidas, embora estivessem em confronto com o princípio constitucional de cidadania. Questioná-las era sinônimo de ousadia irresponsável. Muitos que tentavam iniciar o debate eram, a priori, desqualificados e, portanto, excluídos. Mas o Brasil e o mundo vivem hoje um momento diferente, rico para os macroeconomistas: a agenda de discussões foi desinterditada. A Constituição Federal voltou a ser valorizada com discursos e políticas macroeconômicas. O modelo macroeconômico vigente no Brasil, iniciado em 1999, foi flexibilizado a partir de 2006 e, especialmente, a partir da instituição do Programa de Aceleração do Crescimento, em 2007. O modelo liberal-conservador não entregou o que prometeu não somente no Brasil, mas também em diversos países da América Latina. Argumentam que a causa do insucesso foi que o modelo macroeconômico deveria ter sido aplicado em conjunto com uma série de reformas estruturantes e modernizantes que não foram realizadas - embora isso não seja verdade, porque países como Argentina e Equador, por exemplo, realizaram todas as recomendações. De fato, o que houve foi que a realidade 82
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mostrou-se inadequada ao modelo. E, como realidades são reais, a conclusão é que o rígido tripé foi que se mostrou insuficiente diante dos novos tempos e desafios de recuperação do princípio cidadão da Constituição proclamada há 20 anos. Dizem: “no caso dos países latino-americanos faltaram as reformas”, mas o que dizer da economia americana em crise? Lá, o que faltou? Lá, se revela o esperado. O capitalismo desregulado é indomável: o mercado comete assassinatos, mas também é capaz de cometer suicídio por overdose. No Brasil, o pilar do regime cambial que aceita valorizações e desvalorizações extremamente acentuadas mostrou-se inadequado ao equilíbrio das contas externas e à estabilidade monetária. O pilar do sistema de controle da inflação baseado na utilização de um único instrumento revelou-se impotente. E o terceiro pilar, aquele referente à administração fiscal, focado apenas na geração de superávits primários e na estabilidade da relação dívida/PIB, mostrou-se limitado diante das necessidades de realização de obras públicas e programas sociais. A emergência de idéias bem diversificadas em macroeconomia foi uma imposição da realidade. Correntes de pensamento macroeconômico, até então marginalizadas, passaram a ser reconhecidas e vistas como complementares – Karl Marx, John Maynard Keynes, Willian Beveridge e Celso Furtado são lembrados e mandam lembranças. A economia e, particularmente, a macroeconomia eram vistas pelo modelo liberal-conservador como ciências duras, tal como a engenharia. Mas a realidade mostrou que elas são o que sempre foram: ciência social que permite observações e soluções diferentes e, até mesmo, opostas. Enquanto na engenharia modelos matemáticos e estatísticos permitem a revelação de verdades, na economia são apenas mais um instrumento de construção de argumentos verdadeiros ou falsos, que podem, portanto, ser refutados. A sofisticação e a tecnicalidade dos modelos matemáticos e estatísticos utilizados, e que são úteis e muito bem vindos à economia, mostraram suas fraquezas diante da realidade. A sensibilidade e a experiência de velhos economistas voltaram a ser valorizadas, tal como sempre foram. A imprensa noticia que o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, se reúne, de forma regular, com experientes consultores, o que faz lembrar o Conselho de Consultores Econômicos que se reunia com o presidente John Kennedy, no início dos anos 1960, e do qual fizeram parte Walter Heller, Paul Samuelson, entre outros notáveis. O insucesso da agenda do pensamento único mostrou que o rigor dos modelos estatísticos e matemáticos pode ser superado pela realidade e pela riqueza de idéias e argumentos de macroeconomistas experimentados. O dissenso é realidade e passou a ser valorizado, dentro e fora do Governo Federal. Divergir deixou de ser pecado intelectual: o debate está aberto. Muito embora não sejam poucos os que ainda repetem a ladainha do pensamento único. Como decorrência do debate, ainda inicial, as divergências foram reveladas e 83
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reconhecidas como legítimas. Pode-se identificar mais de uma macroeconomia. Ganhou a sociedade, que já não considera relevantes argumentos que defendem idéias com palavras simples e argumentos de autoridade tais como: minhas idéias são superiores porque estão baseadas nas boas práticas internacionais e... ponto! Quais práticas internacionais? Aquelas praticadas pelas autoridades responsáveis pela regulamentação do sistema financeiro americano? Aquelas práticas propostas e elogiadas pelas agências de rating? Aquelas praticadas, elogiadas e sugeridas pela Fannie Mae, Freddie Mac, Lehman Brothers, Seguradora AIG e o Merril Lynch? Existem, sim, diversas macroeconomias. E não somente a macroeconomia do tripé liberal-conservador, a chamada macroeconomia das “boas práticas”. A macroeconomia que emergiu da superação desse tripé constata que existem diversos pontos de equilíbrio econômico, ou seja, aquelas situações em que a economia se encontra repousada e que o nível de desemprego, inflação e distribuição da renda podem ser socialmente não desejados. Se a economia se encontra repousada em posição socialmente não desejada, políticas ativas passaram a ser vistas como necessárias. Se aceita, de forma consensual, que as forças de mercado, por si só, não são capazes de mover a economia para situações ótimas de nível de emprego, inflação, crescimento e distribuição da renda. Baseadas em argumentos diversos, políticas macroeconômicas ativas são vistas como necessárias. Elas atuariam estabelecendo incentivos aos atores sociais, punindo posições de excesso de risco, coordenando expectativas potencialmente voláteis ou compensando falhas de mercado. Todos pensam que políticas ativas podem ser eficazes atuando pelo lado da demanda e pelo lado da oferta. Uns enfatizam que a inflação deve ser combatida com políticas de controle da demanda, enquanto outros pensam que políticas de demanda seriam capazes de encontrar o pleno emprego. Esses últimos desenham políticas pelo lado da oferta para controlar a inflação, enquanto os primeiros desenham políticas de mesma natureza para buscar o pleno emprego. À chamada responsabilidade fiscal foram associadas a responsabilidade social e a responsabilidade com o ritmo e a qualidade do crescimento. O déficit orçamentário do Governo já se encontra dentro dos critérios rigorosos estabelecidos para os membros da Comunidade Européia (déficit nominal inferior a 3,5% do PIB). O equilíbrio orçamentário será alcançado como resultado do vigor e da qualidade do crescimento (e não como fruto de políticas de contenção de gastos). A melhor qualidade do crescimento refere-se a um crescimento que gera milhares de negócios e milhões de empregos formalizados. Refere-se ainda a um quesito impar: a taxa de variação do investimento é superior entre duas e três vezes a taxa de variação do crescimento de toda economia. A administração fiscal enriqueceu-se, possui agora objetivos nominais e reais. O resultado orçamentário nominal do período janeiro a julho de 2008 foi deficitário em apenas 0,53%. Houve quase um déficit zero. É esperado pelo Governo um déficit nominal inferior a 2% do PIB para 2009. O Programa de Aceleração do Crescimento desembolsou neste 84
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ano (janeiro a agosto) R$ 6,7 bilhões, gerando milhares de empregos. A trajetória da dívida pública segue bem comportada: em dezembro de 2007 representava 42,7% do PIB, em agosto, caiu para 40,6%. As finanças públicas seguem trajetória de equilíbrio contábil, fruto do crescimento econômico representado pelo aumento robusto do emprego formal, aumento da produção industrial, elevação da massa salarial, crescimento dos royalties da extração do petróleo e aumento significativo da arrecadação propiciada pela CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) das instituições financeiras e pelo IOF (Imposto sobre as Operações Financeiras). A responsabilidade com a geração de empregos passou a ser o carro chefe dos novos tempos, em consonância com o princípio VIII do artigo 170 da Constituição. O produto interno bruto apresentou crescimento de 6,1% no segundo trimestre de 2008, quando comparado com igual período do ano anterior. Desde 2006, portanto, há oito trimestres consecutivos, o PIB cresce a taxas superiores a 4%. O consumo das famílias cresceu 6,7% no segundo trimestre de 2008, comparado com igual período do ano anterior. A formação bruta de capital fixo voltou a apresentar forte crescimento; em igual período, o investimento cresceu 16,2%. O mercado de trabalho brasileiro revela um excelente desempenho. A taxa de desocupação em agosto de 2008 atingiu 7,6%. A média de 2007 foi de 9,8%. O grau de formalização do trabalho na média do ano de 2008 é de 56%, o maior índice histórico. O Cadastro Geral de Emprego e Desemprego (Caged) mostra que foram criados de forma líquida (admissões menos demissões), nos primeiros sete meses de 2008, quase 1,6 milhão de empregos com carteira, ou seja, 97% do que foi criado ao longo de todo o ano de 2007. O Caged revela também dados preocupantes: aproximadamente 91% das vagas criadas ao longo do ano de 2008 remuneram com até três salários mínimos; e apenas 1,5% das vagas criadas remuneram com mais que dez salários mínimos. É, portanto, muito importante analisar a distribuição funcional da renda, ou seja, a participação das rendas do capital e do trabalho como proporção do PIB. A distribuição funcional da renda no Brasil, em 1995, era a seguinte: o total pago na forma de salários como proporção do PIB era superior a 35%, enquanto as rendas do capital eram um pouco superiores a 31%. Dez anos depois, em 2005, as posições se inverteram. A proporção do total de salários no PIB é inferior a 31%, enquanto, a proporção das rendas do capital está quase alcançando 36%. Certamente, os números sobre a criação de postos de trabalho e suas remunerações explicam, em grande parte, estas preocupantes proporções. A responsabilidade com a manutenção de níveis moderados de inflação está incorporada à nova agenda macroeconômica do país. A inflação não é mais controlada somente com elevações da taxa de juros. Outros instrumentos, tais como reduções de tributos, também são utilizados. A recente redução da CIDE é um exemplo. O aumento do crédito para a produção agrícola tem sido outro instrumento utilizado pelo Governo Federal. 85
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Depois de encerrar o primeiro semestre do ano com uma variação mensal média de 0,6%, o IPCA reduziu seu ritmo de crescimento nos meses seguintes, beneficiado pela desaceleração dos preços dos alimentos. Em agosto, o IPCA foi de 0,28%. O IPCA acumulado em doze meses caiu de 6,4%, em julho, para 6,2%, em agosto. A variação dos preços livres, exceto alimentos, acumulada em 12 meses, registra taxa inferior a 5%. A variação dos preços administrados, acumulada em 12 meses, registra taxa inferior a 3%. Os preços dos alimentos que, em junho, alcançaram, no acumulado de doze meses, 15,6%, em agosto se reduziram para patamar inferior a 14%. A inflação acumulada no ano é 4,48% (janeiro a agosto). O certo, porém, é que a trajetória dos preços dos alimentos nos próximos períodos será uma das peças fundamentais para explicar os rumos da inflação. A política liberal-conservadora de câmbio flutuando livremente sem intervenções do Banco Central foi definitivamente enterrada, o BCB acumulou reservas para utilizálas quando necessário. Ao final do mês de setembro, devido às incertezas provocadas pelos acontecimentos relacionados ao sistema financeiro norte-americano, o real sofreu forte desvalorização e, ao mesmo tempo, a volatilidade tomou conta dos mercados de câmbio e financeiro. O BCB realizou leilões de moeda estrangeira nos dias 19 e 20 de setembro mostrando a disposição das autoridades monetárias em reduzir a volatilidade dos mercados. O dólar, que alcançou R$ 1,92 em 18 de setembro, após as intervenções do BCB caiu para R$1,83. Contudo, cabe ser mencionado que é na área cambial que o modelo macroeconômico deu os passos mais vagarosos: as contas correntes estão deficitárias e o movimento de capital é sempre uma ameaça. Aqui os passos para haver um afastamento maior do modelo liberal-conservador ainda estão lentos, mas o afastamento teve início. Em conclusão, está havendo uma transição do modelo macroeconômico liberalconservador para um modelo desenvolvimentista, que é o modelo que pode recuperar a busca pelo pleno emprego e a redução das desigualdades como objetivos constitucionais reais. Os passos têm sido lentos e cuidadosos, mas a direção é correta. Os resultados obtidos já são muito bons. Contudo, cabe ser mencionado que deve haver uma redução ainda maior das vulnerabilidades externas. Aqui, no pilar da política cambial e da busca do equilíbrio das contas externas, a situação merece muita atenção.
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Parte 2. Seguridade Social: um sistema para assegurar direitos
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Inclusão e progressividade: os desafios da Seguridade Social brasileira Lena Lavinas1 Este artigo resgata uma das dimensões mais relevantes e estruturantes do Sistema de Seguridade Social, instituído no país em 1988, por ocasião da promulgação da Constituição Cidadã: seu compromisso com a superação da dicotomia merecedores x não-merecedores, que configurou, até o surgimento do Relatório Beveridge, em 1946, o perfil dos sistemas de proteção social e mecanismos de regulação da pobreza característicos das democracias ocidentais. A grande inovação institucional beveridgiana veio pela integração de sistemas antes desvinculados, seguro social e assistência pública, quer pelo lado da concessão e homogeinização de direitos e benefícios, quer do ponto de vista do financiamento. A Constituição de 1988 adota um viés beveridgiano ao incorporar o princípio da justiça social tanto no Capítulo VIII, da Ordem Social2, quanto no Capítulo VII, da Ordem Econômica e Financeira3, e reafirma valores universalistas de solidariedade e coesão social ao estabelecer, em seu art. 194, que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (...)”, conjunto esse de ações que deve ser implementado com “I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais”. Essa integralidade da política social se consubstancia também nos artigos 201 e 203 – da previdência social e da assistência social, respectivamente –, que estabelecem que o benefício previdenciário e assistencial não pode ser inferior ao salário mínimo vigente4. Adota-se, assim, um benefício cujo piso é comum a contribuintes ou não-contribuintes, rurais e urbanos, homens e mulheres. Ao instituir a irredutibilidade dos benefícios5, o novo sistema de proteção social fortalece esse vínculo com o salário mínimo e dá à Seguridade grau de eficácia elevado na redução das desigualdades e da pobreza. Essa equalização do piso dos benefícios previdenciários 1. Doutora pelo Institut de Hautes Études d’ Amérique Latine – Universite de Paris - e professora associada do Instituto de Economia (IE) da UFRJ. 2. “Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. 3. “Art. 170. - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social....” 4. Art. 201 - § 2º Nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998), no caso da Previdência Social; Art. 203 – V. A garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei, no caso da assistência social. 5. Art. 194, Parágrafo único, inciso IV. 89
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e assistenciais amplia o efeito redistributivo da Seguridade, não só horizontalmente - isto é, ao longo do ciclo de vida -, mas também como ferramenta de promoção da eqüidade vertical, reduzindo diferenciais agudos de bem-estar. Porém, a despeito desse efeito extremamente benéfico na direção da universalidade e na promoção da eqüidade, a inclusão previdenciária continua a demandar ajustes para suprir déficits importantes de cobertura. Muito embora o seguro social tenha, de fato, estendido sua cobertura e ampliado e garantido seu financiamento, rompendo definitivamente com o modelo da “cidadania operária”6 ou “cidadania regulada”7, não conseguiu, contudo, superar clivagens resistentes, sendo a mais grave delas a da formalidade/informalidade. Da mesma maneira, o sistema público de assistência, que se torna dever do Estado e introduz, sob certas circunstâncias, e para determinados grupos, o direito a mínimos sociais, restringe, por conta de critérios e controles, a entrada de todos os que sofrem privações. Muitos pobres ficam à margem da assistência, literalmente de fora, completamente desprotegidos, por falta de informação, negligência administrativa, elevados custos de inconveniência ou mesmo resistência ao estigma. Carecem de recursos próprios que lhes permitam reverter a falta estrutural de oportunidades, cujo efeito cumulativo os encerra em trajetórias marcadas por distintas formas de exclusão. Não bastasse a cobertura previdenciária e assistencial ser ainda deficiente, e, por conseguinte, excludente, cerca de 50% do financiamento da Seguridade Social é feito através das contribuições sociais, portanto, por via indireta, taxando o consumo, o que acaba por exigir esforço proporcionalmente maior das classes menos favorecidas às receitas do sistema de proteção social, justamente as menos contempladas no âmbito da Seguridade. A regressividade é, assim, outro traço marcante do nosso Sistema de Seguridade a merecer reparos: a eqüidade na participação do custeio8 ainda é falha. Déficits de cobertura e regressividade são, certamente, o calcanhar de Aquiles da Seguridade Social brasileira. O balanço de 20 anos de sua existência impõe tal aquiescência. E por essa razão, nossa eficácia redistributiva é modesta. Nosso grande desafio é promover eqüidade e inclusão, a primeira entendida como uma sociedade mais homogênea e nãodiscriminante, uma sociedade justa, e a segunda, como a possibilidade de todos usufruirem do mainstream de oportunidades que a sociedade oferece.
Ganhos consolidados e déficits a zerar Afirma-se que, dado o fato de a informalidade ser elevada entre nós (praticamente 50% dos ocupados são trabalhadores informais), os benefícios previdenciários acabam por ser regressivos, pois contemplam apenas aqueles com capacidade contributiva ao longo 6. Definição do historiador José Murilo de Carvalho. 7. Definição do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. 8. Art. 194, Parágrafo único, inciso V. 90
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do período de atividade. Esse seria um argumento de peso a justificar reformas estruturais do nosso sistema previdenciário, já que aposentadorias e pensões tenderiam a concentrar renda. Essa interpretação revelou-se falsa, pois os princípios que regem a Seguridade Social criaram a figura do segurado especial no campo e vincularam o pagamento dos benefícios previdenciários e assistenciais ao salário mínimo. A recuperação recente do valor real do salário mínimo tem garantido eficácia às políticas previdenciárias e assistenciais no Brasil. E o fato de os trabalhadores rurais, homens e mulheres, terem direitos previdenciários equivalentes aos urbanos reduziu em muito a desigualdade regional, campo/cidade, e entre sexos, como veremos a seguir. Ao decompor os tipos de rendimentos que constituem a renda familiar da população pobre, observamos, pela Tabela 1, que o aumento dos rendimentos do trabalho e as novas oportunidades de emprego entre 2001 e 2006 permitiram reduzir o número de pobres (antes das transferências fiscais) em 12,7 milhões, fazendo com que o percentual que alcançava praticamente 50% da população em 2001 recuasse para 37% em 2006. Esse recuo de 12 pontos percentuais em cinco anos foi fundamental para que as transferências diretas de renda via aposentadorias e pensões e outras transferências fiscais (tipo Bolsa-Família) fossem igualmente efetivas em reduzir ainda mais o estoque de pobres no período. Tabela 1 Número e percentual de pobres antes e após as transferências de renda, segundo dados das PNADs de 2001, 2004 e 2006 Pobres* antes e após transferências 2001
2004
2006
2001
2004
2006
Todas as fontes de renda (trabalho, aposentadorias e outras fontes)
60.425.883
43.586.813
39.797.160
36%
24%
21%
Apenas rendimentos do trabalho e aposentaorias/pensões
64.579.965
50.555.999
48.176.997
38%
28%
26%
Apenas rendimentos do trabalho
82.527.348
71.789.618
69.778.313
49%
39%
37%
Fonte: PNADs 2001, 2004, 2006 * Renda familiar per capta abaixo de R$100,00 (nominal) para 2001 e 2004 e R$120,00 (nominal) para 2006
Contudo, dentre as rendas não diretamente provenientes de trabalho, verifica-se que o impacto das aposentadorias e pensões9 em dirimir a pobreza mostra-se muito superior ao das demais transferências de cunho assistencial10 (assimiladas como “outras fontes”). Enquanto estas contribuem para reduzir em mais 5 pontos percentuais o número de pobres (queda de 26% para 21% em 2006), as aposentadorias e pensões provocaram uma queda de 11 pontos percentuais no nível da pobreza, em 2006 (passou de 37% para 26%). Em termos 9. Aqui assimiladas aos benefícios contributivos ou não-contributivos no valor de um salário mínimo. 10. Assimiladas sob a rubrica “outras fontes”. 91
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líquidos, saíram da pobreza, em 2006, por força das transferências de valor vinculado ao piso previdenciário, 21 milhões de pessoas, contra 8,3 milhões de beneficiadas com programas de transferência de renda focalizados (benefícios cujo valor é uma fração bem menor do salário mínimo). O saldo é positivo em 30 milhões. A conjugação desses dois tipos de transferências reduziu o índice de pobreza em 13 pontos percentuais em 2001, em 15 pontos percentuais em 2004 e, finalmente, em 16 pontos percentuais em 2006. Por conseguinte, inclusão previdenciária via emprego formal, com acesso ao bem-estar ocupacional (TITMUSS, 1964), faz recuar a pobreza e garante segurança sócioeconômica11. Entretanto, temos cerca de 60 milhões de brasileiros que não são contemplados com direitos previdenciários nem direta, nem indiretamente, através de vínculos de parentesco. Mais de 90% desse contingente é constituído de crianças (17 milhões) e adultos em idade ativa (43 milhões). Os idosos representam tão-somente 1,2 milhão de pessoas. A meta, portanto, é ampliar a cobertura previdenciária, através da simplificação da contribuição previdenciária no valor de um salário mínimo anual, sem incidência de juros e multas para os informais. Devem-se multiplicar os incentivos à formalização, mas esta também deve ser flexibilizada tanto para os autônomos, quanto para os sem carteira. Leis já aprovadas e ainda não regulamentadas penalizam a contribuição já difícil e errática dos trabalhadores informais que auferem baixos rendimentos. Em fase de crescimento econômico, como agora, e de elevação do rendimento médio do trabalho entre os mais pobres, despreza-se um estímulo importante à formalização. A Tabela 1 também comprova que desvincular as aposentadorias ou outros benefícios como o BPC do salário mínimo provocaria fatalmente aumento da pobreza em alguns milhões, agravando também sua intensidade. Essa constatação não é nova12, mas deve ser recorrentemente lembrada. Embora predominantemente instrumento de distribuição horizontal ao longo do ciclo de vida, o sistema de aposentadorias e pensões brasileiro é eficaz na redução da pobreza. Depois do trabalho, é a segunda maior fonte de provisão de bem-estar. E isso se deve em grande parte à universalização e equalização do acesso que promoveu a inclusão dos rurais, com menor capacidade de contribuição direta, ao Regime Geral da Previdência Social - RGPS. Há quem argumente que essa equalização custa caro, o que não é verdade, uma vez que os benefícios previdenciários concentram-se, sobretudo, na remuneração de inativos que estão nos décimos superiores da distribuição: mais de 70% das aposentadorias e pensões são pagas a indivíduos que integram famílias nos três últimos décimos da distribuição. Portanto, o efeito redistributivo é significativo, muito embora sua incidência seja pequena nas camadas de renda menos favorecidas. 11. Os dados da PNAD 2006 (IBGE, 2008) confirmam que dos ocupados com carteira assinada 35,2% declararam receber transferências assistenciais, contra 60,2% no caso dos sem carteira. Entre as trabalhadoras domésticas, essa polarização é ainda mais extremada: somente 15% daquelas detentoras de carteira assinada afirmaram receber algum tipo de transferência de renda contra 85% das sem carteira. A formalidade parece ser uma importante ferramenta de focalização. 12. Outros autores já identificaram que a contribuição da previdência rural, das aposentadorias em geral e do o BPC (Veras et alii, 2006; Dias, 2005; Lavinas, 2006; etc) à redução da desigualdade e da pobreza é muito superior ao de programas como o Bolsa-Família. 92
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Os números da Tabela 1 indicam haver cerca de 40 milhões de brasileiros ou 10 milhões de famílias que sofrem de déficit de renda, mesmo após as transferências fiscais. Bastaria, então, elevar o valor médio de benefícios de grande extensão, como o BolsaFamília, para ser mais eficaz na redução da pobreza? Ou parte do público-alvo não foi coberta? Problema de cobertura ou de valor do benefício, ou ambos? Na verdade, todo programa focalizado padece de algumas desvantagens conhecidas, que acabam gerando exclusão. Uma delas é o déficit de cobertura, incontornável, mesmo porque a razão de ser da focalização é reduzir a demanda por assistência, tornando-a inconveniente (impõem-se custos) aos beneficiários potenciais. Quando o auxílio monetário não é visto como direito, mas sujeito a inferências orçamentárias ou políticas, a focalização tende a ser ainda mais imperfeita, pois opera em um quadro de fortes restrições. Dados da PNAD 2006, e de seu suplemento, trazem duas informações valiosas a esse respeito. A primeira é que o déficit da cobertura assistencial no Brasil é muito alto. Apesar da forte expansão do maior programa social do Governo Federal, o Bolsa Família, ter ocorrido entre janeiro de 2004 e janeiro de 2007, dos 10 milhões de famílias identificadas como pobres (Tabela 1), mais da metade, ou 5,1 milhões (50,8%), não é alcançada por nenhum programa de renda do Governo e, portanto, não recebe nenhum tipo de transferência compensatória para atenuar níveis agudos de destituição. Trata-se de um contingente de aproximadamente 17,6 milhões de pessoas, donde as crianças e jovens constituem 44,7%. Esse é o tamanho da ineficiência horizontal. A outra informação relevante diz respeito ao grau de evasão ou de ineficiência vertical: 3 milhões de famílias estariam recebendo em 2006 algum tipo de benefício assistencial, embora não façam parte do seu público-alvo potencial (segundo corte de renda). Isso corresponde a 35% das famílias beneficiadas por algum programa de renda público. Nesse caso, trata-se possivelmente de famílias cujo padrão de vida se aproxima bastante daquele que caracteriza os que vivem na pobreza13. A fraude contumaz deve responder por parte relativamente marginal da evasão. A busca por maior eficiência na focalização, se centrada na multiplicação dos controles, tende a elevar os custos administrativos, que, no caso brasileiro, embora desconhecidos, são provavelmente altos. O desafio é como vencer as barreiras à entrada que reduzem a cobertura e segregam os pobres entre si. A única forma de não segregar é universalizar. Ou, como nos recorda O´Campo (2008), “os maiores níveis de progressividade do gasto público estão estreitamente relacionados com a extensão da cobertura. Por isso mesmo, a melhor focalização é a universalização”. 13. O desafio da focalização consiste em estabelecer as características relevantes da pobreza, que permitam facilmente identificar o público-alvo. Ocorre que não pobres podem compartilhar as mesmas características, até porque a pobreza é multidimensional e borra determinadas fronteiras. 93
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Apesar de ter conhecido uma expansão considerável, os programas de transferência de renda no país reproduzem práticas estigmatizantes pela não inclusão do beneficiário potencial de direito ao universo dos merecedores. Urge rever como habilitar, ou seja, como adentrar o sistema. A busca da “porta de saída” é o lema dos míopes que vêem pobres e vulneráveis como estoques, suscetíveis de deixarem o lugar que nunca ocuparam por jamais terem pertencido a qualquer grupo, senão o dos que nem lugar na fila pegam. Para estes, não vale a organização da fila. São alguns muitos milhões. Esse é o lugar da inexistência social, para parafrasear Castel (1995). Outro aspecto extremamente positivo a destacar diz respeito à taxa de reposição que mede o valor médio do rendimento dos inativos vis-à-vis a remuneração dos ativos. Esse é um aspecto fundamental das políticas previdenciárias que devem garantir a suavização do consumo. A Tabela 2 indica, por corte de sexo e nível de escolaridade, que, por força da vinculação do salário mínimo ao piso beneficiário, a desigualdade entre inativos se reduz entre trabalhadores com menos escolaridade e em particular entre as mulheres, cuja inserção produtiva mais precarizada e instável é compensada na inatividade. No caso das rurais, majoritariamente ocupadas no regime de economia familiar, com baixo nível de monetarização, o ganho é significativo. Tabela 2 Taxa de reposição por nível de escolaridade, segundo dados da PNAD 2006 Escolaridade Taxa de Reposição
0-4
5-8
9-12
anos
anos
anos
ou +
0,72
0,73
0,74
0,69
Homens
0,67
0,68
0,68
0,61
Mulheres
1
1
0,98
0,83
Urbanos
13 anos
TOTAL
Rurais Homens
0,65
Mulheres
1,71
Fonte: PNAD 2006. Corte trabalho: 45-60 anos e corte aposentadoria e pensões: 60-75 anos
Esses dados, embora corroborem a eficácia dos princípios universalistas da Seguridade na redução das desigualdades e na promoção da equidade e justiça social, têm servido para alimentar as críticas dos que associam aqueles com baixa capacidade contributiva aos não-merecedores. Advogam, assim, a supressão de um direito ou, pelo menos, a desvinculação entre piso previdenciário e salário mínimo, para não igualar desiguais, não do ponto de vista da renda, mas dos direitos, registre-se aqui. Ora, a vantagem 94
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da universalização como mecanismo de efetividade da política social deve ser analisada à luz de seus resultados. E estes são comprobatórios. Nossas mazelas vêm da falta de universalização, da baixa cobertura, do não acesso. Os críticos da dimensão beveridgiana – ainda acanhada - e pública do nosso sistema de Seguridade Social preferem ocultar o fato de que a metade do financiamento do sistema de proteção social provém das contribuições sociais não-previdenciárias, que incidem sobre o conjunto da população e proporcionalmente mais sobre os mais pobres, sem capacidade contributiva direta. Como apontam Lavinas e Cavalcanti (2008), “em tese, as contribuições sociais seriam orientadas para fins redistributivos, provisão de bens e serviços universais, como a saúde, e também, evidentemente, para cobrir benefícios não contributivos. Na prática, esses recursos financiam outras despesas, como benefícios contributivos e despesas de livre alocação do governo, como juros da dívida pública. No caso dos benefícios contributivos, sabe-se que parte deles tem impacto redistributivo progressivo significativo, como as aposentadorias rurais. Mas não é o caso quando estes recursos cobrem, por exemplo, aposentadorias e pensões do RPPS. Os juros, como se sabe, são regressivos, de forma que se gera uma dupla pressão regressiva ao se financiar esses gastos com recursos de contribuições dessa natureza que incidem sobre o conjunto da população sem poupar os pobres. O mais curioso é a idéia lugar comum de que os idosos pobres recebem sem contribuir e que isso seria impeditivo a um combate mais efetivo da pobreza, por desperdício. O obstáculo para se vencer a pobreza não são os brasileiros pobres e idosos, mas a regressividade da política fiscal, que compromete o efeito redistributivo da política social. A integração e a complementaridade entre previdência e assistência mantêm-se débeis no nosso sistema de proteção social. Há barreiras à entrada nos dois alicerces do sistema. Primeiramente, porque o acesso à assistência não é automático, mas discricionário na maioria das vezes – logo, não se constitui em direito. Em segundo lugar, porque a precariedade do trabalho e a informalidade restringem condições de acesso ao sistema contributivo. A regularidade da contribuição, de manutenção difícil, empurra para a assistência um contingente de grande magnitude dos trabalhadores, negando-lhes, assim, a condição de trabalhador. Assim, continua prevalecendo o antagonismo: merecedores x nãomerecedores. Em um país com o nosso passivo de desigualdades, o futuro não se mostra lá muito alentador. E a Reforma Tributária, que deve nos contemplar com a criação de um IVA federal, ainda não esclareceu como se fará o financiamento da Seguridade, considerando-se a eliminação de contribuições sociais, como a COFINS.
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Referências Bibliográficas BEVERIDGE, William (1946). Social Insurance and Allied Services: report / by Sir William Beveridge American ed., reproduced photographically from the English edition and published by arrangement with His Majesty’s Stationery office. - New York [Estados Unidos]: Macmillan. CASTEL R. (1995). Les Métamorphoses de la Question Sociale. Paris: Arthème Fayard. LAVINAS L. e CAVALCANTI A. (2008). O Legado da Constituição de 88: é possível incluir sem universalizar? In Debates Contemporâneos n. 4, Economia Social e do Trabalho. Previdência Social: como incluir os excluídos? Fagnani E. et ali (org), São Paulo: LTr. O´CAMPO J.A. (2008). Las Concepciones de la Política Social: universalismo versus focalización. In Nueva Sociedad 215, mayo-junio, Fondación Friedrich Ebert, Buenos Aires. TITMUSS R. (1964). The Role of Redistribution in Social Policy. Lecture to the Social Security Administration Department of Health, Education and Welfare, Washington D.C. In ALCOCK P., GLENNESTER H., OAKLEY A. AND SINFIELD A. (editors) Welfare and Wellbeing. Richard Titmuss´s contribution to social policy. London: The Policy Press. 2001.
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Seguridade Social: um conceito e uma prática da civilização (ainda) moderna Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna1 Sofisticados relógios digitais incrustados em microcomputadores ou em telefones celulares marcam horas da mesma forma que o faziam as ampulhetas medievais, 500 anos atrás, ou as clepsidras gregas, 3.000 anos atrás. No entanto, o tempo hoje parece correr mais rápido que nunca. Mudanças se sucedem em ritmo acelerado, atropelando gerações e reduzindo o campo da memória coletiva. Fatos recentes se tornam antigos, como se há muito tivessem ocorrido, como se pertencessem de longa data ao acervo das experiências vividas, ou como se já estivessem a merecer, por obsoletos, substituição urgente. “O passado perde o poder de determinar o presente; seu lugar é tomado pelo futuro”2. Instigante – ou terrível, na avaliação de Hobsbawn3 -, essa é, sem dúvida, uma marca da contemporaneidade e que a mantém, ainda, moderna4. A Seguridade Social, outra marca da contemporaneidade – que nada tem de terrível -, se encontra também submetida a tal dinâmica do moderno. Enquanto concepção de proteção social, completou recentemente sessenta anos5. Novíssima, portanto, diante da história. Mas, no frenesi da conjuntura em curso, à beira do esquecimento a que crescentemente se preterem as tradições. Como se tivesse, sempre, ocupado o posto que ocupa e, por inércia, já não valesse dispensa de atenções. Ou como se, por desatualizada, devesse render-se aos modismos da reengenharia, da inovação, do ajuste, da competitividade, e tantos mais. No Brasil, pelo menos (e sobretudo), assim se sucede com a Seguridade Social trazida à luz pela Constituição de 1988. Nem bem tendo dito a que veio, já a mandam calarse. Nem bem completando 20 anos, já lhe apresentam, como presente, as pesadas faturas da modernidade. Contudo, a modernidade não se afirma apenas “desmanchando no ar tudo 1. Professora do Instituto de Economia da UFRJ 2. Ulrich Beck, Risk Society.Towards a New Modernity, Londres, Sage, 1992. 3. Eric Hobsbawn , A Era dos Extremos: o curto século XX, 1914-1991, São Paulo, Cia das Letras, 1995. 4. Para Hobsbawn, a destruição do passado é um fenômeno dos mais terríveis do “curto” século XX, que fragiliza os mecanismos sociais capazes de vincular a experiência pessoal da atual geração à das gerações passadas. A condição moderna do fenômeno da “aceleração do tempo”, afirmada, por exemplo, por Haberman (em “A Nova Intransparência”, Novos Estudos CEBRAP, n. 18, 1987) – a condição de ser um fenômeno histórico, transitório, referido a possibilidades futuras - está no centro de um debate cujo enfrentamento fugiria inteiramente aos propósitos aqui previstos. 5. A data considerada em geral, pela literatura, como referência para a adoção da Seguridade Social enquanto concepção de proteção social corresponde à divulgação do Relatório Beveridge na Inglaterra dos anos 40 e que originou a reforma instaurada pela Lei da Seguridade Social, aprovada em 1946 pelo Parlamento inglês. 97
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o que é sólido”6. O referencial do progresso, a consciência histórica e o sentido impresso à arregimentação das energias utópicas – em busca de um mundo melhor – constituem igualmente dimensões do moderno. À Seguridade, conquista que a humanidade alcançou no século XX, o Ocidente desenvolvido está suficientemente acostumado para se dar ao luxo de com ela despreocupar-se7. Não é o caso brasileiro. Aqui, trata-se, ainda, de dar vida a uma novidade jamais experimentada, de ocupar um posto nunca ocupado, de clamar atenções que não foram dispensadas. Trata-se, enfim (e ainda), de edificar um sistema de proteção social. A Constituição Federal de 1988, saudada, quando de sua aprovação, como Constituição Cidadã pelo então presidente do Congresso Nacional, deputado Ulysses Guimarães, consignou mudanças significativas no que concerne à proteção social no Brasil. A expansão dos direitos individuais e coletivos e a introdução da expressão Seguridade Social – com o sentido renovador que emprestava às políticas que a compunham – endossavam o júbilo da saudação8. Um passo importante fora dado, permitindo vislumbrar a possibilidade de ingresso do país no universo civilizado dos Estados de bem-estar social. Aos vinte anos, todavia, em plena juventude, a novidade parece relegada a peça de museu. Três movimentos (entre outros, naturalmente) podem ser responsabilizados pelo esvaziamento da Seguridade Social a partir dos anos 90: a implantação de uma institucionalidade avessa à concepção impressa na Carta Constitucional; o esmorecimento do debate – sobretudo do acadêmico – em torno dos princípios implícitos na referida concepção; e a difusão da idéia de que política social é, por excelência, algum tipo de ação voltada para os pobres (os excluídos) e, pois, por definição, focalizada. Implantada para operacionalizar (às avessas) os preceitos constitucionais, a arquitetura institucional dos anos 90 contemplou as dimensões legal, administrativa e orçamentária. A legislação que regulamentou a Seguridade pavimentou caminhos distintos para as áreas incluídas na Seguridade: a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080), de 1990, as Leis 8.212 (Lei do Custeio da Previdência) e 8.213 (Lei dos Planos de Benefícios da Previdência), de julho de 1991, e a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742), de 1993, estabeleceram, cada uma, suas diretrizes específicas. Progressivamente, efetivouse a segmentação administrativa das áreas: em 1990 foi criado o INSS, para gerir os benefícios previdenciários9, a assistência médica foi definitivamente transferida para o 6. A frase, enunciada por Marx e Engels no Manifesto Comunista de 1848, dá título ao livro de Marshall Berman, Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade (Companhia das Letras, São Paulo, 1986). 7. O que, na verdade, está longe de acontecer. Não se pretende discutir aqui a situação da Seguridade nos países centrais, onde se tornou realidade efetiva. Parte-se do suposto, trabalhado em outra ocasião (Werneck Vianna, “Política versus Economia: notas (menos pessimistas) sobre Globalização e Estado de Bem-Estar”, em Gerschman & Vianna, A Miragem da Pós-Modernidade, Ed. Fiocruz, 1997), que, no que pesem preocupações e problemas concretos que vêm sendo enfrentados, não houve desmonte nem abandono da concepção de bem-estar construída no último século. Ver também, de Eduardo Conde, Laços na Diversidade: A Europa Social e o Welfare State em Movimento (1992-2002), Tese de Doutorado, IE/Unicamp, 2004. 8. “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.(Art 194). 9. O decreto 99.350, de 27/06/1990, cria o Instituto Nacional do Seguro Social e não da Seguridade. 98
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Ministério da Saúde com a extinção do INAMPS, em 199310, e até a assistência social, sempre sujeita a contínuos deslocamentos ministeriais, vai paulatinamente ganhando autonomia, confirmada com o desmembramento do antigo Ministério da Previdência e Assistência Social em duas estruturas: o MPS (Ministério da Previdência Social) e o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social), no Governo Lula. Também do ponto de vista do financiamento, a Seguridade deixou de existir formalmente, pois embora a Constituição tenha expandido as fontes de receitas do sistema11, a legislação, desde o início dos anos 90, restringiu o escopo das funções de arrecadação do INSS às receitas incidentes sobre folha de salários, setorializando as demais (constitucionalmente estabelecidas para a Seguridade) e, ao mesmo tempo, centralizando-as num órgão externo à Seguridade, o Tesouro12. Esse foi, enfim, o (conhecido) caminho do desmantelamento institucional da Seguridade Social. Paralelamente a tal processo, um outro desenrolou-se: o esmorecimento do debate que, antes, animara vivamente a agenda de profissionais e estudiosos envolvidos com a questão social e que marcara relevante presença na elaboração do capítulo que consagrou a noção de Seguridade na Constituição. Cabe frisar, porém, que o retraimento das discussões se deu, principalmente, nos meios acadêmicos e, em particular, nos centros produtores de diagnósticos econômicos e sociais. Manipulando dados supostamente rigorosos, fazendo uso de sofisticadas estatísticas e apresentando respaldo em insuspeitas investigações empíricas, uma enxurrada de estudos passou a alimentar tanto o discurso oficial quanto a opinião pública. Firmou-se um aparente consenso, exposto ora sob a forma apocalíptica do “rombo da previdência”, ora sob a sub-reptícia denúncia de que os gastos sociais privilegiam os adultos em detrimento das (pobres) crianças, ora sob a persuasiva insinuação de que, conhecendo-se, afinal, o mapa da pobreza, não é difícil “combatê-la”. A força desse consenso aparente, derivada de abundantes recursos para pesquisa, acesso facilitado à mídia e sistemáticos afagos às políticas governamentais13, se direciona contra os estudiosos e profissionais engajados com a causa da Seguridade, buscando isolálos e inibir o debate. O intento é retirar da pauta os princípios inscritos na Constituição, transformando-os em obscuros objetos do desejo de ultrapassados militantes e, assim, tornando oco o próprio conceito de Seguridade Social. Embutidos nesse conceito estão os princípios da integração (das políticas de 10. Antes da aprovação da Lei Orgânica da Saúde, que institui o SUS (Sistema Único de Saúde), grande parte da atenção médica curativa encontrava-se na estrutura do Ministério da Previdência e Assistência Social, integrando o SINPAS (Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, criado em 1977), através do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). 11. A CF 88 incorporou às contribuições de empregados e empregadores incidentes sobre a folha de salários contribuições incidentes sobre o faturamento e o lucro das empresas, além de outras menos significativas. 12. A Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), normatizada pela lei Complementar 70, de 30/01/91 e calculada sobre o faturamento mensal das pessoas jurídicas, é, nos termos da lei, “arrecadada e administrada pela Secretaria da Receita Federal, competindo ao Tesouro o repasse para os órgãos da Seguridade conforme programação financeira”. O mesmo destino teve a CSLL, Contribuição Social sobre o Lucro das Pessoas Jurídicas, pelos termos da lei 8.212 que a regulamentou. 13. Ver alguns dos muitos artigos publicados em Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente, organizado por Ricardo Paes de Barros, Miguel Nathan Foguel e Gabriel Ulyssea (IPEA, 2007). 99
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previdência, saúde e assistência social), da universalidade dos benefícios concedidos e da redistributividade do sistema. O abafamento do debate atinge em especial o princípio da universalidade que, diversamente do princípio da integração, interpretado e regulamentado, como visto acima, por legislação ordinária em desacordo com o desígnio constitucional, manteve-se incólume14. E, por tabela, destitui de consistência o princípio da redistributividade. Tais princípios, apesar de não derrogados de direito, foram de fato abandonados. Relembrando sucintamente: a Lei Orgânica da Previdência, de 1991, recebeu o título de Lei Orgânica da Seguridade, a despeito de tratar apenas da previdência; as reformas de 1998 e 2003 reforçaram a especialização das receitas, consolidaram o caráter contributivo do arranjo previdenciário e criaram a aberração conceitual da divisão da previdência em regimes (o Regime Geral de Previdência Social – RGPS - e os Regimes Próprios de Previdência Social - RPPS). Velados ataques ao princípio da universalidade, pois, concebida como parte da Seguridade, a previdência tem caráter universal, o que significa que qualquer cidadão pode a ela filiar-se e, uma vez cumpridos os requisitos fixados, obter o benefício15. Os chamados RPPS, entretanto, não são, nem podem ser, universais, uma vez que destinam-se a funcionários públicos, ou seja, ocupantes de cargos cujo preenchimento é regido por exigências bastante rígidas. Como resultante imediata dessa divisão – que mascara uma agregação espúria, o RGPS passou a representar a Seguridade, vale dizer, a Seguridade ficou sob a égide da previdência, contrariando o texto constitucional segundo o qual a previdência é parte da Seguridade. Por seu turno, se o “manto”, o conceito mais abrangente é o de previdência, e não o de Seguridade, fragilizam-se os benefícios não contributivos, com o que elimina-se o princípio da redistributividade. As aposentadorias rurais, por exemplo, estão ameaçadas. Redutoras da pobreza, conforme demonstrado por vários autores16, não se enquadram de certo nos estritos cânones previdenciários da contribuição pretérita. Constituem, outrossim, benefício cuja legitimidade se apóia numa concepção de previdência submetida a um sistema maior, o de Seguridade. A distorção conceitual, insidiosa arma de destruição da Seguridade, sustentou o discurso oficial na última década e confundiu a opinião pública, minando as bases de solidariedade indispensáveis à natureza redistributiva da Seguridade17. Mas a desconstrução da Seguridade revela-se ainda sob outra via. Concomitante ao desvirtuamento institucional e conceitual, um modelo de proteção social alternativo à Seguridade ganhou fôlego: os programas de inclusão social. Desde a criação do CONSEA (Conselho de Segurança Alimentar), no Governo Itamar Franco, tais programas 14. O sistema de proteção social no Brasil continua universal “na letra da lei”. 15. Como universais são o acesso ao SUS – desde que o demandante se apresente como doente – e a possibilidade de solicitar o benefício assistencial da LOAS (desde que o solicitante se enquadre nos requisitos legalmente estabelecidos). A universalidade não é incompatível com a fixação prévia de critérios de elegibilidade. 16. A coleção da Revista de Seguridade Social da ANFIP registra uma série de trabalhos com tal teor. 17. Convém destacar que, ao iniciar o 2º mandato, o presidente Lula afastou-se do discurso oficial vilanizador da previdência. Nada foi feito, porém, para restituir à Seguridade o estatuto que lhe conferiu a CF 88. 100
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- Comunidade Solidária, Alvorada, Fome Zero - se erigiram à margem da Seguridade, abrigando-se na Casa Civil da Presidência da República18. Fora da Seguridade, os benefícios que pagam não obedecem ao piso do salário mínimo estatuído pela Constituição, nem configuram uma cesta de direitos, como as aposentadorias rurais e urbanas ou como o Benefício de Prestação Continuada (BPC); são benefícios limitados por condicionalidades estipuladas por critérios que podem ser modificados a qualquer tempo. Objetivamente, portanto, a concepção de Seguridade Social desenhada na Constituição de 1988 está, se não derruída, ao menos sob risco iminente. A conjuração do risco, porém, não depende unicamente da (difícil) recomposição da aliança política que viabilizou a inserção, na Carta, desse padrão civilizado de proteção social. Porque também no plano da reflexão poderosos instrumentos de luta se forjaram. O imperativo de anular tais instrumentos implica entendê-los, o que se traduz em explicitar suas premissas analíticas, encobertas pelo véu do aparente consenso acima mencionado. Sem pretensão de esgotar o tema, cabe arrolar algumas dessas premissas. Em primeiro lugar, há que derrogar o mito de que a descrição empírica da realidade substitui a elaboração de teorias explicativas que desvelem causas estruturais dos fenômenos. Números não mentem, mas também não falam. Pessoas – economistas, sociólogos etc. – se utilizam dos números para embasar hipóteses, sempre refutáveis. No que tange à análise da questão social e das formas de enfrentá-la, o empiricismo busca invalidar o debate, imprescindível, entre posturas teóricas divergentes. Esquece (ou omite) que a realidade não se auto-explica e que as interpretações formuladas por pensadores carregam inevitavelmente posições ideológicas. Em estreita associação com essa ciência-fotografia, ganha foros de unanimidade a noção de que a questão social se restringe à pobreza e que localizados (caracterizados, nomeados, mensurados) os pobres, impõe-se “naturalmente” a forma de solucionar o problema: programas de alívio da pobreza. A tautológica afirmação de que a existência de muitos pobres no Brasil se deve à persistência das desigualdades e a maneira de reduzir as desigualdades é diminuindo os índices de pobreza19 negligencia a dimensão estrutural das desigualdades sociais, novamente invertebrando o debate e alijando da agenda a busca de soluções efetivas. Ademais, dela decorre o postulado, também pretensamente unânime, de que política social é política assistencial (consubstanciada em programas de “combate” à pobreza), o que equivale a decretar que a previdência (que subsume a Seguridade) não é política social. Concernente à ótica das finanças públicas, a previdência/Seguridade vira, pelo mágico condão da isenta (posto que quantificada) noção de questão social, matéria afeta a especialistas em déficit fiscal. O rigor do conhecimento (empírico) opera, por sua vez, uma redefinição da 18. Somente em 2004 o Fome Zero veio a integrar o Ministério do Desenvolvimento Social, num momento em que a assistência social já ganhara institucionalidade própria. 19. A afirmação se encontra, implícita ou explícita, em alguns artigos da publicação do IPEA acima citada. 101
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pobreza, abordada agora como uma situação em que indivíduos se encontram por falta de certos dotes (assets, na terminologia do Banco Mundial)20. Dotes que, adquiridos, habilitam os pobres a pular a linha da pobreza. Escolaridade, aprendizado do autocuidado com a saúde, microcrédito e incentivo ao empreendedorismo constituem os ativos fundamentais que equalizam os indivíduos. Entendida a questão social como pobreza e a pobreza como carências individuais – entendimento que teorias rivais refutariam, apondo o papel das estruturas econômicas, sociais e políticas -, descobre-se mais um preceito essencial: políticas sociais de natureza coletiva, universais, não são as únicas nem as mais eficazes para lidar com a questão social. Quando dominam o cenário da proteção social, tendem a desequilibrar o orçamento fiscal, desperdiçar recursos, penalizar investimentos e a não alcançar devidamente os pobres. Devem, portanto, se restringir àquelas que propiciam igualdade de oportunidades para o exercício da liberdade, como educação fundamental e atenção básica à saúde, e servir como braço auxiliar de ações inovadoras, quais sejam, as que se dirigem a indivíduos, a grupos específicos, a segmentos da população pobre, que merecem ser tratados de modo diverso em respeito às diferenças que guardam entre si. Contestar essas premissas e formulações que embaçam o debate e desbotam a concepção de Seguridade Social que a Constituição de 1988 ofereceu à sociedade brasileira é parte – não trivial – das muitas e renovadas tarefas que subsistem no repertório da militância em prol de transformações. Transformações que têm como horizonte a compatibilização entre os ideais de liberdade e igualdade numa chave substantiva. Transformações que não residem obviamente apenas na concretização da Seguridade Social pública e universal, mas que farão dela, sem dúvida, um baluarte. Afinal, democracia e justiça social, tanto quanto a condição moderna na qual se encaixam, permanecem (ainda) como ícones de um padrão civilizado de vida.
20. Banco Mundial, Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/2001: Luta contra a Pobreza. 102
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Seguridade Social 20 anos depois: caminhos do desmonte1 Ivanete Boschetti2 Estamos comemorando em 2008 vinte anos da “Constituição Cidadã”, assim conhecida porque reinstituiu o Estado Democrático de Direito, ampliou direitos políticos e sociais, estabeleceu canais de democracia participativa e acenou para a construção de um país mais justo econômica e socialmente. A Seguridade Social, ao articular a previdência, a saúde e a assistência social, despontou como possibilidade concreta de instituir no Brasil um amplo sistema de proteção social. Passados vinte anos, isso não ocorreu, e a Seguridade Social ali prevista não se concretizou; ao contrário, muitas de suas diretrizes e princípios foram abandonados ou sofreram duros golpes, por diversos mecanismos que, ao invés de ampliar e consolidar seus direitos, caminharam no sentido de sua derruição. O processo de desmonte da Seguridade segue por diversos caminhos, alguns dos quais vamos abordar neste artigo, com o objetivo de problematizar suas possibilidades históricas, que estão sendo duramente atacadas pelas contra-reformas (Behring, 2003) que se seguiram durante a década de 1990 no Brasil, e que vêm provocando um permanente e gradual processo de desmonte e fragmentação. Praticamente todos os princípios constitucionais estão sendo desconsiderados profundamente: a universalidade dos direitos, a uniformidade e equivalência dos direitos, a diversidade de financiamento e a gestão democrática e descentralizada. Esses princípios estão sendo gradualmente diluídos. O princípio de seletividade e distributividade é o único que não está sendo desmantelado, ao contrário, é o único que está sendo colocado em prática com bastante rigor. Quais são os caminhos desse desmonte?
Os direitos não foram universalizados O primeiro caminho do desmonte é a desconfiguração dos direitos previstos constitucionalmente. Estes não foram nem uniformizados e nem universalizados. Diversas contra-reformas, como as da previdência de 1998, 2002 e 2003, sendo as primeiras no Governo Fernando Henrique Cardoso e a última no Governo Lula, restringiram direitos, 1. Texto baseado em palestra proferida no Encontro Nacional CFESS/CRESS, em 05 de setembro de 2005, em Manaus-AM. 2. Assistente Social, mestre em política social pela UnB, doutora em sociologia pela EHESS/Paris. Professora do Departamento de Serviço Social e Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Seguridade Social e Trabalho (GESST) da UnB. Conselheira Presidente do CFESS na gestão 2008-2011. 103
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reforçaram a lógica do seguro, reduziram valor de benefícios, abriram caminho para a privatização e para a expansão dos planos privados, para os fundos de pensão e ampliaram o tempo de trabalho e contribuição para obter a aposentadoria. Foram contra-reformas na direção de restringir os direitos e não de universalizá-los, como apontava a Carta Magna. Os dados da PNAD 2007 revelam que nesses 20 anos piorou a situação de acesso à previdência social. O percentual daqueles que contribuíram para a previdência em 2007 é inferior ao de 1987 (IPEA, 2008). Hoje, apenas 51,2% da População Economicamente Ativa – PEA - contribui para a Seguridade Social e tem direito aos benefícios previdenciários, contra 51,8%, em 1987. Ou seja, as contra-reformas da previdência não caminharam no sentido de ampliar o acesso a esses direitos. No âmbito da política de saúde, a fragilização da atenção básica está levando a saúde a se caracterizar como “cesta básica”. Aqueles princípios do Sistema Único de Saúde, como descentralização e participação democrática, universalização e integralidade das ações, estão sendo diluídos pela manutenção cotidiana de um sistema único que não consegue assegurar nem os atendimentos de urgência. É notória a falta de medicamentos, de leitos, e as longas filas de espera. No âmbito da política de assistência social, a promulgação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) não conseguiu ainda superar a compreensão equivocada da focalização em segmentos e situações específicas. A abrangência dessa política é muito restrita e os serviços sócio-assistenciais não atingem mais do que 25% da população que teria direito a esses serviços, à exceção do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do Programa Bolsa Família, que vêm crescendo e são responsáveis pela absorção de mais de 90% dos recursos destinados à função assistência social. O Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em processo de implementação desde 2004, está provocando uma reorganização dessa política social. Ainda enfrenta, contudo, enormes dificuldades, sobretudo nas relações entre as três esferas de governo, no co-financiamento, na expansão dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e na sua necessária articulação com as demais políticas sociais.
Os espaços de controle social se burocratizaram O segundo caminho do desmonte é a fragilização dos espaços de participação e controle popular previstos na Constituição, como os Conselhos de Direitos e de Políticas e as Conferências. A perspectiva de que esses espaços se instaurassem como instância deliberativa e participativa não se concretizou. Primeiro, ocorreu a extinção do Conselho Nacional de Seguridade Social, que tinha a função de articular as três políticas e atribuir unidade ao sistema. Em seguida, houve a extinção dos conselhos locais de previdência social, o que denota a intenção de centralização no Conselho Nacional de Previdência Social, que não possui caráter deliberativo. Os Conselhos Nacionais foram cada vez mais institucionalizados e hoje assumem funções quase executivas, como se fossem uma secretaria governamental, o que dificulta sua consolidação como espaço autônomo de participação, controle popular e fiscalização. Os conselhos têm contribuído para fazer 104
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avançar o processo democrático, mas não podemos negar também que seu processo de constituição e desenvolvimento tem contribuído para a institucionalização dos conflitos e demandas, antes canalizados para manifestações e reivindicações de massa. São espaços que, cada vez mais, se diversificam e se proliferam, o que vem contribuindo para a fragmentação das demandas e das respostas públicas. Os direitos, muitas vezes, não são defendidos como direitos dos cidadãos, mas como direitos específicos de determinado segmento: dos idosos, das pessoas com deficiência, da mulher, sem uma necessária relação entre as necessidades e demandas particulares e o reconhecimento geral dos direitos de todos/as. Os conselhos têm favorecido, também, a representação corporativa de interesses específicos, que vão desde a defesa de interesses empresariais até interesses corporativos profissionais. Nesse sentido expressam mais interesses específicos e menos interesses de classe. São espaços de democracia representativa, mas com limitada participação direta. Os processos eleitorais, muitas vezes, são organizados de modo a feudalizar e eleger grupos e/ou composições pré definidas.
O financiamento é regressivo e não redistributivo A terceira forma de desmonte é a via do financiamento, sendo este o principal caminho de derruição da idéia de Seguridade Social prevista na Constituição Federal. As fontes de recurso não foram diversificadas, permanece a arrecadação predominantemente sobre folha de salários no caso do Regime Geral de Previdência Social e ocorre uma fuga de recursos da Seguridade Social, na verdade uma usurpação dos recursos da Seguridade para o pagamento da dívida pública. Em relação ao financiamento, quando nos perguntamos quem paga a conta da Seguridade Social, todos os dados disponíveis revelam que quem financia a Seguridade é a classe trabalhadora, pois as contribuições sociais ainda representam mais de 80% do orçamento (Boschetti e Salvador, 2006), sendo a contribuição dos empregadores e dos trabalhadores sobre folha de salário uma das principais fontes, apesar do princípio constitucional de diversidade de fontes. Em seguida vêm as outras contribuições - Confins, CPMF3, CSLL –, sendo que os recursos ordinários provenientes do orçamento fiscal são quase insignificantes no Orçamento da Seguridade Social. Além de não diversificar as fontes de financiamento, o orçamento sofre uma sangria de seus recursos, por meio da Desvinculação das Receitas da União. Em 2007, 65% do superávit primário foi gerado com recursos do Orçamento da Seguridade Social. No período de 2000 a 2007, foram extraídos aproximadamente R$ 205,2 bilhões desse orçamento. Esse montante equivale a cinco vezes o orçamento anual da saúde e quase dez vezes o orçamento da assistência social (Salvador, 2008). Trata-se de uma perversa alquimia, que se apropria dos recursos das políticas sociais 3. A CPF foi extinta em 2007. 105
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para sustentar a política econômica conservadora e neoliberal e impede a ampliação dos direitos sociais no Brasil (Boschetti e Salvador, 2006). Essa política macroeconômica impacta diretamente no orçamento social e nos investimentos públicos e derrui a possibilidade de ampliação e efetivação dos direitos. Enquanto as despesas reais e per capita com encargos da dívida pública cresceram 7,96% em 2005, o gasto social direto real do Governo Federal cresceu apenas 1,07%, ou seja, as transferências externas com pagamento dos encargos da dívida pública tiveram um crescimento anual 7,4 vezes maior que a expansão do gasto social (Pochmann, 2007: 70). É evidente, assim, que quem paga a maior parte da conta da Seguridade Social são os trabalhadores, com o desconto em folha, e as contribuições sociais como CSLL e Cofins, provenientes do faturamento e lucro das empresas, e que estas transferem para os preços das mercadorias, de modo que quem acaba pagando a conta são os consumidores. Do ponto de vista das fontes de financiamento, podemos afirmar que a Seguridade tem caráter regressivo, pois não transfere renda do capital para o trabalho. Outro elemento de análise importante para compreendermos esse processo de desmonte é conhecer o destino dos recursos. A fatia maior de recurso da Seguridade Social fica com a previdência social, seguida pela política de saúde, e, finalmente, a política de assistência social, cuja participação vem crescendo no âmbito da Seguridade. De acordo com Pochmann (2007: 71), a redução dos gastos sociais per capita em valor real não atinge todas as políticas sociais de modo equivalente. O autor mostra que no período 2003/2005, em comparação com 2001/2002, apenas a política de assistência social registrou crescimento real per capita de 11,11%, o que se deve aos programas de transferência de renda (Bolsa Família, BPC e RMV). Enquanto a previdência teve uma variação negativa de -0,70%; a variação da saúde foi de -7,49%; educação e cultura, -5,40%; habitação e saneamento, -44,03%. Daí a lucidez analítica de autores que afirmam que está ocorrendo uma “assistencialização” do Estado social brasileiro, com retrocesso dos direitos relativos à saúde, previdência, educação, moradia e emprego, e ampliação de direitos ou benefícios de transferência de renda na esfera assistencial (Mota, 2007). Não se pode compreender essas tendências de desmonte da Seguridade Social sem entender sua relação com a política econômica. Ao mesmo tempo em que ocorre redução nos investimentos públicos em direitos sociais, a política de juros altos favorece uma forte mobilidade do capital especulativo, sendo este um dos principais responsáveis pelo endividamento dos Estados, pela redução dos investimentos em produção e, conseqüentemente, redução de empregos. A autonomização progressiva da esfera financeira está na base da liberalização completa da circulação de capital financeiro e se sustenta em uma política de desregulamentação que provocou uma mobilidade sem precedentes do capital financeiro do tipo especulativo, com o objetivo de extrair a maior parte do lucro que é mais valia socialmente produzida, na forma de juros no menor prazo possível. A especulação financeira vem transformando a sociedade em um grande cassino, sendo esta 106
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a característica mais marcante do mercado de capitais, e gerando grandes transferências de capital ao sistema bancário4. Além da DRU, corroboram para reduzir o Orçamento da Seguridade Social elementos como a baixa participação do orçamento fiscal no Orçamento da Seguridade Social, a isenção fiscal que faz com que a Seguridade deixe de arrecadar enormes somas de recursos, devido às renúncias previdenciárias de “entidades filantrópicas” (assistência, saúde e educação), micro e pequenas empresas e clubes de futebol. Ainda que previstas em leis, essas isenções poderiam ser limitadas de modo a assegurar maior arrecadação para a Seguridade Social. Outro elemento é a sonegação fiscal. Dados da ANASPS (Associação Nacional dos Servidores da Previdência Social) revelam que, entre 2003 e 2005, o governo acumulou R$ 100 bilhões de déficit de caixa no INSS por motivo de uso indevido do Orçamento da Seguridade Social, R$ 90 bilhões em função de sonegação, evasão e elisão contributiva e R$ 35 bilhões em função de renúncias contributivas. O favorecimento de planos privados de aposentadoria, que proliferaram após a contra-reforma da previdência social, é outro caminho de desmonte, pois provoca uma privatização passiva ao estimular a demanda ao setor privado, em detrimento do setor público. Em 2004, mais de 6 milhões de brasileiros (as) já haviam se associado a planos privados, o que reduz e fragiliza a Seguridade Social pública. Outro grave caminho de desmonte é a Reforma Tributária que, conforme aponta o INESC (2008), modifica as principais bases de financiamento da Seguridade, extinguindo a COFINS e a CSLL e desonerando a contribuição patronal sobre a folha de pagamento. Para o INESC, “essa modificação é o sepultamento da diversidade das bases de financiamento da Seguridade Social inscrita no Artigo 195 da Constituição Federal (CF) de 1988, que ampliou o financiamento da previdência, saúde e assistência social para além da folha de salários, incluindo a receita, o faturamento e lucro” (INESC, 2008:10).
Desafios na luta pela Seguridade Social pública e universal Mais do que nunca é preciso reafirmar qual é a Seguridade Social que queremos e precisamos para reduzir desigualdades. A luta pela Seguridade Social pública e universal deve ser uma luta contra a “economia política da iniqüidade” (Oliveira, 2007:09). Deve debater-se contra a política econômica e deve defender-se a implantação de fontes de financiamento progressivas, com recursos redistributivos e crescentes, que sejam retirados do capital e transferidos para o trabalho e que possam, de fato, universalizar direitos. Deve 4. Em meio a mais uma crise do capital nesse final de setembro de 2008, mais uma vez o Estado é chamado a socorrer os bancos e o mercado. O Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciou dia 24/09 que o custo da crise financeira nos Estados Unidos é de US$ 1,3 trilhão. De acordo com o órgão, os bancos europeus e americanos perderam entre US$ 640 bilhões e US$ 735 bilhões devido à queda do valor de seus ativos, principalmente em dólares. O Plano de Socorro aos bancos proposto pelo Governo ao Congresso e que não foi aprovado prevê a criação de fundo de até US$ 700 bilhões, com recursos públicos. No Brasil, O Banco Central do Brasil anunciou a alteração de algumas regras do recolhimento compulsório de recursos no país, o que irá liberar às instituições financeiras cerca de R$ 13 bilhões, dando mais fôlego ao mercado de crédito brasileiro. 107
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ser uma luta que se paute pela socialização da política e fortalecimento de instituições verdadeiramente democráticas, que assegurem a organização autônoma da classe trabalhadora e o fortalecimento dos movimentos sociais. Deve ser uma luta em defesa de uma política econômica a serviço do crescimento e da redistribuição da riqueza socialmente produzida, e de uma política tributária redistributiva, que onere mais o capital e menos o trabalho. Esta é Seguridade Social que o Brasil precisa e tem condições de assegurar aos seus cidadãos.
Referências Bibliográficas BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contra-Reforma: Desestruturação do Estado e Perda de Direitos. São Paulo: Cortez, 2003. BOSCHETTI, Ivanete & SALVADOR, Evilásio. Orçamento da seguridade social e política econômica: perversa alquimia. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, v. 87, 2006. p. 25-57. CASTRO, Jorge Abrahão (org.). Gasto social e política macroeconômica: trajetórias e tensões no período 1995-2005. IPEA, Texto para Discussão 1324. Brasília, 2008. INESC. Reforma Tributária desmonta o financiamento das políticas sociais. NT. 140. Brasília, abril de 2008. IPEA. Nota Técnica. Sobre a recente queda da desigualdade de renda no Brasil. Brasília, agosto de 2006. Disponível em http://www.ipea.gov.br/default.jsp Acesso em 19/07/2008. IPEA. Comunicado da Previdência. n. 10. PNAD 2007. Primeiras Análises. Vol. 1: Mercado de Trabalho. Trabalho Infantil. Previdência. Brasília, 30 de setembro de 2008. Disponível em http://www.ipea.gov.br. Acesso em 01/10/2008. MARX, Karl. O Capital. Volume 2. 11ª Ed. São Paulo: Difel,1987. MOTA, Ana Elisabete. Serviço Social e Seguridade Social: uma agenda política recorrente e desafiante. In: Revista Em Pauta, n. 20. Rio de Janeiro: Revan & UERJ, 2007. OLIVEIRA, Francisco. A Economia política da iniqüidade brasileira. Prefácio. In: SICSÚ, João (org). Arrecadação, de onde vem? E gastos públicos, para onde vai? São Paulo: Boitempo, RLS, 2007. POCHMANN, Marcio. Gasto social, o nível de emprego e a desigualdade da renda do trabalho no Brasil. In: SICSÚ, João (org). Arrecadação, de onde vem? E gastos públicos, para onde vai? São Paulo: Boitempo, RLS, 2007. SALVADOR, Evilásio. Fundo público no Brasil: financiamento e destino dos recursos da seguridade social (1999 a 2006). Tese de doutorado em elaboração. Brasília: SER/UnB, 2008. 108
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Avanços e limites no controle social da Seguridade no Brasil Evilásio Salvador1
Introdução O termo Seguridade Social, inexistente na língua portuguesa até a década de 1980, já era adotado desde 1935 nos Estados Unidos e desde a década de 1940 na Europa capitalista, para designar uma miríade de programas e serviços sociais. No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, a Seguridade Social passa a designar um conjunto integrado de ações do Estado e da sociedade voltado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, incluindo também a proteção ao trabalhador desempregado, via seguro-desemprego. 2
A Constituição Federal (CF), no seu Título VIII, que trata da ordem social, dedicou o Capítulo II à Seguridade Social, estabelecendo como um dos objetivos (inciso VII do parágrafo único do art. 194) a serem obedecidos na sua organização o “caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados”. A ênfase na participação social é um dos aspectos mais importantes da Constituição. A Seguridade Social na trilha das diretrizes constitucionais, ainda com limites, adotou um redesenho das relações entre Estado e sociedade, instituindo algumas formas de participação e controle social. Com isso, nos artigos da CF que tratam das políticas que integram a Seguridade Social, o princípio da participação da sociedade civil na gestão dessas políticas sociais é reforçado. O art. 198, que trata das ações e serviços de saúde, estabelece entre as diretrizes do sistema único a “participação da comunidade”. O artigo 204, que trata das ações do Governo na política de assistência social, estabelece a “participação da população por meio de organizações representativas na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. 1. Economista, mestre e doutorando em Política Social na Universidade de Brasília (UnB). Assessor de política fiscal e orçamentária do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). E-mail: evilasio@inesc.org.br. 2. Boschetti (2003a), num esforço de precisar conceitualmente os termos que guardam contigüidade ao Estado Social, lembra que no Brasil o vocábulo seguridade social passou a integrar os dicionários da língua portuguesa a partir de 1988 e que o Novo Dicionário Aurélio explica a etimologia da palavra a partir do francês sécurité ou do inglês security e ambos do latim securitate. Em Portugal, o termo é traduzido como “segurança social” e assim aparece em diversas publicações como, por exemplo, no livro da OIT (2002): Segurança Social: um novo consenso. 109
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O controle social deve ser visto na perspectiva da construção de hegemonia na sociedade civil com a intenção de influir na gestão pública, canalizando e assegurando recursos públicos para as políticas sociais que efetivam direitos para a maioria da população, particularmente, a necessária e urgente universalização das políticas que integram a Seguridade Social no Brasil. Para Raichelis (2000, p. 42-43), o “controle social significa acessos aos processos que informam as decisões no âmbito da sociedade política. Permite a participação da sociedade civil organizada na formulação e na revisão das regras que conduzem as negociações e a arbitragem sobre os interesses em jogo, além do acompanhamento da implementação daquelas decisões, segundo critérios pactuados”. Entre os espaços de disputa de interesses em conflito na sociedade e que funcionam como importantes mecanismos de participação social estão os conselhos de políticas públicas. A primeira parte deste texto é dedicada a analisar as experiências de controle social por meio dos conselhos existentes no âmbito das políticas que integram a Seguridade Social, ou seja, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o Conselho Nacional da Previdência Social (CNPS) e o Conselho Nacional da Assistência Social (CNAS). Lembrando que o Conselho Nacional da Seguridade Social (CNSS) não existe mais, apresentamos nas considerações finais a defesa da sua recriação. Apesar de avanços e das experiências diferenciadas desses conselhos no âmbito da Seguridade, eles esbarram em limites concretos para o controle social, destacando-se dois: a existência da Desvinculação de Recursos da União (DRU), que retira recursos da Seguridade Social, e o fato de uma parcela importante da execução orçamentária acontecer fora dos fundos públicos da Seguridade.
As experiências dos Conselhos nas políticas da Seguridade Social Apesar da previsão constitucional de gestão quadripartite da Seguridade Social, o CNSS teve vida curta. A lei 8.212/1991, que “dispõe sobre a organização da seguridade social, institui plano de custeio e dá outras providências”, estabelecia em seu artigo 6º o CNSS como órgão superior de deliberação colegiada do sistema nacional de Seguridade Social. O CNSS tinha a participação da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos municípios e de representantes da sociedade civil. Contudo, o CNSS foi extinto na 5ª edição da Medida Provisória (MP) 1799-5/1999, atual MP 2.216-37 de2001, em tramitação na forma da Emenda Constitucional (EC) 32/2001. Na sua extinção, o Conselho era composto por 17 membros, sendo: quatro representantes do Governo Federal, um representante dos governos estaduais e um das prefeituras municipais; oito representantes da sociedade civil, sendo quatro trabalhadores, dos quais pelo menos dois aposentados, e quatro empresários; e três representantes dos conselhos setoriais, sendo um de cada área da Seguridade Social. Entre as competências do CNSS, destacavam-se:
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i. estabelecer as diretrizes gerais e as políticas de integração entre as áreas, observado o caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados; ii. acompanhar e avaliar a gestão econômica, financeira e social dos recursos e o desempenho dos programas realizados, exigindo prestação de contas; iii. apreciar e aprovar os termos dos convênios firmados entre a Seguridade Social e a rede bancária para a prestação de serviços; iv. aprovar e submeter ao Presidente da República os programas anuais e plurianuais da Seguridade Social; v. aprovar e submeter ao órgão central do sistema de planejamento federal e de orçamento a proposta orçamentária anual da Seguridade Social; vi. estudar, debater e aprovar proposta de recomposição periódica dos valores dos benefícios e dos salários-de-contribuição, a fim de garantir, de forma permanente, a preservação de seus valores reais; vii. zelar pelo fiel cumprimento de toda legislação pertinente à Seguridade Social. Umas das principais atribuições do CNSS era a elaboração do orçamento da Seguridade Social, sob o formato quadripartite, que chegou a ser realizado em 1993 e 1994, mas essa orientação não prevaleceu. O Conselho tinha a missão de articular e sistematizar um orçamento previamente debatido com as áreas responsáveis pela previdência social, saúde e assistência social, mas foi perdendo paulatinamente suas atribuições e acabou sendo extinto (DELGADO, 2002). Atualmente existem duas proposições em debate no Congresso Nacional que propõe a recriação do CNSS. O Projeto de Lei Complementar (PLP) 311/20023 “dispõe sobre revisão, reposição de valores e manutenção dos seguros da Previdência Social e dá outras providências”, uma iniciativa popular apresentada na Comissão de Legislação Participativa (CLP), que traz em seu artigo 5º o restabelecimento dos artigos da Lei 8.212, que tratava do CNSS. Como o ordenamento jurídico no Brasil não aceita a repristinação4, o relator5 na Comissão de Seguridade Social e Família incluiu integralmente, no substitutivo, uma “nova redação”, com os artigos originais da Lei 8.212, restabelecendo o Conselho. 3. O Projeto de Lei Complementar 311, de 2002, começou sua tramitação na Comissão de Legislação Participativa, tendo como origem a Sugestão nº 3, de 2001, apresentada pela Federação de Associações e Departamentos de Aposentados e Pensionistas do Estado de São Paulo – FAPESP. O PLP está desde 17/4/2008 na Comissão de Finanças e Tributação (CFT). 4. A repristinação ocorre quando uma lei é revogada por outra e posteriormente a própria norma revogadora é revogada por uma terceira lei, que irá fazer com que a primeira tenha sua vigência reestabelecida caso assim determine em seu texto legal. A lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência. A repristinação só é admitida se for expressa. 5. O relator na Comissão de Seguridade Social e Família foi o deputado Arnaldo Faria de Sá e a comissão aprovou o substitutivo apresentado pelo deputado. 111
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No Senado Federal tramita o Projeto de Lei (PLS) 1786, de 02/04/2007, que recria o CNSS, mas com outro perfil. A começar pela proposta de um colegiado bastante amplo e representativo, composto por 73 membros, dos quais quinze representantes são do Governo Federal, cinco representantes dos governos estaduais e do Distrito Federal, sendo um para cada uma das regiões do país; cinco representantes das prefeituras municipais, sendo um de cada uma das regiões do país; representantes da sociedade civil (quinze trabalhadores, quinze empregadores e quinze aposentados), um representante CNS; um representante do CNPS; e um representante do CNAS. O projeto prevê que os membros do colegiado, para serem nomeados, serão submetidos à sabatina e aprovação pelo Senado Federal. No PLS 178 a competência foi ampliada em relação ao conselho que foi extinto, em 1999, cabendo-lhe, além de estabelecer as diretrizes gerais e as políticas de integração entre as áreas que compõem a Seguridade Social, apreciar e aprovar os respectivos planos e programas. Além da missão de acompanhar, fiscalizar e avaliar a gestão administrativa, econômica, financeira e social e o desempenho dos programas realizados da área e aprovar a proposta orçamentária anual da Seguridade Social.
O Conselho Nacional de Saúde O marco importante para compreensão do controle social da política de saúde no Brasil é o movimento de Reforma Sanitária, que homologou a proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) como alternativa ao sistema em vigor, que exigia a inserção no mercado formal de trabalho, o que significava a necessidade de contribuição prévia para o acesso à saúde pública no país. A proposta do SUS foi legitimada na VIII Conferência Nacional de Saúde, que contou pela primeira vez na história com ampla participação da sociedade civil organizada. Um dos principais eixos da conferência foi a participação no SUS na perspectiva do controle social, apontado como um dos princípios alimentadores da reforma do sistema nacional de saúde, e fundamental para sua democratização, com forte mobilização do movimento nacional da Reforma Sanitária, articulado com os movimentos sociais, sindicatos e parlamentares que pressionaram e conquistaram na Constituição de 1988 o SUS (CORREIA, 2006). Ou seja, a garantia da saúde como direito de todos e dever do Estado, a descentralização, o atendimento integral, enfim, a universalização do direito. Os conselhos e as conferências de saúde foram instituídos pela Lei 8.142, de 1990, como instrumentos do controle social por meio dos quais deve acontecer a participação dos diversos setores da sociedade, a fim de, juntamente com o Governo, permitir o 6. Trata-se do projeto de autoria do senador Paulo Paim, que “regulamenta o inciso VII do parágrafo único do art. 194 da Constituição Federal para dispor sobre a gestão quadripartite da Seguridade Social, a cargo dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados”. Atualmente, o PLS 178/2007 está na Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal. 112
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acompanhamento e a definição de políticas públicas de saúde. Os conselhos de saúde estão presentes também em todos os Estados da federação e nos municípios7, pois constituem uma exigência legal para o recebimento de verbas orçamentárias da União. Os conselhos de saúde têm atribuições deliberativas e composição paritária, com a metade das vagas destinadas à representação dos usuários. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) já existia desde 19378 (Lei 378) e tinha como missão, na sua fundação, a assessoria do extinto Ministério da Educação e da Saúde. O formato atual está estabelecido na Lei 8.142 e no Decreto 99.438/1990, tendo por base os princípios e diretrizes do SUS. Na história anterior a 1990, o CNS tinha como característica a presença de especialistas em saúde e atuava na consultoria dos assuntos relacionados à saúde pública e no estabelecimento de normas e diretrizes técnicas, além da emissão de pareceres quando solicitados pelo Governo. Hoje, o CNS é composto por 48 conselheiros, que são representantes de entidades e dos movimentos sociais de usuários do SUS, entidades de profissionais de saúde, incluída a comunidade científica, entidades de prestadores de serviço, entidades empresariais da área da saúde e representantes do Governo. A distribuição de vagas entre os atores sociais envolvidos com a saúde pública e com representação no conselho foi estabelecida na Resolução 333/2003 do CNS, com a seguinte composição paritária: 50% de usuários, 25% de trabalhadores e 25% de prestadores de serviço e gestores públicos. Essa composição revela que o CNS é um espaço de disputa dos variados interesses de segmentos da sociedade civil, especialmente entre os segmentos que representam os interesses do capital e, de outro, os representantes de segmentos organizados da sociedade civil e dos trabalhadores, que defendem a política pública de saúde com a concretização da universalização prevista na CF. Como adverte Correia (2006, p. 128), os conselhos “não são espaços neutros, nem homogêneos, pois neles existe o embate de propostas portadoras de interesses divergentes para dar o rumo da política específica na direção dos interesses dos segmentos das classes dominantes ou das classes subalternas, lá representados”. Portanto, o controle social depende também da correlação de forças predominantes na sociedade. O conselho tem função de deliberar a formulação de estratégia e controle da execução da política nacional de saúde em âmbito federal, e também os critérios para a definição de padrões e parâmetros assistenciais. O CNS delibera sobre propostas de normas básicas nacionais para operacionalização do SUS. O CNS também decide sobre: os planos estaduais de saúde, quando solicitados pelos Conselhos Estaduais de Saúde; divergências levantadas pelos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, e o credenciamento de 7. Correia (2006, p. 127) observa que muitos desses conselhos “foram criados apenas formalmente para cumprir o referido requisito legal, se constituindo em mecanismo de legitimação de gestões. São manipulados desde a sua composição, com a ingerência política dos gestores, até a sua atuação, reduzida à aprovação de documentos necessários para repasses dos recursos”. Ver também nesse sentido os estudos de Silva (1995) e de Stein (1997) sobre a descentralização das políticas sociais. 8. Sobre a história e o papel desempenhado pelo CNS e, principalmente, sobre a abordagem de sua composição e atribuições formais no ambiente sócio-político no qual estava inserido (ver Anexo II, do estudo realizado por Silva e Abreu, 2002). 113
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instituições de saúde que se candidatem a realizar pesquisa em seres humanos. Além disso, estabelece as diretrizes a serem observadas na elaboração dos planos de saúde em função das características epidemiológicas e da organização dos serviços. O CNS também tem por missão acompanhar a execução do cronograma de transferência de recursos financeiros, consignados ao SUS, aos Estados, municípios e Distrito Federal, assim como aprovar os critérios e valores para a remuneração dos serviços e os parâmetros de cobertura assistencial. Cabe ainda ao CNS aprovar a proposta setorial da saúde no Orçamento Geral da União e participar da consolidação do Orçamento da Seguridade Social, após análise anual dos planos de metas, compatibilizando-o com os planos de metas previamente aprovados. De acordo com Silva e Abreu (2002), a forma como o CNS foi estruturado e a representação nesse espaço público e político têm como corolário mudanças significativas nas deliberações e nas resoluções dos conflitos da política setorial de saúde. Os valores de democracia e participação são padrões de medidas para as lutas do setor de saúde no país. O CNS teve papel decisivo nos anos pós-constituição de garantir a vinculação dos recursos para o SUS e na negociação da programação pactuada e integrada e das Normas Operacionais Básicas (NOBs). Os planos de pactuação integrada e as NOBs cumprem relevantes papéis no sistema de saúde, pois são instrumentos de operacionalização das Leis 8.080/90 e 8.142/90, que dispõem sobre a participação social na gestão do SUS, assim como as transferências de recursos financeiros entre os níveis de governo. Para Silva e Abreu (2002), as NOBs são capazes de influir decisivamente na gestão do SUS, obrigando o gestor a segui-la, e também vêm associadas aos condicionamentos e sanções. Registra-se que a adesão às diferentes formas de gestão está vinculada a incentivos na forma de recursos adicionais, sendo que o descumprimento dos procedimentos estabelecidos implica em perda desses recursos. Ademais, as NOBs e as Normas Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS), de acordo como os autores, resultam de intensas discussões e negociações dentro do CNS, com a participação de atores institucionais envolvidos. Os anos 1990, período de configuração legal da saúde como política pública universal, também são marcados por uma conjuntura de contra-reforma de Estado, com tentativa de implantar, sob a batuta das recomendações do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), um processo de universalização excludente, cuja mercantilização e a busca da privatização da saúde são elementos permanente de tensões na política de saúde. Behring (2003) vai caracterizar o período como “a contra-reforma do Estado no Brasil”, pois o neoliberalismo significou uma reação conservadora de natureza claramente regressiva, na qual se situa a “contra-reforma” do Estado. De acordo com a autora, a reforma anunciada na Constituição brasileira de 1988 em alguns aspectos indicou o caminho, ainda que mínimo, de uma estratégia de natureza social-democrata, especialmente no capítulo da ordem social. Mas, a partir dos anos 1990, as propostas reformistas acabam por solapar 114
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as possibilidades, ainda que limitadas, da plena aplicação dos direitos sociais da Carta Magna, podendo-se então falar em contra-reforma, iniciada com as chamadas reformas estruturais no Governo Collor e aprofundadas nos oito anos do Governo Fernando Henrique Cardoso. O resultado desse processo e das tensões para privatização da saúde no país reflete o baixo patamar de gastos públicos em saúde no Brasil, que são insuficientes para cumprir a missão que a Constituição de 1988 se propôs: estabelecer um sistema de saúde público, universal, integral e gratuito. De acordo com Organização Mundial da Saúde (OMS), em dados divulgados pelo Boletim de Políticas Sociais (n° 13) do IPEA, o Brasil gasta apenas 3,45% do PIB com políticas públicas de saúde, patamar inferior aos 5,1% da Argentina, os 6,9% da Inglaterra ou os 7,2% da França. Com o agravante que a rede privada de planos e seguros direcionados à saúde atende cerca de 43 milhões de pessoas, movimentando recursos que, somados ao gasto das famílias com medicamentos, alcança 4,1% do PIB. O CNS teve um posicionamento contrário às diversas recomendações do Banco Mundial, contribuindo efetivamente, no período de 1995 a 2002, para inibir ou mesmo evitar a implantação de políticas que buscavam a privatização da saúde no Brasil. Correia (2006) destaca as recomendações e posições contrárias do CNS, como por exemplo: i. a aprovação de resolução contra a EC 32, que propunha a retirada da garantia legal do acesso universal a social, previsto no art. 196 da CF; ii. a rejeição de experiências de flexibilização administrativas na gestão da saúde para organizações sociais ou cooperativas que tendem à privatização do sistema, como, por exemplo, o Plano de Assistência de Saúde (PAS) de São Paulo; iii. o combate às experiências de co-pagamento de serviços de saúde estatais, que quebram o caráter público dessa política; iv. a atuação para retirada do projeto de lei de transformação da Fundação Nacional de Saúde em agência executiva autônoma, o que implicaria no repasse de funções executadas pelo Ministério da Saúde para esfera não-estatal. Ainda de acordo com Correia (2006), o CNS se posicionou contrário à reforma do Estado, aprovando, em 1996, uma resolução que solicitava a suspensão da aplicação da reforma no setor de saúde, além das denúncias que o conselho fez sobre os contingenciamentos e desvios dos recursos orçamentários da saúde. Apesar dessa importante atuação do CNS, seu desempenho teve limites, pois não conseguiu barrar a implantação do modelo assistencial de saúde que seguiu, em parte, as recomendações do Banco Mundial e do FMI. Assim como as dificuldades inerentes de se contrapor à apropriação dos recursos dos fundos públicos da Seguridade Social para a esfera fiscal. Para muitos autores, como Silva e Abreu (2002), o CNS é considerado um caso 115
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paradigmático de conselho bem-sucedido, além de ser o mais influente da experiência brasileira de controle social de políticas públicas.
O Conselho Nacional da Previdência Social O estudo denominado “a participação social na gestão pública: avaliação da experiência do Conselho Nacional de Previdência Social”, realizado pelo IPEA e coordenado por Delgado et al (2002), produziu um balanço da atuação do Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS). Os autores analisaram as resoluções do CNPS (1992 a 2000), assim como os atos administrativos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS). Além disso, realizaram entrevistas com componentes e ex-componentes do CNPS. O texto revela em sua conclusão a existência de um consenso quanto à insuficiência da práxis do CNPS em atingir o objetivo de efetivamente permitir a co-gestão na área previdenciária. O CNPS foi fundado em 1992 para assegurar o compartilhamento da gestão previdenciária entre governo, trabalhadores, empregadores e aposentados. A sua existência formal ocorreu por determinação da Lei 8.213/1991, que o estabeleceu com órgão superior de deliberação colegiada, em obediência à determinação constitucional e ao próprio artigo 2º dessa lei. Entre os princípios e objetivos da previdência social está o “caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação do Governo e da comunidade, em especial de trabalhadores em atividade, empregadores e aposentados”. O CNPS é composto por quinze membros, sendo seis representantes do Governo Federal e nove representantes da sociedade civil, sendo: três representantes dos aposentados e pensionistas; três representantes dos trabalhadores em atividade; e três representantes dos empregadores. Os membros do CNPS são nomeados pelo Presidente da República, tendo os representantes titulares da sociedade civil mandato de dois anos, podendo ser reconduzidos, de imediato, uma única vez. Os representantes dos trabalhadores em atividade, dos aposentados e dos empregadores são indicados pelas centrais sindicais e confederações nacionais. Uma questão que chama atenção na representatividade do CNPS é a ausência da representação da ampla massa de trabalhadores que se encontra fora da cobertura previdenciária, ou seja, que estão em relações informais no mercado de trabalho. A desestruturação do mercado de trabalho nos anos 1980, agravada na década de 1990 – cuja marca central foi a redução das relações de trabalho assalariadas e o crescimento explosivo das inserções precárias –, trouxe conseqüência significativa para o financiamento da previdência social, pautado sobre a folha de pagamentos. Apesar de a previdência social ser um dos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição Federal e a aposentadoria também ser direito dos trabalhadores urbanos 116
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e rurais (inciso XXIV, art. 7º CF), os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2007, revelam que somente 50,7% dos trabalhadores são contribuintes da previdência social. A PNAD 2007 registrou, pela primeira vez desde o início da década de 1990, a maioria dos trabalhadores contribuindo para a previdência. Contudo, é elevado o número de não contribuintes: 44,7 milhões de trabalhadores que estão sem a proteção previdenciária, o equivalente a 49,3% da população ocupada. É importante ressaltar, que essa parcela expressiva do mercado de trabalho não tem representante no CNPS, impossibilitados, portanto, de participação ativa na formulação e na gestão da política previdenciária brasileira. De acordo com Delgado et al (2002), o modelo de participação social estabelecido para o CNPS aparentemente não foi precedido por nenhum movimento social ou ação concertada de atores sociais organizados que resultasse no processo de construção do Conselho. Os autores ressaltaram essa como a principal diferença entre o CNPS e o CNS, visto que este último foi precedido pela ação do movimento sanitarista e outros movimentos sociais que acabaram por estabelecer nas conferências nacionais agendas de política de saúde, revitalizando e referenciando a ação rotineira dos conselhos de saúde. Os autores ainda lembram que, anteriormente à Carta Magna de 1988, houve nos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), reorganizados entre 1953/1954, a figura dos Conselhos Corporativos Tripartites (governo, trabalhadores e empresários), que se assemelham à representação estabelecida para o CNPS. As competências estabelecidas ao CNPS pela lei são: estabelecer diretrizes gerais e apreciar as decisões de políticas aplicáveis à previdência social; participar, acompanhar e avaliar sistematicamente a gestão previdenciária; apreciar e aprovar os planos e programas da previdência social; apreciar e aprovar as propostas orçamentárias da previdência social, antes de sua consolidação na proposta orçamentária da Seguridade Social; acompanhar e apreciar, por meio de relatórios gerenciais por ele definidos, a execução dos planos, programas e orçamentos no âmbito da previdência social; acompanhar a aplicação da legislação pertinente à previdência social; apreciar a prestação de contas anual a ser remetida ao Tribunal de Contas da União, podendo, se for necessário, contratar auditoria externa; estabelecer os valores mínimos em litígio, acima dos quais será exigida a anuência prévia do procurador-geral ou do presidente do INSS para formalização de desistência ou transigência judicial; elaborar e aprovar seu regimento interno. Os órgãos governamentais devem prestar toda e qualquer informação necessária ao adequado cumprimento das competências do CNPS, fornecendo inclusive estudos técnicos; e encaminhar ao Conselho, com antecedência mínima de dois meses do seu envio ao Congresso Nacional, a proposta orçamentária da previdência social, devidamente detalhada. As atribuições estabelecidas para o CNPS são bem tímidas para regulamentar 117
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com efetividade o princípio da participação e da descentralização da gestão. Para Delgado et al (2002), são vagas, pois são funções genéricas, como “estabelecer diretrizes gerais, acompanhar a gestão, acompanhar e reproduzir relatórios”. O estudo realizado pelos autores revela ainda, no que diz respeito às atribuições como o funcionamento do CNPS, incluindo o processo decisório no âmbito do próprio Conselho, que vem ocorrendo ao longo dos anos um crescente esvaziamento da delegação de poder prevista na Constituição. A pesquisa realizada pelo IPEA mostra uma relativa insuficiência ou inadequação política e administrativa da práxis do CNPS para atingir os objetivos estabelecidos na Constituição Federal, além do Conselho não exercer de fato ou de direito as funções diretivas na administração do sistema público da previdência social (DELGADO et al, 2002). O processo de descentralização da participação, mediante extensão aos Estados e aos municípios do modelo do conselho nacional, foi interrompido em 1999, com a extinção dos conselhos municipais e estaduais.
O Conselho Nacional da Assistência Social O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS)9 é uma instância colegiada de participação da sociedade civil na elaboração da política nacional de assistência social. A criação do CNAS decorre das diretrizes estabelecidas na CF de 1988, mas sua instalação só ocorreu após cinco anos e quatro meses da promulgação da Carta Magna (04/02/1994). O artigo 5º da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), Lei 8.742/199310, estabelece entre as diretrizes para a organização da assistência social a “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. O CNAS é instituído pelo art. 17 da LOAS como órgão superior de deliberação colegiada, vinculado à estrutura do órgão da Administração Pública Federal responsável pela coordenação da política nacional de assistência social, sendo integrado por dezoito membros, dos quais nove são representantes da sociedade civil, incluindo usuários ou organizações de usuários, entidades e organizações de assistência social e dos trabalhadores do setor e nove representantes governamentais. As competências do CNAS (art. 18 da LOAS), entre outras, são: aprovar a política nacional de assistência social; normatizar as ações e regular a prestação de serviços de natureza pública e privada no campo da assistência social; observado o disposto em 9. O CNAS foi estudado na ampla pesquisa realizada por Raquel Raichelis (2000). Trata-se da tese de doutorado que a autora, professora da PUC-SP, “A construção da esfera pública no âmbito da política de assistência social”, publica em livro pela editora Cortez, em 1998, com o título “Esfera pública e Conselhos de Assistência Social”. As citações neste artigo são referentes à 2ª edição do livro realizada em 2000. 10. Os capítulos VI a VIII do livro de Boschetti (2006) descrevem as peripécias e dificuldades da assistência se afirmar como direito social e política pública. Além de uma criteriosa e crítica análise feita pela autora sobre as forças de apoio e de oposição à proposta de regulamentação da assistência social prevista na Constituição. Cabe, enfim, lembrar que o presidente Fernando Collor vetou, em 1991, integralmente, a primeira LOAS aprovada pelo Congresso Nacional. Somente em 1993, já no Governo Itamar Franco, que a LOAS foi enfim homologada, com alguns vetos do presidente. 118
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regulamento, estabelecer procedimentos para concessão de registro e certificado de entidade beneficente de assistência social às instituições privadas prestadoras de serviços e assessoramento de assistência social que prestem serviços relacionados com seus objetivos institucionais; conceder registro e certificado de entidade beneficente de assistência social; zelar pela efetivação do sistema descentralizado e participativo de assistência social; convocar Conferência Nacional de Assistência Social; apreciar e aprovar a proposta orçamentária da assistência social a ser encaminhada pelo órgão da Administração Pública Federal responsável pela coordenação da política nacional de assistência social; aprovar critérios de transferência de recursos para os Estados, municípios e Distrito Federal; acompanhar e avaliar a gestão dos recursos, bem como os ganhos sociais e o desempenho dos programas e projetos aprovados; e, estabelecer diretrizes, apreciar e aprovar os programas anuais e plurianuais do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). A LOAS foi fruto de muitos embates entre os diversos atores sociais e o próprio Governo. Uma passagem do livro de Boschetti (2006) expressa bem os embates em torno da LOAS no parlamento: “de um lado estavam aqueles que desejavam concretizar o conceito de Seguridade Social introduzido pela Constituição de 1988 e que, para tal, investiam na recomposição radical do campo assistencial; de outro lado, estavam aqueles que se opunham a tais mudanças e que não escondiam seus interesses em manter esse campo social subordinado a formas de organização e gestão permeáveis ao clientelismo político e a corrupção”. Raichelis (2000) destaca que a LOAS não eliminou antigas instituições assistenciais e filantrópicas, apesar do status da assistência social como política pública, além da incorporação de novas organizações sociais, como as Organizações Não Governamentais (ONGs). Paralelamente, o processo após a LOAS vem propiciando, ainda que de forma tímida, as ações coletivas de usuários, historicamente dispersos, como é o caso das pessoas idosas e das pessoas portadoras de deficiência. Para Raichelis (2000), no caso da política de assistência social, a formação dos conselhos ganha relevância frente à particularidade histórica do Brasil, onde essa política esteve vinculada à filantropia privada, particularmente a de caráter confessional, relegando ao Estado um papel subsidiário. Com isso, debilitou-se a consolidação da assistência social no campo das políticas sociais, restringindo-se as ações emergências de caráter focalizado e compensatório. No campo das políticas sociais, a efetivação da assistência social pressupõe a transferência de um bem ou serviço, ou, ainda, um recurso financiado pelo fundo público sem a contribuição prévia. A assistência social como política pública é função governamental, que passa a exigir a delimitação de um espaço público, com responsabilidades de todos os poderes, assim como a fixação de metas, orçamentos, programas continuados e serviços de impactos sociais. Essa delimitação não restringe o universo da assistência a uma intervenção exclusivamente estatal, conforme Raichelis (2000, p. 131), “uma vez que supõe a participação (...) dos segmentos organizados da sociedade civil em sua 119
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formulação, implementação e gestão. Por implicar a redistribuição do fundo público, exige a presença de formas de controle social por meio da adoção de mecanismo viabilizadores da publicização do uso e da transferência de recursos públicos”. Assim, para a autora, um desses mecanismos viabilizados pela LOAS é o CNAS, que incorpora a sociedade civil na definição das prioridades e na fiscalização da execução da política de assistência social. Para Boschetti (2003b), o empenho do CNAS na formulação e no controle da política de assistência social pode ir além de uma participação formal, uma vez que a LOAS atribui mais poder de decisão ao colegiado do Conselho do que ao Poder Executivo. O CNAS tem a prerrogativa de aprovar ou reprovar as proposições governamentais. Os governos têm o dever de gerar condições para efetivação do direito à política de assistencial social, enquanto os conselhos têm o direito de deliberar e controlar as ações governamentais, averiguando se estão de acordo com o que estabelece a legislação. Uma questão importante é que o CNAS herdou a atribuição “cartorial” do extinto Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS)11 de concessão de registro e certificado de entidade beneficente de assistência social às instituições privadas prestadoras de serviços de assistência social e certificado de entidade beneficente de assistência social, apesar do movimento de criação da LOAS enfatizar a necessidade e o papel do CNSS de “varrer o entulho autoritário-cartorial” (RAICHELIS, 2000). Na realidade, em sua fundação, o CNAS já herdou três mil processos a serem avaliados. Como constatou Boschetti (2003b), no período de 1994 a 2002, das 2.074 resoluções aprovadas pelo CNAS, 94% foram referentes ao registro e à concessão (ou não) de certificado de entidade beneficente de assistência social. O que revela que as resoluções normativas ainda estava bem aquém do poder atribuído pela LOAS ao CNAS, no sentido de materializar o direito à política de assistência social no país. O resultado da pesquisa de Raichelis (2000), a partir de entrevistas com os conselheiros e ex-conselheiros do CNAS, revelou o duro enfrentamento que o CNAS teve, sobretudo com o Governo Fernando Henrique Cardoso, para o seu funcionamento e a defesa da política de assistência social como direito. O estudo de Boschetti (2003b), com base nas resoluções do CNAS (período de 1994 a 2002), revela o direcionamento em três aspectos: i. em relação ao registro e à emissão de certificado de entidades de assistência social, o CNAS acabou tendo que adequar sua atuação às decisões tomadas em outros âmbitos, especialmente no Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e na Presidência da República, o que limitou o poder desse órgão; 11. O CNSS foi criado em 1938 com as funções de órgão consultivo do governo e das entidades privadas para estudar os problemas do serviço social e foi extinto em 1993. Entre suas funções estava a concessão de certificado de filantropia, tarefa que foi herdada pelo CNAS. Registra-se que a extinção do CNSS ocorreu em uma conjuntura marcada por acusações de corrupção, apadrinhamento e clientelismo político no processo de concessão de registros e certificados de utilidade pública, isenções fiscais e subvenções às entidades prestadoras de serviços assistenciais por parte desse Conselho (RAICHELIS, 2000). 120
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ii. apesar das críticas e manifestações nas resoluções sobre as propostas orçamentárias apresentadas pelo Governo, estas não foram suficientes para impor limites ao Poder Executivo Federal; iii. a fragilidade do CNAS nas definições sobre o conteúdo da política de assistência social, isto é, benefícios, serviços, programas e projetos, devido às raríssimas resoluções que apresentaram análise ou decisões na formulação da política. Por outro lado, há um marco importante nesse período, que foram duas resoluções aprovadas em 2002: a Resolução 159, que dispõe sobre o processo de elaboração, análise e aprovação do orçamento da assistência social, particularmente o Fundo Nacional da Assistência Social (FNAS); e a Resolução 175, que dispõe sobre a elaboração dos planos plurianuais da assistência social nas três esferas de governo. Para Boschetti (2003b), a Resolução 159 é um marco, porque após 10 anos de funcionamento, o CNAS invocou as competências de órgão gestor federal para regulamentar o processo de formulação da proposta orçamentária pelo Poder Executivo Federal, com estabelecimento de prazos para apresentação pelo Governo e apreciação pelo conselho. A autora também destaca que, por meio da Resolução 175, o CNAS assumiu o direito de formular e não apenas registrar entidades e responder as demandas do Poder Executivo, para, de forma inédita, definir parâmetros, prazos e indicações para elaborações dos planos de assistência social. Essas deliberações permitem assegurar a articulação entre planos, conselhos e fundos, fundamental para concretização do sistema descentralizado e previsto na LOAS, ou seja, aqui reside o embrião do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que foi a principal deliberação da IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em Brasília (DF), em 2003. O SUAS é um modelo de gestão descentralizado e participativo, para regulação e organização em todo território nacional, dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais, de caráter continuado ou eventual, executados e providos por pessoas jurídicas de direito público sob critério universal e lógico de ação em rede hierarquizada e em articulação com iniciativas da sociedade civil. O SUAS12 busca a operacionalização da LOAS, viabilizando um sistema descentralizado e participativo e a sua regulação em todo o território nacional13. Para Behring (2008), a construção do SUAS e de todo o seu marco regulatório é uma inovação no campo da assistência social. Nesse sentido, destaca a autora que o CNAS, em sintonia com o MDS, empreendeu um intenso esforço de regulação da implantação do sistema, expresso especialmente na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), de novembro de 2004, que fundamenta a instituição do SUAS. Na atuação do CNAS, talvez o marco mais importante na história do conselho foi a aprovação da Resolução 130, de 15 de julho de 2005, que é Norma Operacional Básica (NOB/SUAS), materializando os fluxos de gestão do SUAS. 12. Para uma visão crítica sobre o SUAS consultar Behring (2008). 13. Informações disponíveis em http://www.mds.gov.br/programas/rede-suas . 121
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A NOB/SUAS disciplina a gestão pública da política de assistência social de modo sistêmico pelos entes federativos, em conformidade com a CF, a LOAS e outras legislações. O conteúdo da NOB/SUAS estabelece: o caráter do SUAS; as funções da política pública de assistência social para extensão da proteção social brasileira; os níveis de gestão do SUAS; as instâncias de articulação, pactuação e deliberação que compõem o processo democrático de gestão do SUAS; o financiamento; e as regras de transição.
A política econômica impondo limites ao controle social A CF determina a criação de um Orçamento da Seguridade Social (art. 165, § 5º, inciso III) cuja conseqüência seria a criação de um fundo público com a canalização de recursos próprios e exclusivos para as políticas de saúde, de previdência e de assistência social, distinto daquele que financia as demais políticas de governo. Contudo, o Orçamento da Seguridade Social virou “letra morta” na Constituição. Todos os governos que passaram pelo Palácio do Planalto desde 1988 não transformaram o dito constitucional em ação efetiva. Pelo contrário, apropriaram-se das contribuições sociais destinadas para fins da Seguridade Social, utilizando-as para outras políticas de cunho fiscal, principalmente o pagamento dos encargos financeiros da União (amortização e juros da dívida), e para realização de “caixa”, visando a garantir o superávit primário14, principalmente nos anos recentes. Uma das estratégias do ajuste fiscal, no âmbito das medidas econômicas do Plano Real, foi a criação de mecanismos de desvinculação orçamentária com objetivos de realocação de recursos do fundo público livremente pelos condutores das políticas econômicas. Assim, em 1993, ocorreu no Brasil a criação do chamado “Fundo Social de Emergência” (FSE), permitindo a desvinculação de 20% das receitas arrecadadas pela União. De acordo com Soares (2001), a origem desse instrumento na América Latina segue as recomendações do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) no contexto de ações meramente emergenciais, temporárias, de combate à pobreza e para financiar os projetos e programas, tanto público como não-governamentais, destinados aos pobres “estruturais” e aos “novos pobres” afetados pelo ajuste econômico neoliberal. Mas a experiência brasileira mostra que o FSE não tinha nada de “social” e muito menos de “emergencial”, pois o fundo assumiu uma função estratégica de desviar recursos da área social para o interior do orçamento fiscal à disposição do Ministério da Fazenda para o equilíbrio das contas públicas, contribuindo para a “estabilidade econômica”. 14. O resultado primário é a diferença, podendo ser positiva ou negativa, entre as receitas não-financeiras arrecadadas no exercício fiscal e as despesas não-financeiras, arrecadadas no exercício do mesmo período, previstas no Orçamento da União. As receitas não-financeiras incluem, principalmente, os tributos, as contribuições sociais e econômicas, as receitas diretamente arrecadadas por órgãos da administração indireta, as receitas patrimoniais, etc. As despesas não-financeiras referem-se ao conjunto de gastos com pessoal, previdência, manutenção da máquina administrativa e investimentos. Se a diferença for positiva, ocorre um superávit primário; e se negativa, haverá um déficit primário. Portanto, no lado das receitas estão excluídas as receitas de juros e de capital; no lado das despesas, não são computados os encargos da dívida pública. 122
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O FSE foi substituído por um nome mais apropriado, nos exercícios financeiros de 1994 e 1995, o Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, posteriormente, pela Desvinculação de Recursos da União (DRU)15, que continuou garantindo a desvinculação de 20% da arrecadação de impostos e contribuições sociais até o final de 2007, conforme determinava a Emenda Constitucional 41, sendo novamente prorrogada até 2011, com a aprovação da PEC 50/2007. A DRU se constitui um mecanismo importante de transferência de recursos arrecadados em nome da Seguridade Social e para o orçamento fiscal. A principal conseqüência da DRU é o desvio anual de bilhões de reais da saúde, educação, previdência e assistência social, que são transferidos por meio do orçamento fiscal para os mercados financeiros. A desvinculação desses recursos, com a utilização de instrumentos como a DRU, caminha na direção oposta à das conquistas sociais da Constituição. Além de ser um instrumento de uma política econômica que não fortalece a universalização das políticas sociais, a DRU impõe limites ao controle social, pois não está vinculada a qualquer fundo, ainda que somente contábil, fica impossibilitada a distinção, na execução orçamentária, de qual parcela de recursos é originária de impostos gerais e qual é referente à desvinculação de recursos. Isso ocorre porque ambas agora compõem a mesma fonte orçamentária, “recursos do Tesouro”16, homogeneizando-se os recursos desvinculados com os impostos recolhidos no âmbito do orçamento fiscal, afetando os princípios orçamentários da discriminação e da clareza17. No período de 2000 a 2004, não há dados oficiais sobre os valores desvinculados pela DRU do Orçamento da Seguridade Social. Contudo, após a determinação da LDO 2005 (Lei 10.934/ 2004), a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) passou a explicitar o montante de recursos desvinculados da Seguridade Social. Mas permanece a falta de discriminação e clareza na divulgação dos dados da execução orçamentária, impedindo o controle social e a fiscalização da aplicação dos recursos desviados da Seguridade Social para o orçamento fiscal. Com base nos mesmos critérios adotados pelo Tesouro Nacional, a partir de 2005 foi elaborada a Tabela 1, estimando o desvio de recursos efetivados pela DRU sobre as receitas da Seguridade Social. Conforme demonstra a Tabela 1, no período de 2000 a 2007 foram transferidos para o orçamento fiscal R$ 278,4 bilhões, em valores atualizados pelo Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI), que pertenciam às políticas da 15. A DRU apresenta algumas modificações em relação ao FSE, pois ela não afeta a base de cálculo das transferências a Estados, Distrito Federal e municípios, nem a das aplicações em programa de financiamento ao setor produtivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Também não estão sujeitas à DRU as contribuições sociais do empregador incidentes sobre a folha de salários; as contribuições dos trabalhadores e dos demais segurados da previdência social; a parte da CPMF destinada ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza; e a arrecadação do salário-educação. 16. Referem-se às Fontes de Recursos classificadas no orçamento: 100 – Recursos do Tesouro – exercício corrente, recursos ordinários; e, 300 -– Recursos do Tesouro – exercícios anteriores, recursos ordinários. 17. De acordo com Piscitelli, Timbó e Rosa (2002, p. 46-47): “O princípio da discriminação (...) preconiza a identificação de cada rubrica de receita e despesa, de modo que não figurem de forma englobada (...)”. E o princípio da clareza significa o óbvio. É a evidenciação da Contabilidade. “Por este princípio, dever-se-ia priorizar o interesse dos usuários das informações, sobretudo porque se está tratando de finanças públicas”. 123
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avaliação e desafio da
Seguridade Social
Seguridade Social (Tabela 1). Esse montante equivale a cinco vezes o orçamento anual da saúde e quase dez vezes o orçamento da assistência social. Tabela 1 Estimativa das Receitas (1) desvinculadas pela DRU da Seguridade Social no período de 2000 a 2007 Valores em R$, deflacinados pelo IGP-DI Receitas de contribuições Cofins Refis e Paes - Cofins Cota-parte da contribuição sindical CPMF Refis e Paes - CPMF Contribuição para custeio das pensões militares Contribuição sobre recurso de sorteios realizados pelas entidades filantrópicas Contribuição sobre receita da loteria federal Contribuição sobre receita loteria esportiva Contribuição sobre receita espetáculos Contribuição sobre receita loterias de números Contribuição sobre receita de loteria instantânea Prêmios prescritos de loterias federais Contribuição sobre receitas de concursos e prognósticos desportivos – modalidade futebol Outros prêmios prescritos PIS-Pasep Refis e Paes – PISP-Pasep CSLL Refis e Paes – PISP-Pasep Outras contribuições sociais Contribuição em regime de parcelamento e débitos Outras receitas correntes (multas e juros de mora) TOTAL
Total Arrecadado 737.760.884.928,79 3.166.003.292,69 2.020.243.801,43 271.768.261.800,58 -8.760.603,37 9.949.168.795,85
147.552.176.985,76 633.200.658,54 404.048.760,29 44.395.558.227,13 -1.752.120,67 1.989.833.759,17
493.842,38
98.768,48
237.944.328,84 551.761.822,49 304.576.316,63 10.612.598.595,53 219.020.752,72 516.011.327,50
47.588.865,77 110.352.364,50 60.915.263,33 1.836.011.235,62 55.029.181,38 86.224.592,87
-6.341,32
-1.268,26
1.578.859,91 187.843.482.611,69 809.426.467,25 195.981.477.559,07 546.848.833,52 430.756.274,73 6.392.048.030,87 13.916.305.654,57
315.771,98 37.568.696.522,34 161.885.293,45 39.196.295.511,81 109.369.766,70 86.151.254,95 1.278.409.606,17 2.783.261.130,91
1.443.020.126.952,35
278.353.670.132,21
Dru
Fonte: SIAFI - STN/CCONT/GEINC - Elaboração do Autor Nota: 1) Somente receitas que incidem a DRU. Não estão sujeitas à DRU: as contribuições sociais do empregador incidente sobre a folha de salários; as contribuições dos trabalhadores e dos demais segurados da previdência Social; a parte da CPMF destinada ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza; e a arrecadação do salário-educação.
Os recursos desvinculados da Seguridade Social pela DRU têm participação relevante na composição do superávit primário. Em 2000, o desvio realizado pela DRU foi equivalente a 73% do superávit primário do Governo Federal. No período de 2002 a 2004, a participação da DRU vinha sendo reduzida ao montante do superávit primário. Contudo, após esse ano, voltou a subir e, em 2007, 65% do superávit primário advém de recursos que pertenciam à Seguridade Social (Tabela 2). Portanto, de cada R$ 100,00 de superávit primário, pelo menos R$ 65,00 foram retirados por meio da DRU do Orçamento da Seguridade Social. 124
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avaliação e desafio da
Seguridade Social
Tabela 2 Participação da DRU no Superávit Primário Valor em R$ bilhões, delfacionados pelo IGP-DI
Total
Superávit Primário do Governo Central (b)
Ano
DRU (a)
Participação da DRU (a /b)
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
32,20 32,08 32,48 33,89 34,90 36,28 35,83 40,69
44,31 41,90 55,13 58,96 64,92 63,14 54,89 62,46
72,66% 76,56% 58,92% 57,49% 53,76% 57,47% 65,27% 65,15%
278,35
445,70
62,45%
Fonte: STN. Elaboração do Autor
Uma questão relevante para o controle social da Seguridade Social é a vinculação dos recursos nos fundos das políticas da Seguridade Social, mais especificamente no Fundo Nacional da Saúde, no Fundo do Regime Geral da Previdência Social (FRGPS) e no Fundo Nacional da Assistência Social (FNAS). A vinculação de recursos às políticas sociais é uma importante conquista da Constituição de 1988. A década de 1980 foi marcada pela luta contra a ditadura e pelas reivindicações e pressões dos trabalhadores e movimentos sociais. A convocação de uma Assembléia Constituinte, eleita em 1986, permitiu que diversas demandas de expansão dos direitos sociais e políticos fossem incorporadas à Carta Magna. Para que fossem efetivados na prática, surgiu a idéia da vinculação de receitas. Era uma forma de enfrentar a tradição fiscal perversa do Brasil, onde a aplicação dos recursos do orçamento público sempre priorizou a acumulação do capital, submetendo as políticas sociais à lógica econômica. No período da industrialização (1937-1980), por exemplo, os recursos do fundo previdenciário foram canalizados para investimentos nas empresas estatais e na construção da infra-estrutura no país. Vincular recursos significava, portanto, impedir essa prática, assegurando que parte da receita fosse obrigatoriamente destinada à área social e permitisse universalizar direitos importantes, como os ligados à saúde e educação (SALVADOR, 2007a). Os fundos sociais foram criados nesse processo. Além disso, tinham um papel democratizador (ROCHA, 2002). Buscou-se um modelo em que os recursos reservados para executar certas políticas fossem administrados por conselhos de composição paritária. Neles, representantes governamentais e não-governamentais somam-se para acompanhar e fiscalizar políticas públicas. Por terem recursos originados na cobrança de taxas ou 125
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contribuições especialmente criadas para alimentá-los, esses fundos são formados por fluxos financeiros como lucros, receitas brutas, faturamentos, folhas de pagamentos. Têm em comum uma relativa estabilidade na captação de recursos, deixando de depender de escolhas arbitrárias por parte do governo de plantão. Alguns autores vêm chamando a atenção para as dificuldades do controle social dos recursos destinados à Seguridade Social. Rocha (2002) critica a existência de recursos que ficam “fora” dos fundos em relação às respectivas políticas, pois ao criar um fundo, vinculam-se receitas para a execução de determinados programas de trabalho. O estudo de Raichelis (2000) destacou a resistência dos gestores públicos para a definição e o repasse de recursos para a política de assistência social, baseado em critérios transparentes e com controle da sociedade civil. Aliás, para a autora, a questão do orçamento é crucial para o CNAS e sua articulação com outras esferas de poder, particularmente o Legislativo. Boschetti (2003b) destaca a relevância do FNAS como mecanismo democrático para o financiamento da assistência social e chama a atenção para o fato de recursos pulverizados destinados a ações assistências que não são alocados no FNAS, que acabam dificultando e inviabilizando o acompanhamento do seu montante e destino. Corrobora também para a dificuldade no controle pela sociedade civil o fato da inexistência de um Orçamento da Seguridade Social elaborado e supervisionado por um Conselho Nacional da Seguridade Social, revelando-se um forte indicador de ausência da democratização da gestão da Seguridade Social na forma indicada pela Carta Magna. Nas políticas que compõem a Seguridade Social, destaca-se que, na saúde, o Fundo Nacional da Saúde (FNS) é uma instituição indispensável na consolidação do SUS. O decreto 3.964/2001 assegura autenticidade às atividades desenvolvidas pela FNS, em especial às transferências de recursos por meio dos fundos estaduais e municipais de saúde e a celebração de convênios com órgãos e entidades. Os recursos do FNS destinam-se a prover as despesas do Ministério da Saúde, de seus órgãos e entidades da administração indireta, bem como as despesas de transferência para a cobertura de ações e serviços de saúde a serem executados pelos municípios, Estados e Distrito Federal. Na política de assistência social, o FNAS tem por objetivo proporcionar recursos e meios para financiar o benefício de prestação continuada e apoiar serviços, programas e projetos de assistência social. A gestão do fundo é feita pelo MDS sob orientação e controle do CNAS. Na previdência social, o FRGPS tem características diferentes dos fundos da saúde e da assistência. A começar pela sua origem, pois foi criado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, art. 68) vinculado ao Ministério da Previdência Social. Além de a LRF atribuir a sua gestão ao INSS, a lei não foi publicada até hoje. A existência dos fundos setoriais não tem sido suficiente para assegurar que todos os recursos destinados às políticas de saúde, assistência social e previdência social sejam alocados integralmente nos fundos e submetidos ao controle social dos conselhos. A Tabela 3 revela que uma parcela importante dos recursos liquidados nas funções de assistência 126
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avaliação e desafio da
Seguridade Social
social, previdência e saúde do orçamento público, no período de 2000 a 2007, não tiveram a sua execução orçamentária18 por meio dos fundos públicos dessas políticas. Tabela 3 Execução Orçamantária da Seguridade Social (Valores Liquidados) Valores em R$ bilhões, deflacionados pelo IGP-DI Função / Ano
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Assistência Social
9,63
10,35
11,22
12,80
17,17
17,81
23,04
25,97
Previdência Social
202,58
205,90
212,82
221,38
205,10
213,52
227,65
246,28
43,98
46,74
43,84
41,29
40,86
41,33
43,37
48,04
Saúde Fundos (1) Fundo Nac. da Ass. Social
6,14
6,78
8,24
8,43
10,45
11,99
13,50
15,50
140,62
142,29
148,54
162,08
135,93
161,40
172,90
186,73
38,76
37,93
38,10
36,27
37,13
38,21
38,32
42,31
Participação em % FNAS
63,81%
65,52%
73,49%
65,85%
60,85%
67,33%
58,60%
59,69%
FRGPS
69,41%
69,11%
69,80%
73,22%
66,27%
75,59%
75,95%
75,82%
FNS
88,12%
81,14%
86,90%
87,83%
90,87%
92,45%
88,36%
88,07%
Fundo do RGPS Fundo Nacional de Saúde
Fonte: SIAFI/SIGA Brasil Elaboração do Autor (1) Somente recursos liquidados nas funções: assistência social, previdência social e saúde
Dos três fundos existentes na esfera federal no âmbito da Seguridade Social, o FNS é o que vem recebendo proporcionalmente o maior montante de recurso no orçamento, em relação à função saúde. No período de 2000 a 2007, mais de 80% dos gastos com saúde da União foram executados pelo FNS, enquanto na política de assistência social, em 2007, apenas 60% dos recursos orçamentários liquidados foram realizados por intermédio do FNAS, evidenciado a partir de 2002, uma redução na participação desse fundo público no orçamento setorial desta política. Na previdência social, nos últimos três anos, ¾ do orçamento foram liquidados por meio do FRGPS (Tabela 3).
Considerações Finais Apesar de avanços importantes no controle social, nos 20 anos da existência da Carta Magna, com o Governo perdendo o monopólio da política social e dos espaços públicos de deliberação, a relação entre o Estado e a sociedade civil nos âmbitos dos 18. Foge ao escopo deste texto uma análise do orçamento da Seguridade Social. Para um estudo nesse sentido, consultar Salvador (2007b), ou seja, o artigo que publicamos com o título “Quem financia e qual o destino dos recursos da seguridade social no Brasil?”, no âmbito do relatório 2007 do Observatório da Cidadania, disponível em http://www.ibase.br/userimages/ quem.pdf 127
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avaliação e desafio da
Seguridade Social
conselhos, principalmente daqueles vinculados às políticas da Seguridade Social, é desigual. As experiências dos conselhos das políticas da Seguridade Social não são homogêneas, revelam que os maiores avanços no controle social foram obtidos no âmbito do CNS. O CNPS está distante de uma gestão efetiva do sistema público da previdência social. Para o CNAS, o maior desafio deverá ser o efetivo controle dos recursos destinados à política da assistência social, pois 40% do orçamento não passa pelo FNAS. Além disso, o fato de os conselhos participarem da execução das políticas da Seguridade Social não deve ser descolado da mobilização social em defesa de um dos maiores avanços na história das lutas sociais no Brasil, que foi o estabelecimento na Constituição do capítulo da ordem social. Uma agenda fundamental19 para a Seguridade Social é defender a estruturação de seu financiamento de forma totalizadora, visando a garantir um orçamento próprio como forma de institucionalização da precedência de seus compromissos de cobertura sobre os demais gastos do Governo. Para tanto, é importante a formação de um fundo público da Seguridade Social, não sujeito à política fiscal restritiva de qualquer governo, garantindo a Seguridade como política relevante e prioritária do Estado brasileiro. Além disso, os recursos canalizados para esse fundo seriam usados exclusivamente para o pagamento de benefícios, serviços, ações e programas da previdência, da saúde e da assistência social, sendo proibido o desvio para orçamento fiscal. Isso tem como corolário a imediata extinção da DRU, assegurando que todas as fontes de financiamento da Seguridade Social sejam integralmente destinadas às políticas de saúde, previdência e assistencial. A reformulação das leis orgânicas da previdência social, da saúde e da assistência social, com o intuito de assegurar a universalidade dos direitos da Seguridade Social, garantindo a todas as pessoas o acesso aos benefícios da previdência social, o livre acesso à saúde e aos serviços sociais, é outro passo importante, como também garantir o efetivo controle social dessas políticas. A concretização dos direitos da Seguridade Social previstos na Carta Magna deveria ser materializada nas leis orgânicas em cada setor. Porém, as condições políticas que permitiram os avanços constitucionais mudaram, no início da década de 1990, com o ideário neoliberal. Torna-se necessário retomar o princípio universalista que inspirou a Constituição de 1988, reformando as leis orgânicas das três políticas que integram a Seguridade Social brasileira. Por fim, é urgente a recriação do Conselho Nacional da Seguridade Social, precedido da imediata convocação da primeira Conferência Nacional da Seguridade Social para discutir o fortalecimento, a inclusão, a universalização e a ampliação das políticas que integram a Seguridade Social no Brasil. Deve ter representação quadripartite, com representantes do Governo Federal na área de saúde, previdência social e assistencial social, além da representação dos governos estaduais e municipais. A representação da sociedade civil seria garantida com o assento de aposentados, trabalhadores, empresários e usuários. O CNSS deve ter a missão de articular e sistematizar um orçamento previamente 19. Parte dessa agenda está apresentada em Salvador (2007b). 128
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Seguridade Social
debatido com as áreas responsáveis pela previdência social, saúde e assistência social. O Conselho deve ser recriado com a finalidade principal de articular as políticas sociais nas áreas envolvidas. Além disso, seriam mantidos os conselhos setoriais das áreas de saúde, previdência social e assistência social.
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avaliação e desafio da
Seguridade Social
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20 Anos da Constituição Cidadã:
avaliação e desafio da
Seguridade Social
A Constituição Cidadã e a institucionalização dos espaços de participação social: avanços e desafios Enid Rocha1 A expressão “participação social” está atualmente em toda parte. Com sentidos e projetos diferentes, é encontrada nas práticas de instituições públicas das várias instâncias governamentais, nos arranjos institucionais de, praticamente, todas as políticas sociais e nos programas de governo de partidos de todos os matizes. A intensificação da participação social, entendida aqui como a participação da sociedade em espaços públicos de interlocução com o Estado, reflete a configuração de um tecido social que foi se tornando mais denso e diversificado desde meados dos anos 70, período de surgimento dos novos movimentos sociais. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, coroou esse processo atribuindo relevância à participação da sociedade na vida do Estado, ao instituir vários dispositivos nas esferas públicas de âmbitos federal e local. Este texto tem o objetivo de tratar da institucionalização dos espaços de participação social – conselhos e conferências - a partir da Constituição Federal de 1988. Ainda que o presente trabalho não vá fazer uma reconstituição histórica do processo de lutas da sociedade civil com o objetivo de alargar a democracia brasileira, a forma como o presente texto está organizado contempla, na sua primeira parte, um breve olhar histórico sobre participação social na história política brasileira, sobretudo no período de transição democrática, com destaque para o surgimento dos novos movimentos sociais na década de 70. Na segunda parte, o centro da discussão são os arranjos e mecanismos de participação popular inseridos na Constituição brasileira, destacando o modelo descentralizado e participativo das políticas de Seguridade Social. Na terceira e última parte chama-se atenção para os principais avanços e desafios da participação social nos dias de hoje.
Participação social ao longo da história política Brasileira Análises histórico-culturais mostram que a participação social sempre existiu
1. Técnica de planejamento e pesquisadora na área de políticas sociais do IPEA. É doutoranda em Ciências Sociais pela UNICAMP. 131
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avaliação e desafio da
Seguridade Social
no Brasil. De acordo com Carvalho (1998), a atitude apática e “bestializada” 2 do povo brasileiro frente às arbitrariedades do Estado não corresponde à realidade. Essa visão é, segundo a autora, uma construção discursiva que desqualifica o comportamento e a atitude do povo brasileiro, que incorpora as culturas negras e indígenas na forma de manifestar suas insatisfações. Com efeito, a história política do país é repleta de exemplos de manifestações populares que demonstram a capacidade do povo brasileiro se organizar e lutar por seus direitos. É claro que a forma e a intensidade de luta variam de acordo com os usos e costumes de cada época, com a experiência histórica e política de cada um dos movimentos sociais e com a abertura ao diálogo e à negociação com os governantes da vez.3 Por exemplo, José Murilo de Carvalho (1996), ao estudar os primeiros anos da República no Brasil e o singular processo de distanciamento entre o mundo político e a sociedade civil, nos mostra que, contrariando a expectativa de renovação política e participação das classes menos favorecidas no Rio de Janeiro – então capital do Brasil –, o entrosamento entre o novo regime político teoricamente democrático e o povo foi mínimo, e, na prática, não houve quase nenhuma interação entre representantes e representados. Analisando esse período, o autor rebate a tese de que o pouco ou nenhum envolvimento das classes menos favorecidas com a política possa ser visto como um alheamento. Trata-se, na verdade, de uma real demonstração de desprezo à elite governante por parte daqueles que foram obrigados a se adaptar a uma forma de governo, a um projeto político sobre o qual sequer foram consultados. Para os que defendem a tese da apatia da população da época à política, José Murilo de Carvalho chama atenção para o episódio da Revolta da Vacina, mostrando que havia, sim, povo no Rio de Janeiro. Quando explodiu a revolta e a população tomou as ruas da cidade, o povo demonstrou suas insatisfações participando do “quebra-quebra”. Por outro lado, do ponto de vista da política “formal” (eleições, voto), é verdade que as classes populares não se interessavam em se envolver, pois para estas a “República” era considerada um elemento estranho à cultura, já que não tinham tomado parte de sua construção e a entendiam como um processo imposto de cima pra baixo. Assim, as manifestações populares não se davam por meio dos canais oficiais, como os mecanismos eleitorais, mas por meio de rituais religiosos e grandes festas populares étnicas que refletiam a cultura local. O que se depreende desse episódio da história brasileira é que os repertórios de ação dos movimentos populares são construídos historicamente e os movimentos sociais desenvolvem, ao longo do tempo, uma diversidade de formas de protestos. Por exemplo: os trabalhadores aprenderam a fazer greve, os camponeses, a invadir terras, os estudantes, a fazer passeatas, e assim por diante. O certo é que a herança histórica exerce um papel preponderante nos repertórios de ação utilizados pelos movimentos populares. Por esse 2. Expressão cunhada pela autora do título do livro de José Murilo de Carvalho: Os Bestializados O Rio de Janeiro e a República que não foi. - São Paulo, Companhia das Letras, 1996 3. Dentre tantos outros movimentos e manifestações populares, que ilustram a cultura de participação social do povo brasileiro, a autora cita os mais conhecidos ocorridos desde o período colonial até a década de 70: A Confederação dos Tamoios e os Quilombos, que foram as primeiras resistências negras e indígenas; os movimentos messiânicos, como a guerra de Canudos; os movimentos de libertação e contra a opressão, tais como a Inconfidência Mineira e as lutas pela abolição da escravatura e pela independência do Brasil; as revoltas urbanas pela carestia; os movimentos operários e anarquistas; as ligas camponesas; os movimentos estudantis, a luta armada e as guerrilhas urbanas e camponesas contra o regime ditatorial 132
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motivo é temerário desqualificar as diferentes estratégias de protestos utilizadas ao longo da história política brasileira e, com isso, afirmar que o povo brasileiro não tem uma cultura participativa. Se a história política brasileira é entremeada de manifestações populares singulares, com o golpe militar, a conjuntura política e social do país foi radicalmente transformada. Até o início da década de 60, pode-se dizer que se vivia um Brasil onde se multiplicavam as lutas populares, destacavam-se os movimentos pela Reforma Agrária, pela casa própria, pela redução da tarifa dos transportes públicos, dentre outros. Com o advento da ditadura militar passa-se a viver um Brasil onde predomina um cotidiano de violência que impede todo e qualquer tipo de mobilização política da sociedade. Os canais formais de manifestação e diálogo foram fechados, ficando os movimentos populares e organizados da sociedade à deriva, isto é, sem alternativas consideradas lícitas para a canalização de suas insatisfações e demandas ao Estado. Do ponto de vista da participação nas políticas sociais, até o início dos anos 60 o período populista havia legado a “cidadania regulada”, cujo ícone era a carteira de trabalho e onde apenas o trabalhador era reconhecido como cidadão. Mesmo assim, não eram cidadãos todo e qualquer tipo de trabalhador; só aqueles cuja profissão era reconhecida por meio de sindicatos, os quais, para funcionar, necessitavam de ter sua existência reconhecida pelo Estado4. Com o autoritarismo militar emergiu um novo padrão de políticas sociais no país, em que a União centralizava a execução dos programas sociais existentes e unificava sob seu controle os recursos e serviços prestados. De acordo com Fagnani (2005)5, a estratégia para as políticas sociais adotada pelo regime militar potencializou a capacidade de intervenção do Estado nesse campo, ampliando o alcance da gestão governamental. No entanto, esse autor assevera que o período do regime militar foi marcado por uma modernização conservadora, que beneficiava as classes médias e altas em detrimento das camadas mais pobres da população, acentuando enormemente a desigualdade social. Além disso, esse autor sublinha no contexto da ditadura militar o aspecto perverso da privatização do espaço público, onde os interesses empresariais e políticos tinham acesso privilegiado aos processos decisórios das políticas sociais, o que desviava as decisões do objetivo central de combater à miséria.6 As mudanças na forma de gestão e controle das políticas públicas no período militar não contemplavam qualquer estratégia de participação popular. Todos os mecanismos de controle público foram eliminados e, tampouco, o Congresso Nacional participava das discussões sobre as definições das políticas sociais. 4. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979 5. FAGNANI, Eduardo Política social no Brasil (1964-2002) : entre a cidadania e a caridade. UNICAMP, 2005. in http://libdigi. unicamp.br/document/ 6. Trecho de entrevista concedida por Eduardo Fagnani ao Jornal da Unicamp na Edição 301 - 12 a 18 de setembro de 2005, disponível em http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp 133
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Entretanto, não obstante a pesada repressão às lutas sociais e às manifestações populares contrárias à política do regime de exceção, o marco mais importante da luta pela maior participação popular na esfera pública teve sua origem no bojo da resistência contra a ditadura militar, a partir dos anos 70 e ao longo dos anos 80, quando os novos movimentos populares e segmentos da classe média se organizaram, “de costas para o Estado”, em torno das reivindicações urbanas, como educação, saúde, moradia, saneamento e transporte coletivo. Assim, após um período de luta “às escondidas” (entre 1968 e 1977), despontam novas expressões da luta social, como as Comunidades Eclesiais de Base e o vigoroso movimento operário do ABC paulista. Em 1979, acontece o congresso de refundação da UNE, e no início dos anos 80, nascem a CUT e o MST, dando origem a um período de ascensão das lutas populares no Brasil. De acordo com Diniz e Boschi (1989), movimentos que emergiram tanto como manifestações de massa esporádicas e não estruturadas, quanto como formatos mais organizados centrados nos locais de moradia, mobilizados por interesses ligados a serviços urbanos, e bens de consumo coletivo, passando por coletividades aglutinadas ao redor de atributos como sexo e raça, além dos movimentos de cunho religioso e movimentos de defesa do meio ambiente. Ciconello (2008), em recente artigo publicado pela Oxfam International, destaca a estratégia de articulação e mobilização dos novos movimentos sociais no bojo da ditadura militar, afirmando que “Muito embora a ditadura militar tenha controlado e restringido a liberdade de expressão e de associação de indivíduos e de grupos políticos e sociais que criticassem o regime político autoritário, havia algum espaço de mobilização e de debate na base da sociedade brasileira. Esse espaço foi estrategicamente identificado e utilizado por milhares de organizações – formais e informais -, militantes, religiosos, intelectuais e movimentos sociais inspirados, principalmente, por referenciais teóricos e morais, como a Teologia da Libertação e o movimento pedagógico criado pelo brasileiro Paulo Freire, chamado Educação Popular. A atuação era baseada em processos educativos junto a grupos populares com a finalidade de gerar emancipação e consciência cidadã. Educar a população para a transformação social era o objetivo”. (Ciconello, Alexandre, pág. 02) 7 De acordo com Avritzer (2002)8, a ampliação da esfera pública no Brasil na década de 70 relaciona-se com o surgimento de vários outros fatores, tais como: o crescimento das associações civis, em especial das comunitárias; a reavaliação, por parte de segmentos da sociedade, da idéia de direitos; a postura de defesa da autonomia organizacional em relação ao Estado; a prática de apresentação pública de reivindicações, e a tentativa de diálogo com o Estado. Nesse período, reivindicavam-se, além disso, a criação de espaços de participação, em que a sociedade civil organizada pudesse canalizar suas demandas e influir nos processos 7. CICONELLO, Alexandre “A participação social como processo de consolidação da democracia no Brasil in From PoverPower: How Active Citizens and Effective States Can Change the World, Oxfam nternational - Oxfam International Junho de 2008”. 8. AVRITZER, L. Modelos de deliberação democrática: uma análise do orçamento participativo no Brasil. In: SANTOS, B. de S. (Org.). Democratizar a democracia. Rio de Janeiro: Record, 2002, v. 1, p. 01-678. 134
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decisórios de políticas públicas. Essa vertente de reivindicações visava a encontrar soluções para o enfrentamento do crescente déficit social das classes urbanas de baixa renda nas áreas de saneamento, urbanização, saúde e habitação.
Constituição Federal de 1988: participação da sociedade no desenho, implementação e controle social das políticas públicas. A reivindicação por maior participação popular foi encaminhada para a Assembléia Constituinte por meio da proposta de garantia de iniciativa popular no Regimento Interno Constituinte. Esse manifesto foi apresentado e aceito pela Assembléia Constituinte contendo mais de quatrocentas mil assinaturas. O processo de emendas populares adotado pelo Regimento Interno da Assembléia Constituinte foi uma experiência pioneira no campo da institucionalização da participação da sociedade no âmbito da política nacional. Por meio das emendas populares a sociedade pôde participar ativamente do processo de elaboração da atual Carta Magna, apresentando propostas ao texto constitucional. O constituinte Ulysses Guimarães – Presidente da Assembléia Nacional Constituinte –, em seu discurso na sessão solene de promulgação da Constituição de 1988, ressaltou que a participação popular na elaboração da atual Carta Magna não se deu somente por meio das emendas, mas também: “... pela presença, pois diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam, livremente, as onze entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, Comissões, galerias e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.” (trecho extraído de Discurso de Ulisses Guimarães em 05 de outubro de 1988). Mais adiante, no mesmo discurso, o constituinte Ulisses Guimarães destacou que a Constituição de 1988 alargou o exercício da democracia brasileira em participativa, além de representativa, assinalando que: “É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais. O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo parlamento. A vida pública brasileira será 135
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também fiscalizada pelos Cidadãos. Do presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador. A moral é o cerne da pátria” (Ulisses Guimarães, 1988 – op.cit.). Assim, a Constituição brasileira, promulgada em 1988, acabou absorvendo grande parte das reivindicações do movimento de “Participação Popular na Constituinte”, institucionalizando várias formas de participação da sociedade na vida do Estado, sendo que a nova Carta Magna ficou conhecida como a “Constituição Cidadã” pelo fato de, entre outros avanços, ter incluído em seu âmbito mecanismos de participação no processo decisório federal e local. Com referência à participação direta, a Constituição destaca o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular. Já no tocante à democracia participativa, estabelece os Conselhos Gestores de Políticas Públicas, nos níveis municipal, estadual e federal, com representação do Estado e da sociedade civil, indicando que as gestões das políticas da Seguridade Social, da educação e da criança e do adolescente deveriam ter caráter democrático e descentralizado. Importante ressaltar que o dispositivo de emendas populares foi também utilizado nos processos de elaboração das constituições estaduais e das leis orgânicas dos municípios brasileiros, resultando na criação de conselhos municipais de gestão e controle de políticas públicas, com a participação de atores governamentais e não governamentais. A inscrição de espaços de participação da sociedade no arranjo constitucional das políticas sociais brasileiras apostou no potencial das novas institucionalidades em mudar a cultura política do país, introduzindo novos valores democráticos e maior transparência e controle social na atuação do Estado no tocante às políticas sociais. A Constituição brasileira estabeleceu sistemas de gestão democrática em vários campos de atuação da Administração Pública, tais como: o planejamento participativo, mediante a cooperação das associações representativas no planejamento municipal, como preceito a ser observado pelos municípios (Art. 29, XII); a gestão democrática do ensino público na área da educação (Art. 206, VI); a gestão administrativa da Seguridade Social, com a participação quadripartite de governos, trabalhadores, empresários e aposentados (art.114, VI), e a proteção dos direitos da criança e do adolescente. A seguir destacam-se alguns avanços da participação social nas políticas sociais, que resultaram de preceitos constitucionais: i. A luta pela Reforma Sanitária em articulação com os profissionais de saúde resulta na aprovação do Sistema Único de Saúde (SUS), que institui um sistema de co-gestão e de controle social tripartite – governo, profissionais e usuários – das políticas de saúde. ii. A luta pela Reforma Urbana resulta na função social da propriedade e da cidade reconhecida pela atual Constituição, em capítulo que prevê o 136
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planejamento e a gestão participativa das políticas urbanas. 9 iii. A elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, como desdobramento do reconhecimento constitucional da criança como um sujeito de direito em situação peculiar de desenvolvimento e da adoção da doutrina da proteção integral. iv. Promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social, como resultado do reconhecimento constitucional de que a assistência social é um direito, figurando ao lado dos direitos à saúde e à previdência social. Hoje, após duas décadas dos avanços inseridos na Constituição, quase a totalidade das políticas sociais brasileiras – saúde, educação, assistência social, criança e adolescente, trabalho e renda, turismo, meio ambiente, pesca, etc. - contam com espaços institucionalizados de participação social, denominados conselhos, que se configuram como órgãos administrativos colegiados com representantes da sociedade civil e do poder público. Muitos deles passaram a desenvolver também conferências nacionais, que são consideradas espaços mais amplos de participação, onde representantes do poder público e da sociedade discutem e apresentam propostas para o fortalecimento e a adequação de políticas públicas específicas. Algumas conferências são regulamentadas por lei (conferências nacionais, estaduais e municipais da Saúde e da Assistência Social); outras são regulamentadas por decreto do Poder Executivo, e há ainda aquelas que não possuem nenhum instrumento de institucionalização que obriga a sua realização.
O princípio da gestão democrática e os Conselhos na Seguridade Social A Constituição Federal de 1988 declara que o Brasil é um Estado Democrático de Direito que tem dentre seus fundamentos a cidadania (art.1°, II). No restante do texto constitucional, um conjunto de mecanismos necessários ao exercício dessa cidadania é instituído, destacando-se, em relação à gestão pública, o chamado direito à participação, a ser regulamentado através de lei (art.37, §3°. “A lei disciplinará as formas de participação do usuário na Administração Pública direta e indireta”). O artigo 193 trata dos princípios gerais da Seguridade Social, define de forma mais explícita a participação, com menção direta aos “trabalhadores, empresários e aposentados”. O artigo 198 trata das ações e dos serviços públicos de saúde; a diretriz geral é “participação da comunidade”. O artigo 204, das ações governamentais na área da assistência social, estabelece a “participação da população por meio de organizações representativas na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. A regulamentação desse princípio, por normas infraconstitucionais, privilegiou a criação de várias estruturas, ao estilo de conselhos de 9. Embora a reforma não tenha consolidado um sistema articulado de Conselhos, institui diversos espaços de co-gestão das políticas urbanas nas esferas estaduais e municipais. 137
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Estado. Cada uma das áreas, em razão das dinâmicas próprias, estruturou seus conselhos de forma particular10, assim os conselhos de Seguridade, previdência, saúde e assistência tiveram nas duas últimas décadas diferentes destinos e sucesso variado como instrumentos de participação. Da mesma forma, apesar de partilharem desafios comuns, cada um desses espaços guarda singularidades que só podem ser analisadas em seu próprio contexto de histórico de atuação.
O direito à participação na gestão da saúde A área da saúde foi a primeira a criar e a institucionalizar os mecanismos de participação popular por meio de conselhos e conferências. O caráter pioneiro da área da saúde deveu-se ao papel desempenhado pelo Movimento pela Reforma Sanitária, cujo marco mais significativo foi a XIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, que impulsionou o processo de descentralização das políticas de saúde, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Historiadores, militantes e estudiosos da área são unânimes ao creditar ao Movimento Sanitarista à vitória pelo fato de a Constituição Federal de 1988 ter incluído a garantia da saúde como direito de todos os brasileiros e dever do Estado: “O sistema de saúde do Brasil é uma conquista da população brasileira, que ocorreu meio que ao contrário da história dos países latino-americanos. Em toda a América Latina e também no Caribe, o que foi feito foi uma privatização da atenção à saúde”.11 (trecho de entrevista concedida por Maria Luíza Jaeger em 2005 para a Radiobrás) “A Constituição anterior falava em direito à assistência médica e a de 1988 fala em direito à saúde e diz que a saúde tem a ver com educação, lazer, trabalho e com atenção à saúde. O conceito de integralidade da atenção também aparece no texto constitucional. É bom lembrar que, ao mesmo tempo, saúde se torna, na Constituição Federal, a única questão de relevância pública.” 12.(idem). A Constituição Federal garante para todos os cidadãos o direito à saúde, por força de vários dispositivos constitucionais que reiteram que é dever do Estado garantir o direito à saúde. Assim, no Brasil, as políticas públicas de saúde orientam-se desde 1988 pelos princípios de universalidade e eqüidade no acesso às ações e aos serviços e pelas diretrizes de descentralização da gestão, de integralidade do atendimento e de participação da comunidade, na organização de um Sistema Único de Saúde no território nacional.
10. Frederico Augusto Barbosa da Silva Luiz Eduardo de Lacerda Abreu - “SAÚDE: CAPACIDADE DE LUTA” - A EXPERIÊNCIA DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE in IPEA - Texto para Discussão nº. 933, Dezembro de 2002 - Brasília. 11. Médica sanitarista. Foi secretária municipal de Porto Alegre/RS e secretária estadual de Saúde do Rio Grande do Sul. Atualmente, é secretária de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde, do Ministério da Saúde. (http://www.radiobras.gov.br/ materia) 12. Idem op. Cit. 138
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A concepção da saúde inscrita na Constituição trouxe mudanças significativas nas relações de poder político e na distribuição de responsabilidades entre o Estado e a sociedade, e entre os distintos níveis de governo. Coerente com essa concepção, ampliaramse os canais de participação dos gestores da área e dos usuários do sistema, instituindo-se conferências de saúde e conselhos de saúde em cada esfera de governo, como instâncias colegiadas para a participação social na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS -; a Comissão Intergestores Tripartite na direção nacional do Sistema Único de Saúde e as Comissões Intergestores Bipartites na direção estadual; e fortaleceram-se os órgãos colegiados nacionais de representação política dos gestores das ações e serviços nos Estados e municípios – o CONASS (Conselho Nacional de Secretários de Estado de Saúde) e o CONASEMS (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde).
Papel do Conselho Nacional de Saúde O Conselho Nacional de Saúde - CNS - é um órgão colegiado com representação de diversos setores da sociedade e também de entidades nacionais de trabalhadores que possuem papel relevante para a sociedade brasileira. Tem o caráter deliberativo na formulação de estratégias e no controle da execução das políticas de saúde. A Lei Federal 8.142/90, em seu § 2°, define que “O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo”. No tocante às conferências nacionais, em dezembro de 2007 foi realizada a 13ª Conferência Nacional de Saúde, que desenvolveu seus trabalhos tendo como tema central a questão da “Saúde e Qualidade de Vida: Políticas de Estado e Desenvolvimento”. Resultado de muita luta e de mobilização da sociedade, o Sistema Único de Saúde já sofreu várias tentativas de modificações voltadas para sua redução (focalização), sucateamento e privatizando a saúde pública do Brasil. É lugar comum a mídia mostrar as filas de espera nos postos de saúde, hospitais sujos e lotados, falta de medicamentos e de profissionais da área da saúde, dentre outras mazelas. Entretanto, o SUS tem vários aspectos positivos que são muito pouco divulgados e conhecidos na sua totalidade pela população brasileira. Em relação ao atendimento oferecido pelo SUS, destacam-se, a título de ilustração, a sua magnitude: (i) assistência integral e totalmente gratuita para a população de portadores do HIV e doentes de AIDS, renais crônicos e pacientes com câncer, e (ii) realização média anual de mais de 1,0 bilhão de procedimentos de atenção básica; 251 milhões de exames laboratoriais; 8,1 milhões de ultra-sonografias e 132,5 milhões de atendimentos de alta complexidade (85% do 139
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total realizado no país), entre tomografias, sessões de hemodiálise, quimioterapia, etc.13
O direito à participação na gestão da previdência social O princípio da participação na gestão previdenciária tem como fonte originária na Constituição de 1988 o artigo 194, que no seu item VI assinala o caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa com a participação da comunidade, em especial dos trabalhadores, dos empresários e dos aposentados, ainda que antes e depois da criação do Conselho Nacional da Previdência Social tenham ocorridas muitas manifestações populares visando à correta aplicação dos direitos da Seguridade Social. De acordo com os dados do Ministério da Previdência Social, o seguro social atingiu, em junho de 2008, uma quantidade média de 25,4 milhões de benefícios do sistema previdenciário. Desses, 14,7 milhões foram destinados aos beneficiários da área urbana, 7,5 milhões aos beneficiários da área rural e 3,2 milhões aos benefícios assistenciais.14 De acordo com Delgado et al (2002), um sistema de seguro social de ampla cobertura como o brasileiro, com tal massa de participantes, requer, de fato, um controle público de sua gestão, bem como um permanente intercâmbio com a sociedade sobre os rumos e os limites da política que se realiza na relação da burocracia com a população beneficiária, visando a alcançar os objetivos que a sociedade elege para a proteção social dos grupos vulneráveis no âmbito da previdência social.15 A regulamentação do princípio da participação na gestão previdenciária deuse por meio da Lei 8.213/1991, que criou várias estruturas específicas de participação social na gestão pública do sistema previdenciário, destacando-se o Conselho Nacional de Previdência Social e o Conselho Nacional de Seguridade Social, que existiram a partir de 1991 e foram extintos em 1999, no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Ao Conselho Nacional da Previdência Social cabe deliberar sobre a política de previdência social e sobre a gestão do sistema previdenciário. Suas competências são amplas e incluem desde o estabelecimento de diretrizes gerais para a definição da política previdenciária até a aprovação das propostas orçamentárias da previdência social, antes de serem consolidadas no Orçamento da Seguridade Social. É presidido pelo Ministro de Estado da Previdência Social e composto por representantes do Governo Federal, dos trabalhadores aposentados, dos pensionistas, de trabalhadores ativos e de empregadores.
13. Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor O SUS pode ser seu melhor plano de saúde / Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. - 2. ed., 3.ª reimpr. - Brasília: IDEC, 2003. 14. MPAS - Informe da Previdência Social Regime Geral de Previdência Social: Balanço do 1o. Semestre de 2008 in http://www.previdenciasocial.gov.br/docs/pdf/informe%202008-07.pdf 15. Guilherme Costa Delgado,Helmut Schwarzer,Ana Carolina Querino, Juana Andrade de Lucini, a participação social na gestão pública: avaliação da experiência do Conselho Nacional de Previdência Social (1991/2000 140
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O processo de criação e de construção da participação social na política previdenciária não é, de acordo com Delgado et al (2002), aparentemente precedido por algum movimento social ou ação concertada de atores sociais, razoavelmente organizados, que favorecesse a construção dos Conselhos. Segundo os autores, essa talvez seja a grande diferença em relação, por exemplo, ao Conselho Nacional de Saúde, o qual fora precedido pela ação do Movimento Sanitarista e por toda uma articulação nacional e regional dos atores públicos envolvidos na política de saúde. Além disso, é importante ressaltar, brevemente, que nos 20 anos que se seguiram à promulgação da Constituição, a previdência social esteve constantemente no centro do debate econômico e político, sendo considerada por muitos atores como uma das principais causas dos problemas econômicos existentes no período. Logo após a promulgação da Constituição Federal, o país viveu uma crise política e atravessou um sofrido processo hiperinflacionário. Nesse período, os críticos colocavam os avanços previdenciários advindos da atual Carta Magna - como, por exemplo, a equiparação entre benefícios rurais e urbanos - entre as principais causas do déficit público e, conseqüentemente, da inflação. No início da década de 90, a crise econômica continuou e, portanto, as críticas persistiram e, até mesmo, intensificaram-se as vozes que defendiam a necessidade de reforma constitucional no campo da previdência. Mesmo assim, não se conseguiu fazer qualquer modificação no período da revisão constitucional (1993).16 Fatores como o advento do Plano Real, que estabilizou os preços, o baixo crescimento econômico da década de 90, o aumento das despesas previdenciárias pós Constituição Federal de 1988 e as modificações no padrão demográfico da sociedade brasileira transformaram o então superávit das contas da previdência em déficit já no inicio da década. Assim, entre os anos de 1995 a 2002, as críticas ao texto constitucional da previdência social continuaram com muita força, sendo que a política econômica daquele período apresentava como uma de suas principais bandeiras a reforma constitucional da previdência. Tal esforço resultou na famosa Emenda Constitucional nº. 20, bem como em outras medidas que visaram a restringir a cobertura previdenciária, destacando-se a criação do chamado fator previdenciário. Em 2003, o país continuou apresentando baixo crescimento econômico, sendo que a proposta governamental no período defendia a reforma constitucional no regime previdenciário do setor público, que resultou em alterações que restringiram o seu alcance. No presente, observa-se uma reversão de expectativas, uma vez que o atual crescimento econômico tem permitido reduzir o déficit previdenciário, mesmo considerando os reajustes reais no valor do salário mínimo. Assim, aparentemente, o debate em torno da questão previdenciária tem sido atualmente mais otimista e progressivo, a exemplo da realização do recente Fórum Nacional da Previdência Social. 16. Machado, Alex Rabelo “Previdência Social: Cidadania e Sustentabilidade - Belo Horizonte, fevereiro de 1996. Tese de mestrado Centro de Planejamento e Desenvolvimento Regional. 141
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Todas as questões conjunturais apresentadas no breve relato acima contribuíram para que o arranjo de participação social na gestão da previdência social perdesse um pouco em efetividade. Em trabalho que avalia a atuação do Conselho Nacional da Previdência Social – CNPS no período de 1992 a 2000, Delgado et al (2002) concluiu que o processo de institucionalização da participação social por meio do CNPS apresentou inúmeras dificuldades, destacando-se: Ausência de condições históricas mais propícias para a implementação da gestão quadripartite com descentralização federativa, conforme observado no processo participativo na área da saúde. Advento do período de política econômica conservadora nos anos 90, resultando em embates fortes, conflitos e refluxos dos movimentos sociais que lutavam pela ampliação e manutenção de direitos sociais conquistados na Constituição de 1988. Baixa assimilação dos princípios constitucionais por parte do CNPS, resultando em menor capacidade de articular, defender e ampliar os direitos sociais universais na previdência e na Seguridade Social. No entanto, apesar das dificuldades elencadas, pode-se afirmar que, ao longo de sua existência, o Conselho Nacional de Previdência Social desempenhou importante papel na defesa das conquistas sociais no campo previdenciário da Constituição Federal de 1988 e no fortalecimento da previdência social do país, a qual, nas duas últimas décadas, sofreu vários golpes no sentido de diminuí-la e de descaracterizá-la de seus princípios universais.
O direito à participação na gestão da assistência social Com a Constituição de 1988, a assistência social adquiriu o caráter constitucional de política pública no âmbito da Seguridade Social. Passou a ser um direito para todos aqueles que dela necessitam, e não uma benemerência do Estado ou da sociedade. Além disso, foi criado o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que substituiu, em 1995, a renda vitalícia (criada em 1974), ambos sem necessidade de vínculos contributivos, e aprofundaram-se os debates no sentido da descentralização na gestão e da implementação dos arranjos que institucionalizam a maior participação da sociedade na gestão da política de assistência social. A aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) só ocorreu em 1993, cinco anos depois da promulgação da Constituição. A LOAS definiu explicitamente os arranjos da descentralização e da participação social. De acordo com essa lei, os conselhos municipais constituem-se numa das instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo de assistência social. A LOAS definiu ainda a estrutura geral a ser reproduzida 142
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nos níveis nacional, estadual e municipal, qual seja, a “Conferência” como instância deliberativa máxima, cuja função é avaliar a situação da política de assistência social, propor diretrizes, apreciar e aprovar proposta orçamentária encaminhada pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, e determinou a criação do Fundo de Assistência Social. Além disso, determinou que a efetiva instituição de um Conselho de Assistência Social, de composição paritária entre governo e sociedade civil, de um Fundo de Assistência Social, com orientação e controle dos respectivos conselhos, e a elaboração de um Plano de Assistência Social seriam pré-requisitos para os repasses da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios. Entretanto, apenas em 1997 instituíram-se a sistemática de repasse de recursos e a Norma Operacional Básica (NOB), criando condições políticas e institucionais para o início efetivo dos processos de descentralização. Como instâncias componentes do sistema descentralizado, têm-se ainda as comissões intergestoras tripartite e bipartite, que constituem espaços de negociação e pactuação entre os entes federados a respeito dos aspectos operacionais e da gestão da política, incluindo divisão de recursos entre eles. São instâncias que propiciam a participação dos gestores de todos os níveis de governo no processo decisório da política.
Papel do Conselho Nacional de Assistência Social O Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS foi instituído pela Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS - como órgão superior de deliberação colegiada, vinculado à estrutura do órgão da Administração Pública Federal responsável pela coordenação da Política Nacional de Assistência Social, que atualmente é o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. É composto por dezoito membros e respectivos suplentes, sendo nove representantes governamentais e nove representantes da sociedade civil, dentre representantes dos usuários ou de organizações de usuários, das entidades e organizações de assistência social e dos trabalhadores do setor, escolhidos em foro próprio sob fiscalização do Ministério Público Federal. Dentre as principais competências do CNAS encontram-se: aprovar a Política Nacional de Assistência Social; normatizar as ações e regular a prestação de serviços de natureza pública e privada no campo da assistência social; fixar normas e conceder registro e Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social; zelar pela efetivação do sistema descentralizado e participativo de assistência social; convocar ordinariamente a Conferência Nacional de Assistência Social; apreciar e aprovar a proposta orçamentária da Assistência Social a ser encaminhada pelo órgão da Administração Pública Federal responsável pela coordenação da Política Nacional de Assistência Social; divulgar, no Diário Oficial da União, todas as suas decisões, bem como as contas do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) e os respectivos pareceres emitidos.
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O CNAS constitui-se, de fato, em um espaço de negociações reconhecido e legítimo dos setores governamentais e da sociedade. É uma instância importante para o debate e proposições na política mais geral de assistência social, bem como na definição de critérios para o repasse de recursos para entidades de assistência social. Em anos recentes, esse Conselho tem contribuído efetivamente para a implantação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS -, por meio de suas resoluções. Em 2004, o CNAS aprovou a Política Nacional de Assistência Social – PNAS -, que estabeleceu princípios e diretrizes para a implementação do SUAS, que foi resultado de amplos debates realizados em todos os Estados e no Distrito Federal durante o ano de 2004, a partir de uma proposta preliminar apresentada pela Secretaria Nacional de Assistência Social em cumprimento às deliberações da IV Conferência Nacional de Assistência Social realizada em 2003. Já em 2006, o CNAS aprovou também a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos, que foi uma das deliberações da 5ª Conferência Nacional de Assistência Social que aconteceu em dezembro de 2005. No tocante às Conferências Nacionais de Assistência Social - instâncias colegiadas de caráter deliberativo com intensa participação social dos usuários ou organizações de usuários, de entidades e de organizações de assistência social e de trabalhadores do setor -, já foram realizadas seis plenárias nacionais desde 1995 e um sem número de plenárias estaduais e municipais que trataram de questões fundamentais para a política nacional de assistência social, conforme elucidado abaixo: Conferências
Tema principal
I CNAS (1995)
Assistência Social como um direito do cidadão e dever do Estado
II CNAS (1997)
O Sistema Descentralizado e Participativo da Assistência Social - Construindo a Inclusão Universalizando Direitos
III CNAS (2001)
Política de Assistência Social: Uma trajetória de Avanços e Desafios
IV CNAS (2003)
Assistência Social como Política de Inclusão: Uma Nova Agenda para a Cidadania - LOAS 10 Anos
V CNAS (2005)
SUAS - PLANO 10: Estratégias e Metas para Implementação da Política Nacional de Assistência Social.
VI CNAS (2007)
Compromissos e Responsabilidades para assegurar a proteção social pelo SUAS
Participação social nas políticas públicas: avanços e desafios Os avanços constitucionais no desenho das políticas sociais criaram espaços concretos de participação da sociedade no planejamento e na execução de políticas por meio de conselhos municipais, estaduais e federais. Entretanto, ao lado desses avanços, ao longo da década de 90 e no início dos anos 2000, a relação do Estado com a sociedade sofreu uma inflexão. Isto é, os movimentos sociais que na década de 80 caracterizavam-se por seu caráter reivindicatório, pela ampliação de direitos sociais universais e pela construção de 144
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um Estado do bem-estar social, na década de 90, grande parte das organizações passam a assumir responsabilidades conferidas ao Estado pela Constituição Federal. Essa guinada no papel da sociedade civil reflete a política governamental do Estado mínimo, significando a tentativa de repassar à sociedade civil responsabilidades conferidas à instância pública governamental, conforme outorgadas pela Constituição Federal de 1988 e por todas as leis orgânicas decorrentes. Segundo Dagnino (2004)17, na década de 90 há uma outra noção de participação em disputa na conjuntura política e social da época. Para a autora, a idéia de participação passou por um processo de resignificação, passando a ser vista como “participação solidária”. Essa noção de participação relaciona-se com a prática do trabalho voluntário e com a idéia de responsabilidade social de indivíduos e empresas. Nesse sentido, há uma despolitização do significado da participação social, pois se enfatiza uma noção de participação individualista, ligada a valores morais, desconectada do coletivo. Essa perspectiva traz impactos negativos tanto para o desenvolvimento e a efetivação dos espaços públicos participativos como para a implementação de políticas públicas de combate à pobreza e à desigualdade social. Com a assunção ao poder de uma das forças políticas originárias do sindicalismo e dos movimentos sociais criados nas décadas de 70 e 80 tem-se observado a maior presença da sociedade nos espaços de participação social existentes na esfera pública federal. Informações referentes ao período de 2003 a 2006 indicam18 que o Governo Federal colocou em prática uma estratégia de manter e ampliar a interlocução com movimentos sociais e com organizações da sociedade. Tal estratégia foi concretizada a partir da maior utilização dos espaços de participação social existentes no âmbito da Administração Pública Federal e da criação de novos mecanismos que propiciam a canalização das demandas e manifestações da sociedade para dentro do Estado. Com isso, de acordo com o ministro-chefe da Secretaria-Geral-PR, Luis Dulci, quis o Presidente da República ampliar o conceito de governabilidade, incorporando os atores não legalmente instituídos, como os movimentos sociais e as entidades representativas da sociedade civil, no diálogo permanente com o Estado, realizado pelos gestores públicos, sobretudo nos momentos que antecedem as decisões governamentais que afetam diretamente a vida da população brasileira: “Este é um governo de mudança, que só alcançará seu objetivo ampliando o espaço democrático da participação social. A governabilidade parlamentar é fundamental, mas, para realmente mudar o Brasil, é preciso ampliar o próprio conceito de governabilidade. Nunca a sociedade se mostrou tão disposta a participar na construção de um novo país. Estamos incorporando essa energia. Além disso, a História nos dá exemplos de governos liderados pela esquerda, em 17. Dagnino, Evelina (2004) “Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?” bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ ar/libros/venezuela/faces/mato/Dagnino.pdf 18. IPEA.Secretaria Geral PR: Pesquisa das Conferências Nacionais 2003-2006 (dez 2006) - resultados não publicados. 145
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outros países, que fracassaram por não terem conseguido ampliar e aprofundar sua base social. Só neste primeiro ano, a equipe da Secretaria-Geral manteve mais de 700 reuniões com organizações da sociedade. Esse método inovador de governar reflete-se na agenda do próprio Lula. Ele foi o primeiro presidente a visitar a Assembléia da CNBB em Itaici, o Congresso da CUT em São Paulo, a marcha do Fórum Nacional da Reforma Agrária em Brasília. Também foi o primeiro a receber a Associação Brasileira de ONGs. Recebeu a direção da UNE, que havia dez anos não era convidada ao Planalto. Outros governos chegaram a criminalizar movimentos como o MST. O nosso, ao contrário, mantém com eles uma interlocução franca e respeitosa.” (trecho extraído de entrevista concedida pelo Ministro Luís Dulci para Ricardo Azevedo, publicada na Revista Teoria e Debate da Fundação Abramo - ano 17 - nº56 - dez 2003/janeiro 2004).
Dentre outras iniciativas colocadas em prática para dinamizar o diálogo com a sociedade na Administração Pública no período 2003-2006, o Governo Federal colocou em prática uma estratégia de apoio à realização de conferências nacionais e de criação de novos conselhos nacionais de direitos e de políticas públicas. Em torno da participação social nas conferências nacionais, assistiuse, nesse período, a uma situação inédita, pois nunca os segmentos organizados da sociedade haviam demonstrado tanto dinamismo nas mais diferentes áreas de políticas públicas. Entre 2003 e 2006 foram realizadas 43 conferências – 38 nacionais e cinco internacionais -, que mobilizaram mais de dois milhões de pessoas da sociedade civil e do poder público, nas esferas municipal, estadual e nacional. É importante notar que, do conjunto de conferências realizadas no período 2003-2006, 15 conferências foram realizadas pela primeira vez, conforme aponta o Quadro 1. No tocante aos conselhos nacionais, no período em análise foi colocado em prática pelo Governo Federal um franco processo de abertura de novos espaços dessa natureza. O Quadro 1 aponta que, durante a primeira gestão do Governo do Presidente Lula, onze novos conselhos vinculados às políticas públicas e à defesa de direitos foram criados. Informações do Governo Federal revelam ainda que, em janeiro de 2007, a Administração Pública Federal contabilizava cerca de 40 conselhos nacionais que contemplavam na sua composição representantes de organizações da sociedade civil19. A mesma fonte de informações destaca também a enorme heterogeneidade de representantes civis que participam desses conselhos. No início de 2007 participavam dos conselhos nacionais um total de cerca de 440 entidades representativas de segmentos da sociedade civil (organizações sindicais, patronais, movimentos urbanos, rurais, ambientalistas, de defesa de direitos, entre outros), sendo que algumas delas estavam presentes em mais de um conselho nacional, ultrapassando o número de 600 participações20. 19. Dados de pesquisa realizada pelo IPEA e Secretaria-Geral - PR em fevereiro de 2007. Resultados não publicados 20. PEA-SG, op.cit. 146
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Quadro 1 Período 2003-2006: Conferências realizadas pela primeira vez 1. 1ª Conferência Nacional das Cidades 2. 1ª Conferência Nacional Infanto-Juvenil do Meio Ambiente 3. 1ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência 4. 1ª Conferência Nacional de Políticas Públicas para a Juventude 5. 1ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa 6. 1ª Conferência Nacional de Políticas pra as Mulheres 7. 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial 8. 1ª Conferência Nacional de Aqüicultura e Pesca 9. 1ª Conferência Nacional do Esporte 10. 1ª Conferência Nacional do Meio Ambiente 11. 1ª Conferência Brasileira sobre APL - Arranjos Produtivos Locais 12. 1ª Conferência Nacional de Educação Profissional e Tecnológica 13. 1ª Conferência Nacional dos Povos Indígenas 14. 1ª Conferência Nacional de Economia Solidária 15. 1ª Conferência Nacional da Cultura Fonte: Secretaria-Geral –PR/Secretaria Nacional de Articulação Social (jan. de 2007)
Além dos conselhos e das conferências, a realização de consultas públicas foi amplamente utilizada nesse período, destacando-se, principalmente, aquelas vinculadas às temáticas de meio ambiente, presentes no Plano de Construção das BR 163 e BR 364, no Plano Amazônia Sustentável (PAS), no Plano Nacional de Recursos Hídricos, e outros21. O ano de 2003 foi também o primeiro em que um Governo Federal realizou um processo de consulta à sociedade para a elaboração do Plano Plurianual no país.22 Para a definição das prioridades do Plano Plurianual 2004–2007 foram organizados fóruns de discussão nos 26 Estados brasileiros e no Distrito Federal, os quais contaram com a participação de 2.170 organizações variadas, a saber: sindicatos, associações e federações empresariais, organizações não-governamentais, movimentos populares e instituições religiosas e científicas23. Pelo exposto, pode-se afirmar que, do ponto de vista quantitativo, houve, no período analisado, uma expansão da participação social na esfera pública social brasileira. No entanto, o principal desafio reside em investir na capacidade de o Estado em responder 21. Monteiro, Iraneth Rodrigues O Estado Brasileiro e a Participação Social, in Teoria e Debate Urgente Fundação Perseu Abramo (http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/index.php?storytopic=835) 22. Tal plano contém, em detalhes todos os investimentos que poderão ser realizados no país por um período de quatro anos. Cabe registrar que essa iniciativa foi vista como uma tentativa de introduzir, no âmbito nacional, a prática do orçamento participativo que é muito utilizada nas prefeituras administradas pelo Partido dos Trabalhadores. 23. Apesar das organizações da sociedade civil terem avaliado como positiva a iniciativa do Governo Federal em discutir o PPA com a população, após o envio do Projeto de Lei do PPA ao Legislativo, algumas organizações da sociedade passaram a questionar a validade do processo de consulta pública por não conseguirem visualizar as contribuições da população no PPA aprovado. 147
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à quantidade expressiva de novas (e antigas) demandas que adentram a burocracia estatal, transformando as resoluções dos conselhos, as deliberações das conferências, as sugestões, as críticas, e as moções oriundas dos fóruns e das consultas realizados em medidas e políticas públicas concretas que melhoram a qualidade de vida da população. Assim, as dificuldades enfrentadas pelo Governo brasileiro em dar conseqüência prática à participação social, mesmo contando com espaços legalmente instituídos para essa finalidade, desde a Constituição de 1988, geram várias indagações sobre a natureza das dificuldades que obstaculizam o aprofundamento da democracia pela via de mecanismos participativos24. Além disso, apesar dos indiscutíveis avanços quantitativos observados nos últimos anos, a consolidação da participação social no Brasil ainda enfrenta inúmeros desafios, sobretudo no tocante à melhoria da qualidade e da efetividade dos espaços de participação social. Na verdade, muitos passos devem ser dados até que, de fato, as deliberações da sociedade civil sejam encaminhadas aos escaninhos apropriados da Administração Pública Federal e se concretizem em medidas e políticas públicas adequadas à população.
24. Moroni, José Antonio, “Participamos e daí” - Observatório da Cidadania TEXTO PARA DEBATE Novembro de 2005. 148
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Seguridade Social: direitos constitucionais e limites orçamentários Arthur Oscar Guimarães1 O objeto central deste texto é entender a importância e os limites da Seguridade Social no Brasil, tanto no que diz respeito ao seu real significado social, como no seu custo orçamentário. Diante de tais objetivos cumpre, preliminarmente, contextualizar historicamente o debate sobre a Seguridade Social, para que se possa, a partir daí, analisá-lo com maior propriedade. Sendo assim, parece-nos insubstituíveis as considerações relativas ao caráter legal do tema, ou seja, a partir da Constituição Federal de 1988 e de outras leis atinentes ao tema, verificando quão adequada tem sido tratada a Seguridade Social, vista aqui como um direito fundamental dos brasileiros. Mas ao mesmo tempo há um aspecto do debate aqui proposto, particularmente após o ano de 1988, que está relacionado à conformação, ao alcance e aos limites da Seguridade Social. Ou seja, cumpre considerar a Seguridade no âmbito de uma política social mais ampla, particularmente em razão de uma ação social mais eficaz verificada no Brasil nesta primeira década do Século XXI. A afirmação de Salvador (2008) nos auxilia nesta tarefa inicial: “Convém lembrar que um dos maiores avanços dessa Constituição, em termos de política social, foi a adoção do conceito de seguridade social, englobando, em um mesmo sistema, as políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social. Para tanto, a CF apontou, entre os princípios da seguridade social, a diversidade da base de financiamento. Com isso, o artigo 195 da CF estabeleceu que além das contribuições dos empregados e empregadores para a Previdência Social, também seriam integrados os recursos provenientes das contribuições sociais sobre o lucro, a receita e o faturamento do importador de bens e serviços do exterior além da receita de concursos de prognósticos.” (grifo nosso) Soma-se a essa discussão a antinomia entre a intenção e a realidade das leis em nosso país, como é feito por Horvath Jr. (2007). Por exemplo, se imaginarmos que numa 1. Arthur Oscar Guimarães é Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (Área de Ciência, Tecnologia e Sociedade); Mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Política de Ciência e Tecnologia); Graduado em Economia na UnB. É Consultor Legislativo da CLDF, atualmente exercendo a função de Assessor Técnico no Senado Federal e Pesquisador Associado do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília - CDS/UnB. (e-mail: arthogui@gmail.com). 149
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primeira etapa está a intenção de estabelecer as leis que garantam os direitos, então cumpre considerar, de pronto, como propõe esse autor, que: “Quanto à competência legislativa determina o art. 22, inc. XXIII da Constituição que compete privativamente à União legislar sobre seguridade social. Por sua vez o art. 24, inc. XII prevê que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre previdência social, proteção e defesa da saúde.” (grifo nosso) Estamos diante, portanto, de um primeiro problema, ou seja, a própria Constituição Federal traz em seus arts. 22 e 24 a oportunidade para que a intenção da legislação se transforme em realidade, seja por iniciativa privativa da União, seja por intermédio de legislação resultante de ação concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal. Entendida como um sistema, neste ponto cabe conceituarmos a Seguridade Social, de maneira que fiquem patentes os limites com os quais se deseja trabalhar neste artigo. É fato que a Constituição Federal, no Título VIII - Da Ordem Social, define a Seguridade Social como sistema, no seu art. 194. Portanto, a Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.2 Todavia, num país com tantos problemas e dificuldades, e onde ainda se convive com a cultura de que determinadas leis não pegam, cumpre considerar aspectos historicamente persistentes na real aplicação das leis aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo Poder Executivo. Ou seja, se a Constituição Federal de 1988 representou a oportunidade de ganhos para a população na área social, neste momento (2008), 20 anos depois, nos parece estar evidente nos debates até aqui travados no Legislativo (tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado Federal), que a Seguridade Social estará cada vez mais presente em boa parte do embate político nacional. Não é uma decisão simples aquela que os dirigentes deste país terão que tomar neste e nos próximos anos, pois se trata de posicionamento a ser definido no âmbito do chamado jogo político, em que as forças conservadoras vêem, pelo seu lado, possibilidades reais de reverter uma tendência construída a partir da Constituinte, ou seja, de garantia aos direitos sociais. É possível afirmar que a eliminação de parte desses direitos está na pauta política de diversos segmentos políticos e empresariais brasileiros, mesmo que estes não explicitem tal posicionamento, particularmente nas campanhas eleitorais. Como mencionado, isso é o que já se verifica nos debates no âmbito do Poder Legislativo (nas Comissões Temáticas e nos Plenários). 2. “Pela definição constitucional já é possível notar que a Seguridade Social objetiva assegurar saúde, previdência e assistência. Podemos então dizer que Seguridade Social é gênero, da qual são espécies a Saúde, a Previdência e a Assistência Social.” Corrêa (1999). 150
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À primeira vista pode parecer paradoxal que esse processo de acirramento venha a recrudescer justamente agora, no final da primeira década do século XXI, momento em que o neoliberalismo3 sofre um forte golpe com a intervenção do Governo dos EUA na recente crise do “subprime”4, cujo ato de ajuda financeira aos Bancos e às principais agências de crédito imobiliário americano é o reconhecimento patético da Autoridade Econômica norte-americana quanto à incapacidade de o mercado encontrar todas as respostas para seus problemas, como se apregoou ao longo de anos e anos, inclusive por inúmeros economistas e políticos brasileiros. As falhas de mercado existem e ponto final. E como afirmou recentemente o economista Delfim Neto: “Meus amigos, não se preocupem. Os governos salvarão os mercados.”5
Os vínculos da questão tributária com a Seguridade Social No debate recente sobre a Reforma Tributária, alguns autores já identificam problemas graves na proposta em discussão na Câmara dos Deputados. Salvador (2008) afirma que se deve lutar para que “seja garantido um repasse à seguridade social com base, em parte, no orçamento fiscal”, pois segundo ele se aprovada a proposta como está “vão deixar de existir as receitas próprias da seguridade social previstas em orçamento exclusivo, como determina a CF.”6 Cumpre considerar, no entanto, que vivemos sob a égide da possibilidade de todos os integrantes da sociedade brasileira, atendidos os requisitos legais, terem acesso à Seguridade Social, inclusive no susbsistema previdenciário.7 Esse aspecto corresponde à 3. O conceito de neoliberalismo aqui utilizado é baseado na obra de Perry Anderson, Balanço do Neoliberalismo. In Pósneoliberalismo – As Políticas Sociais e o Estado Democrático. Emir Sader e Pablo Gentili (Organizadores). Rio de Janeiro; Paz e Terra; 1995; pp. 9 – 23. Complementarmente, cabe considerar as palavras de Emir Sader, em O neoliberalismo acabou? Quando afirma o autor: “O neoliberalismo não termina, mas se esgota, abrindo um período de disputa por alternativas, em que, por enquanto, só se vê na América Latina aparecerem propostas de sua superação. Ganha assim a região um protagonismo - junto com a China - na projeção do futuro do mundo em toda a primeira metade do novo século, na disputa entre o velho que se recusa a morrer e produz crises e suas conseqüências por todos os lados, e o novo, que começa a anunciar o pós-neoliberalismo, um mundo solidário, desmercantilizado, humanista (...)” 4. Para um bom entendimento da crise do “subprime” americano recomenda-se a leitura do texto de Ernani Teixeira Torres Filho. “Entendendo a crise do subprime”. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br/conhecimento/visao/visao_44.pdf>. Afirma o autor: “As raízes da crise do subprime podem ser encontradas na desaceleração do mercado imobiliário americano.” 5. Correio Braziliense. Super-heróis. Coluna Brasília-DF, de Denise Rothenburg; 24.09.2008; p. 8. A afirmação citada teria sido feita pelo ex-ministro em reunião com empresários na FIESP - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Na mesma linha o site G1, em 08.10.2008, traz a seguinte notícia: “Pacote amplo. A compra de ações dos bancos em crise faz parte de um plano mais amplo de resgate dos mercados anunciado pela Grã-Bretanha, que pode atingir um custo de 500 bilhões de libras esterlinas. O pacote inclui ainda a injeção de 200 bilhões de libras nos mercados, por meio de um plano especial de liquidez. O governo também está tornando disponíveis outros 250 bilhões de libras aos bancos, para garantir dívidas de médio prazo e ajudar a restaurar a confiança dos mercados.” (g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios) 6. A posição do autor é extremamente crítica à proposta de Reforma Tributária que neste momento tramita na Câmara dos Deputados, chegando mesmo a afirmar: “Com o tempo, a noção de separação da seguridade social vai-se desvanescer. As políticas sociais da Saúde, Assistência Social e Previdência terão que disputar recursos e enfrentar pressões no âmbito do orçamento fiscal, com os governadores e prefeitos, pois a base tributária será a mesma que é partilhada com os estados e municípios, além da histórica pressão dos empresários por desoneração tributária e pelo destino de mais verbas orçamentárias para os investimentos”. 7. Por extrapolar os objetivos centrais deste artigo, não temos a pretensão de discutir a questão do déficit previdenciário, mas a título de informação a página do MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social – registra que em 2008 o déficit 151
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universalidade de atendimento,8 pois compete lembrar que vem da Constituinte a tentativa de estabelecer um tratamento igualitário entre os brasileiros que vivem nas cidades e os que vivem no campo. Relevante lembrar que, como vivemos num Estado de Seguridade Social, hoje já se utiliza a expressão populações urbanas e rurais, e não apenas trabalhadores urbanos e rurais. Como bem destaca Howarth Jr. (2008), a Constituição Federal vedou o tratamento desigual para a população urbana e rural, corrigindo distorção histórica. A esse respeito afirma esse autor: “Com a regulamentação da Constituição Federal de 1988 através das Leis nº 8.212/91 e 8.213/91, temos apenas uma previdência social que abrange as populações urbanas e rurais. A intenção constitucional é a eliminação completa de qualquer discriminação entre estas duas populações. Só o tempo nos dirá se foi atingido este objetivo constitucional.” Ainda em relação à Seguridade Social, experimenta-se no Brasil a vigência dos princípios constitucionais basilares da justiça fiscal, ou seja, a eqüidade, capacidade contributiva e progressividade.9 Essa base constitucional poderia estar minada, caso a política social não fosse priorizada. Um aparente paradoxo se estabelece, pois se de um lado os gastos sociais têm se mantido estáveis ou mesmo crescentes nos últimos anos, para Salvador (op.cit.) “a PEC da reforma tributária não aponta para a construção de um sistema tributário progressivo, pautado pela tributação da renda e do patrimônio. Além disso, as modificações propostas afetam a estrutura de financiamento das políticas sociais, particularmente, os recursos vinculados ao custeio da seguridade social, educação e trabalho.”10 A ANFIP - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil -, ao analisar a PEC 233/08, chamada Reforma Tributária (que traz modificações nos dispositivos relativos ao Sistema Tributário Nacional), lembra que algumas modificações já foram aprovadas no âmbito da CCJ11, destacando o aspecto da “exceção, que priorizava a concretude do direito social sobre o direito individual previdenciário será na ordem de R$ 38 bilhões, inferior aos R$ 44 bi registrados em 2007. 8. “Faceta subjetiva”, nas palavras de Howarth Jr. (2008). 9. Neste ponto encontramos a justificativa para o posicionamento de Salvador (2008), autor da Nota Técnica do INESC, quando em seu trabalho defende que “a tributação é um dos melhores instrumentos de erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais, que constituem objetivos essenciais da República esculpidos na Carta Magna.”
Ainda em torno da Reforma Tributária: “Em termos políticos, a mudança é grave. Um dos avanços da Constituição, em termos de políticas sociais, foi a vinculação de recursos como uma das formas de enfrentar a perversa tradição fiscal existente no Brasil, cuja aplicação dos recursos do orçamento público sempre priorizou a acumulação do capital, submetendo as políticas sociais à lógica econômica. Vincular recursos significa, portanto, amenizar esta prática, assegurando que parte da receita seja obrigatoriamente destinada e exclusiva para o financiamento da área social. O objetivo é universalizar os direitos sociais: educação, previdência, saúde e trabalho.” Salvador (2008) 10.
11. Comissão 152
de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.
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(se não for surpreendido pelo aumento dos impostos), perde a sua razão de existir”, e conclui que “esse é apenas o primeiro revés da mudança, em que perde a Seguridade sua função primordial de assegurar direitos à saúde, à previdência e à assistência social.”12 A ANFIP ratifica seu posicionamento: “Em prol da simplificação tributária, a Seguridade Social não pode ser
a vítima dessa nova reforma. É inadmissível que neste governo se perca a pluralidade das fontes de financiamento, que se demonstraram instrumentos importantes para assegurar os recursos necessários destinados a garantir os benefícios, direitos e a prestação dos serviços públicos das áreas de saúde, previdência e assistência social.” (grifo nosso).
Aspectos da política social Mas há um dado que precisa ser considerado neste momento da análise e que diz respeito ao esforço realizado pelo Governo Federal na área social. A título de exemplo, apresentam-se na Tabela 1 os dados relativos ao PBF – Programa Bolsa Família -, inegavelmente o maior símbolo da política social desenvolvida pelo atual Governo Federal. O PBF não esgota a política social do Governo, pois outros programas, atividades e ações sociais se encontram em desenvolvimento, mas esse programa é um indicativo fundamental das mudanças importantes que foram efetivadas na área social. Foge ao escopo do debate aqui proposto análise mais acurada do PBF, mas é importante considerar a existência dessas mudanças nos segmentos menos atendidos da população brasileira. O Número de Famílias Beneficiárias do Programa Bolsa Família chama a atenção: são mais de 11 milhões de famílias. A partir dos dados acima, um cálculo simples que considere uma média de quatro pessoas por família no país demonstra que estamos diante de um programa que atende a aproximadamente ¼ da população brasileira. Cabe então reconhecer que o alcance do Programa Bolsa Família é, no mínimo, grandioso. No entanto, interessa mais diretamente à análise aqui proposta observarmos o comportamento dos dados orçamentários relativos à Seguridade Social, ou seja: saúde, assistência e previdência social. 12. Mesmo apresentando críticas similares àquelas feitas pelo INESC, a ANFIP explicita em matéria publicada na sua Revista de Seguridade Social de julho/setembro (p. 22): “A referida proposta simplifica o sistema através de uma consolidação tributária. No âmbito federal pretende-se agregar impostos e extinguir contribuições sociais e econômicas que possuem similaridade em sua base de incidência. Já em âmbito estadual, a emenda propõe que o Imposto sobre Circulação de Produtos e Serviços (ICMS) passe a ser de competência conjunta dos Estados, diminuindo a autonomia da administração tributária das unidades federadas e buscando ainda inibir a guerra fiscal hoje existente.” 153
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Tabela 1 Informações Gerais (IBGE) e Números do Programa Bolsa Família em 2008 Brasil/Informações Gerais População Total (estimativa IBGE 2004) Estimativa Famílias Pobres - Perfil Bolsa Família (Dados do IBGE 2004) Estimativa Famílias Pobres - Perfil Cadastro Único (Dados do IBGE 2004)
Data de Ref. 182.062.687 11.102.770 16.068.232
Cadastro Único Total de Famílias Cadastradas Total de Famílias Cadastradas - Perfil Bolsa Família * Total de Famílias Cadastradas - Perfil Cadastro Único **
Data de Ref. 16.618.080 15.345.894 16.447.985
Benefícios *** Número de Familias Beneficiárias do Bolsa Família - Benefício Liberado Número de Familias Beneficiárias do Bolsa Escola - Benefício Liberado Número de Familias Beneficiárias - Bolsa Alimentação - Benefício Liberado Número de Familias Beneficiária do Auxílio Gás - Benefício Liberado Número de Famílias Beneficiárias do Cartão Alimentação - Benefício Liberado
n.a. n.a. n.a. 30/5/2008 30/5/2008 30/5/2008 Data de Ref.
11.013.540 663 42 253.355 17.009
jul/08 jul/08 jul/08 jul/08 jul/08
Fonte: MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome/ Secretaria Nacional de Renda e Cidadania Notas: (*) Famílias com renda per capita mensal de até R$120,00 e que atendem aos critérios de concessão de benefícios do Bolsa Família (**) Famílias com renda per capita mensal de até 1/2 salário mínimo (***) Comtemplam os benefícios liberados até o momento da geração da folha de pagamento, podendo não corresponder à situação mais recente dos benefícios
De posse dos dados do período de 1995-2008 (este último ano considerado até o mês de agosto), é possível atestar, com a exceção do biênio 1997/98 na área de saúde, que as despesas realizadas sempre indicaram algum grau de crescimento. Todavia, há que destacar que em distintos momentos os ritmos de crescimento foram também diferenciados, ora menos, ora mais rápido. A explicação para essa diferenciação reside numa série de fatores, mas o fundamental é checar se houve ou não a devida priorização da área por um ou outro governo determinado, somando-se a isso a dificuldade de governar um país com tamanhas disparidades sociais, regionais e econômicas. Esses dois aspectos são sempre colocados ao lado da disponibilidade, ou não, dos recursos financeiros necessários para solucionar tais problemas. Essa é a equação que precisa ser resolvida pelos governantes a cada dia. Na Tabela 2 ganha destaque, ao se estabelecer um olhar comparativo entre os períodos ali considerados (coincidentes com os últimos períodos de Governo), o fato de haver uma tendência crescente no volume de recursos destinados pelo Orçamento Federal à Seguridade Social. Todavia, chama a atenção que tais percentuais são mais expressivos quando se comparara 2003/2006 em relação 1999/2002, e menos expressivos quando este último período é cotejado com o primeiro Governo FHC (1995/1998). Mais uma vez as razões que explicam os números e percentuais são múltiplas, podendo advir tanto da ampliação da base social atendida pela Seguridade Social ao longo dos anos, como pelos aumentos nos valores dos benefícios. Inegavelmente o percentual de 196,8% de crescimento do subsistema ASSISTÊNCIA chama a atenção. Mas, ao verificar o total das despesas referentes à “SEGURIDADE SOCIAL”, identifica-se um aumento importante de 62,4% 154
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(1999-2002/1995/98) para 77,1% (2003-2006 / 1999-2002). Não há como deixar de fazer um breve comentário relacionado aos dados já disponíveis para o biênio 2007/2008 (com dados até agosto de 2008 – ver Tabela 3). Em relação ao comportamento dos valores do Orçamento Federal destinados à Seguridade Social, se mantidas as regras atuais, as comparações antecipadas de 2007/2008 com o biênio 2005/2006 indicam claramente que antes de completar o último quadrimestre do corrente ano, todos os subsistemas da Seguridade Social deverão ultrapassar os recursos liberados pelo Governo Federal, nessas áreas, nos anos anteriores. O indicador mais candente dessa certeza é que ao término do agosto de 2008 a diferença total da Seguridade Social é de apenas - 0,1% no período comparado (R$ 515.890 para 515.139). Tabela 2 Execução Orçamentária po Períodos Governamentais (1995/2006)
Programas / Anos Saúde Assistência Previdência TOTAL
(R$ milhões)
1995/98
1999/02
%
2003/06
%
56.060
85.669
52,8
137.203
60,1
7.471
20.093
168,9
59.639
196,8
252.469
407.473
61,4
712.456
74,8
316.000
513.235
62,4
909.298
77,1
Fonte: SIAFI/CONORF/SF (elaboração do autor) Notas: (1) 1995/1999 - dados da Execução Orçamentária dos Programas: 075 (saúde), 081 (assistência) e 082 (previdência) (2) 2000/2008 - dados da Execução Orçamentária por Função (3) 2007/08: saúde = R$ 73.302; assistência social = R$43.282 e previdência social = R$ 398.555. Num total para a Seguridade Social de R$ 515.139 (em R$ milhões, até o mês de agosto de 2008)
Tabela 3 Execução Orçamentária por Períodos Bianuais (1995/2008) Programas / Anos Saúde
1995/96 28.090
(R$ milhões)
1997/98
1999/00
2001/02
2003/04
2005/06
27.970
36.602
49.067
60.143
77.060
2007/08 73.302
Assistência
2.236
5.235
8.282
11.811
22.279
37.360
43.282
Previdência
110.288
142.181
176.711
230.762
310.986
401.470
398.555
TOTAL
140.614
175.386 [24,7]
221.595 [26.3]
291.640 [31.6]
393.408 [34.9]
515.890 [31.1]
515.139 [-0,1]
Fonte: SIAFI /CONORF/SF (elaboração do autor) Nota: os dados indicados entre parentêsis são os percentuais de crescimento comparativo entre biênios
Duas outras informações finais, destacadas abaixo, estão presentes na literatura disponível. Chamam a atenção pelo volume de recursos, merecem destaque e podem pautar os posicionamentos políticos futuros, dos partidos políticos e do movimento social: 155
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i. “Os tributos que serão extintos com a reforma tributária deverão alcançar o montante de R$ 153,8 bilhões, neste ano, conforme a previsão de receitas do Orçamento de 2008. Neste montante foi considerada a incidência da Desvinculação de Recursos da União (DRU)”; e ii. “Somente, em 2007, a DRU desviou R$ 38,6 bilhões do Orçamento da Seguridade Social, conforme dados da Secretaria do Tesouro Nacional. Esses recursos deveriam ser destinados às ações de previdência, saúde e assistência social, e poderiam ampliar os direitos relativos a estas políticas sociais, mas acabaram compondo o superávit primário.”13 (grifo nosso). De tudo que até aqui foi dito, e partindo do pressuposto que os dados citados acima estão corretos, é possível concluir que o aparente paradoxo entre uma política social com amplas características exitosas (a despeito de inúmeros problemas na sua forma de implementação e quanto aos seus atuais limites) não representa obstáculos à manutenção de um sistema de Seguridade Social como definido na Constituição Federal de 1988 e que, como citado, representa um rico patrimônio das “populações urbanas e rurais” deste país, não devendo sofrer alterações que impliquem em perdas para tais populações. Aos movimentos sociais organizados compete, portanto, intensificar a sua luta pela garantia dos direitos adquiridos, tarefa que neste momento político nos parece mais importante que qualquer tentativa de avançar numa pauta de ampliação desses direitos.
Referências Bibliográficas ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In Pós-neoliberalismo – As Políticas Sociais e o Estado Democrático. Emir Sader e Pablo Gentili (Organizadores). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 9 – 23. ANFIP. REFORMA TRIBUTÁRIA. Simplificação e combate à guerra fiscal com riscos para a Seguridade Social. Revista de Seguridade Social. Publicação da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil; - jul/set – 2008, p. 22 – 29. CORRÊA, Wilson Leite. Seguridade e Previdência Social na Constituição de 1988. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 34, ago. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=1431>. Acesso em 04.09.2008. HORVATH Jr., Miguel. Os Direitos Fundamentais e a Seguridade Social. Disponível em: <http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/020507.pdf>Acesso em 04.09.08.
13. Salvador. In http://www.eco.unicamp.br/docdownload/publicacoes/cesit/boletim8/Versao_Integral_08.pdf 156
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SADER, Emir. O neoliberalismo acabou? Disponível em: <http://www.adital.com.br/ site/noticia.asp?lang=PT&cod=35228> Acesso em 25.09.2008. SALVADOR, Evilásio. Reforma Tributária desmonta o financiamento das políticas sociais. Nota Técnica Nº 140 Abril de 2008. INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS INESC. Orçamento / Abril de 2008. TORRES Fº, Ernani Teixeira. Entendendo a crise do subprime. Boletim Visões do desenvolvimento. Nº 44. BNDES (18.01.2008). Disponível em: <http://www.bndes.gov. br/conhecimento/visao/visao_44.pdf>. Acesso em 22.09.2008.
Sites consultados: http://forum.jus.uol.com.br/discussao/29101/principio-do-direito-previdenciario-e-daseguridade-social/ http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL790000-9356,00-GOVERNO+ BRITANICO+ANUNCIA+PACOTE+DE+AJUDA+A+BANCOS.html http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1431 http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=35228 http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/020507.pdf http://www.anfip.org.br/publicacoes/revistas/arqs/revista_96.pdf http://www.bndes.gov.br/conhecimento/visao/visao_44.pdf http://www.eco.unicamp.br/docdownload/publicacoes/cesit/boletim8/Versao_Integral_08. pdf http://www.mds.gov.br/adesao/mib/matrizviewbr.asp?
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O ajuste como prioridade, a Seguridade Social como instrumento Flávio Tonelli Vaz1
Introdução Muitos movimentos contraditórios determinaram a construção do texto constitucional de 1988. Particularmente dois grandes setores interessam a este estudo. O primeiro busca a configuração de um Estado pautado na justiça social e no primado do trabalho, capaz de intervir no processo econômico, de prestar serviços públicos universais e de qualidade e de assegurar direitos e garantias individuais e sociais. Já o segundo identificase com uma economia menos estatizada, menos regulada, com menos direitos sociais e trabalhistas, e com um Estado mínimo focado na manutenção da estabilidade econômica, principalmente a monetária, e afastado da produção de bens e serviços, preservando espaços para o mercado. Ao construir, em cada momento, uma maior ou menor hegemonia, essa contenda definiu a disputa alocativa dos recursos públicos. Importante salientar que, como afirma Hobsbaw (2002), o que aparentemente é uma discussão por argumentos econômicos, sobre como alcançar uma promessa comum de crescimento econômico e prosperidade, é na verdade uma guerra de ideologias incompatíveis, que envolve os interesses da definição sobre quem vai se apropriar do lucro das empresas. O objetivo deste trabalho é analisar como interagiram essas forças antagônicas na produção e na regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à Seguridade Social. Pretende-se avaliar em que medida uma hegemonia liberal determinou o resultado dessa disputa em que se confrontam a efetividade de direitos oponíveis ao Estado e as medidas que priorizaram o ajuste das contas públicas e o controle dessas despesas.
Cresce uma hegemonia liberal A constituinte deu-se num momento propício às lutas sociais. Um período de estagnação econômica, inflação, desemprego, altos índices de pobreza e grande concentração de renda, aliado a uma crise política que marca a derrocada do regime militar
1. Assessor técnico da Câmara dos Deputados nas áreas de Orçamento e Contas Públicas e Seguridade Social. 159
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e um inconformismo generalizado com a incapacidade do país de retomar o crescimento2. Havia grandes mobilizações em defesa da melhoria das condições de vida e de emprego, críticas à concentração de renda e riqueza e lutas pela melhoria dos serviços públicos e pela ampliação de direitos assegurados pelo Estado. Era uma resposta à ditadura, que tinha como prioridade promover o crescimento do bolo; dividi-lo sempre foi uma promessa não cumprida; e o sonho de ‘Brasil grande’ não significava Estado justo e de bem-estar social. Os avanços democráticos, o aumento da participação social, a luta pelas diretas já, o crescimento do sindicalismo, dentre outros fatores, fizeram com que as ondas liberais vindas do exterior conseguissem aqui poucos efeitos práticos. Havia, portanto, um antagonismo em relação ao resto do mundo. Nos anos 70, o país ainda crescia, mas lá fora os ares eram outros: estagnação, crises da conversibilidade do dólar e as suas conseqüências no preço do petróleo e nas taxas de juros internacionais. Nos anos 80, enquanto lá fora a onda liberal que rondava o mundo há mais de dez anos promovia grandes reestruturações produtivas e no aparato estatal, aqui o seu impacto não conseguia romper a mobilização sindical e social (FILGUEIRAS, 2003) e os ventos liberais não conseguiram comandar o processo constituinte. Mas o pensamento liberal foi se fortalecendo aos poucos: a construção do Centrão; a queda do muro de Berlim (favoreceu um discurso da superioridade das forças de mercado sobre o modo planificado de produção); as ondas da globalização e seus efeitos ditos benfazejos para todos; e as vitórias eleitorais de Collor e FHC, com seus respectivos projetos de ajuste fiscal, privatizações e pautas de modernização do Estado e de liberalização da economia. Filgueiras (2003) avalia que o atraso na implementação das reestruturações liberais no Brasil levou a uma agenda totalmente subordinada, do ponto de vista dos interesses envolvidos, e de sua implementação acelerada. A adoção de várias medidas liberais já ocorria quando elas enfrentavam obstruções nos países desenvolvidos. As políticas adotadas nos dois mandatos do Governo Lula, embora reafirmem a continuidade da política econômica anterior, definem um novo realinhamento de forças. Assim, desde 2004 (já que 2003 foi um ano de duros ajustes), o país convive com um processo implicado em contradições internas e externas. Vivencia um qüinqüênio de crescimento econômico, uma maior capilaridade de programas governamentais, aumento dos gastos sociais e de investimentos públicos e a conseqüente melhoria nos indicadores 2. O projeto que fez o país crescer nos anos 70 (o IIPND vai de 1974 a 1979) teve como âncora o desenvolvimento das indústrias de bens de capital. Para tanto houve um aumento da dependência de maciços capitais externos. A situação piorou com o 2º choque do petróleo, que fez a despesa com juros quadruplicar entre 1978 e 1981, elevando a dívida. Com a elevação dos juros e da dívida brasileira, e a inversão do fluxo de capitais, o país foi obrigado a decretar moratória e a renegociar com o Fundo Monetário Internacional (FMI), aceitando medidas de ajuste econômico recomendadas pelo fundo, entre elas a obtenção de superávits na Balança Comercial. Assim, em meados de 80 – conhecida como década perdida – a economia convivia com falta de recursos públicos (para continuar puxando o crescimento e garantindo a infra-estrutura) e o baixo dinamismo das próprias empresas privadas, acomodadas por seguidos anos de privilégios estatais. 160
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sociais. Junto a esses avanços há a manutenção – em alguns casos até o aprofundamento - dos principais instrumentos introduzidos no período FHC de controle e ajuste monetário e fiscal, com juros sempre em um dos mais altos níveis do mundo, total liberdade para a movimentação de capital e crescimento contínuo da dívida mobiliária. A viabilidade dessa convivência de contrários deve-se a um cenário externo altamente favorável. Se houve sensibilidade social para aproveitar essa bonança, resta saber como se definirão as escolhas públicas daqui em diante, com a previsível inversão internacional do fluxo de capitais, com a crise de 2008 e seus reflexos no Brasil. Em síntese, do ponto de vista dessa localização histórica, o processo constituinte e sua regulamentação ocorrem num período em que o predomínio de um pensamento mais social e de planejamento econômico vai sendo substituído pelo pensamento mais liberal, que se fortalece e vai determinando a seu favor as maiores disputas. Naturalmente, não é um processo linear e nem engloba de modo uniforme toda a realidade em disputa. Há muitas exceções, pois os percalços políticos e econômicos são elementos que integram e alimentam as disputas políticas.
Mudanças institucionais abriram caminho para políticas de austeridade fiscal Algumas mudanças institucionais, aparentemente ao largo dessa disputa, foram promovidas desde 1985. Tiveram como alvo os modelos de financiamento do Estado brasileiro e de organização das contas públicas, inclusive quanto ao relacionamento entre Tesouro e Banco Central3. Em grande medida, esses rearranjos pelo controle das contas públicas decorreram de negociações com o FMI, ao qual o Brasil recorreu para fazer a repactuação da dívida externa (ajuste da moratória de 1983). Até então, o Banco do Brasil e o Banco Central operacionalizavam, fora do controle da Lei Orçamentária, várias despesas públicas relacionadas às linhas de crédito e financiamento, de programas federais e até mesmo todas as dotações referentes à dívida pública mobiliária. Corrigir essas exclusões, ampliando a abrangência do Orçamento, atendia a variados propósitos. Fortalecia o Poder Legislativo na definição das despesas públicas, um projeto democrático alinhado à defesa de um projeto nacional4 e, por outro lado, permitia 3. Esse relacionamento BC-TN também foi objeto de grandes modificações nas crises de 1997-1998, na Lei de Responsabilidade Fiscal e ainda agora por meio da MP 435/2008. 4. A incorporação das despesas relativas à dívida pública no Orçamento (1986), coroada na Constituição de 1988, parece atender mais ao segundo propósito do que ao primeiro, já que veio acompanhada de restrições à competência do próprio Congresso, que se viu impedido de cancelar, mesmo que parcialmente, as dotações previstas, ressalvadas as hipóteses de erro ou omissão. Com o dispositivo do art. 166, §3º, II, as dotações relativas aos encargos da dívida foram comparadas, por exemplo, às transferências constitucionais por repartição de receitas, um dos pilares do modelo federativo de governo, cláusula pétrea da Carta. 161
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que o controle sobre a execução orçamentária alcançasse um efeito fiscal maior sobre os agregados monetários. Essa era uma centralização fundamental para condução de políticas de austeridade fiscal e monetária. Foi o fim da coexistência dos orçamentos Fiscal e Monetário e da multiplicidade de autoridades monetárias, a determinar a emissão primária de moeda5 (GUARDIA, 1997), que deu eficácia às políticas macroeconômicas de redução de necessidade de financiamento do setor público. Sob orientações do FMI, durante o longo processo de renegociação da dívida externa brasileira (até 1993) e, posteriormente, com os acordos de 1998/1999 e 2003, várias medidas6 foram adotadas visando à implementação de outros instrumentos de controle das contas públicas e ao uso desses recursos como ferramenta de austeridade monetária. Inicia-se um período em que o controle das despesas públicas (exceto as relacionadas às despesas financeiras, naturalmente) passa a ser a tarefa fundamental dos agentes públicos, condicionando todas as demais tarefas e programas de governo.
Ajustes na Seguridade Social favorecem produção de superávits primários No campo social, uma das construções mais significativas do texto constitucional foi o modelo de financiamento da Seguridade Social. Concebida como um sistema para “assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”7, a Seguridade possui fontes próprias de financiamento, constituídas por contribuições sociais que incidem sobre uma pluralidade de fatores econômicos8. Essa flexibilidade, que tão bem serviu ao financiamento dessas políticas sociais, também foi utilizada para a promoção do ajuste fiscal. Para que a execução orçamentária, inclusive do Orçamento da Seguridade Social, pudesse ser utilizada dentro dessa prioridade de austeridade fiscal e monetária, alguns dispositivos constitucionais foram relegados (com a real separação dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social) e várias mudanças foram determinadas em todo o sistema jurídico. Dentre elas vale ressaltar:
5. Segundo Eduardo Guardia (GUARDIA, 1997), que ocupou vários cargos nas gestões de FHC, o Banco do Brasil acessava diretamente os recursos do Banco Central automaticamente e sem limites, realizando operações de responsabilidade do Tesouro, ou seja, agia como autoridade monetária e podia emitir moeda. Essas despesas não possuíam a necessária cobertura de dotações orçamentárias, mas eram suportadas pela emissão de moeda ou de títulos da dívida pública. Também o BC centralizava as operações de crédito referentes ao giro e pagamentos da dívida mobiliária, nesse sentido o Tesouro deixava de ser responsabilizar pelos pagamentos de serviços dessa dívida. 6. Outras mudanças também favorecem o controle das contas públicas na Constituição, como a obrigatoriedade de depósito das disponibilidades do Tesouro Nacional no BC. Aí depositados, esses recursos saem do meio circulante, concedendo às medidas de contingenciamento também o poder de subtrair o quantitativo de moeda em circulação, potencializando duplamente o efeito restritivo da medida. 7. Constituição Federal, art. 194. 8. Salários, lucros, faturamento e movimentação financeira (nos tempos da CPMF) e, ainda, concursos de prognósticos e aportes do Orçamento Fiscal. 162
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i. atraso na regulamentação dos direitos. Foram necessários três anos para que o salário mínimo fosse reconhecido como piso do valor dos benefícios; ii. mudanças constitucionais. Em 1994, entra em vigência o Fundo Social de Emergência (FSE) para subtrair 20% das vinculações a receitas, despesas e programas, inclusive os sociais, e a Seguridade perdia a quinta parte de todos os seus recursos (somente a partir de 1999 foram criadas exceções para a previdência e o Fundo da Pobreza); iii. alterações na Lei n.º 8.212, de 1991. Essa e outras leis surgidas nesse período ainda guardavam resquícios do momento constituinte9 e precisavam ser “adequadas” ao novo espírito. Como a desvinculação do FSE demonstrou-se insuficiente para o projeto do Plano Real, alterou-se o art. 19 dessa Lei10, para que o Tesouro pudesse reter esses recursos da Seguridade, e ainda o art. 17, para acabar com as restrições ao uso das contribuições sociais em benefícios previdenciários a servidores e militares; iv. controle sobre a expansão das despesas derivadas de obrigações legais. Para as programações em que o Estado é obrigado a entregar um benefício ou a executar determinada despesa, o controle se deu pela limitação dos direitos e pelas restrições aos programas da Seguridade (como as diversas mudanças na previdência); v. para as demais despesas, nas quais a execução está submetida ao juízo da oportunidade e da conveniência do administrador, o controle sempre se deu pela ação direta da liberação dos recursos, ou seja, pelo controle do caixa, essa retenção construía superávits; vi. com a vinculação à Seguridade mitigada e as despesas contidas, as receitas das contribuições sociais continuaram a crescer, ainda mais vigorosamente, em parte como instrumento de ajuste fiscal das contas públicas; vii. sem a separação e na ausência de definições claras, além de perder receitas, o Orçamento da Seguridade Social foi inflado de despesas estranhas (esportes, encargos financeiros, encargos previdenciários da União e outras despesas com servidores e militares etc.). O efeito combinado e progressivo desses instrumentos, que resultam num desvio de finalidade do Orçamento da Seguridade, faz da sua execução um dos mais ativos meios para produção do superávit primário da União. Ao mesmo tempo em que as receitas 9. Mas vale ressaltar que a grande mobilização democratizante do processo constituinte ainda assegurou avançadas leis tanto para regulamentação da Seguridade quanto em outras matérias, como a de defesa do consumidor, regime jurídico de servidores, organização e competências do Ministério Público, etc. 10. Modificação promovida pela MP 964. O art. 19 determinava que os recursos da Seguridade seriam entregues a cada 10 dias, pois não pertenciam ao Tesouro e ainda que o aumento dessas receitas (novas alíquotas ou novas contribuições) somente poderia ser utilizado para atender as ações nas áreas de saúde, previdência e assistência social. 163
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cresciam, uma parcela era desvinculada, para ser livremente utilizada. O controle sobre a liberação dos recursos retinha outra parcela. Outras reformas limitavam o valor dos direitos e ainda dificultavam o seu acesso. Como conseqüência, em 2007, o Orçamento da Seguridade apresentou um superávit de R$ 60,9 bilhões (ANFIP, 2008) - um valor superior ao retratado nos relatórios do BC para o Governo Federal, que foi de R$ 59,4 bilhões, excluindo as estatais. Apenas ilustrando, apresentamos três exemplos de como esses ajustes foram produzidos: i. como forma de responsabilizar os gastos sociais pelo aumento da carga tributária, alguns autores mostram como, em comparação a 1991, as receitas de contribuições sociais cresceram muito mais que os impostos. Enquanto a receita com impostos e taxas variou, em percentuais do PIB, de 7,0 para 7,8, entre 1991 e 2006, a de contribuições sociais foi de 7,9 para 13,3. Mas, é importante ressaltar que esse aumento já ocorreu porque parte dos recursos seria desvinculada. A Tabela 1 compara os números como são apresentados e como efetivamente o são, após o efeito dessas desvinculações. No detalhe, a entrada em vigor do Fundo Social de Emergência. Tabela 1 Comparativo das principais receitas dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade. Valores realizados e efetivados, após desvinculações. 1991 a 2006, exercícios determinados
Receitas realizadas
% PIB
Receitas efetivas, após desvinculações
Ano
Impostos e taxas
Contribuições sociais
Impostos, taxas e outros recursos livres
Receitas remanescentes de contribuições sociais
1991 1994 1999 2003 2006
7,0 8,5 8,0 7,2 7,8
7,9 9,8 10,0 11,8 13,3
7,0 10,5 9,1 8,4 9,1
7,9 7,8 8,9 10,6 12,0
Fonte: RFB - Receita Federal do Brasil, estudos tributários (receitas realizadas); IBGE (PIB, série ajustada). Organização do Autor.
ii. a retenção dos recursos foi aliada da desvinculação no desvio dos recursos da Seguridade. Nem mesmo os recursos do Fundo de Erradicação da Pobreza escaparam dessa sina. A Tabela 2 mostra as receitas da parcela da CPMF que são destinadas ao fundo e à sua utilização. Esses recursos não podem ser desvinculados; portanto, todos os recursos não aplicados foram retidos. Até o final de 2003, ainda um ano de ajuste, 41% desses recursos não foram utilizados para combater a pobreza, mas para facilitar a concentração de renda. A retenção dos valores arrecadados permitia que ficassem congelados na Conta Única do Tesouro e contribuíssem para a produção do superávit. A montanha de dinheiro 164
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acumulada no Tesouro, das mais diversas fontes (incluindo receitas financeiras), chega a R$ 290 bilhões (junho/2008 – dados do BC). Como mesmo depois do exercício não podem ser utilizados livremente, os governos em duas ocasiões utilizaram Medidas Provisórias para finalmente desvincular esses estoques (MP 1.600/1997 e MP 435/2008). Tabela 2 Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Evolução das receitas, aplicação e retenção Período
Receitas
Valores em R$ milhões correntes
Aplicação
Retenção
2000-2003
14.189,3
8.289,3
5.900,0
2004-2007
26.030,3
27.087,5
-1.057,1
2000-2007
40.219,7
35.376,8
4.842,9
Fonte: STN e SIAFI Notas: receitas do Fundo da Pobreza: apenas a parcela da CPMF; aplicação: recursos liquidados em todas as fontes do Fundo.
iii. outro instrumento foi o controle sobre o valor dos benefícios. Além de fraudar o direito às correções dos benefícios já concedidos, vários instrumentos se sucederam para que os benefícios fossem concedidos a menor. A partir de 1992 (Lei 8.542), um período de alta inflação (na média, INPC médio mensal de 23%, em 1992, e de 31%, em 1993), os reajustes foram transformados em quadrimestrais e o INPC ainda foi substituído pelo IRSM, menos abrangente. Foram grandes as perdas para os aposentados e pensionistas (pela diminuição do valor real médio dos benefícios e dos seus reajustes), para o conjunto dos assalariados (esse mecanismo também corrigia salários, inclusive o salário mínimo) e para todos os segurados (o processo corroía o cálculo dos futuros benefícios). Resultado de mais esse confisco, a Tabela 3 mostra como, no período entre 1991 e 1994, foi praticada a menor média de salário mínimo real mensal desde 1970. Com a correção, a menor dos salários de Tabela 3 Evolução do salário mínimo real médio - por qüinqüênios, 1980-2007 Período 1980-1984 1985-1990 1991-1994 1995-1999 2000-2004 2005-2007
Salário mínimo real médio, por qüinqüênios 335,60 282,84 205,81 244,56 292,32 370,57
Fonte: Ipeadata. Elaboração do Autor. Médias qüinqüenais dos salários mínimos reais, apurados mensalmente. Valores em R$ de set/2008 deflacionados pelo INPC. 165
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contribuição, todos os segurados que buscaram seus direitos junto à previdência social até o início de 1997 tiveram grandes perdas, que chegaram a 37%. Esse mecanismo espúrio foi derrotado judicialmente, mas já em 1999 entrava em vigor o fator previdenciário, um novo instrumento a rebaixar o valor dos benefícios.
A título de conclusão: as perspectivas da luta em defesa da Seguridade e os próximos confrontos Durante esse período muitos embates foram vencidos pelos setores que defendem uma maior presença do Estado em prol da justiça social. Um exemplo típico desse aprendizado em construção se deu na área da saúde. Com uma grande crise de financiamento em 1994 e 1995 (ver arrecadações das contribuições sociais na Tabela 1), optou-se pela criação da CPMF, depois do frustrado IPMF. Mas o alívio foi pequeno; a CPMF entrava por uma porta enquanto outros recursos eram retidos. Essa amarga lição apressou em 1998 a tramitação da regulamentação de recursos mínimos para a saúde em todos os níveis de governo (a EC nº 20 foi promulgada em 2000). Agora a batalha é pela ampliação dos recursos federais e pela regulamentação do uso desses recursos (uma vitória nesse campo já foi a exclusão de benefícios assistenciais, que eram computados como gastos em saúde). Também não podem ser desconhecidos os avanços na assistência social com a universalização dos benefícios, que até 2003 não passavam de verdadeiros projetos pilotos. Na previdência, a despeito de todas as reformas praticadas, o discurso da falência imediata e do déficit explosivo foi igualmente enfrentado. Uma batalha imediata, que não vem sendo percebida pelos defensores da Seguridade, está se dando no campo tributário. Primeiro foi o fim da CPMF no Senado. A CPMF acabou, mas foi mantida a desvinculação de 20% das contribuições sociais remanescentes (exceto a previdenciária). A principal medida adotada foi o aumento do IOF, o que já significou uma transferência de recursos para o Orçamento Fiscal. O problema se agrava na Reforma Tributária. A proposta enviada pelo Governo acaba com as contribuições sociais pela sua conversão em impostos. Se aprovado, o Orçamento da Seguridade somente será financiado pela contribuição previdenciária, única a continuar existindo (mas afetada pela diminuição da contribuição patronal), e por repasses de parcela dos impostos arrecadados. Ora, pela sua natureza, os recursos de impostos são naturalmente desvinculados, ao contrário das contribuições sociais. Mesmo que essa parcela esteja vinculada constitucionalmente, encerra-se um ciclo onde esses gastos sociais tiveram fontes exclusivas, que não podiam ser rivalizadas com as despesas fiscais. Essa disputa alocativa que se avizinha pode ser compreendida pelo simples fato de que, pelas regras contidas na Reforma, a diminuição do percentual alocado para a Seguridade já aumenta automaticamente os repasses para Estados e municípios, uma fonte muito forte de pressão sobre o Congresso e o Governo. 166
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Um importante instrumento para esse debate sobre os muitos efeitos dessa Reforma para a Seguridade Social é a Carta Social e do Trabalho n.º 811, uma publicação do CESIT/IE/ Unicamp, que tem como título “Reforma Tributária, Equidade e Financiamento do Gasto Social”. Mas essa disputa pelos recursos da Seguridade ganhará uma dimensão social se for demonstrada a sua identidade com a melhoria da prestação dos serviços públicos e da ampliação dos programas sociais nas áreas de saúde, previdência e assistência social. As receitas da Seguridade não foram infladas para que esses direitos fossem ampliados, mas não é justo que elas sejam agora suprimidas diante de tantas deficiências na prestação desses serviços e na garantia desses direitos. A previdência social precisa de um projeto de universalização. Mesmo com a expansão do número de segurados, com o crescimento econômico e com a formalização do emprego, cerca da metade dos trabalhadores atualmente ocupados não contribuem e, portanto, não estão cobertos pelo sistema previdenciário. Incluir na previdência essa imensa maioria dos trabalhadores de baixa renda, ocupados por conta própria ou em pequenos empreendimentos informais demandará algum nível de subsídio. É o que prevê o sistema de inclusão previdenciária aprovado pela EC 41, exatamente porque não possuem capacidade contributiva à altura desse encargo. E, mesmo os recém ingressos (ou que agora retomaram as contribuições), provavelmente não conseguirão cumprir as exigências de aposentadoria por idade. Um problema que se revelará nos centros urbanos, quando se tornarem incapacitados para o trabalho. Também a aumentar os encargos da Seguridade, há a necessidade de continuarmos a política de valorização do salário mínimo e ainda a demanda pela correção das aposentadorias e pensões, que vêm sendo achatadas ao piso nacional de salários, pelo descompasso dos reajustes praticados. Na área da saúde, as demandas são crescentes. A descentralização sem controle tem, na prática, significado uma desresponsabilização da União para com a eficácia dos serviços. As dificuldades se avolumam, há problemas de gestão, mas maiores são as crises de financiamento. Na assistência, muito se avançou com a expansão do Bolsa Família. Todavia, serão necessários muitos anos de crescimento econômico e até mesmo a ampliação do programa para que essa renda extra possa ser transformada em meios próprios de renda capazes de suprir as necessidades das famílias beneficiadas. A crise que hoje atinge a economia e o sistema financeiro americano, e que já contamina os quatro cantos do mundo, não é aliada para a defesa da Seguridade. Muito 11. Disponível em http://www.eco.unicamp.br/docdownload/publicacoes/cesit/boletim8/Versao_Integral_08.pdf 167
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embora os grandes paradigmas da auto-regulamentação do mercado estejam em baixa, não faltarão vozes a pregar mais e mais ajustes, diante de toda e qualquer dificuldade real ou simplesmente como medida a ela preventiva. Será necessária uma intensa mobilização social para contrabalançar as grandes pressões pró-ajustes, cortes nas despesas e nos direitos, e, assim, participar ativamente das disputas alocativas dos recursos públicos.
Referências Bibliográficas ANFIP. Análise da Seguridade Social. diversas edições. BOSCHETTI, Ivanete. Seguridade Social e trabalho: paradoxos na construção das políticas de previdência e assistência social no Brasil. Brasília: UNB, 2006. FILGUEIRAS, Luiz Antônio Mattos. História do Plano Real. São Paulo: Boitempo Editorial; 2. Ed.; 2003. GUARDIA, Eduardo Refinetti. O processo Orçamentário do Governo Federal: Considerações sobre o novo arcabouço institucional e a experiência recente. Finanças Públicas – ensaios selecionados. Arno Meyer (org.) Brasília: IPEA; São Paulo: FUNDAP; 1997 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2. ed. 23 reimpressão, 2002 STIGLITZ, Joseph E. A Globalização e seus malefícios: a promessa não-cumprida de benefícios globais. Trad Bazán Tecnologia e Linguística. São Paulo: Futura, 2002. _____________ Os exuberantes anos 90 – Uma nova interpretação da década mais próspera da história. São Paulo: Editora Schwarcz, 2003. VAZ, Flávio Tonelli. Longe do Ideário de Justiça Tributária: Simplificação com Riscos para a Seguridade Social. Carta Social e do Trabalho n.º 8, ago-2008. Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho – Instituto de Economia da Unicamp.
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Parte 3. Previdência Social: o desafio da inclusão
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Previdência é mais do que seguro: é Seguridade e desenvolvimento Milko Matijascic1 Diante da crise dos mercados e dos fracassos na regulação de operações financeiras, o mantra pro reforma da previdência parece ter sido temporariamente amenizado. O fiasco das medidas liberalizantes e da ação do mercado é evidente e mesmo os defensores dos endinheirados estão atemorizados pelos seus atos. O fato de a reforma previdenciária prómercado do Chile ou da Argentina ter fracassado também não ajuda. A promoção de políticas que conduzam ao desenvolvimento requer uma retomada do debate sob uma perspectiva focada na realidade do nosso mercado de trabalho. No Brasil, ao considerar o debate da mídia de massas, a previdência parece ser, tão-somente, uma política de viés contributivo. Assim, quem contribui vai receber um benefício proporcional a essa contribuição. Trata-se apenas de uma questão contábil. Mas à previdência também cabe promover acordos entre diferentes gerações, garantindo a continuidade da nação brasileira. A nação é maior que o conjunto de indivíduos. Nas últimas décadas, a evolução tecnológica e seus reflexos sobre o mercado de trabalho têm instigado os que defendem os interesses nacionais a repensar o tema com cuidado, pois carreiras contínuas e ininterruptas, associadas a ganhos de remuneração estáveis, não representam um paradigma realista. A instabilidade de ganhos e de ocupações precisa ocupar o centro das propostas para poder transformar a previdência de forma a gerar desenvolvimento. Essa instabilidade é antiga e sempre esteve no centro das preocupações dos responsáveis pelo processo de desenvolvimento de uma nação. Um trabalho recente de Karine Briard, da CNAV - Caísse Nationale d’Assurance Vieillesse - da França, apresenta resultados que ajudam a pensar o problema da aposentadoria numa perspectiva mais realista. A Tabela 1 apresenta os dados referentes aos tipos de carreira para diferentes gerações de franceses. Partindo da Tabela 1 é possível perceber que carreiras instáveis ou com interrupções são tradicionais e afetaram múltiplas gerações. O que variou foi a distribuição dos tipos de carreira, em que é fácil perceber uma perda de importância do serviço público, decorrente da descolonização francesa, e um ganho de importância de carreiras com remunerações 1. Milko Matijascic é Doutor em Economia pela UNICAMP e atua como Diretor do IPEA para o Centro Internacional da Pobreza, uma parceria do IPEA com o PNUD. 171
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Seguridade Social
menores ou daquelas marcadas pela precariedade ou pelo desemprego. Tabela 1 Distribuição do tipo de carreira conforme o tempo de trabalho na França segundo anos selecionados de nascimento do trabalhador - em % aproximados Tipos de Carreira (tempo de trabalho)
1935
1950
1960
40
35
28
Fora do setor privado (conta própria)
9
5
3
Jovem com deficiência
1
1
1
Com longa interrupção
10
10
9
Precária
12
17
23
Contínua (abaixo do teto de contribuições)
10
12
14
Contínua (próxima do teto de contribuições)
17
19
21
100
100
100
Carreira curta (serviço público ou estrangeiro)
TOTAL
Fonte: Caísse Nationale d'Assurance Vieillesse Extraído: Briard, Karine. 2007. Des parcours professionnels types pour l'évaluation des enjeux de l'assurance vieillesse. Paper apresentado no Congresso Internacional de Pesquisa da Associação Internacional de Seguridade Social em Varsóvia. Maio de 2007
A explicitação desse tipo de cenário é esclarecedora porque a existência de uma ampla reserva de força de trabalho, que eleva a competição por postos de trabalho, permite reduzir o valor dos salários e aumentar o excedente. Aceitar essa realidade privilegia a análise de um modelo de proteção mais realista e não daquele baseado no pleno emprego e na carreira contínua e de longa duração. Não é outra a motivação do atual debate em torno da flexi-seguridade que está a ocorrer na Europa, tomando como paradigmas a Holanda e, sobretudo, a Dinamarca. Esse debate toma como dado a grande rotatividade da força de trabalho como meio de garantir a competitividade, o que, em contrapartida, exige garantias de proteção continuada para os trabalhadores. Essa foi a maneira encontrada pela Dinamarca, por exemplo, para conviver com níveis de rotatividade equivalentes a 1/3. A descontinuidade não é uma novidade e está na origem de arranjos institucionais que combinam a distribuição de renda para aposentados com mecanismos contributivos. Os sistemas mais avançados garantem um patamar de base para quem perde a capacidade de trabalho e complementam esse valor com ganhos que são proporcionais ao tempo de contribuição para fixar o valor dos benefícios. Os ganhos de base permitem reconhecer que todos possuem direito à dignidade e aos ganhos pagos via seguro social, em que a contribuição é o fator que fixa o valor do benefício, busca retribuir os esforços e manter o status quo do trabalhador. Com freqüência, esse tipo de sistemática acrescenta um novo pilar ao seguro social, que é o seguro privado, destinado, em geral, àqueles que possuem patamares de renda mais elevados. 172
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Esse tipo de configuração, a grosso modo, corresponde ao modelo de pilares do Banco Mundial e ao modelo de camadas da OIT. Existem, sobretudo no segundo pilar ou camada, diferenças de concepção, mas o consenso em torno da proteção universal está expresso nos pareceres da maioria dos técnicos. Há um reconhecimento tácito de que a ênfase das ações, para países em desenvolvimento, deve se concentrar no pilar universal de base. Esse “novo consenso” é muito bem-vindo para pensar a situação brasileira. O país sempre foi permeado por grande informalidade e precariedade das relações de trabalho, conforme aponta o Gráfico 1.
Gráfico 1 PEA, situação de ocupação e contribuição para a previdência para a população entre 16 e 64 anos de idade com 15 horas de atividade ou mais- % 4,2
3,6
8,1
8,7
43,6
44,6
46,9
40,1
52,1
51,8
45,1
51,2
1981 Ocupados contribuintes
1987
1997
2007
Ocupados não contribuintes
Desocupados
Fontes: Microdados PNADs / IBGE
Assim, partindo do Gráfico 1, existe uma persistência da não contribuição e, se a desocupação recua um pouco entre 1981 e 1987, ela passa a se elevar depois, atingindo, em 2007, patamares até mesmo superiores aos de alguns países europeus. Esse perfil se reflete, de forma direta, no perfil de concessão de aposentadorias. As aposentadorias por tempo de contribuição, que representam o emprego continuado e remunerações mais regulares são destinadas a segmentos ínfimos, conforme aponta a Tabela 2. 173
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Seguridade Social
Tabela 2 Distribuição porcentual dos benefícios previdenciários e acidentários concedidos de duração indeterminada segundo a modalidade entre 1980 e 2006
Aposentadoria / pensão
1980-84
1985-89
1990-94
Tempo de Contribuição
13,1
11,5
14,6
1995-99
2000-04
2005-06
23
10,3
13,4
7,1
10,9
10
7,9
10,2
7
Idade rural
19,8
17,5
38,2
16,3
21,8
11,5
Invalidez
20,6
17,3
8,6
10,8
13,4
19,6
Pensões por morte
25,8
30
22,5
22,5
23,4
26,9
(BPC) Assistencial Idade
6,5
6,7
2,7
5,7
11,8
10,8
(BPC) Assistencial Invalidez
7,2
6,1
3,5
13,8
9,2
10,8
TOTAL
100
100
100
100
100
100
Idade urbana
Fonte: AEPS e BEPS - Boletim Estatístico de Previdência Social
Ao partir da Tabela 2 é possível perceber que a Constituição em vigor acertou ao criar a Seguridade Social e equiparar direitos de todos os trabalhadores. Mesmo no período mais recente, com a recuperação da economia, mais de um terço dos trabalhadores recebe aposentadorias rurais ou assistenciais (BPC), que não requerem contrapartida em termos de contribuição. Sem esses valores, essas famílias ficariam em má situação financeira e não haveria nenhum tipo de proteção para quem trabalhou, mas não conseguiu obter garantias de direito como contrapartida de contribuição. Além disso, devido ao valor do piso, que cresceu, recentemente, essa foi uma política que erradicou, de forma duradoura, a pobreza em muitas famílias, valorizando os idosos e as pessoas com deficiência. Diante da situação do mercado de trabalho e das conquistas da Seguridade, ao prover renda com base na cidadania e nas necessidades, é importante incorporar todo o conjunto da população e não somente os empreendimentos de economia extrativa, familiar rural, populações pobres com idosos e pessoas com deficiência. A instauração de um piso universal de cidadania permitiria dar garantias de renda e, talvez, modificar as regras para fixação dos valores de aposentadorias para quem contribui. Isso elimina iniqüidades como a perda de qualidade do segurado, que decorre da não contribuição para o sistema após um determinado período de tempo. Isso atinge duramente as famílias com inserção precária no mercado de trabalho que se vêem atingidas por situações de invalidez ou morte prematura de um de seus provedores. Além de proteger melhor as pessoas, uma medida dessa natureza confere maior racionalidade financeira, permitindo remunerar o trabalhador de forma proporcional às contribuições efetuadas para o seguro social, separando-o da proteção de base. Entretanto, essas medidas aumentam os gastos, o que gera preocupações legítimas. É essencial repensar a previdência sob o prisma da Seguridade, revisando regras de concessão de benefícios, de acordo com as condições de vida, enfatizando a proteção dos 174
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Seguridade Social
efetivamente desprotegidos. Muito do arcabouço patrimonialista prévio a 1988 dificulta uma gestão eficaz e moralmente defensável. Mesmo as sociedades mais afluentes não permitem acumular ganhos decorrentes de aposentadorias e pensões para uma mesma pessoa ou de alguma dessas modalidades com rendimentos oriundos de trabalho. Esses benefícios devem ser pagos para quem perde a capacidade de trabalho. A forma de regulação de uma sociedade pode mudar, mas essa função é invariável ao longo da história. É quase ocioso dizer que são os mais abastados que de fato se beneficiam desse tipo de acúmulo de rendimento. A previdência não pode ser um obstáculo para o desenvolvimento, ao minar a competitividade via pagamento desordenado de benefícios sociais sem rígido controle da sociedade. No entanto, como mostra a experiência histórica, nenhuma sociedade se desenvolve sem consolidar um pacto social. Para o Brasil consolidar o seu pacto social, basta seguir a rota estabelecida pelos princípios da ordem social constitucional através da universalidade das ações, extirpando as amarras da modernização conservadora. Nesse sentido, é preciso proteger a todos numa medida aceita como justa, para que essa proteção crie condições para gerar oportunidades, uma das mais nobres dimensões do desenvolvimento.
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Seguridade Social
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Seguridade Social
Desafios à previdência social no início do século XXI Guilherme C. Delgado1
Introdução A estrutura deste trabalho é simples e sintética, conforme os limites de texto previamente solicitados. O tópico inicial é de caracterização atual do sistema de previdência social, configurado em um dado ponto do tempo (2007) em determinado ciclo de filiação previdenciária, precedido por cerca de duas décadas de desfiliação. A seção 2 trata das condições estruturantes do sistema a futuro, sob três enfoques: i) a evolução do emprego e das tendências demográficas; ii) a evolução dos benefícios em manutenção no sistema; iii) as regras de longo prazo, tendo em vista objetivos estratégicos da política social.
O sistema de previdência social atual e sua evolução a futuro A política social brasileira é herdeira de duas tradições de direito previdenciário, que em grande medida configuraram o seu perfil atual: as leis trabalhistas do Período Getúlio Vargas, consolidadas em 1943 (CLT), e as regras da Seguridade Social, estabelecidas pela Constituição de 1988, aplicadas a partir de 1991 - (Leis de Custeio e de Benefício da Previdência Social). O sistema, tal qual o conhecemos hoje, resulta não apenas da vigência e aplicação de regras de direito, mas, sobretudo, das próprias condições políticas e econômicas que ensejaram no Brasil a construção mitigada de um Estado de bem-estar, sob as condições muito peculiares do mundo do trabalho brasileiro, desde sempre permeado por um amplo setor não assalariado. O crescimento econômico contínuo durante longo ciclo industrial, que vai até 1981, é o suporte material à filiação previdenciária nesse período. O atual público segurado do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) corresponde à absorção pelo sistema, ao longo de décadas, de duas grandes vertentes: 1. Doutor em Economia e Professor da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. 177
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avaliação e desafio da
Seguridade Social
i) as várias categorias de trabalhadores que foram sucessivamente incorporadas aos Institutos de Aposentadoria e, depois de 1967, ao sistema centralizado - INPS/INAMPS, sob o pressuposto explícito do assalariamento; ii) algumas categorias de trabalhadores não assalariados, que passaram a ser admitidos no sistema, a partir da Constituição de 1988, e mesmo antes desta. Essa primeira vertente, a do trabalho assalariado, conseguiu incorporar-se mais fortemente ao sistema, a menos da parcela ainda alta do “trabalho assalariado sem carteira”. Mas a segunda vertente, a dos trabalhadores não assalariados, contempla vários arranjos da economia familiar e informal, e ainda está, em sua grande maioria, fora do seguro social. A situação atual (final de 2006), de cobertura do seguro social, traduz um dado momento do ciclo de formalização previdenciária, iniciado no final dos anos 2000, ou início deste século. Como se verá em seqüência, este é um momento favorável do ciclo de filiação, comparativamente ao passado recente; mas está ainda muito distante da cobertura integral. O indicador empírico apropriado de cobertura que usamos (Tabela 1) é a relação de segurados/PEA. Uma medida referencial de integralidade ou da universalidade da cobertura seria algo próximo aos 100%. Como se vê na Tabela 1, a proporção de segurados em 2006 em relação à PEA é de 56,7%. Mas no Regime Geral há uma massa apreciável, 15 milhões de pessoas na média (2001 a 2006), que realiza menos de doze contribuições anuais e que informalmente não é computada nos indicadores de “segurados” das PNADs, provavelmente pela falta da contribuição regular (Tabela 1 col.1). Se considerada essa massa, ampliaria o índice total de cobertura a mais de 2/3 da força de trabalho (ver dado das colunas 1 e 5 da Tabela 1). A grandeza e o crescimento recentes desses “segurados parciais” é sintoma de demanda crescente junto ao sistema. Tabela 1 Diversas Categorias de Segurados como % da PEA
Anos 2001 2005 2006
Contribuintes do RGPS Regulares cf. Totais cf. AEPS IBGE (a) (b) 1 35,59 37,27 38,42
(43,80) (45,30) (46,89)
Segurados Especiais legais ( c ) 2 12,87 12,87 12,27
Total Geral (d)
Total RGPS cf. IBGE
RPPS
3=1+2
4
48,46 50,14 50,69
5,84 5,72 6,05
Cf. IBGE
Cf. AEPS
5=3+4 54,30 55,86 56,74
(62,51) (63,89) (65,21)
"Fonte: PNAD-IBGE (colunas 1, 2, 3, 4 e 5); AEPS (colunas 1 e 5 parcialmente: capítulo “contribuintes”)). (a) Os segurados contribuintes do RGPS, conforme a PNAD-IBGE, são calculados a partir dos contribuintes totais de todos os Institutos de Previdência Pública, deduzidos os servidores civis e militares dos Regimes próprios da Previdência do Setor Público – RPPS. (b) Os “contribuintes” do RGPS, segundo o AEPS, totalizam todas as pessoas físicas que realizaram pelo menos uma contribuição anual ao Sistema. Legalmente todos eles poderiam estar inscritos ou recuperar a condição plena de “segurados” (c) “Os segurados especiais legais”, segundo as categorias ocupacionais medidas pela PNAD, abrangem: “pessoas ocupadas de 10 anos ou mais, na atividade agrícola, nas posições de ocupação – conta própria, membro não remunerado de apoio a produção e trabalhadores na produção para próprio uso”.As crianças de 10 a 16 anos deveriam ser excluídas desse grupo, por critério legal. Ainda pela lei em vigor, algumas atividades não agrícolas e formas de assalariamento parcial deveriam ser incluídas na noção de “segurado especial”. Mantivemos o dado original das crianças e deixamos de incluir pluriatividades e assalariamento parcial por razões estritamente operacionais. (d) A população economicamente ativa dos três anos considerados é: 83,24 milhões (2001); 96,03 milhões (2005), e 97,53 milhões (2006)."
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Mercado de trabalho e tendências demográficas Dois indicadores básicos do mercado de trabalho e da demografia sintetizam do presente ao futuro as influências dessas variáveis sobre a estruturação do sistema previdenciário: i) a proporção dos segurados sobre a “PEA”; ii) a relação de dependência, medida pela proporção de População Inativa (0-14 e 60+) sobre a População Ativa (de 15 a 59 anos). A primeira relação reflete indiretamente o crescimento do emprego, e particularmente do emprego formal, em comparação com o crescimento da PEA, dando-nos a informação precisa sobre o tamanho do setor protegido pela previdência social na força do trabalho. É, portanto, uma medida de inclusão previdenciária, novo nome do princípio de universalização de acesso, desde a promulgação da EC 47/2005. A segunda variável-chave, estritamente demográfica – a relação de dependência Inativos/Ativos –, reflete no tempo a evolução da estrutura demográfica de um país e sugere conseqüências para sustentação dos sistemas previdenciários. Essa relação é bem estruturada estatisticamente, previsível e comparável para vários países a períodos relativamente longos. Mas a relação econômica “Segurados/PEA”, fortemente dependente dos ciclos econômicos e normativos de filiação previdenciária, não é estatisticamente previsível para longos períodos, tal o grau de incerteza com que é afetada pelas variáveis econômicas e políticas do mercado de trabalho. Por outro lado, a história econômica recente, dos anos 50 do século passado até o presente, revela ciclos de filiação fortes (1950-1980), desfiliação severa (1981-2000), e recuperação da filiação entre 2001-20082, cujas tendências a futuro são processos em definição, seja pela dinâmica expansiva do ciclo econômico, seja pela natureza do Estado de bem-estar que venha a prevalecer nas próximas décadas. Por seu turno, as variáveis demográficas de maior peso sobre o sistema - “relação de dependência”, “proporção de idosos na população”, e “população em idade ativa (PIA) em proporção do total” -, medidos em 2005 e projetados a 2050, revelam a situação brasileira relativamente confortável em termos comparativos internacionais (ver Tabela 2). Observe-se que na comparação internacional com grandes países (em termos combinados de população, território e PIB), a “relação de dependência” (Inativos/Ativos) do Brasil apresenta a terceira menor posição, tanto em 2005 quanto em 2050, mostrando razoável distância da média desses países. Já em relação à proporção de idosos na população, nossa posição é muito favorável em 2005 (8,8% da população), atinge 25% em 2050, mas ainda é a 3ª mais baixa do grupo. Finalmente, o indicador “percentual da População em Idade Ativa (PIA)” revela 2. Para uma análise dos ciclos de filiação previdenciária no período 1980-2005, ver Delgado, G. (2008) op.cit. 179
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Seguridade Social
que, se de um lado ocupamos posição comparativamente razoável, estamos perdendo no futuro próximo (2050) o caráter relativamente jovem da população, e ingressando numa pirâmide demográfica mais próxima da média internacional. Esses dados sugerem que haverá conseqüências inevitáveis sobre variáveis internas do sistema – “os estoques de benefícios em manutenção” –, e indiretamente sobre as condições de financiamento, analisadas na próxima seção. Tabela 2 Estrutura etária e relação de dependência em 2005 e 2050 para nove grandes países. (**) 2005 Países
Relação de Dependência
Argentina Alemanha Brasil Canadá China Estados Unidos França Índia Japão
0,676 0,650 0,579 0,550 0,477 0,600 0,647 0,666 0,675
% da PIA (15-59) 59,6 60,6 63,3 64,5 67,7 62,5 60,7 60,0 59,7
2050 % de Idosos na Pop. 60+
Relação de Dependência *
% da PIA (15-59)
13,9 25,1 8,8 17,9 10,9 16,7 21,1 7,9 26,3
0,742 0,966 0,745 0,906 0,876 0,776 0,949 0,639 1,227
57,4 50,1 57,3 52,4 53,3 56,3 51,2 61,0 44,9
% de Idosos na Pop. 60+ 24,8 35,0 25,0 31,8 31,0 26,4 33,0 20,7 41,7
"Fonte: “World Population Prospects. The 2004 Revision” – Divisão de População das Nações Unidas. * Relação de dependência é calculada pela razão entre a População Inativa (0 – 14 anos acrescida da População de 60+) e a PIA (Pop. em Idade Ativa)(15 a 59 anos). ** Tabela extraída de: Bienstar y Política Social (2005), p.90 op.cit.
As mudanças favoráveis do mercado de trabalho (aumento da relação Segurados/ PEA) e as mudanças suaves, mas firmes, da longevidade da população são pistas para política de longo prazo, cujo perfil e sentido se definem pelas regras de direito e de custeio do sistema (seção 5).
Evolução dos estoques de benefícios do sistema Os “estoques de benefícios em manutenção” são uma variável síntese da cobertura física do sistema, como também de sua despesa previsível, porquanto a taxa de variação dos estoques é a taxa de variação real da despesa, antes que se considere o reajuste real dos “preços” dos benefícios previdenciários. Mas além de qualquer consideração estritamente empírica, é importante considerar que há fortes componentes de caráter normativo (regras de concessão), demográfico (tempos de duração e de cessação dos benefícios) e laboral (proporção de segurados na PEA com direito a benefícios) que afetam a dinâmica de crescimento dos estoques. A isto se somam os fatores estritos de gestão, que de certa forma independem das variáveis estruturais. 180
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A experiência histórica dos últimos 26 anos (1980-2006) revela trajetórias relativamente fortes de crescimento dos benefícios, cujas taxas máximas de incremento se dão no período 1991/99 (5.27% a.a. - ver Tabela 3), refletindo mudanças normativas no período; e cujas mínimas (1999-2006) expressam os efeitos posteriores da Reforma da Previdência de dezembro de 1998, como também de algumas melhorias de gestão havidas no período. Tabela 3 Taxas de incremento médios dos estoques físicos de benefícios da previdência social (1980-2006) Aposentadoria por Tempo de Serviço ou Contribuição
Aposentadoria por Idade
Aposentadoria por Invalidez
Pensão por Morte
Auxílio Doença
Outros
1980/1991 1991/1999
6,60 10,20
4,51 8,60
4,40 1,02
6,64 3,67
-2,63 0,43
5,70 11,66
5,02 5,27
1999/2006
2,08
3,67
3,25
2,76
16,54
1,28
3,60
Benef. / Período
Total
Fonte: AEPS - Anuário Estatístico de Previdência Social – Suplemento histórico 2002 e anos subsequentes.
Essa estrutura de benefícios, dinamicamente representada na Tabela 3, está fortemente concentrada em três motivos previdenciários: i) tempo à aposentadoria (Aposentadoria por Tempo de Contribuição: 31,7% e Aposentadoria por Idade: 22,2%); ii) pensões (24,4%), e iii) riscos por incapacidade física (Aposentadoria por Invalidez: 11,9% - Auxílio Doença: 8,8%). Esses três conjuntos de benefícios corresponderam a 99% do total em estoque no final de 2006. Dada essa estrutura de benefícios e sua dinâmica de crescimento nos três períodos referidos na Tabela 3 (antes da Constituição de 1988; depois da Constituição -até a EC 20/1998-, e a partir de 1999), a questão que se coloca como desafio de longo prazo diz respeito à trajetória futura desses estoques. Essa trajetória é afetada pela atuação de dois fatores estruturais levantados na seção precedente: o aumento proporcional (desejável) da proporção dos segurados na PEA, e a tendência de longo prazo de elevação da relação de dependência - Inativos/Ativos. Sem entrar no mérito sobre a qualidade das previsões quantitativas de longo prazo, há, contudo, um imperativo de lógica formal que nos leva a admitir aumento previsível das taxas de incremento dos estoques por três caminhos: i. diretamente proporcional ao volume físico dos segurados; para benefícios sem carência (pensões) ou de baixa carência (benefícios por incapacidade) - nos dois casos há pressões de curto prazo sobre os estoques; ii. diretamente proporcional ao incremento dos segurados/PEA, mas com defasagem de 10 a 15 anos, relacionada à carência a ser observada nas aposentadorias devidas ao tempo; 181
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iii. proporcional à duração média dos benefícios em estoque, que crescem associados à maior longevidade das pessoas. Isso posto, há fortes razões para se prever que os estoques em manutenção deverão crescer nas próximas décadas a patamares iguais ou superiores aos observados nos anos 80 e 90.
Regras de direito previdenciário e estratégias de longo prazo da política social Das seções precedentes emergem informações relevantes para planejar a política de longo prazo da previdência social, que se expressariam basicamente no seu Plano de Benefícios e na sua estrutura orçamentária constitucional. Mas as informações técnicas, conquanto relevantes, são insuficientes para definir rumos de futuro, sem que se esclareça sobre que futuro de sociedade e de Estado se está mirando. Uma orientação conservadora de política pública observa o ciclo ascendente de filiação previdenciária apenas como um problema fiscal para o futuro, em razão da pressão que este exerceria sobre os “estoques de benefícios em manutenção”. Uma visão populista-imediatista defenderia a ampliação de valores e duração dos benefícios dos atuais beneficiários, ignorando expectativas de direito de todos os segurados e implicitamente a necessidade de incluir os cerca 40% da PEA que ainda estão fora da proteção previdenciária. Por sua vez, uma proposta de inclusão dos excluídos da previdência, que tenha coerência e consistência, terá que considerar três condições essenciais: i. manutenção por pelo menos mais uma década do ciclo ascendente de filiação, que pressupõe crescimento econômico médio em torno de 5%; ii. mudança nas regras de longo prazo das aposentadorias por tempo de contribuição, substituindo a atual “Lei do Fator Previdenciário” pelo limite de idade, juntamente com outras atualizações; iii. criação de um Fundo Previdenciário de longo prazo, em anexo ao Orçamento da Seguridade Social, para fazer face à demanda crescente por benefícios, que deverá ocorrer a médio prazo. A condição “i” pressupõe crescimento econômico, mas lhe imprime o caráter expansivo dos direitos sociais básicos à população excluída do sistema. Isto implica que haja programas de subvenção às alíquotas contributivas às famílias sem suficientes rendimentos para ingressar na garantia do benefício mínimo. 182
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A condição “ii” é de ajuste às tendências de longo prazo - demográficas e do mercado de trabalho. Mas essa condição não pode estar isolada da condição “i”, sob pena de recair no escopo restritivo das reformas conservadoras. A condição “iii” é essencial para que se enfrente o desafio do financiamento do sistema de direitos sociais básicos. Ignorá-la impede que se avance na linha da universalização de direitos. Esta, por seu turno, tem como conseqüência inevitável incrementar os “estoques de benefícios” para níveis que requerem aportes fiscais crescentes. Isso não é nenhum espantalho explosivo, como querem os conservadores, nem tampouco uma solução mágica, que se resolve por declaração de princípios. A idéia do Fundo de Financiamento de longo prazo, que pode vir ligada às tratativas em curso de vinculação dos royalties” da exploração do petróleo do Pré-Sal, deveria acudir as necessidades de financiamento do Regime Geral, principalmente nos anos 20 do Século XXI, quando previsivelmente os estoques de benefícios se acelerariam fortemente. Conquanto de longo prazo, a proposta precisaria ser implementada de imediato, se possível com status Constitucional.
Referências Bibliográficas DELGADO, Guilherme C. Critérios para uma Política Previdenciária de Longo Prazo para a Previdência Social. In: FAGNANI, E., WILNES. H., LÚCIO, C.G. (orgs). Debates contemporâneos, economia social e do trabalho, 4: Previdência Social: como incluir os excluídos? Uma agenda voltada para o desenvolvimento econômico com distribuição de renda. São Paulo: LTr, 2008, p. 502-517 DELGADO, Guilherme C., QUERINO, Ana Carolina. Inclusión Previsional e Assistencial em Brasil (1988-2005): Alcances y Limites. Bienestar y Politica Social. v. 1, n.1, Segundo semestre de 2005. Universidad Ibero Americana. México, p. 83-102
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A previdência rural: um dos grandes avanços da Constituição Federal de 1988 Jane Lucia Wilhelm Berwanger1
Introdução Passados 20 anos da promulgação da chamada Constituição Cidadã, ainda há dificuldade em se entender o ideário nela desenhado de previdência social para o meio rural. Diferente do modelo antes vigente na legislação brasileira e, ao mesmo tempo, incluindo trabalhadores até então praticamente excluídos do sistema, essa inclusão promoveu profundas modificações na vida dos trabalhadores rurais. Queremos, ao colaborar com esta tão importante obra, demonstrar o impacto produzido por este “capítulo” da Constituição Federal. Partiremos, inicialmente, da análise da proteção anterior, até mesmo pela absoluta necessidade de compreensão histórica, pois muitos dos que não compreendem desconhecem o que levou o constituinte a incluir essa população no sistema previdenciário. Em seguida, faremos uma abordagem sucinta dos segurados rurais, com a nova formatação de Regime Geral de Previdência Social e dos benefícios estendidos a essa população. Não poderíamos deixar de abordar o financiamento da Seguridade Social, que passa também pela contribuição do meio rural. Por fim, falaremos do impacto social causado pela previdência social no meio rural, a partir da legislação infraconstitucional, que, por determinação da Constituição, passou a abarcar também essa camada da população.
1. Advogada, mestre em Políticas Públicas e Inclusão Social pela Universidade de Santa Cruz do Sul, conselheira da 18ª Junta de Recursos da Previdência Social, assessora da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul, professora de Direito Previdenciário na Graduação da UNISC, na Pós-Graduação da UNISC, da FADISMA, da FEEVALE, do CETRA, da UNICURITIBA, do IDC, da AJURIS, e do IMED; integrante do Conselho do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário. Autora da obra Previdência Rural – Inclusão Social (Juruá) e capítulos de livros de Direito Previdenciário e Sindical. 185
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A tímida previdência antes da Constituição de 1988 Até a Constituição atual a inclusão dos trabalhadores do campo era extremamente pequena, tanto no que se refere ao atendimento (público), bem como no que diz respeito à cobertura (riscos protegidos). Até 1971 tivemos apenas tentativas de inclusão dos camponeses na previdência: a Lei nº 4.214, de março de 1963 (primeira versão do Estatuto do Trabalhador Rural), sem que tivesse sido regulamentada; o Decreto-Lei nº 276, de 28 de fevereiro de 1967, regulamentado pelo Decreto 61.554, de 17 de outubro de 1967, que introduziu a contribuição sobre a produção comercializada, mas não trouxe, de fato, benefícios previdenciários, limitando-se aos serviços de saúde; o Decreto-Lei 564, de 1º de maio de 1969, que intentava benefícios, mas que começou a ser aplicado na indústria canavieira, não chegou a se expandir, nem mesmo com o Decreto nº 65.106, de 5 de setembro de 1969, que o regulamentou. Finalmente, após essas tentativas frustradas, foi editada a Lei Complementar nº 11, de 25 de maio de 1971, que introduziu o PRORURAL – Programa de Assistência do Trabalhador Rural. Somente o chefe de família, em geral o homem, tinha acesso ao sistema que, por seu conceito e características, era mais assistencial do que previdenciário propriamente dito. As mulheres e filhos de agricultores não eram considerados segurados desse programa, apenas eram beneficiários da pensão por morte. O chefe ou arrimo de família tinha direito à aposentadoria por velhice (aos 65 anos de idade), aposentadoria por invalidez, ambas no valor de meio salário mínimo. O dependente que comprovasse o pagamento das despesas de sepultamento tinha direito ao ressarcimento, através do auxíliofuneral, de um salário mínimo. Esse era, em suma, o modelo de acesso dos trabalhadores rurais ao sistema previdenciário-assistencial, antes da atual Constituição Federal.
A inclusão dos trabalhadores rurais: reconhecimento da profissão e dignidade A elaboração de uma nova Constituição era a oportunidade de os trabalhadores rurais escreverem uma previdência mais inclusiva, mais adequada ao público e às necessidades de campo. Nesse sentido, inicialmente, a equiparação de direitos sociais, entre rurais e urbanos, foi fundamental. Celso Ribeiro Bastos leciona que “a própria discriminação entre o que seja um trabalhador rural e um urbano perde, portanto, muito da sua razão de ser”2.
2. BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 407. 186
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Assim, a partir da nova realidade constitucional, os trabalhadores rurais passariam a ter os mesmos direitos dos urbanos. Embora tenha levado quase três anos para ser editada, a legislação infraconstitucional (leis nº 8.212 e 8.213, de 24 de julho de 1991) incluiu expressamente os empregados rurais como segurados obrigatórios do Regime Geral de Previdência Social: São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas: I – como empregado: a) aquele que presta serviço de natureza urbana ou rural à empresa, em caráter não-eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração, inclusive como diretor-empregado; Agora, expressamente incluídos, ainda permanece um problema fático: o alto índice de informalidade no campo. Soares diz que: ... o setor patronal rural é um dos piores empregadores do país, a ponto de 70% dos assalariados rurais brasileiros sequer terem registro em carteira, além dos casos de trabalho forçado que são recorrentes. Enfim, o patronato rural desrespeita, de forma contumaz, os direitos sociais e trabalhistas dos assalariados rurais, além de gerar pouco emprego3. Os trabalhadores que exercem atividades eventuais no meio rural igualmente foram incluídos, sendo tratados como contribuintes individuais. Trata-se dos diaristas, bóias-frias, eventuais, etc. Conforme Leandro Paulsen e Simone Barbisan Fortes, o trabalho eventual é: ... aquele contratado em função de um dado evento, para a realização de um serviço específico, cuja execução dá-se por tempo certo ou relativamente previsível. Em regra, o nível de instrução e qualificação profissional não é muito elevado, e pela natureza do trabalho realizado, há subordinação deste em relação ao contratante, que será quem dirigirá o lavor, porém a prestação dos serviços é ocasional, de forma que não se verifica a presença do elemento habitualidade, o que descaracteriza a existência de relação de emprego4. No entanto, a grande revolução provocada pela Constituição Federal, em matéria de previdência para o setor agrícola, foi a criação da figura do segurado especial. Embora não assim intitulado na redação constitucional, a base do conceito encontra-se no art. 195, § 8º da CF/88:
3. SOARES, Adriano Campolina. Multifuncionalidade da Agricultura Familiar. In: Comércio Internacional, segurança alimentar e agricultura familiar. Rio de Janeiro: ActionAid Brasil, 2001. p. 85-94. 4. FORTES, Simone Barbisan; PAULSEN, Leandro. Direito da Seguridade Social: prestações e custeio da previdência, assistência e saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005..p. 67. 187
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Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: § 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei. A partir desse parâmetro formou-se o conceito do segurado especial que, após várias modificações, entre as quais a exclusão do garimpeiro, encontra-se assim definido na Lei de Custeio (Lei 8.212/91): Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas: VII – como segurado especial: a pessoa física residente no imóvel rural ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros a título de mútua colaboração, na condição de: a) produtor, seja proprietário, usufrutuário, possuidor, assentado, parceiro ou meeiro outorgados, comodatário ou arrendatário rurais, que explore atividade: 1. agropecuária em área de até 4 (quatro) módulos fiscais; ou 2. de seringueiro ou extrativista vegetal que exerça suas atividades nos termos do inciso XII do caput do art. 2o da Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, e faça dessas atividades o principal meio de vida; b) pescador artesanal ou a este assemelhado, que faça da pesca profissão habitual ou principal meio de vida; e c) cônjuge ou companheiro, bem como filho maior de 16 (dezesseis) anos de idade ou a este equiparado, do segurado de que tratam as alíneas a e b deste inciso que, comprovadamente, trabalhem com o grupo familiar respectivo. Se, conforme já falado, antes da Constituição apenas o chefe ou arrimo de família era segurado, agora estão incluídos o cônjuge ou companheiro e os filhos. Para as mulheres isso teve um significado além do econômico. Conforme já nos referíamos em outra ocasião: Pelo contato constante com a população rural, também observamos que o 188
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valor da aposentadoria, para as mulheres agrícolas, embora possa ser menor – quantitativamente – do que o resultado da produção de leite, grãos, enfim da atividade produtiva, qualitativamente tem uma importância muito maior5. No mesmo sentido, Anita Brumer, ao analisar os impactos da inclusão previdenciária para as trabalhadoras rurais: É preciso salientar o valor simbólico do recebimento do benefício pelas mulheres. [...]de pessoas que, na terceira idade, passavam à condição de dependentes dos companheiros, filhos ou de outros parentes ainda em idade ativa, elas se tornam provedoras e administradoras de um dos poucos recursos existentes na unidade familiar de produção com entrada regular, mês a mês.6 Apesar de, no início, as mulheres terem enfrentado dificuldades em acessar os benefícios, tendo em vista a falta de documentos em nome próprio, hoje, isso está superado e o acesso é mais amplo, admitindo-se, tanto para esposa como para os filhos, documentos de membros do grupo familiar. Por outro lado, as trabalhadoras rurais também atenderam ao chamado de documentar a sua profissão que, agora, com a inclusão previdenciária, é reconhecida pelo Estado e pela sociedade. A inclusão das mulheres e dos filhos, além de atender ao disposto no já transcrito art. 195, § 8º, também demonstra respeito ao princípio da uniformidade, equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, que, no dizer de Hilário Bocchi Junior, “deve-se à histórica diferença que o legislador ordinário sempre dispensou ao trabalhador rural, cerceando direitos anteriormente previstos apenas para os trabalhadores urbanos”7. Verifica-se, portanto, que a inclusão desse público – mulheres e jovens trabalhadores rurais –, além de demonstrar o reconhecimento do trabalho e da profissão, também levou dignidade a essas pessoas, que foram promovidas de ajudantes a trabalhadores.
O acesso aos benefícios pelos trabalhadores rurais Na mesma linha de inclusão adotada para o público, que passa a fazer parte da previdência social, com a unificação dos trabalhadores urbanos e rurais no Regime Geral de Previdência Social, os benefícios estendidos aos trabalhadores do campo também passam a ser mais amplos. Os empregados rurais e contribuintes individuais (assim compreendidos os 5. BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm. Previdência Rural: inclusão social. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. p. 138. 6.BRUMER, Anita. Gênero e Previdência Social Rural no Sul do Brasil. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/pgdr/textosabertos/ Texto%20Anita-G%EAnero%20e%20previd%EAncia%20social-portugues-2001.pdf> Acesso em: 05 nov. 2005. 7. BOCCHI JR, Hilário. A igualdade (uniformidade e equivalência) dos trabalhadores urbanos e rurais no acesso aos benefícios previdenciários. São Paulo: LTr, 2006. p. 71. 189
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enquadrados no art. 12, inc. V, alínea g da Lei 8.212/91) passaram a ter os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos enquadrados nessas condições. Contudo, tendo em vista a inclusão recente, a lei previu, para os rurais, uma regra de transição especial. Inicialmente, a Lei 8.213/91, no seu art. 143, previa que esses trabalhadores não precisariam comprovar contribuição, mas tão somente a atividade rural para acessar os benefícios de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-reclusão, pensão por morte ou aposentadoria por idade, todos no valor do salário mínimo. Com a edição da Lei 9.032/95, essa possibilidade passou a ser restrita à aposentadoria por idade, com prazo inicialmente previsto para julho de 2006, ampliado para dezembro de 2008 pela Medida Provisória 410/07, e, por fim, recentemente prorrogado para 31 de dezembro de 2010, com a edição da Lei 11.718/08. Os segurados especiais, embora constassem regra de transição na redação do art. 143, contam com regra permanente. Assim dispõe o art. 39, da Lei 8.213/91, sobre a aposentadoria por idade e os demais benefícios: Art. 39. Para os segurados especiais, referidos no inciso VII do artigo 11 desta Lei, fica garantida a concessão: I – de aposentadoria por idade ou por invalidez, de auxílio-doença, de auxílioreclusão ou de pensão, no valor de 1 (um) salário mínimo, desde que comprove o exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período, imediatamente anterior ao requerimento do benefício, igual ao número de meses correspondentes à carência do benefício requerido; ou II – dos benefícios especificados nesta Lei, observados os critérios e a forma de cálculo estabelecidos, desde que contribuam facultativamente para a previdência social, na forma estipulada no Plano de Custeio da Seguridade Social. Parágrafo único. Para a segurada especial fica garantida a concessão do salário-maternidade no valor de 1 (um) salário mínimo, desde que comprove o exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, nos 12 (doze) meses imediatamente anteriores ao do início do benefício. Eduardo Rivera Palmeira Filho esclarece que, em relação ao segurado especial, não há a exigência propriamente dita de carência, uma vez que não converte contribuições mensais, como no caso dos segurados urbanos., o que não significa dizer que não há contribuição dessa categoria8. A prova da atividade rural, por vezes, se mostra complexa. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2005 havia 17,8 milhões de pessoas ocupadas em atividade agrícola no Brasil, o que representava 20,5% de todas as 8. PALMEIRA FILHO, Eduardo Rivera; Os Benefícios Previdenciários do Segurado Especial no Regime Geral de Previdência Social. In: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm; FORTES, Simone Barbisan. Previdência do Trabalhador Rural em Debate. Curitiba: 2008. p. 239-260. . 190
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pessoas ocupadas no país. Em 2007 eram 16,6 milhões (18,3% do total de ocupados). Havia 4,9 milhões de empregados em atividade agrícola em 2005, número reduzido para 4,7 milhões em 2007. No total dos empregados em atividade agrícola, a parcela com carteira de trabalho assinada que representava 32,1%, em 2005, agora é de 35,3%.9 São pessoas que trabalham efetivamente e, por essa razão, devem estar amparadas pela previdência social. E a lei reconhece a especificidade do trabalho no campo e por isso conta com regras próprias para essa população. Nesse sentido, a normatização do INSS se mostra deveras flexível, sendo o bastante início de prova material, não se exigindo uma prova por ano10. A atividade rural pode ser exercida individualmente, pois assim prevê o já transcrito art. 11, inc. VII da Lei 8.213/91, mas se for exercida em regime de economia familiar, a normatização, a doutrina e a jurisprudência admitem que sejam utilizados pelos demais membros do grupo familiar os documentos que constam em nome de um deles. E não poderia ser diferente, porque, devido a questões sociológicas e culturais, em geral, os documentos de propriedade que comprovam a produção agrícola estão em nome de um dos membros da família, em geral do homem (pai).
As contribuições dos trabalhadores rurais Os empregados rurais e contribuintes individuais (diaristas, bóias-frias, etc) contribuem da mesma forma que os trabalhadores urbanos, embora, como já dito, para acessar o benefício da aposentadoria por idade necessitam apenas provar a atividade rural. Já os segurados especiais contribuem de forma diferenciada: sobre o resultado da comercialização da produção, como manda o § 8° do art. 195 da Constituição Federal. A Lei de Custeio (Lei 8.212/91) apenas reproduziu o disposto na Constituição, estendendo-a, porém, ao empregador rural, nesse caso em substituição à contribuição sobre a folha de salários. Assim dispõe a lei: Art. 25. A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incs. I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inc. V e no inc. VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de: I – 2% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção; II – 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para
9. Dados extraídos do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <www.ibge.gov.br> Acesso em: 29 set. 2008. 10. Sobre isso ver Instrução Normativa n° 20, de 10 de outubro de 2007 e Portaria n° 170, de 25 de abril de 2007. 191
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financiamento das prestações por acidente do trabalho.11 Além de estar expressamente prevista na Constituição, essa forma de contribuição leva em conta o princípio da eqüidade. Se a produção é a renda que eles auferem, esta deve ser a base de cálculo. Exigir desses segurados uma contribuição baseada no salário mínimo ou em outro parâmetro seria atribuir-lhes uma renda fictícia. É de conhecimento público que a receita da produção rural é sazonal. O agricultor, geralmente, não tem renda o ano todo, mas somente em períodos de safra. Mais expressivo que isso, para nossa análise, é que a renda do segurado especial não provém de outra fonte que não da produção agrícola12. A Lei 11.718/08 inclui dois parágrafos importantes no art. 30 da Lei 8.212/91: § 8º Quando o grupo familiar a que o segurado especial estiver vinculado não tiver obtido, no ano, por qualquer motivo, receita proveniente de comercialização de produção deverá comunicar a ocorrência à Previdência Social, na forma do regulamento. § 9º Quando o segurado especial tiver comercializado sua produção do ano anterior exclusivamente com empresa adquirente, consignatária ou cooperativa, tal fato deverá ser comunicado à Previdência Social pelo respectivo grupo familiar. O primeiro dispositivo, que depende de regulamentação, prevê a necessidade de o segurado especial informar a inexistência de comercialização de produção. O § 9° prevê a obrigação de informar a comercialização da produção no ano anterior, somente para empresa adquirente. Entendemos que a inclusão desses dispositivos busca combater a sonegação, que, conforme Delgado, é elevada. Ele constatou, tomando por base o ano de 1995, um valor de comercialização de pouco mais de R$ 100 bilhões. Aplicando-se a alíquota de 2%, a receita deveria ser de R$ 2 bilhões. Entretanto, a arrecadação naquele ano foi de R$ 440,42 milhões, ou seja, 22% do potencial, evidenciando alto índice de evasão fiscal13. Como muito bem lembra Sette14, o segurado especial pode contribuir facultativamente à previdência social com 20% sobre o salário-de-contribuição. Aqui vale lembrar que aquele que optar por essa forma de contribuição para aumentar o salário-debenefício, não muda seu enquadramento, não passa a ser contribuinte individual, muito menos segurado facultativo, pois o requisito básico para ser facultativo é não ser obrigatório, e o segurado especial continua sendo obrigatório, mesmo contribuindo facultativamente.
11. A lei atual reproduziu a regra anterior, prevista na Lei Complementar 11/71, porém esta exigia também contribuição das empresas, destinada ao financiamento do então Pro-Rural. 12. BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm. Previdência Rural: inclusão social. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. p. 160. 13. DELGADO, Guilherme da Costa. Política de Previdência Social Rural: Análise e Perspectiva. In: Raízes, n. 18, p. 46-78, set. 1998. 14. SETTE, André Luiz Menezes Azevedo. Op. cit., p. 425. 192
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O impacto social da previdência no meio rural Além do que já falávamos ao destacar a importância da inclusão de todos os trabalhadores rurais na previdência social, da ampliação da base de cobertura e do valor dos benefícios, o impacto dessa inclusão vai além dos próprios beneficiários. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 1997, divulgada pelo Ministério da Previdência Social, aponta dados significativos nesse sentido: De acordo com o levantamento, as aposentadorias e pensões abrangem 71,2% do total de rendimentos das famílias que vivem no campo no Nordeste e 41,5% no Sul. Desses percentuais, 43% dos entrevistados estão à frente de um estabelecimento rural ativo no Nordeste e 48% no Sul. E a agricultura é a atividade preponderante em 85% dos domicílios consultados no Nordeste, enquanto no Sul a taxa é de 72%15. Uma análise apresentada pela ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil - comprova essa afirmação: em 60% dos municípios brasileiros, os benefícios previdenciários, com o incremento da previdência social na área rural, têm representado mais do que o Fundo de Participação dos Municípios16. Entre outros autores, Delgado17 sustenta que o Brasil encontrou na previdência rural um caminho institucional frutuoso para proteção social mínima na previdência social, sugerindo que esse sistema seja estendido a outros trabalhadores. No mesmo sentido, Helmuth Scwartzer, ao prefaciar obra sobre o tema: ... a Previdência Rural tem um papel muito relevante em termos de distribuição de renda e combate à pobreza, no fortalecimento das estruturas sociais e produtivas da agricultura familiar, evitando também migração rural-urbana e assegurando a produção de alimentos no Brasil.18 Sabemos que esses benefícios movem a economia dos pequenos municípios; injetam recursos na produção agrícola, portanto, gerando empregos; evitam o êxodo rural, pois mantêm as pessoas no campo, já que possuem renda para sua subsistência, enfim, se de fato há subsídio à previdência rural, subsídio que não necessitaria ser tão elevado não fosse o alto índice de sonegação ou desvio das contribuições, ele se justifica pelos benefícios diretos e indiretos que esse sistema promove. 15. Instituto De Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Pesquisa de Avaliação Sócio-econômica e Regional da Previdência Social Rural – Fase II. Brasília: IPEA, 1998 (banco de dados). p. 21. 16. ANFIP. Estudos de Seguridade Social, Salário Mínimo e Previdência. Brasília: Athalaia, 2000. p. 49. 17. DELGADO, Guillherme da Costa. “Colaboração Fome Zero” p. 196. 18. BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm; FORTES, Simone Barbisan. Previdência do Trabalhador Rural em Debate. Curitiba: Juruá, 2008, p.328. 193
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Conclusões Quem conhece, estuda e analisa o impacto da inclusão previdenciária dos trabalhadores rurais não consegue nem imaginar o campo sem os benefícios concedidos a milhares de agricultores. Basta ver que são mais de sete milhões de benefícios, em sua maioria de salário mínimo, mas que mantêm famílias por vezes numerosas. A previdência precisa ser lida de forma mais humana, na medida em que são pessoas, cidadãos, que dedicaram a vida toda ao trabalho, à produção de alimentos, e que enfrentaram toda sorte de dificuldades, tais como intempéries, preços baixos, falta de crédito e, com idade avançada ou com dificuldade de trabalhar, merecem o mínimo de dignidade que cabe ao Estado. Analisar a previdência dos trabalhadores rurais apenas do ponto de vista da relação custo-benefício, como se fosse uma empresa tendo que garantir lucros, demonstra falta de compreensão da razão de existir de um sistema previdenciário. Se a previdência está aí para amparar o trabalhador na velhice e nas situações de incapacidade para a atividade, ela deve estar presente, de forma ampla, para os trabalhadores rurais, simplesmente porque são TRABALHADORES.
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O financiamento da Seguridade Social e os vinte anos da Constituição de 1988 Wagner Balera1 Os estreitos limites do trabalho que se me pede são apenas suficientes para abordagem de um dos tópicos da vasta problemática da Seguridade Social, e especialmente considerando os vinte anos decorridos desde a promulgação da Lei Magna de 1988. O caráter público do sistema atende aos objetivos que lhe são próprios mediante cotizações suportadas por toda a sociedade, em condições diferenciadas. O esquema de financiamento da Seguridade Social foi aperfeiçoado na Constituição de outubro de 1988 e as sucessivas reformas da Lei das Leis deram continuidade a esse processo de aprimoramento. A primeira nota a merecer destaque fora introduzida de modo indireto no contexto do sistema, pela inserção, no art. 40 da Constituição, da expressão “de caráter solidário”. Verdadeira expressão da solidariedade social, o sistema de Seguridade demonstra, no Estado moderno, a recíproca preocupação dos atores sociais com o futuro. Sem embargo, identificado com as seqüelas do seguro que lhe serviu de modelagem histórica, o sistema ainda se assenta na relação sinistro/prêmio. Quem paga faz jus à prestação pela qual pagou e, após haver pago a sua cota, não mais responde pelo financiamento do sistema. O vetor da solidariedade pode operar mudança nessa concepção, impondo a todos, sem distinção, responsabilidades de custeio do sistema, no seu todo considerado. Percebe-se, de pronto, que essa linha de raciocínio não pode ser aplicada ou aceita apenas e tão somente no que concerne aos regimes de previdência. Obviamente o seu maior alcance é, e será sempre, mais amplo no terreno da assistência. Há, pois, uma solidariedade entre os integrantes da mesma classe, a justificar desde o antigo esquema das sociedades de socorros mútuos até as mais modernas manifestações da previdência social e privada.
1. Livre-Docente de Direito Previdenciário; Professor Titular da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 197
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Há outra solidariedade entre as distintas categorias sociais da produção, de modo que a empresa custeia as prestações devidas aos empregados. O segundo vetor de aperfeiçoamento do sistema foi implementado adequadamente pela Constituição que, a meu juízo, alcançou a maioridade – no particular – com a reforma implementada pela Emenda Constitucional n. 20, de 1998. Recordemos, inicialmente, com RUBENS GOMES DE SOUSA, que o modo de ser do fenômeno contribuição assim se explica: “é um tributo cobrado de uns em beneficio direto de outros”. Entendo que o critério constitucional apto a operar a harmonização entre as diversas contribuições de Seguridade Social instituídas pela Constituição e, posteriormente, ampliadas pelas diversas Emendas Constitucionais já se encontrava presente, de modo implícito, no Texto de 1988. Trata-se de critério genérico, implícito no ideário do plano de custeio, elemento indispensável à compreensão do fenômeno contribuição ao sistema de Seguridade Social. É o plano de custeio que, ao estabelecer a estimativa das despesas a partir das receitas que potencialmente serão auferidas pela Seguridade Social, deve estimar consideradas as variáveis estatísticas, demográficas e institucionais relevantes - o grau de risco da atividade de cada empresa a fim de determinar qual a parcela de responsabilidade social com que deve arcar aquela categoria de contribuinte. O cálculo atuarial das contribuições sociais deverá considerar quem aufere mais lucro empregando menos mão-de-obra; quem fatura mais utilizando equipamentos que agridem menos o meio ambiente do trabalho, etc. Esse critério pode, só aparentemente, contrapor-se ao antes referido da solidariedade. Mas, como afirmo, é só aparência. De fato, a solidariedade não impõe isonomia entre desiguais. Dessa maneira, só seriam mantidas as desigualdades. A responsabilidade solidária surgirá, de modo mais adequado, sempre que aqueles a quem as estruturas econômicas e sociais proporcionem melhores oportunidades também se disponham – e a tanto, se for o caso, sejam obrigados – a cooperar de modo mais expressivo com o bem estar geral. De certo modo, o § 4º do art. 239 da Constituição, mesmo cuidando apenas de uma das diversas contribuições destinadas ao custeio do sistema, impunha a eqüidade entre as empresas. 198
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Agora, porém, todas as contribuições sociais devidas pelas empresas devem ser diferenciadas segundo critérios que levem em conta o perfil da massa protegida. Eis o que estabelece o art. 195, § 9º, preceito inserido pela Emenda Constitucional n. 20, de 1998, e alterado pela Emenda Constitucional n. 47, de 2005: § 9º As contribuições sociais previstas no inciso I do caput deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão-de-obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho. Percebo nessa redação que, mediante aperfeiçoamentos sucessivos, o comando situa a comunidade dos contribuintes como co-responsável pela proteção devida a todos e, conforme a característica da empresa, sua participação no custeio poderá se dar de modo diferenciado. Logo, ao dado tributário da capacidade contributiva acrescenta-se o dado previdenciário da eqüidade no custeio, manifestação da rigorosa diferenciação no risco que o plano de custeio será capaz de explicitar. A incidência de maior ou menor alíquota sobre a base imponível é o critério que irá estabelecer, para o conjunto dos contribuintes, a eqüidade no custeio, expressão constitucional da isonomia no terreno das contribuições para a Seguridade Social. Quem ostenta maior lucro, pelo só fato de lucrar mais, pode, e deve, pagar maior imposto sobre a renda, mas não pode e nem deve pagar maior contribuição sobre o lucro se a respectiva atividade é representativa de grau de risco menor para os trabalhadores que prestam serviços a essa empresa lucrativa. Quem se vale de intensiva utilização de mão-de-obra deve, porque prestigia o valor social do trabalho, aportar contribuições calculadas por uma alíquota menor. O critério elementar para a combinação entre contribuições residirá na relação entre a vantagem diferencial e o especial dispêndio que a atividade do contribuinte e o agir do Estado traz para a Seguridade Social. Percebeu GERALDO ATALIBA: “Nem se pode impor contribuição a uma espécie ou faixa de pessoas, para acorrer a despesas com outra categoria, sem a evidente presença de nítida correlação entre contribuintes e beneficiários, destinatários da atividade ou organismo assim custeado.”. Quando estará atingido o ideal constitucional da eqüidade no custeio? Com a oportuna elaboração de amplo mapa de riscos, apto a aferir as distintas situações das empresas. O embrião desse instrumento é a relação das atividades segundo o grau de risco, baseado no CNAE. Trata-se, porém, de dado prévio e insuficiente. Os bancos de dados 199
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oficiais já dispõem de outros elementos aptos a proporcionar melhor definição do perfil dos contribuintes para o efeito que se pretende. Ao mesmo tempo em que cuidou de deixar melhor delineado o perfil constitucional dos contribuintes, o legislador não abandonou uma prática nefasta que consiste na autorização para a utilização das contribuições de Seguridade Social com outros dispêndios que não são de saúde, de previdência social ou de assistência social. Deveras, desde a edição da Emenda Constitucional de Revisão n. 1, de 1994, o legislador permitiu que parcela do produto da arrecadação das contribuições de Seguridade Social fosse desviada de suas finalidades essenciais e passasse a compor as receitas da própria União. Presentemente, a Emenda Constitucional n. 56, de 2007, dando continuidade a essa absurda e irresponsável prática, segue permitindo que vinte por cento (!) de toda a arrecadação de contribuições sociais seja desviada de suas finalidades. Portanto, desde 1994 e até o ano de 2011, vultosos recursos arrecadados para o atendimento da saúde, da previdência social e da assistência social não são aplicados nos programas e atividades dessas áreas. Os Poderes do Estado brasileiro justificaram todas as intervenções redutoras dos direitos sociais constitucionais, que perpetraram em 1998, 2003 e 2005 com um único argumento: o do déficit do sistema de Seguridade Social. Mas prosseguiram autorizando escandaloso desvio de recursos que, desde 1994, se concretiza a cada ano. O que nos leva a concluir que está comprovada a inexistência de déficit no sistema de Seguridade Social, tese que venho defendendo desde a primeira reforma previdenciária (cf. o meu Aspectos Gerais da Reforma Previdenciária, publicado na RDS n.10/2003) em plena conformidade com as conclusões da Comissão Especial da Câmara dos Deputados que concluíra, contrariamente ao que sustentava o Poder Executivo, que: “a Previdência financia o Tesouro”. Na mesma linha de raciocínio tem se posicionado a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, que organiza o presente volume, sustentando que o sistema de Seguridade Social é superavitário. E, mais recentemente, a professora DENISE GENTIL demonstrou, de modo irrefutável, que a Seguridade Social é superavitária, assim como é igualmente superavitário o subsistema da previdência social (Cf. A política fiscal e a falsa crise do Sistema de Seguridade Social Brasileira – Análise financeira do período de 1990-2005. Rio de Janeiro, Tese de Doutoramento, Instituto de Economia/UFRJ). Nada justifica esse estado de coisas que retarda, de modo injustificável, os 200
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passos da caminhada da Seguridade Social no rumo da universalidade da cobertura e do atendimento. Cito, só para encerrar, a violência que se cometeu contra os pobres com os moldes atuais de implementação do benefício de prestação continuada definido constitucionalmente no art. 203. O legislador, possivelmente impressionado pelo falso argumento da falta de recursos, impôs a descabida comprovação de renda familiar per-capita de ¼ do saláriomínimo como exigência para a concessão daquela prestação assistencial. Isso significa que só a miserabilidade extrema será assistida pela LOAS. Enquanto tal estado de coisas perdurar, não comemoremos com festa os vinte anos da Constituição Cidadã.
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Direitos previdenciários, previsibilidade e eficácia Wladimir Novaes Martinez1
1. Papel das prestações A razão científica de ser da previdência social é propiciar condições de subsistência ao ser humano quando não desejar ou não puder exercer a atividade profissional ou econômica que garanta a sua subsistência e a de sua família, na maior parte dos casos por perda da aptidão laboral, em virtude de idade avançada ou, no caso brasileiro, em decorrência do longo tempo de serviço. Teve sua origem em 1883, na remota Alemanha de Otto von Bismarck, focada nos benefícios por incapacidade laboral. A previdência social suscita dois aspectos que a norteiam: a) ser modalidade de seguro social quando se ajuíza com as prestações imprevisíveis, e b) ser poupança individual, até mesmo com algum viés de aplicação financeira, em relação às prestações que envolvam o tempo de serviço. As prestações constituem o principal instrumento para consumar a proteção social; elas realizam o escopo dessa expressão da Seguridade Social. São o leit motiv da previdência social, sua atividade-fim.
2. Tipos de prestações No rol dos benefícios previdenciários do RGPS estão contempladas várias prestações, a cada uma delas correspondendo uma contingência protegida pela legislação. Elas podem ser consideradas a partir do sinistro coberto pelo seguro social. Assim, a gravidez, o nascimento e a educação referem-se ao salário-maternidade e ao salário família. No passado, um auxílio-natalidade de pequeno valor. A incapacidade para o trabalho do segurado, seja de origem ocupacional ou não, faz pensar no auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e auxílio-acidente. Quando ela se refere a um dependente, a condição de inválido. 1. Advogado especialista em direito previdenciário. 203
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A idade avançada gera a aposentadoria por idade, voluntária ou compulsória. O tempo de serviço, a aposentadoria do professor e a por tempo de contribuição, num caso particular que envolve a insalubridade, aposentadoria especial. A prisão deflagra o auxílio-reclusão. A morte, desaparecimento ou ausência do segurado outorga a pensão por morte aos dependentes. No passado, um auxílio-funeral, também de pequeno montante. Por último, as comemorações do Natal, o abono anual.
3. Tábuas biométricas Os benefícios imprevisíveis continuam sendo um grande desafio para os pensadores atuários, o calcanhar de Aquiles dos matemáticos e especialistas em finanças do seguro social. Num regime financeiro de repartição simples e benefício definido, como é o RGPS, os questionamentos técnicos ampliam-se significativamente. O fato de essas prestações estarem de fato substituindo um singelo segurodesemprego induz os segurados a requererem o auxílio-doença como meio de subsistência provisória. O desemprego e as dificuldades para obter posto de trabalho após os 45 ou 50 anos e a própria debilidade física laboral puseram em confronto requerentes e médicos peritos (em muitos casos, até chegando ao desforço físico), problemas não solucionados até hoje. O MPS deve cogitar um seguro-desemprego igual ao modelo espanhol, custeado pela empresa (leia-se um consumidor), tornando possível adiar o momento da aposentadoria (Subsídios para um Modelo de Previdência Social para o Brasil, São Paulo: LTr, 2008). Atribuir a perícia médica a uma junta médica terceirizada (constituída de um examinador do INSS, um indicado pelos sindicatos e um terceiro do Poder Judiciário), a fim de propiciar uma vez subsistente rotatividade desses profissionais e de despersonalizar a relação pessoal, poderá solucionar parte dos conflitos jacentes nas relações entre segurados e INSS. Mas é possível que toda a política ministerial relativa às prestações por incapacidade esteja focada na relação entre financiamento dos benefícios, de tal sorte que a tábua biométrica de acidentalidade do RGPS reste superada. Equívocos desse tipo já sucederam: veja-se a impropriedade de definição do fator previdenciário. Adota-se uma apuração nacional, unissexual e de toda a população. Deveria ser regional e bissexual, ou seja, dividir o país em regiões e separar as expectativas de vida do homem e da mulher e ser somente dos segurados da previdência social. 204
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Reproduzindo frase célebre de George King: “A tábua de mortalidade é o instrumento destinado a mediar as probabilidades de vida e de morte”. Newton Cezar Conde a define como o meio de se medir “a expectativa de vida e de morte dos participantes e se invalidar. Não se tem certeza de por quanto tempo cada participante irá receber o benefício, motivo pelo qual se baseia na experiência biométrica pré-calculada” (Atuária para Não Atuários, São Paulo: ABRAPP, 2008, p. 51). Ele recomenda uma tábua hodiernizada, porque “para se obter uma tábua de algum valor teórico e prático, é necessário aliar-se um grande volume de dados e um período recente de observação” (ob. cit., p. 54).
4. Benefícios previsíveis e imprevisíveis Didaticamente, aquelas prestações ainda são classificadas conforme elas sejam programadas e não programadas. Programadas, aquelas em que é possível determinar pelo menos um dos eventos determinantes (idade na aposentadoria por idade e tempo de serviço no caso do professor, aposentadoria por tempo de contribuição especial). Não programadas, aquelas que sobrevêm inesperadamente (prestações por incapacidade dos segurados e pensão por morte ou auxílio-reclusão dos dependentes). Efetivamente sem utilidade nos tempos modernos, os benefícios ainda são classificados como de pagamento continuado mensal e anual e de pagamento único (apenas o pecúlio, que está em extinção). Os de pagamento continuado são divididos em duração indeterminada e determinada (salário-família e salário-maternidade).
5. Eficácia das prestações A despeito de toda a crítica que a previdência sofra e que ela não seja compreendida pela população vítima das distorções da política de reajustamento e falta de ousadia do MPS de convocar a sociedade para pagar o que deve aos beneficiários, as prestações são importantes para as famílias. Segundo estudos da ANFIP, em cerca de 2.500 municípios pobres, a receita do município é inferior ao repasse do INSS, transformando a previdência social no maior mecanismo de distribuição de rendas do País.
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6. Análise crítica Duas prestações estão cientificamente sub judice: a) a aposentadoria especial (NB 46), desde a Lei n. 9.032/05, e b) a aposentadoria por tempo de contribuição (NB 42), a partir da EC n. 20/98. 6.1 - Aposentadoria Especial Em 1960, quando foi concebida no art. 31 da LOPS, a aposentadoria especial foi idealizada para os trabalhadores que se submetessem às condições laborais que pusessem em risco a sua saúde ou a sua integridade física em caráter habitual e permanente. Cobria a penosidade, a periculosidade e, principalmente, como sucede desde 5 de março de 1997, com exclusividade a insalubridade (Decreto n. 2.172/97). Com o passar do tempo, além de eliminar o limite mínimo de idade de 50 anos, acabou sendo estendida a categorias que não a justificavam (caso dos dirigentes sindicais); sobreveio a eleição de um elevado número de profissionais, a maior parte dos quais sem qualquer justificativa técnica (Anexo III do Decreto n. 53.831/64 e I/II do Decreto n. 83.080/79). Outro aspecto que contribuiu para que o MPS revisse a definição do benefício (processo que demandou seis leis (!), dezenas de decretos e uma infinidade de instruções normativas) foi a emissão das declarações fornecidas pelas empresas (SB-40, DISES BE 5235, DSS 8030, DIRBEN 8030), mais tarde substituídas pelo LTCAT e PPP que, à evidência não refletiam a realidade laboral (Decreto n. 4.032/01). A falta de experiência no trato da proximidade da Medicina, Higiene e Segurança do Trabalho por parte do INSS criou, e ainda cria, enormes dificuldades para a compreensão dos agentes nocivos físico, químico e biológico. Sem falar no ergométrico e psicológico. O equívoco da ODS n. 600/98, exigindo laudo técnico para períodos anteriores a 29.4.95, afrontando o ato jurídico perfeito, gerou a Ação Civil Pública n. 2000.71.00. 0030345-2, com sérios danos para a credibilidade da instituição. A conversão do tempo especial para o comum foi outro avatar que revelou o despreparo no trato dessas espinhosas questões. Mesmo sabendo-se válido no plano técnico, esse instituto previdenciário foi maltratado pela Administração Pública: vigente uma norma constitucional que a veda (EC n. 20/98), o Poder Executivo baixou o Decreto n. 4.827/03 — acompanhando o entendimento doutrinário, mas arrostando a norma constitucional, autorizando a conversão para qualquer período. A confusão espraiou-se para o Poder Judiciário criando o seguinte surrealismo: o INSS convertia e converte qualquer tempo especial e o STJ, somente até 28.5.98 (que, felizmente, nesses últimos meses mudou de 206
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orientação). A leitura da variada legislação sobre a aposentadoria especial, a contar da database 28 de abril de 1995, mostra que a intenção do MPS é de pôr fim ao benefício. Fernando Gonçalves Dias apurou no site da previdência social que, em 1995, foram concedidas 44.028 aposentadorias especiais, e que, em 2005, somente 804 benefícios dessa espécie foram deferidos (“Aposentadoria Especial: uma prestação em extinção”, São Paulo: LTr, in Jornal do 27º Congresso Brasileiro de Previdência Social, 2008, p. 38). A prova da insalubridade do ambiente de trabalho é um enorme desafio para o trabalhador que julga ter-se exposto aos agentes nocivos. A prova está nas mãos da empresa (conclusão longeva que levou o Direito do Trabalho a valorizar o depoimento testemunhal na Justiça do Trabalho e que suscitou o poder de fixar o Nexo Técnico Epidemiológico da Lei n. 10.430/06, à perícia médica do INSS, ex vi do Decreto n. 6.042/07 (Prova e Contraprova do Nexo Epidemiológico, São Paulo: LTr, 2008). 6.2 - Aposentadoria por tempo de contribuição Considerando-se a idade mínima do servidor, fixada na EC n. 41/03, de 60 anos (homens) e 55 anos (mulheres) — o Governo Federal chegou a pensar em cinco anos mais — e que para se atingir um fator previdenciário equivalente a 1,00, garantidor do mesmo valor de antes da Lei n. 9.876/99, exigir-se mais do que 35 anos de serviço e 60 de idade, — é perceptível que estamos nos aproximando do fim da aposentadoria por tempo de contribuição. A proporcional desapareceu com a EC n. 20/98. Com efeito, nos países organizados, somente a Itália tem algo semelhante e está programado para ser extinto. O Brunei, Equador e Zaire, que também o mantém, não servem como paradigma. Em todo o mundo a idade mínima aumenta todo ano. Se quisermos manter esse tipo de beneficio, teremos de rever o nosso segurodesemprego (Modelo, ob.cit.). Mas, se o empresariado nacional não apoiar a idéia e alegar que, devido à concorrência, é difícil transferir o custo para o a sociedade (como sempre o fez), a solução será acabar com o benefício. Um outro alvitre é dividir o plano de benefícios do RGPS em dois tipos: a) para a aposentadoria por tempo de contribuição e idade, capitalização e contribuição definida, e b) para os benefícios de risco, repartição simples e benefício definido (como é atualmente). Em todo o caso, se prosperar a idéia de acabar com o fator previdenciário (mal concebido, mal urdido e mal vendido pelo MPS) que, de alguma forma introduzia a correlatividade pessoal entre a contribuição e o benefício, mantenha-se o período básico 207
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de cálculo começando em junho de 1994 nos termos da Lei n. 9.876/99. Caso contrário, parcelas da população obreira, a que tem mais informação, viverá às custas dos despossuídos: será uma perversa solidariedade social não sonhada por Eloy Marcondes de Miranda Chaves. Todo empreendimento coletivo conhece alguém que o concebeu e o impulsiona, promovendo aqui e ali as correções necessárias dos desvios históricos. A previdência social é uma técnica de proteção monumental em números, importância pessoal, com a particularidade de envolver gerações. Per se enfrenta um grande problema que é desfazer a ínsito egoísmo do ser humano e a disposição de querer levar vantagem em tudo. Ela tem de ser pensada e às vezes reformulada em movimento, dinamicamente a partir dos elementos pré-jurídicos que estão esperando para influenciá-la: a) baixo nível de emprego; b) natalidade decrescente; c) esperança média de vida em alta, e d) empresariado nacional preferindo deslocar recursos para investimentos. Isso sem considerar a não mensurada epidemia ou até endemia de inaptidão para o trabalho. Para ser pensada tem de haver alguém que o faça — pessoa física — e não instituições. Estas costumam ser canibalizadas pelos próprios membros na fogueira das vaidades (Scipio Sighele “A multidão criminosa”, Lisboa: Livraria Clássica Editor, 1911). O CNPS não tem força política nem poder para tanto, e o Governo Federal não consegue convencer o Poder Legislativo, que, nessa hipótese excepcional, tem de abrir mão da sua atribuição de legislar e autorizar a Presidência da República a organizar a previdência social com leis delegadas. Alguém precisa pensar a previdência social em Brasília e tem de ser um servidor apaixonado, competente e sério do tipo Celecino de Carvalho, Geraldo Arruda, Marcelo Vianna Estevão de Morais, Inocêncio Mártires Coelho, etc., para vislumbrar de cima a erosão sistemática do sistema. No passado, Armando de Oliveira Assis, Moacyr Veloso Cardoso de Oliveira e Francisco Eduardo Barreto de Oliveira. Autorizar os micros empresários com faturamento anual até R$ 36.000,00 (Decreto n. 6.042/07) a participar do regime especial dos informais (fugindo do RGPS), isentar as EBAS, marketing da previdência aberta e a possibilidade de a previdência associativa esvaziar o INSS (Resolução CGPC n. 12/02), calcular o auxílio-doença (quem está incapaz, paga quatro meses pelo teto e, se lograr convencer a perícia médica de que a DII é posterior à inscrição, recebe cerca de R$ 2.500,00), são soluções que comprometem o sistema. É possível que a arrecadação crescente no primeiro semestre de 2008 vá convencer o legislador de que ele deve criar mais um benefício, esquecendo-se de que os atuais 208
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trabalhadores, filiados e inscritos numa economia aquecida, amanhã vão pedir benefício. Quem está auditando o escancarado descumprimento do princípio da precedência do custeio? A IN INSS n. 29/08, sem amparo legal, ampliou de 7 meses e 15 dias para 13 meses e 15 dias o período de manutenção da qualidade de segurado do facultativo (gerando benefícios). Onde está a fonte de custeio para sustentar essa extensão válida? Como o efeito talvez seja inexpressivo diante dos grandes números, isso não vai fazer falta, mas de grão em grão a galinha enche o papo (dito popular).
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Os desafios da previdência social na agenda recente do movimento sindical brasileiro Clemente Ganz Lúcio1 “Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos Quem assinou isso por mim”. José Saramago em “Ensaio sobre a lucidez”. A Seguridade Social e, mais especificamente, a previdência social são atualmente temas da agenda nacional pelo peso que têm no orçamento da União, e pela relação deste com os recursos públicos necessários aos investimentos que garantam as bases econômicas e sociais ao crescimento. Há aqui uma disputa interminável de diferentes dimensões assentada em concepções distintas do papel do Estado e da organização da sociedade. Mas a previdência social é também um assunto da agenda microeconômica, pelo que representa para as empresas, em termos do custo do trabalho, e para os trabalhadores, pelo conflito entre a renda presente, necessária para a reprodução da vida aqui e agora, e o financiamento da renda futura pós-vida laboral. A pobreza e o baixo nível dos rendimentos do trabalho colocam o financiamento da previdência como disjuntivas dramáticas para os trabalhadores – manter a renda presente ou inverter parte desta para preparar a renda futura. Essas duas forças divergentes conformam um grande problema e dão magnitude ao desafio que se agrava quando observamos a dimensão da informalidade, que coloca mais de 1/3 dos trabalhadores fora do sistema previdenciário, sejam como contribuintes e/ou como beneficiários. A nossa opção é abordar a previdência social como parte do sistema de proteção social do trabalhador, identificando o sujeito beneficiário (o trabalhador) como centro do arranjo político-social historicamente construído, e em permanente disputa e reconstrução. Tal sistema reconhece o trabalho como atividade que produz riqueza social e o atributo de “sujeito que trabalha” como um dos critérios para distribuí-la. Desse ponto de vista, 1. Diretor Técnico do DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos; membro do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social; sociólogo. 211
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Seguridade Social
a Seguridade Social e, parte dela, a previdência social, constitui-se simultaneamente em política distributiva, com maior ou menor grau de equidade a depender das regras do seu financiamento e dos critérios de acesso aos seus benefícios. Desse ponto de vista, a previdência social está no cerne da ação sindical. Cabe aos dirigentes sindicais promover a reflexão permanente no seio da classe trabalhadora sobre a renda para a vida presente e a vida futura, sobre os meios para viabilizá-las e, enfim, sobre as maneiras de distribuir a riqueza gerada pelo trabalho.
O Fórum Nacional da Previdência Social No início do segundo mandato, o Presidente Lula, por meio do Ministério da Previdência Social, convocou o debate sobre o futuro da previdência social no Brasil. Pelo Decreto nº 6.019, de 22/01/2007, foi criado o Fórum Nacional da Previdência Social - FNPS, com composição tripartite, com representantes do governo, do empresariado e dos trabalhadores (da ativa e aposentados). O decreto de instituição do Fórum já indicava seus objetivos: promover o debate, com vistas ao aperfeiçoamento e à sustentabilidade dos regimes de previdência social e sua coordenação com as políticas de assistência social; subsidiar a elaboração de proposições legislativas e normas pertinentes; e apresentar as conclusões das discussões ao ministro de Estado da Previdência Social. Com as reuniões iniciando em março de 2007, foram oito meses de trabalho, ao longo dos quais uma ampla agenda foi tratada, com longos e calorosos debates. O Fórum foi organizado em dois grandes momentos: •
Na primeira fase, vários especialistas convidados pelo Ministério da Previdência aportaram informações e análises sobre temas relacionados à agenda dos debates para subsidiar a reflexão dos membros do Fórum. A questão que estava colocada era: quais os desafios para a previdência social nos próximos 50 anos?
•
Na segunda fase, com o apoio de mediador externo, os representantes dos segmentos sociais presentes no Fórum debateram e formularam propostas de mudanças necessárias para garantir a viabilidade financeira e social do sistema previdenciário do país no longo prazo, considerando os desafios identificados no primeiro momento do Fórum.
A bancada dos trabalhadores presente no FNPS foi composta pelas Centrais Sindicais, Contag e representação dos aposentados e pensionistas2. As entidades sindicais 2. Central Autônoma de Trabalhadores - CAT; Central Geral dos Trabalhadores - CGT; Central Geral de Trabalhadores do Brasil - CGTB; Central Única dos Trabalhadores - CUT; Confederação Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos – Cobap; Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - Contag; Força Sindical - FS; Nova Central Sindical de Trabalhadores - NCST; e Social Democracia Social – SDS. Coube ao DIEESE e à Anfip a assessoria à bancada dos trabalhadores. 212
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decidiram organizar e articular sua intervenção como bancada, debatendo previamente a agenda a ser tratada no Fórum.
A agenda dos debates no FNPS Na primeira fase do FNPS foi organizada uma agenda de debates proposta pela Secretaria Executiva do Fórum, conduzida pelo MPS. Essa agenda estruturou os debates em 10 blocos temáticos: •
Mercado de trabalho, formalidade e informalidade e custo da contribuição previdenciária;
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Financiamento e efeitos redistributivos;
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Desenvolvimento rural e previdência social;
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Mulher e previdência;
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Contabilidade da previdência;
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Modelo de gestão;
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Funcionalismo público;
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Assistência social;
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Demografia, em especial a chamada transição demográfica;
•
Experiências internacionais.
O posicionamento da bancada dos trabalhadores Ao final dos trabalhos, a bancada dos trabalhadores, aposentados e pensionistas posicionou-se com a seguinte declaração: 1. Reconhecemos a importância do Fórum como espaço de diálogo entre os atores sociais sobre um tema complexo e de grande relevância para o conjunto da sociedade. 2. Consideramos que o diálogo e a negociação permanentes são meios essenciais para a materialização dos pressupostos que orientaram os trabalhos do Fórum: o compromisso entre as gerações de construção de uma rede de proteção social sustentável e justa. 3. A atuação da bancada dos trabalhadores se orientou pelos seguintes princípios e diretrizes: 213
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•
Reafirmação do conceito de Seguridade Social segundo o que define a Constituição Federal;
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Respeito aos direitos adquiridos;
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Inclusão social e previdenciária pelo direito ao trabalho e pela eliminação da informalidade;
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Sustentabilidade da previdência e da Seguridade Social, conforme as fontes de financiamento estabelecidas na Constituição Federal;
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Livre acesso às informações;
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A equidade como critério para tratar as diferenças.
4. Consideramos como importantes avanços os seguintes pontos consensuais entre as bancadas:
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•
Recriação do Conselho Nacional de Seguridade Social;
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Manutenção do piso previdenciário e assistencial e sua vinculação ao salário mínimo;
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Promoção da formalização do trabalho e universalização da cobertura previdenciária;
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As políticas públicas devem estimular a geração de empregos formais;
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Mudanças na lei do estágio resgatando e reforçando seu caráter pedagógico, evitando abusos e sonegação;
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Fortalecer a fiscalização contra a informalidade e rever a legislação para acelerar a cobrança de dívidas;
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Promover alteração na legislação do seguro-desemprego e de previdência a fim de viabilizar uma forma de contribuição e preservar a condição de segurado;
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Avaliar, aperfeiçoar e implementar políticas de prevenção de acidentes e doenças ocupacionais;
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Manter a diferenciação de critérios de aposentadorias especiais;
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Aprofundar as políticas de prevenção de incapacidade laboral e reabilitação médica e profissional dos segurados em auxílio-doença e benefício por incapacidade;
•
Aprofundar a articulação entre a previdência e o atendimento dos segurados
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pelo sistema público de saúde; •
Aprofundar os mecanismos para a reinserção no mercado de trabalho daqueles com capacidade de trabalho parcialmente comprometida ou afastados por um longo período;
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Criação de novos mecanismos de incentivo à inclusão previdenciária para as diferentes formas de ocupação (informal, intermitentes, sazonais etc.);
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Reconhecer o direito à pensão por morte de companheiro/a homo afetivo/a;
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Reconhecimento da desigualdade de gênero e manutenção do tratamento diferenciado;
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Incentivar e fortalecer a inclusão feminina no sistema previdenciário;
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Fortalecer a gestão quadripartite nos órgãos deliberativos da previdência social;
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Adotar um modelo de gestão que privilegie a modernização e profissionalização da administração previdenciária;
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Adotar nova forma de contabilização do resultado da previdência que propicie maior transparência às suas fontes de financiamento e suas despesas;
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Preservar os critérios diferenciados de contribuição e de acesso aos benefícios previdenciários do segurado especial rural;
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Aprofundar políticas voltadas para trabalhadores rurais e avaliar a redução da desigualdade urbano-rural;
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Realizar estudos e avaliações periódicas sobre as condições do trabalho rural e sua realidade demográfica;
•
Criar mecanismos que promovam a formalização dos contratos de trabalho de assalariados rurais e, em particular, os de curta duração;
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Instituir mecanismo de contribuição ou carência que permitam aos trabalhadores rurais em atividade sazonal contar integralmente os 12 meses de cada ano para acesso aos benefícios previdenciários.
5. Não foi possível construir consensos em relação ao fim do fator previdenciário, pois a condição seria a fixação de uma idade mínima para a aposentadoria e/ou o aumento do tempo de contribuição. Também não houve acordo sobre alterações de regras relacionadas às pensões e aposentadorias por invalidez, tampouco houve consenso sobre qualquer alteração relacionada ao aumento de idade ou de tempo de contribuição para concessão de aposentadorias, pois implicavam em redução/perda de direitos. 215
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A bancada dos trabalhadores, aposentados e pensionistas considera que os esforços desse Fórum devem ter continuidade por meio de um espaço permanente, através da instituição do Conselho Nacional de Seguridade Social, com caráter democrático e descentralizado da Administração, e com a finalidade de articular as políticas sociais nas áreas envolvidas.
Ações recentes e perspectivas Decorrente desse esforço de articulação no FNPS e fruto dos desafios postos para se pensar o futuro da previdência social como parte do projeto de desenvolvimento do país, o Cesit/IE-Unicamp e o DIEESE promoveram, em novembro de 2007, o seminário “Como incluir os excluídos? Contribuição ao debate sobre a Previdência Social no Brasil”, e a publicação dos estudos apresentados3 no evento. Nessa atividade articulamos a presença de dezenas de pesquisadores e gestores de políticas públicas para pensar a questão. Neste ano, a proposta do governo para a Reforma Tributária tem suscitado debates no movimento sindical sobre o financiamento da Seguridade e a importância de preservação, no texto da Constituição, das fontes de recursos exclusivas para a Seguridade. Ainda em 2008 pretendemos iniciar a realização de seminários regionais para debater as questões relacionadas ao desafio da previdência social no Brasil. O objetivo é também criar e manter uma rede de dirigentes sindicais que tratem da previdência social, bem como desenvolver a cooperação ativa entre intelectuais para refletir sobre o tema. Não resta qualquer dúvida para a bancada dos trabalhadores, aposentados e pensionistas sobre a importância de conceber a previdência social como parte integrante do sistema de Seguridade Social que, por sua vez, constitui eixo fundamental do projeto de desenvolvimento. Por outro lado, evidenciou-se a necessidade de termos capacidade técnica de prospecção sobre tendência populacional e mercado de trabalho, bem como segurança para abordar a questão orçamentária e fiscal no sentido amplo, de modo a possibilitar o desenho de cenários futuros, a identificação de riscos e problemas, o monitoramento e, se necessário, a elaboração de propostas para superá-los. Como afirmamos no início deste artigo, a previdência social é um campo em disputa. Para ilustrar, a revista Veja, ao comemorar 40 anos, realizou um seminário abordando 40 propostas para o Brasil. No bloco das propostas para a economia, a primeira que aparece é: “Reforma da Previdência Já: O custo da Previdência é um dos principais motivos pelos quais o Brasil lidera o ranking mundial de juros reais e tem uma carga 3. FAGNANI, Eduardo, HENRIQUE, Wilnês, LÚCIO, Clemente, “Previdência Social: Como Incluir os Excluídos? Uma Agenda Voltada para o Desenvolvimento Econômico com Distribuição de Renda”, da série Debates Contemporâneos, número 4, CESIT/ IE-UNICAMP, LTR, 2008. 216
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tributária de 36% da riqueza produzida pelo país. Ele consome 12% do PIB. Nenhum país emergente consegue crescer de forma acelerada com tamanho peso nas costas. A China e o Chile gastam 3%. A Colômbia, apenas 1%. Se a despesa previdenciária brasileira fosse de 6%, o país economizaria 180 bilhões de reais por ano. Com esse dinheiro, as pessoas e empresas pagariam 17% a menos de impostos, com melhoria da qualidade de vida para todos”. (REVISTA VEJA, nº 2.077, 10/09/08) Essa proposta dá a magnitude do que está em debate e disputa. Esse tema, portanto, continuará na agenda. E se queremos - como bancada dos trabalhadores - uma atuação decisiva para viabilizar a realização de todas as finalidades constitucionais para a Seguridade e previdência, será necessário garantir grande qualidade técnica nas abordagens do tema e permanente capacidade de mobilização social que expresse o interesse coletivo que o movimento sindical representa e catalisa. Que fique claro: o que está em disputa é o projeto de crescimento econômico e desenvolvimento social que queremos para o país e a maneira de alcançá-lo. Não há dúvida, tanto para o lado de lá, como para o lado de cá, de que a Seguridade e a previdência jogam um papel decisivo nesse projeto. Mas os sinais são contrários, os projetos são distintos. Para nós faz toda a diferença termos a construção presente de um projeto assentado na concepção de que parte da riqueza gerada deve financiar um amplo sistema de proteção social. Porém, transformar essa concepção em prática é uma luta social das mais árduas e de duração permanente. E, nessa luta, fará toda diferença, como fez no FNPS, a participação vigorosa do movimento sindical.
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Parte 4. Saúde Pública: o desafio da resolutividade
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O Sistema Único de Saúde e o processo de democratização da sociedade brasileira. Rosa Maria Marques1 Áquilas Mendes2
O SUS e a luta pela democracia A Constituição de 1988 constituiu o corolário de um longo processo iniciado pelo Movimento Sanitarista em meados da década de 1970. Em meio a um contexto marcado pela resistência ao regime imposto pelos ditadores desde 1964, a luta pela construção de um Sistema Único de Saúde, universal e público, configurava-se, no plano da saúde, na concretização pela defesa de direitos fundamentais para o cidadão brasileiro.
Os antecedentes institucionais do SUS e seus pressupostos Desde os anos 1970, o acesso aos serviços de saúde estava em expansão, muito embora de forma “fragmentada e seletiva” (Draibe; Aureliano, 1989) e, desde os anos 1980, foi introduzida na agenda pública a questão da descentralização do sistema de saúde enquanto um tema prioritário, através da formulação do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde, o PREV-SAÚDE. Mas será a partir das Ações Integradas de Saúde - que nasce originalmente como um mero programa do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) -, aprofundada no período da Nova República, com a criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), que a descentralização e a universalização do acesso ganham progressiva viabilidade, na medida em que fortalecem o ingresso, na arena da Reforma Sanitária, de atores políticos fundamentais para a consolidação desse processo: inicialmente, os governadores e, a partir do movimento de “municipalização” setorial, os prefeitos de vários municípios (Ugá; Marques, 2005). Apesar disso, o SUS pressupõe uma ruptura definitiva com o modelo anterior, tendo em vista que: (i) através da instituição do direito universal e integral à saúde, elimina1. Professora titular do Departamento de Economia e do Programa pós-graduado em Economia Política da PUC-SP. 2. Professor Doutor do Departamento de Economia da PUC-SP e da Faculdade de Economia da FAAP/SP, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABRES). 221
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se a característica histórica da segmentação de clientelas do sistema de proteção social brasileiro, voltado para o trabalhador formal, no caso do INAMPS; (ii) rompe-se, ainda, através dele, o modelo de financiamento anteriormente vigente, baseado fundamentalmente em contribuições de empregado e empregador; (iii) introduz-se constitucionalmente uma reorganização político-administrativa: “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”, organizado de acordo com as diretrizes da descentralização, atenção integral e a participação da comunidade (grifos nossos) e, ainda, (iv) define-se como complementar a participação dos prestadores de serviços privados nesse novo sistema (Op. cit.). Tal como mencionado anteriormente, a inserção do SUS na SS refletia, de maneira inequívoca, que o acesso universal e integral à saúde era um direito inerente à cidadania e, por isso, um dever do Estado. Seu financiamento seria garantido pelo conjunto de receitas de seu uso exclusivo (tais como os demais ramos da SS) e por recursos dos Tesouros Federal, estaduais e municipais3.
O SUS e a sua constante luta por recursos4 O primeiro embate do SUS por recursos ocorreu em 1993, poucos anos depois de serem aprovadas as Leis 8.080\90 e 8.142\90, que tratam do direito à saúde de todo cidadão e da participação da comunidade no sistema de gestão, bem como da implantação do SUS e da participação da comunidade na Conferência Nacional de Saúde5. Contudo, aqui somente são destacadas as situações decorrentes de constrangimentos econômicos, especialmente os derivados do esforço de realização do superávit primário (receita menos despesa do governo federal, que exclui os juros devidos), que implicavam ações (vitoriosas ou não) que diminuíam os recursos do SUS ou desvirtuavam seu uso. As situações aqui descritas e analisadas referem-se praticamente ao âmbito federal, embora eventos semelhantes tenham ocorrido nas demais esferas de governo6.
3. Os constituintes definiram que a SS seria financiada por recursos que teriam como base o salário (contribuições de empregados e empregadores); o faturamento (trazendo para seu interior o Fundo de Investimento Social – Finsocial, que deu lugar, em 1991 à Contribuição para o financiamento da SS (Confins)) e o Programa de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/Pasep); o lucro líquido das empresas (contribuição criada pela Constituição, denominada Contribuição sobre o Lucro Líquido - CLL) e a receita de concursos e prognósticos. Além dessas fontes, a Seguridade contaria com recursos de impostos da União, Estados e municípios. Em 1997 veio se somar a esses recursos a Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), extinta em 2007. 4. Esta parte beneficiou-se de Marques e Mendes, 2006. 5. Nesse ano, 15,5% da arrecadação da contribuição de empregados e empregadores, previstos no orçamento da União, não foram repassados para o MS, obrigando-o a realizar um empréstimo junto ao Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT). Para maiores detalhes, ver MEDICI, SOARES e MARQUES, 1994. 6. Vários são os aspectos que evidenciam as iniciativas e medidas realizadas por diferentes governos, depois da promulgação da Constituição de 1988, contra o financiamento da saúde pública. Dentre elas, ressaltam-se: o uso de parte dos recursos da SS para fins alheios às áreas que a integram em 1989 e 1990; a especialização da fonte contribuições de empregados e empregadores para a previdência social; a institucionalização de mecanismos — Fundo Social de Emergência (FSE), Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e Desvinculação de Recursos da União (DRU) — que permitiram o acesso da União aos recursos da SS e, portanto, o seu uso indevido. Para maiores detalhes dessas situações e mesmo das aqui descritas, ver Marques e Mendes (2005). 222
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O objetivo desta parte é mostrar como o Governo, ao se manter refém das metas e orientações econômicas neoliberais, pode estar prejudicando o desenvolvimento de uma das mais importantes áreas sociais, como é a saúde. a) Da aplicação do disposto na Emenda Constitucional (EC) 29/2000 - A base de cálculo para os recursos da União Em 1993, quando o Ministério da Saúde (MS) necessitou realizar o primeiro empréstimo junto ao FAT, os deputados Eduardo Jorge e Waldir Pires elaboraram a Proposta de Emenda à Constituição nº 169 (PEC 169), vinculando recursos para a saúde. Depois disso, várias outras propostas de vinculação foram elaboradas e discutidas no Congresso Nacional, mas somente em 2000 foi aprovada a Emenda Constitucional (EC 29). De acordo com essa emenda, a União deveria alocar, para o primeiro ano, pelo menos 5% a mais do que foi empenhado no orçamento do período anterior, e, para os seguintes, o valor apurado no ano anterior corrigido pela variação do PIB nominal7. Na aplicação dessa disposição, os Ministérios da Fazenda e do Planejamento, responsáveis pela elaboração da proposta orçamentária da União e pela aplicação da política econômica do país, interpretaram que o ano-base seria o de 1999. Já para o MS e para todos os organismos representativos da saúde pública, o ano-base sobre o qual seria aplicado o adicional de 5% seria o de 2000. O resultado dessa diferença de interpretação resultou que o orçamento do MS de 2001 foi diminuído em R$ 1,19 bilhão, o que permitira dobrar os recursos gastos no Programa Agentes Comunitários (considerando a despesa de 2000). b) O descumprir do conceito de ações e serviços de saúde nos Estados e municípios Alguns Estados, para cumprirem o disposto na EC 29, incluíram indevidamente como despesas em ações e serviços de saúde os gastos com inativos da área da saúde, empresas de saneamento, habitação urbana, recursos hídricos, merenda escolar, alimentação de presos e hospitais de “clientela fechada” (como hospitais de servidores estaduais). Esses registros indevidos ocorreram apesar de anteriormente terem sido estabelecidos parâmetros que definiam quais ações e serviços poderiam ser considerados como gastos do SUS. Esses parâmetros foram acordados entre o MS, os Estados e seus tribunais de contas8. Isso também aconteceu em alguns municípios, principalmente com a inclusão 7. Para os Estados e municípios, a EC 29 definia, para o primeiro ano, a alocação de pelo menos 7% de suas receitas de impostos, compreendidas as transferências constitucionais; esse percentual deveria aumentar anualmente até atingir, no mínimo, para os estados, 12%, em 2004, e, para os municípios, 15%. 8. Resolução nº 322 do CNS , de 8 de maio de 2003, homologada pelo Ministro da Saúde. 223
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do gasto com inativos da área da saúde. Além disso, os 15% definidos na EC 29 como o mínimo a ser aplicado em saúde foi tratado como máximo. c) Tentativas de redução do orçamento do Ministério da Saúde A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o orçamento de 2004 previa que os encargos previdenciários da União (EPU), o serviço da dívida e os recursos alocados no Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza fossem contabilizados como gastos do SUS. Contudo, a forte reação contrária do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da Frente Parlamentar da Saúde determinou que o Poder Executivo enviasse mensagem ao Congresso Nacional estabelecendo que, para efeito das ações em saúde, seriam deduzidos o EPU e o serviço da dívida. Em relação ao Fundo da Pobreza, a mensagem era omissa. Essa omissão resultaria na redução de R$ 3.571 milhões no orçamento do SUS. Apesar de diversos e intensos debates terem ocorrido entre entidades vinculadas ao SUS e o Ministério do Planejamento, nada foi modificado sobre essa questão. Somente após o parecer do Ministério Público Federal, contrariando a decisão presidencial e solicitando ao presidente Lula que retirasse o veto ao dispositivo que esclarecia que os recursos do Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza não poderiam ser contabilizados como gastos em saúde, sob pena do orçamento aprovado vir a ser considerado inconstitucional, o Governo recuou. d) A vinculação da EC 29 é objeto da atenção da área econômica. Em fins de 2003, o Governo Federal encaminhou documento referente ao novo acordo com o Fundo Monetário Internacional9, comunicando sua intenção em preparar um estudo sobre as implicações das vinculações constitucionais das despesas sociais — saúde e educação — sobre as receitas dos orçamentos da União, dos Estados ou dos municípios. A justificativa apoiava-se na idéia de que a flexibilização da alocação dos recursos públicos poderia assegurar uma trajetória de crescimento ao país (Ministério da Fazenda, op. cit, p. 3). No âmbito do SUS, a intenção do Governo era tirar do MS a obrigação de gastar, em relação ao ano anterior, valor igual acrescido da variação nominal do PIB; dos Estados, 12% de sua receita de impostos, compreendidas as transferências constitucionais; e, dos municípios, 15%, tal como define a EC 29.
9. O documento referente ao novo acordo com o FMI é dirigido ao seu diretor executivo, Köhler (Ministério da Fazenda, 2003). 224
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e) O orçamento de 2006 do Ministério da Saúde em risco. O projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o orçamento de 2006, encaminhado pelo Governo Federal à Câmara, previa que as despesas com assistência médica hospitalar dos militares e seus dependentes (sistema fechado) fossem consideradas no cálculo de ações e serviços de saúde. Caso essa despesa fosse considerada, os recursos destinados para o MS seriam diminuídos em cerca de R$ 500 milhões. Frente à declaração pública do MS, repudiando essa interpretação, e frente à mobilização das entidades da saúde, o Governo Federal foi obrigado a recuar, reformulando sua proposta. f) Os recursos vinculados da EC 29: resistências da área econômica do Governo Federal. Quando Lula foi eleito pela primeira vez, pensava-se que não havia obstáculos para que finalmente fosse aprovada a regulamentação do financiamento do SUS — EC 29 –, por meio da aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLP 01/2003). Afinal, os temas tratados por ela haviam sido objetos de longa discussão entre representantes dos conselhos municipais e estaduais, do CNS, do MS, dos Tribunais de Contas dos Estados e municípios e das demais entidades associadas à saúde pública. Dentre os itens do projeto de regulamentação, destacam-se dois: a modificação da base de cálculo da vinculação dos recursos da União, passando do valor apurado no ano anterior corrigido pela variação do PIB nominal para 10%, no mínimo, da sua Receita Corrente Bruta. Em 2007, isso corresponderia a um aumento de R$ 20 bilhões na despesa executada pelo MS (R$ 45,8 bilhões). Esperava-se que, com a aprovação da regulamentação da EC 29, os gastos com ações e serviços de saúde passassem da atual faixa, de US$ 150/200 per capita, para a de US$ 250/300, ainda insuficientes para a viabilização do SUS; e o PLP 01/2003, que trata da definição das despesas que seriam consideradas como ações e serviços de saúde e daquelas que não se enquadram nesse conceito. A forma de onerar o SUS vem se agravando a partir de outros setores dos governos federal e estadual, à custa da inclusão nos Fundos de Saúde de gastos como: Bolsa-Família, pela União, e saneamento, alimentação, planos privados de servidores, pagamento de inativos e outros, pelos Estados. Segundo Santos (2007), esses ônus referem-se às famigeradas “caronas”. A regulamentação da EC 29 não se constituiu prioridade no Governo Lula. Sua inclusão na pauta do Congresso, em abril de 2006, deveu-se à ação da Frente Parlamentar da Saúde. Contudo, até hoje a matéria encontra dificuldades para sua aprovação. O interesse do Governo pela regulamentação somente se manifestou quando da discussão sobre a continuidade da CPMF, ao final de 2007. Nessa oportunidade, ele apresentou uma contraproposta ao PLP 01/2003, na qual, no lugar de garantir para a saúde um percentual mínimo das receitas de seu âmbito, propunha um acréscimo escalonado da participação da 225
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CPMF em seu financiamento (que atingiria R$ 24 bilhões em 2011). Pensava o Governo que essa imbricação entre a continuidade da CPMF e o financiamento da saúde iria assegurar a prorrogação dessa contribuição. E muitos comemoraram a aprovação dessa contraproposta na Câmara, esquecendo que ela estava dissociada de uma real preocupação com o presente e o futuro do financiamento do SUS. Mas já que o Senado não aprovou a CPMF, a proposta do Governo para o financiamento da saúde foi abortada. Ainda em 2008, o financiamento da saúde permanece sem resolução. Isso porque, em abril deste mesmo ano, o projeto similar ao PLP nº 01/2003 da Câmara, no Senado — Projeto de Lei do Senado nº 121/2007 — foi aprovado com modificações importantes. A fórmula de cálculo para aplicação pelo Governo Federal, de, no mínimo, 10% da receita corrente bruta, foi alterada por meio da criação de um escalonamento. Isso significa que, em 2008, seriam aplicados 8,5% dessa receita, passando para 9%, em 2009; 9,5%, em 2010; e 10%, em 2011. Esse projeto de regulamentação da EC 29, aprovado em abril no Senado, foi para aprovação na Câmara sob uma nova denominação — PLP 306/2008. Por meio dele, devem ser elevados os recursos para a saúde, dos R$ 48,5 bilhões previstos no Orçamento de 2008, para R$ 60 bilhões, atingindo, em 2011, R$ 94 bilhões10. Na realidade, o que era previsto já para o ano de 2008 estendeu-se para ser efetivado em 2011. Sabe-se que a sua aprovação não conta com o interesse da área econômica do Governo e, neste sentido, todo esforço para o seu bloqueio tem sido realizado. Tanto isso é verdade que o Governo Federal, em junho de 2008, apresentou uma contraproposta. Há tempos, neste ano, que o presidente Lula vem insistindo no argumento de que se há uma demanda do setor por mais recursos, é necessário deixar claro qual a fonte de receita que cobrirá tal solicitação. Dessa forma, o Governo Federal, por meio do deputado Pepe Vargas (PT/RS), apresentou um substitutivo ao projeto 306/2008, criando a Contribuição Social para a Saúde (CSS) com o objetivo de financiar o setor. Tal contribuição pode ser cobrada a partir de janeiro de 2009, nos mesmos moldes da extinta CPMF, com alíquota de 0,1%, somente para pessoas com renda superior a R$ 3.038 por mês. A previsão de arrecadação dessa contribuição é de R$ 11,8 bilhões no primeiro ano, atingindo R$ 56 bilhões para o setor11. Esse montante ainda é menor que o projeto original, com 10% da Receita Corrente Bruta escalonado, isto é, R$ 60 bilhões, conforme mencionado anteriormente. Embora a CSS tenha sido aprovada na Câmara, ainda aguarda sua votação no Senado. Essa versão do texto substitui a redação original do Senado para o Projeto de Lei Complementar 306/08, que regulamenta os gastos mínimos com saúde, como determina a Emenda Constitucional 29. Por sua vez, cabe mencionar que os defensores da construção de uma saúde universal e pública continuam a exigir até que o Governo Federal assegure ao MS a 10. Ver Carvalho (2008). 11. Op.cit. 226
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aprovação do PLP nº 306/2008 original da Câmara dos Deputados. Somente dessa forma seria possível recuperar o gasto da área da saúde, prejudicado há mais de uma década pela lógica de uma política econômica ortodoxa.
A ação combinada entre os entes federados: a municipalização, o papel do governo federal e a presença dos Estados A adoção da descentralização como um princípio de organização do SUS é produto de um longo processo. Iniciado em período anterior à Constituição de 1988 e nela consolidado, sua efetiva construção ocorreu nos primeiros anos da década de 1990, quando assumiu lugar de destaque na agenda do SUS, entre outros motivos, porque os diferentes níveis de governo manifestaram interesses diversos. Esses interesses, somados ao fato de o Governo Federal não apresentar um projeto que delimitasse as responsabilidades de cada esfera de governo, fizeram da descentralização um palco de rivalidades políticas. Um dos principais resultados da descentralização foi o maior comprometimento das esferas sub-nacionais no financiamento da saúde, principalmente dos municípios. Pode-se dizer que essa situação é algo típico dos anos 1990. Isso porque, no período 19801990, a participação do Governo Federal no financiamento foi, em média, de 75,9%. Essa acentuada participação da esfera federal pode ser atribuída ao desenho de política de saúde praticada no país, que tinha na centralização um de seus princípios fundamentais; mas não é pouco importante o fato de a estrutura tributária definir que a arrecadação de impostos e contribuições com as maiores bases de incidência sejam de competência da União. Nos anos 1990, embora a maior parte dos recursos do gasto público em saúde continue de origem federal, sua participação diminuiu consideravelmente, passando de 63,8%, em 1995, para 46,9%, em 200712. Em parte isso se explica pela implementação do SUS, pois ao ficar definido na Constituição, na Lei Orgânica da Saúde – Lei Federal 8.080/90 e nas Normas Operacionais Básicas do SUS – NOB 93 e 96 – como de competência dos municípios a execução preferencial das ações e serviços de saúde, forçou que essa instância de governo destinasse mais recursos para a área da saúde. O outro motivo, nem sempre lembrado, é que os anos de implementação do SUS – o que persiste até 2007 – correspondem àqueles em que a retração do gasto público (especialmente o federal) foi alçada à principal variável na determinação e/ou redução do déficit público, uma das metas a serem cumpridas nos acordos com o Fundo Monetário Internacional e por ele monitoradas. Nesse sentido, não é de se estranhar, portanto, que a participação de recursos de origem federal, destinados à saúde pública, tenha diminuído, 12. Ver www.siops.datasus.gov.br e Carvalho (2008). 227
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e aumentado a participação dos Estados e municípios. Devido ao esforço desses entes federados, a participação no total do gasto público passou de 18,8% e 17,4%, em 1995, para 25,8% e 27,3%, em 200713, respectivamente. Contudo, é importante observar que a queda da participação dos recursos federais no financiamento da saúde pública não significa sua diminuição do papel exercido na determinação da política de saúde no país. O Governo Federal continua sendo o principal responsável pelos recursos, como também a participação dos municípios no financiamento está pulverizada no território nacional. As conquistas advindas da descentralização do SUS trouxeram para a agenda do gestor de saúde a necessidade de promover inovações nos processos e instrumentos de gestão, com o intuito de alcançar maior efetividade e eficiência da resposta do sistema às necessidades de saúde da população. É nesse cenário que se inscreve o Pacto pela Saúde, entre os três níveis de direção do SUS — MS, Secretarias de Estado da Saúde e as Secretarias Municipais de Saúde — regulamentado pela Portaria GM/MS nº. 399, de 22 de fevereiro de 2006, e pela Portaria GM/MS nº. 699, de 30 de março de 2006, que conformam um conjunto de mudanças articuladas em três dimensões: em Defesa do SUS, pela Vida e de Gestão. Esse último, o Pacto de Gestão, estabelece diretrizes operacionais para a gestão do sistema nos aspectos: Descentralização, Regionalização, Financiamento, Planejamento, Programação Pactuada e Integrada, Regulação, Participação e Controle Social, Gestão do Trabalho e Educação na Saúde, além de introduzir a possibilidade de co-gestão, reconhecem a autonomia dos entes no cenário federativo brasileiro e definindo a responsabilidade sanitária de cada gestor do SUS. Espera-se que a implantação desse processo supere a fragmentação das políticas, contribuindo para um financiamento da saúde mais eqüitativo e pela qualificação da gestão no SUS.
O SUS e a melhora das condições de saúde do povo brasileiro Apesar das dificuldades inerentes do quadro de desigualdade e das restrições impostas pelo lado da economia, a implantação do Sistema Único de Saúde foi acompanhada de melhora das condições de saúde do povo brasileiro. Como se sabe, o SUS constitui-se no maior projeto público de inclusão social em menos de duas décadas, com significativos resultados ao longo desse período. Santos (2008) e Carvalho (2008a) comprovam essa situação. Registre-se em 2007: 95% dos municípios 13. Op.cit. 228
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dispõem de 110 milhões de pessoas atendidas por agentes comunitários, entre os quais 92%, com 87 milhões atendidos por 27 mil equipes do Programa de Saúde da Família (PSF); 2,8 bilhões de procedimentos ambulatoriais; 619 milhões de consultas médicas; 11,5 milhões de internações; 360 milhões de exames laboratoriais; 2,5 milhões de partos; 28 milhões de ações de vigilância sanitária; 150 milhões de vacinas; 15 mil transplantes, 215 mil cirurgias cardíacas, 9 milhões de seções de radio-quimioterapia e o controle mais avançado da AIDS no terceiro mundo, com cobertura de 184 mil pessoas. Esses avanços foram alcançados em virtude da significativa descentralização de competências com ênfase na municipalização, assim como na criação e funcionamento das comissões intergestores. De um lado, foi implantada a Comissão Tripartite Nacional, composta por representantes do MS, dos secretários estaduais de saúde, por meio do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) e dos secretários municipais de saúde, via Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems). De outro lado, foram criadas as comissões bipartites estaduais, formadas pelos representantes das Secretarias de Estado e dos municípios, por meio dos Conselhos de Secretários Municipais de Saúde – Cosems. Além disso, para a garantia da gestão dos recursos da saúde, foram estabelecidos os fundos de saúde com repasses do fundo nacional de saúde aos fundos estaduais e municipais, com a respectiva fiscalização dos conselhos de saúde, com destacada participação dos usuários do SUS no acompanhamento desses recursos e na execução de uma das maiores políticas públicas do país. Por fim, Noronha et al.(2005), ao analisarem as informações disponíveis no banco de dados do Ministério da Saúde (DATASUS), destacaram uma série de indicadores que explicitam a melhoria das condições de saúde da população brasileira. Entre eles, cabe salientar: i. queda da mortalidade geral, de 6,3 para 5,6 por mil habitantes, entre 1980 e 2002; ii. queda da mortalidade infantil, de 45,3 para 25,1 por mil nascidos vivos, entre 1990 e 2002. Segundo esses autores, essa diminuição parece estar relacionada ao aumento da cobertura do saneamento básico, do abastecimento de água, dos serviços de saúde, dos programas de saúde materno-infantil, das campanhas de vacinação e dos programas de aleitamento materno e reidratação oral. Nesse último ano, o Estado de Alagoas, localizado na região nordeste, indicava uma taxa de 52,6 por mil nascidos vivos, e a região sul, 16,1/1000 NV (MS, 2006); iii. mudança no perfil da mortalidade por causas. Em 1980, entre as cinco primeiras causas definidas de óbito, estavam: doenças do aparelho circulatório, causas externas, doenças infecciosas e parasitárias, neoplasias e doenças do aparelho respiratório. Em 2000, as doenças infecciosas e parasitárias, diretamente relacionadas ao abastecimento de água, ao tratamento de esgoto sanitário e à disposição do lixo, 229
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deixam de integrar as cinco primeiras causas. Por fim, a respeito do impacto do PSF, devem ser citados dois exemplos dos resultados divulgados pelo MS. Em relação à proporção de óbitos em menores de 1 ano de idade por causas mal definidas, diz o MS: “a variação média anual desse indicador revela que quanto mais elevada a faixa de cobertura do PSF do grupo de municípios, maior a queda na proporção de óbitos infantis por causas mal definidas” (Op, cit, p. 90). Em relação à taxa de mortalidade infantil, nos municípios com IDH baixo, a redução foi tanto maior quanto mais elevada a cobertura do PSF (Op. cit. p. 171).
Referências Bibliográficas CARVALHO, G. A Conjuntura do Financiamento na Semana de 29-6 a 5-7”. Campinas. Idisa, 2008. Disponível em: http://www.idisa.org.br. Acesso em: set.2008. ____. “20 anos de SUS-cesso na conquista do direito à vida-saúde do brasileiro”. Campinas. Idisa, 2008a. Disponível em: http://www.idisa.org.br. Acesso em: set.2008. DRAIBE, S; AURELIANO, L. “A especificidade do Welfare State Brasileiro”, 1989. Mimeo. ESCOREL, S.; NASCIMENTO, D.R.; EDLER, F.C. “As origens da Reforma Sanitária do SUS”, In LIMA, N. T.; GERSCHMAN, S.; EDLER, F.C.; SUÁREZ, J.M. (orgs.) Saúde e Democracia: história e perspectiva do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. MARQUES, R. M., MENDES, A. “Democracy and Universality, debating the conditions of applyng such concepts to Brazil’s public health actions and services”. Well-being and Social Politics. , v.2, p.71 - 96, 2006. MEDICI, A., SOARES, L. T., MARQUES, R. M. Saúde no contexto da Seguridade: Dilemas de Financiamento. In Saúde e Debate. Revista do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde. Rio de Janeiro, v.44. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Carta de intenção, 2003. Disponível em: <http://www. fazenda.gov.br>. Acesso em: dez.2004. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde da Família no Brasil – Uma análise de indicadores selecionados – 1998 – 2004. MS, Brasília, 2006. NORONHA, J. C. de, PEREIRA, T. R. e VIACAVA, F. “As condições de saúde dos brasileiros: duas décadas de mudanças (1980 – 2000)”. In LIMA, N. T.; GERSCHMAN, S.; EDLER, F.C.; SUÁREZ, J.M. (orgs.) Saúde e Democracia: história e perspectiva do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. 230
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Rompendo com as amarras no financiamento das políticas públicas de saúde Sérgio Francisco Piola1 Solon Magalhães Vianna2
Introdução Não foram poucos os avanços obtidos desde que a Constituição Federal de 1988 determinou que as “ações e serviços públicos de saúde” passassem a integrar uma rede regionalizada e hierarquizada e a constituir “um sistema único” (CF, art 198). Os resultados dessa opção da sociedade brasileira, mesmo ainda não sendo plenamente satisfatórios, são expressivos. Eles podem ser encontrados, por exemplo, tanto na melhoria da situação de saúde coletiva, como na universalização do acesso a um espectro de serviços cada vez mais largo em função do processo acelerado de incorporação tecnológica. Um dos indicadores do primeiro aspecto, a esperança de vida ao nascer, era inferior a 65 anos na segunda metade da década de 1980; atualmente, ultrapassa os 72 anos. É verdade que países desenvolvidos já tinham alcançado esse nível de longevidade há pouco mais de meio século (BRASIL, EPEA, 1966), mas entre os principais países emergentes, como os chamados BRICS3, é o Brasil que registra a maior taxa de longevidade. (Tabela 1) Tabela 1 Esperança de Vida em Países selecionados - 2006 Países Argentina* BRASIL * ** Chile * China ** Índia ** Paraguai * Rússia ** Uruguai * Venezuela *
Esperança de Vida 2006 75 72 78 73 63 75 66 75 74
Fonte: WHO/World Health Statistics - 2008 Notas: * País do Mercosul ** BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China).
1. Médico Sanitarista, Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA 2. Dentista Sanitarista, Livre Docente, ex-Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA 3. Brasil, Rússia, Índia e China. 233
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No segundo aspecto, universalização do atendimento, a simples desvinculação do direito de acesso aos serviços de saúde da condição de contribuinte (previdenciário) foi, por si só, fator decisivo para ampliar a cobertura em condições de igualdade. Hoje, toda a população é, de alguma forma, beneficiária do Sistema Único de Saúde (SUS), institucionalizado pela Lei nº 8.080/90. Não apenas no que se refere a bens públicos4, universais por definição, mas também a serviços de alto custo e complexidade. A maior parte dos transplantes, excluídos os de córnea, é custeada com fundos públicos. A cobertura é ainda mais expressiva no caso da hemodiálise, um procedimento caro, mas essencial para a sobrevivência de portadores de doença renal crônica, enquanto aguardam o transplante de rim: 96% das terapias ambulatoriais são financiadas com recursos públicos. Em contrapartida, problemas e frustrações não são menos evidentes. A evolução favorável no nível de saúde coletiva, em boa medida atribuível à melhoria das condições gerais de vida da população, ainda não permitiu retirar o Brasil da posição desconfortável em relação a seus vizinhos e parceiros do Mercosul (Tabela 1). O fim do apartheid, na forma prevalecente nos tempos da assistência médica previdenciária, reduziu, mas não erradicou a discriminação decorrente da segmentação de clientelas. Criou-se, na verdade, uma nova segmentação. Os servidores públicos mantiveram seus serviços especiais e os planos e seguros privados de saúde expandiram sua cobertura contando com o apoio de incentivos decorrentes de renúncia fiscal. Por esse mecanismo, parcela significativa da população brasileira passou a contar com duas possibilidades de acesso aos serviços de saúde, com menor ou maior grau de financiamento público. Acrescente-se a isso a ausência de garantias efetivas de atendimento com qualidade, nas clínicas básicas ou nas especialidades mais procuradas, ainda presentes no cotidiano dos usuários do SUS, sobretudo nos grandes centros urbanos.
Por que o financiamento é uma questão crucial para o SUS ? Para entender por que a questão do financiamento é essencial para consolidar o SUS, é preciso relembrar o que esse sistema trouxe de mais relevante: a institucionalização do acesso universal e da integralidade e igualdade da atenção. A garantia constitucional de acesso às ações e aos serviços de saúde como direito da cidadania determinou, de imediato, a inclusão de milhões de brasileiros no novo sistema. O princípio da igualdade de atendimento, por sua vez, extinguiu a iníqua diferenciação entre a população vinculada ao mercado formal de trabalho (previdenciários urbanos), os trabalhadores rurais e os indigentes. O princípio da integralidade, por sua vez, alargou a abrangência das ações e dos serviços de saúde, seja no sentido horizontal – promoção, prevenção e recuperação –, seja no sentido vertical, desde os atendimentos mais simples aos mais complexos. 4. Serviços com alcance coletivo, mas que não dependem de atendimento individualizado, tais como Vigilância Sanitária, Vigilância Epidemiológica, controle de vetores, difusão de informação sobre fatores de risco ou que geram externalidades positivas, como a vacinação. 234
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Seria ingenuidade supor que a implementação dos princípios constitucionais na área da saúde pudesse se efetivar apenas com ganhos de eficiência. Tornar a gestão do SUS mais eficiente e profissional é absolutamente necessário e inadiável, mas não suficiente. É imprescindível que, simultaneamente, sejam assegurados os recursos necessários para que o acesso universal a um atendimento integral, igualitário e de melhor qualidade seja menos um exercício de retórica e mais uma ação objetiva percebida pela sociedade. Não há mágica gerencial capaz, por exemplo, de resolver a desigualdade acumulada na distribuição espacial da oferta sem novos investimentos. No Brasil, os serviços privados de saúde, componente majoritário da Rede SUS, operam com total liberdade em relação à sua localização, ao contrário do que ocorre em outros países de sistema universal e livre mercado. Com isso, tendem a se concentrar em áreas mais afluentes, em detrimento das demais onde seriam mais necessários. Estudo realizado no IPEA, em 2003, mostrou excesso na oferta de aparelhos de tomografia computadorizada5 em cinco unidades federadas (SP, RJ, RS, DF e GO) e déficit nas demais. As maiores carências desses recursos estavam na Bahia, no Pará e no Ceará. A desigualdade se repetia no caso de aparelhos de ressonância magnética, máquinas para diálise e bombas de cobalto (VIANNA, coord. et al., 2003). Naturalmente, não se poderia transitar para um sistema público de saúde com as características do SUS sem um incremento substancial de recursos e regulação competente. A primeira tentativa mais importante no sentido de garantir financiamento estável para a saúde surgiu ainda na Assembléia Nacional Constituinte (1986-1988). A idéia de vincular à saúde um percentual do recém criado Orçamento da Seguridade Social conseguiu efêmera guarida no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, que vinculou à saúde “trinta por cento, no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído o segurodesemprego”, até a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO. Como é sabido, mesmo nos anos em que a LDO manteve dispositivo similar, a determinação acabou não sendo seguida (PIOLA e BIASOTO, 2001). O problema do financiamento do SUS se agravou nos primeiros cinco anos da década de 1990, principalmente em função da exclusão do financiamento setorial de recursos oriundos da contribuição sobre a folha de salário, que historicamente financiavam a atenção médica. A partir de então começaram a surgir soluções provisórias, como a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que acabou como fonte substitutiva, e não adicional (RIBEIRO et al, 2005). Concomitantemente, surgiram no Congresso projetos de emenda constitucional com o objetivo de vincular recursos para a saúde de forma mais permanente Maior estabilidade para o financiamento do SUS somente aconteceu a partir do ano 2000, quando foi aprovada a Emenda Constitucional nº 29. Sob essa nova regra não houve, para a União, uma vinculação no sentido convencional, mas a fixação de parâmetros 5. Segundo o parâmetro do MS (1 tomógrafo para cada cem mil habitantes). 235
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mínimos para a aplicação de recursos (orçamento empenhado em 1999, mais 5%, corrigido ano a ano pela variação nominal do PIB), até que Lei Complementar regulamentasse a questão (EC 29, Art. 6º). Estados, Distrito Federal e municípios, por sua vez, devem aplicar 12% e 15%, respectivamente, de sua receita própria. A partir dessas definições vem caindo a participação relativa da União no gasto público com saúde, crescendo a parcela dos entes subnacionais. A presença da União nesse gasto, que já foi de 59,8%, em 2000, caiu para menos de 50% em 2006. A aplicação da emenda, contudo, não tem sido isenta de controvérsias. A primeira envolve os diferentes entendimentos sobre o que pode (e o que, explicitamente, não pode) ser incluído como gasto em ações e serviços públicos de saúde, para fins de cumprimento da emenda. No caso da União, a celeuma foi mais além, incluiu até uma inusitada questão a respeito da base de aplicação da correção pela variação nominal do PIB: sobre o valor mínimo de recursos calculado para o ano anterior (base fixa)? Ou sobre o valor executado no ano anterior, exceto quando este for inferior ao piso mínimo calculado (base variável)?6 Esses e outros expedientes têm servido de subterfúgio para a não alocação dos valores mínimos previstos, seja pela União, seja por alguns Estados e municípios. Em 2006, segundo a Comissão de Financiamento do Conselho Nacional de Saúde, dezoito Estados não cumpriram a aplicação mínima exigida pela Constituição. A inadimplência acarretou para o SUS uma perda da ordem de R$ 1,8 bilhão neste ano. E mais: esse valor, somado ao passivo dos anos anteriores, mostra que somente os Estados deixaram de aplicar R$ 5,0 bilhões no Sistema Único de Saúde nos últimos quatro anos. Por sua vez, “o governo federal teria cumprido regularmente a EC 29, se for considerado o método de cálculo de “base fixa”; mas, se observado o critério de “base móvel”, a emenda teria sido cumprida apenas em 2002. Sob esse último critério, defendido por instituições e formadores de opinião vinculados ao Movimento Sanitário e pelo próprio Tribunal de Contas da União, o Governo Federal teria deixado de aplicar em Ações e Serviços Públicos de Saúde um total acumulado de R$ 5,6 bilhões até o ano de 2006” (IPEA, 2007b). De qualquer forma, mesmo com todos os “vazamentos”, a EC 29 aumentou o volume de recursos para o desenvolvimento de ações e serviços públicos de saúde. No total das três esferas de governo, as despesas com ações e serviços públicos de saúde passaram de 2,89% do PIB, em 2000, para 3,6%, em 2006. Ainda assim, o valor aplicado tem sido insuficiente, como é consensual entre gestores (federais, estaduais e municipais), Frente Parlamentar pela Saúde e o movimento social de apoio ao SUS.
Por que são necessários mais recursos para o sus? O setor público tem, mundialmente, papel imprescindível na área de saúde, seja 6. Sobre problemas de cumprimento da EC 29 ver IPEA Políticas Sociais:Acompanhamento e Análise, Brasília, n. 13, 2007. 236
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como financiador, seja como regulador ou mesmo como provedor de serviços, embora o grau de envolvimento estatal em cada uma dessas funções possa variar de país para país. No tocante ao financiamento, na grande maioria dos países desenvolvidos, a maior parte do financiamento setorial provém de fontes públicas, que respondem, em média, por 70% do gasto total (público e privado). Estados Unidos e China, a despeito das diferenças culturais, políticas e econômicas, são as exceções mais importantes. O Brasil é a situação mais paradoxal, em se tratando, possivelmente, do único país com sistema universal de saúde onde o gasto privado é maior que o público. As formas básicas de financiamento da saúde são: (i) os impostos gerais e as contribuições sociais obrigatórias; (ii) os esquemas privados de pré-pagamento (planos e seguros privados de saúde); e (iii) o pagamento direto, a cargo do próprio paciente, no ato da prestação do serviço. A última é considerada a forma mais iníqua e instável de financiamento. Contraditoriamente, é a que tem maior participação nos países mais pobres, pois está associada ao precário desenvolvimento do aparelho de Estado e dos direitos sociais. Estimativas da Organização Mundial da Saúde apontam para o Brasil um dispêndio total (público e privado) em saúde equivalente a 7,9% do PIB (OMS, 2008). Um valor baixo quando comparado com o observado nos Estados Unidos (16%), por exemplo, mas muito acima do 1% registrado pelo Brasil em meados do Século XX. (Mc Greevey et al, 1984). O gasto privado responde por 55,9 % do gasto total. Ou seja, como parcela do PIB, o Brasil gasta valores totais próximos a países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, como Inglaterra e Espanha, mas, ao contrário destes, a participação das fontes públicas brasileiras no gasto total é muito menor: 44,1% da despesa total (OMS, 2008). Além disso, como nosso produto interno bruto per capita é menor do que o desses países, ou seja, percentuais equivalentes do PIB correspondem a gastos per capita em saúde consideravelmente menores (Tabela 2). Tabela 2 Gasto total (público e privado) em saúde como percentual do PIB, gasto per-capita total em dólares internacionais (PPP int. US$) e participação (%) do gasto público no gasto total - 2005
Países Alemanha Austrália Bélgica Brasil Canadá Espanha Estados Unidos Inglaterra
% do PIB
Per-capita (em PPP int. US$)
% do Gasto Público / Gasto Total
10,7 8,8 9,6 7,9 9,7 8,2 15,2 8,2
3.250 3.001 3.071 755 3.419 2.242 6.350 2.597
76,9 67,0 71,4 44,1 70,3 71,4 45,1 87,1
Fonte: WHO/World Health Statistics 2008. 237
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No Brasil, em 2006, ano em que as informações estão mais completas, o gasto do SUS não ultrapassou 3,6% do PIB. Esse montante corresponde a cerca de R$ 451 por habitante/ano, para custear o acesso universal e o atendimento integral a mais de 186 milhões de brasileiros. Excluindo-se a população que utiliza outras formas de atendimento além do SUS, basicamente aquela coberta pelo segmento de saúde suplementar (planos e seguros de saúde), cerca de 37 milhões em 2006, a disponibilidade per capita do SUS sobe para R$ 562. Esse valor, no entanto, é bastante inferior à disponibilidade do segmento de Planos e Seguros Privados de Saúde no mesmo ano, que foi de R$ 1.131 por beneficiário. A tendência universal da despesa com saúde é de crescimento. Os determinantes desse comportamento, com pequenas variantes, também são os mesmos. O fator demográfico é um deles. Nesse aspecto, uma peculiaridade nacional resulta da combinação de crescimento populacional com o aumento da vida média (envelhecimento da população). A população brasileira como um todo cresce cerca de 1,3% ao ano e só deverá chegar ao seu ponto máximo, em torno de 260 milhões, na década de 2050. Ao mesmo tempo, enquanto em 1980 apenas 6,3% da população tinha mais de 60 anos, hoje já são 9,4%, e em 2050 serão 24,7%, de acordo com estimativas do IBGE. O gasto com saúde nessa faixa etária é bem mais alto do que entre os mais jovens. Outra especificidade, como fator de pressão sobre a despesa setorial, em especial a pública, está no fato de o Estado brasileiro, ao contrário de tantos outros, lutar simultaneamente em duas frentes: sem ter resolvido o problema das doenças típicas do subdesenvolvimento, a despeito dos avanços já alcançados, enfrenta o desafio da demanda crescente criada pelas doenças crônico-degenerativas e pelas seqüelas das diferentes formas de violência. Outra questão de igual centralidade está na distribuição espacial dos recursos humanos, financeiros e materiais notoriamente concentrados nas áreas mais afluentes. Critérios transparentes e eqüitativos para partilha intergovernamental de recursos públicos, planos diretores setoriais de investimentos e forte regulação estatal sobre o setor privado são fundamentais, mas não corrigem, sem novos investimentos, o déficit acumulado em algumas regiões do país, como já referido. A incorporação tecnológica é outro fator a influenciar o gasto público e das famílias com saúde. Algumas inovações são visivelmente poupadoras de recursos. Assim acontece com as tecnologias que contribuem para a diminuição de internações ou do tempo de permanência do paciente no ambiente hospitalar. Outras, como as proporcionadas pela indústria farmacêutica e de equipamentos, exigem investimentos vultuosos, hegemonicamente privados, em pesquisa e desenvolvimento, mas que a fim e a cabo repercutem nos orçamentos públicos e das famílias. Fenômeno bastante conhecido nos Estados Unidos, a judicialização da saúde pode se tornar outra das principais causas da espiral de gastos com serviços médicoassistenciais também no Brasil. Lá, o fenômeno é determinado, sobretudo, pelos processos nos casos de suposto erro médico (mal-practice), causando dois efeitos: aumento do prêmio 238
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do seguro profissional e estímulo à prática da chamada medicina defensiva7. No Brasil, a questão é relativamente recente e o principal motivo é a busca do direito de acesso a determinado medicamento ou terapia. A prática tem um aspecto positivo ao representar um instrumento de garantia do exercício de um direito, mas também pode ter uma repercussão negativa ao obrigar o gestor público a entregar determinado medicamento ou custear algum procedimento, em geral de custo elevado, mesmo quando não licenciado no país ou sem eficácia comprovada. Essas situações tornam necessária a regulamentação das condições de cumprimento do princípio constitucional da integralidade da assistência (CF, Art. 198, II), para coibir eventuais abusos.
Perspectivas As esperanças de conferir maior sustentabilidade ao financiamento do SUS estão concentradas na regulamentação da EC 29 mediante Lei Complementar. Os objetivos centrais das propostas de regulamentação da emenda que tramitam no Congresso Nacional são: (i) a ampliação da participação federal no financiamento do SUS mediante alguma forma de vinculação de recursos, e (ii) a eliminação da inadimplência ainda presente em alguns entes subnacionais. Um aporte mínimo de 10% da receita corrente bruta da União, uma das alternativas em jogo, representaria um acréscimo equivalente a cerca de 1% do PIB. Vale dizer que, mesmo com essa proposta, considerada a mais atraente para a saúde, o gasto público não chegaria a 5% do PIB. Evitar os “vazamentos” mediante a definição legal do que pode ser considerado despesa com ações e serviços públicos de saúde também pode reforçar o aporte de recursos. Com tudo isso, se poderia ainda ficar aquém das necessidades, mas, pelo menos, aproximaria o Brasil do padrão de outros países com sistemas de saúde de acesso universal. Contudo, tão ou mais importante do que aprovar a proposta mais ambiciosa, é não perder mais essa oportunidade para conferir maior eqüidade, previsibilidade e automatismo nos repasses de recursos do SUS, tanto da União para os níveis subnacionais, como dos Estados para seus respectivos municípios, visando à progressiva diminuição das disparidades regionais. A adoção de medidas redistributivas, ainda que graduais, nunca é fácil, mas fica menos difícil quando há recursos adicionais. Nessa estratégia, pelo menos duas oportunidades já foram perdidas: na criação da CPMF e no início de vigência da EC 29. A nova Lei Complementar oferece uma terceira que não pode ser negligenciada. De qualquer forma, não se pode perder de vista que, quanto mais favorável aos interesses específicos do SUS for o texto a ser aprovado no Congresso, maior será possibilidade de veto presidencial. Essa possibilidade real se deve, sobretudo, à sinergia entre dois fatores: (i) as pressões contrárias, de ordem fiscal, que não encontram resistência 7. Expressão utilizada para definir a solicitação exagerada de exames e tratamentos, por parte dos médicos, com o objetivo de se resguardar de possíveis acusações de imperícia, imprudência ou negligência profissional. 239
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suficientemente forte na sociedade, em parte porque a defesa do financiamento público da saúde parece circunscrita à militância do SUS; e (ii) a imagem desfavorável do SUS junto a parcela significativa de formadores de opinião, em sua maioria composta por não usuários. Finalmente, é preciso levar na devida conta que equacionar o financiamento do SUS, embora imprescindível, não é, por si só, suficiente para consolidar um sistema de saúde universal que combine eqüidade e eficiência. Resta ainda muito por fazer, mesmo com os recursos atuais, particularmente em relação ao aperfeiçoamento da gestão do SUS e na regulação do sistema de saúde como um todo.
Referências Bibliográficas BRASIL - Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social - Saúde e Saneamento. Diagnóstico Preliminar. Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica (Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada – EPEA), maio, 1966. IPEA – Políticas Sociais. Acompanhamento e Análise. Especial nº 13, 2007 IPEA – Políticas Sociais. Acompanhamento e Análise (1995-2005) Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Edição Especial nº 14, 2007b MC GREEVEY et al. Política e financiamento do sistema de saúde brasileiro: uma perspectiva internacional IPEA Série Estudos para o Planejamento, nº 26, Brasília, 1984.). PIOLA, SF e BIASOTO JR, G. Financiamento do SUS nos anos 90. In; Brasil – Radiografia da Saúde (org. por Barjas Negri e Geraldo Di Giovanni), Unicamp, Instituto de Economia, Campinas, 2001 RIBEIRO, JAC; PIOLA, SF e SERVO, LM. As novas configurações de antigos problemas: financiamento e gasto com ações e serviços públicos de saúde no Brasil. Apresentado na II Jornada de Economia da Saúde da ABRES, Belo Horizonte, dez.2005. Publicado na revista Divulgação em Saúde para Debate, CEBES:Rio de Janeiro. VIANNA, SM et al. Atenção de alta complexidade no SUS: Desigualdades no acesso e no financiamento, 150 p. e Anexos (Trabalho desenvolvido no âmbito do Projeto Economia da Saúde (MS/SCTIE/DES, IPEA e DFID), 2005 (site www.ipea.gov.br) WHO –WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Health Statistics, 2008
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Políticas públicas em busca da qualidade dos serviços de saúde Sonia Fleury1
O ator e o projeto A construção da saúde como política pública tem sido um processo histórico de lutas, construção de atores políticos e de consensos em relação a valores democráticos em torno da noção da saúde como um direito social da cidadania. A trajetória da Reforma Sanitária brasileira confunde-se com o conjunto de formas orgânicas de luta em prol da democracia que, a partir dos anos 70, eclode na sociedade brasileira, demonstrando a enorme insatisfação social com a estrutura autoritária e elitista do Estado brasileiro, incapaz de assegurar os direitos de cidadania. A organização do chamado “Movimento Sanitário”, ator político que conduziu e articulou outros atores em torno da construção de uma proposta de Reforma Sanitária, foi uma experiência singular no conjunto de resistências à ditadura, mobilização da sociedade civil e formulação de propostas democráticas. A singularidade está dada pela capacidade demonstrada de construir alianças em torno da formulação de um projeto que, embora setorial, sempre se concebeu como uma proposta de construção de uma nova sociedade democrática, fundada no primado dos direitos e no desenvolvimento de uma consciência crítica, no caso, identificada como a expansão da consciência sanitária. Para tanto, foi estratégica a compreensão do caráter dual da saúde, que tanto permite a construção de consenso em torno de valores vitais, como se apresenta como espaço de conflitos e lutas na disputa de hegemonia. A estratégia expansionista de uma hegemonia em formação consubstanciase na saúde através dos projetos da Reforma Sanitária, por meio dos quais se busca a concretização de: 1. Sonia Fleury é doutora em Ciência Política; professora titular da Escola de Administração Pública e de Empresa da Fundação Getúlio Vargas e presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES. www.ebape.fgv.br/pp/peep www.cebes.org.br 241
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i. reconhecimento político e institucional do Movimento Sanitário como sujeito e dirigente do processo reformador; ii. ampliação da consciência sanitária de forma a possibilitar o consenso ativo dos cidadãos (usuários e profissionais) em relação ao processo transformador no setor, bem como a natureza social das determinações que incidem sobre o processo saúde/doença e sobre a organização do cuidado médico; iii. resgate da saúde como um bem de caráter público, embora contraditoriamente limitado pelo interesses gerados pela acumulação de capital. Por conseguinte, trata-se de expressar o caráter de bem público da saúde consubstanciando-o na definição de uma norma legal e do aparato institucional que visam à garantia da sua universalização e equidade. Organizados no Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES -, intelectuais e profissionais de saúde formularam sua proposta em um documento intitulado “A Questão Democrática da Saúde”, apresentado no I Simpósio de Política de Saúde na Câmara Federal, em outubro de 1979. Nesse documento encontramos as bases da proposta da Reforma Sanitária em relação aos seus pressupostos doutrinários que assumem a saúde como direito universal e inalienável do homem, reconhecem o caráter sócio-econômico global da determinação das condições de saúde, afirmam a importância e as responsabilidades parciais, porém intransferíveis, das ações médicas na promoção ativa da saúde da população e reconhecem o caráter social do direito à saúde, o que corresponde à responsabilidade estatal na garantia dos direitos e do acesso universal e gratuito. Ao mesmo tempo, propunha a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), sob o comando do Ministério da Saúde, avançando na formulação do seu desenho institucional e nas políticas e programas. Se pensarmos que nessa data tínhamos um sistema totalmente cindido entre a maior parte que ficava sobre a responsabilidade da assistência médica da previdência social e os programas verticais do Ministério da Saúde, podemos aquilatar a ousadia dessa proposta. A 8ª. Conferência Nacional de Saúde foi outro momento determinante na consolidação de uma plataforma comum para a construção de um Sistema Único de Saúde, universal, participativo e descentralizado. Naquela oportunidade, foi feito o acordo entre todos os grupos progressistas em torno de um projeto comum. O passo seguinte foi levar essa proposta à Assembléia Nacional Constituinte (ANC) e defendê-la diante de outros projetos concorrentes, de cunho privatista. Para a ANC confluíram todos os grupos de interesses de uma sociedade que vivia um momento de liberdade de expressão e reconhecimento do outro nunca antes imaginado. O Movimento Sanitário organizou a Plenária da Reforma Sanitária na ANC, congregando todas as organizações que defendiam a criação do SUS, acompanhando assim 242
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todos os passos e levando aos constituintes uma emenda popular defendida pelo saudoso Sergio Arouca. O resultado foi conseguir incluir no texto constitucional os mesmos princípios universais, diretrizes assecuratórias do direito e de formas de organização democrática do sistema de saúde, propostas desde a sociedade civil organizada, inaugurando um novo modelo de proteção baseado no direito social. Além disso, a saúde foi incluída no conjunto da Seguridade Social, com os direitos sociais assegurados conjuntamente com a previdência e assistência social, o que representou um novo patamar civilizatório na história política brasileira.
Saúde e Seguridade no texto constitucional A Constituição Federal de 1988 representa uma profunda transformação no padrão de proteção social brasileiro, consolidando, na lei maior, as pressões que já se faziam sentir há mais de uma década. Inaugura-se um novo período, no qual o modelo da Seguridade Social passa a estruturar a organização e o formato da proteção social brasileira, em busca da universalização da cidadania. No modelo de Seguridade Social busca-se romper com as noções de cobertura restrita a setores inseridos no mercado formal e afrouxar os vínculos entre contribuições e benefícios, gerando mecanismos mais solidários e redistributivos. Os benefícios passam a ser concedidos a partir das necessidades, com fundamentos nos princípios da justiça social, o que obriga a estender universalmente a cobertura e integrar as estruturas governamentais. A Constituição de 1988 avançou em relação às formulações legais anteriores, ao garantir um conjunto de direitos sociais, expressos no Capítulo da Ordem Social, inovando ao consagrar o modelo de Seguridade Social. A inclusão da previdência, da saúde e da assistência como partes da Seguridade Social introduz a noção de direitos sociais universais como parte da condição de cidadania, tendo como contraparte sua garantia pelo Estado. O novo padrão constitucional da política social caracteriza-se pela universalidade na cobertura, pelo reconhecimento dos direitos sociais, pela afirmação do dever do Estado e pela subordinação das práticas privadas à regulação em função da relevância pública das ações e serviços nessas áreas, uma perspectiva publicista, ao estabelecer formas inovadoras de co-gestão governo/sociedade, em um arranjo organizacional descentralizado. A originalidade da Seguridade Social brasileira foi tributária das propostas do Movimento Sanitário para a organização do SUS. Essa originalidade está dada em seu forte componente de reforma do Estado, ao redesenhar as relações entre os entes federativos e ao instituir formas concretas de participação e controle sociais, com mecanismos de articulação e pactuação entre os três níveis de governo. A organização dos sistemas de 243
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proteção social deveria adotar o formato de uma rede descentralizada, integrada, com comando político único e um fundo de financiamento em cada esfera governamental, regionalizada e hierarquizada, com instâncias deliberativas que garantissem a participação paritária da sociedade organizada em cada esfera governamental. O SUS pode ser visto como um modelo de republicanismo cívico por sua capacidade, juntamente com outros esforços para permitir o revigoramento das instituições republicanas, seja no fortalecimento do Legislativo, com a atuação cada vez mais qualificada da Comissão da Seguridade Social e da Família e com ação suprapartidária da Frente Parlamentar da Saúde; seja na Justiça, ao desenvolver o direito sanitário e a ação e organização dos procuradores e do Ministério Público que atuam na área de saúde; seja no Executivo, ao introduzir um modelo de co-gestão e de redes descentralizadas de políticas. O SUS reorganizou o Estado através dos seguintes instrumentos e processos: i. mecanismos de participação e controle social representados pelos Conselhos de Saúde, existentes em cada uma das esferas governamentais, com representação paritária de membros do Estado e da sociedade civil. Os conselhos, para além de instrumentos de controle social, devem ser entendidos como um avanço na construção de um novo modelo democrático de co-gestão; ii. mecanismos de formação da vontade política, as Conferências de Saúde, realizadas periodicamente em todos os níveis do sistema, que coloca todos os atores sociais em interação em uma esfera pública e comunicativa. Além da aprendizagem e reconhecimento social, essa instância fortalece a sociedade organizada que participa do processo de construção dos lineamentos políticos mais amplos do sistema, embora sem caráter vinculativo; iii. mecanismo de gestão compartilhada, negociação e pactuação entre os entes governamentais envolvidos em um sistema descentralizado de saúde. A suposição de interesses distintos e de câmaras institucionais de negociação dessas diferenças e de geração de pactos de gestão é uma das grandes inovações do modelo federativo inovador, que assume a diferenciação como realidade e a igualdade como princípio político e meta institucional. Um federalismo diferenciado pelas desigualdades sociais e regionais existentes na sociedade brasileira, mas igualado pela criação de mecanismos de descentralização, pactuação e participação que geram novas capacidades e poderes locais. Esse modelo generoso e democrático de formulação e gestão de políticas públicas foi um legado do SUS que se estendeu para além da Seguridade Social, passando a ser utilizado em diferentes áreas de políticas públicas.
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20 anos depois: dilemas e desafios O principal desafio enfrentado para a consolidação dos direitos sociais foi a permanente subordinação das políticas públicas a uma lógica monetarista que buscou a estabilização financeira por meio de uma política paradoxal de elevação da taxa de juros e aumento do superávit primário, em detrimento de medidas que impulsionassem o desenvolvimento e assegurassem a vigência dos direitos conquistados. Os primeiros problemas começaram a ser sentidos na aprovação da legislação infraconstitucional, isto é, das leis ordinárias de cada um dos setores da Seguridade Social, como evidência da mudança da correlação de forças que ocorrera. No caso da saúde, foram aprovadas duas leis, a 8.080/90 e a 8.142/90, demonstrando a resistência do setor a uma alteração dos princípios e diretrizes constitucionais. A manifestação mais profunda dos dilemas enfrentados pela saúde se põe de manifesto no problema crônico de subfinanciamento. O não cumprimento das Disposições Transitórias que atribuíam 30% do Orçamento da Seguridade Social para a saúde deixou o setor sem uma fonte definida, suficiente e estável de custeio. A crise financeira levou o Ministério da Saúde a uma situação inusitada de precisar recorrer a um empréstimo do FAT, em 1993, para honrar seus compromissos. A criação da CPMF foi a resposta social encontrada para financiar a saúde, embora seus recursos tenham sido também distribuídos para outras áreas. A extinção da CPMF no final de 2007 mostra que, 20 anos depois, seguimos sem garantias para o financiamento da saúde. A aprovação da EC 29, em 2000, estipulou um percentual dos orçamentos dos Estados e municípios, respectivamente 12% e 15% de suas receitas públicas, enquanto a União, definido o acréscimo inicial sobre o piso de gastos em 1999, ficou carente de uma regulamentação da emenda para definir sua contribuição. A falta de interesse dos governos em regulamentar essa emenda permitiu que gastos indevidos fossem contabilizados como saúde e acarretou um enorme peso para os municípios, com a maior parte dos Estados não cumprindo a disposição legal e com a redução proporcional da participação da União no custeio da saúde. A proposta atual do Movimento Sanitário, com destinação de 10% das receitas brutas da União para a saúde, embora aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, sofre resistências do Governo e continua parada no Congresso. A disjuntiva enfrentada pelo SUS, ao assegurar a universalização da atenção integral à saúde diante de recursos públicos (3,5% do PIB) tão escassos, inclusive em comparações internacionais com países da América Latina, terminou por ter efeitos perversos representados pela precarização das relações de trabalho e, em muitos casos, pela deterioração da qualidade dos serviços em unidades públicas. A concentração dos recursos nas áreas de maior poder aquisitivo é uma herança da rede previdenciária que até hoje não conseguiu ser superada. 245
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Sendo um sistema descentralizado, encontramos resultados muitos distintos ao longo do território nacional. Os números apresentados nas estatísticas do SUS são impactantes, demonstrando a sua enorme cobertura em serviços que vão desde a atenção primária aos mais sofisticados tratamentos e transplantes. O que não existe, no entanto, são parâmetros de qualidade, eficácia e eficiência que sejam adotados nacionalmente, assegurando garantias de atendimento e de qualidade que deixem o usuário seguro. O estabelecimento de um Pacto pela Saúde em 2006 aponta na direção do estabelecimento de metas e compromissos entre os entes governamentais, o que é imprescindível para que as responsabilidades sejam cobradas e transparentes. São requeridas novas formas de gestão que permitam o controle dos gastos, a redução do uso político das unidades de saúde, o combate à corrupção e a efetividade do acesso e da utilização. No entanto, a ausência de uma proposta geral de reforma do Estado de caráter não liberal que enfrente esses problemas dificulta uma solução setorial. A regulação dos serviços públicos e também do setor de saúde suplementar é, cada vez mais, uma demanda da cidadania. Na sua ausência, abre-se um espaço para a judicialização da saúde, que, embora afirme o direito constitucional à saúde de forma integral, sobrepõe demandas individuais às coletivas e subordina as prioridades planejadas ao critério casuístico. A existência de inúmeros fluxos de recursos do público para o privado é outro dilema a ser enfrentado, pois debilita a existência de um SUS vigoroso. Várias políticas públicas favorecem o quadro atual, no qual se observa maior gasto privado do que público em saúde, o que é incompatível com a existência de um sistema público universal. Isso se verifica, por exemplo, através da renúncia fiscal sobre planos de saúde, através da incapacidade de cobrança do atendimento nas unidades do SUS de pacientes cobertos por planos de saúde, além da inabilidade do sistema em fornecer, de forma suficiente medicamentos e exames complementares. Não há dúvidas de que as forças sociais que sustentaram a Reforma Sanitária foram responsáveis pela manutenção e expansão do SUS em um contexto bastante adverso. No entanto, seu desafio é ainda o de tornar o direito à saúde, hoje já incorporado à cultura política nacional, uma demanda exigível, na qual seja assegurado um atendimento seguro, humanizado e de qualidade.
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Parte 5. Assistencia Social: gerando cidadania e disseminando desenvolvimento
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20 anos de Constituição: a hora dos deveres sociais Marcelo Neri1 A comemoração dos 20 anos da chamada Constituição Cidadã instiga a reflexão acerca de novos desafios na área social. Argumentamos aqui que, a fim de complementar e potencializar os efeitos da garantia de recursos a municípios e Estados nas áreas de educação, saúde e de assistência social para além do previsto na nossa Carta Magna, é importante impor deveres sociais a esses mesmos entes federativos através do monitoramento de resultados e da imposição de incentivos para a boa aplicação dos recursos na área social.
Descentralização e contrato social A busca de eficiência na utilização do dinheiro público é essencial no Brasil, onde quase ¼ do PIB está comprometido com a área social (incluindo a previdência). Esta constitui uma das mais altas taxas da América Latina, próxima daquela observada em países com forte tradição na área social, como a Costa Rica. Apesar disso, o país apresenta um baixo nível de indicadores sociais, principalmente quando comparado a outros países de renda per capita similar. Dado os altos percentuais de gasto social no PIB e no PIB per capita brasileiro, o problema central não parece ser a quantidade, mas a qualidade dos gastos sociais. Outra característica brasileira é a crescente descentralização dos gastos sociais federais, sem comparação no contexto latino-americano. O país mais próximo - a léguas de distância - é a Colômbia. A descentralização brasileira foi impulsionada pela Constituição de 1988, em particular nas áreas de educação e saúde, e tem se tornado cada vez mais presente nas políticas de transferência de renda, como no Bolsa Família de Lula, no Alvorada de FHC e no Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza do Congresso Nacional. A descentralização é fundamental para financiar as ações sociais, onde elas são mais necessárias, e os recursos mais escassos. Discuto inicialmente diferentes tipos de parcerias entre níveis de governo a partir do clássico problema de principal-agente. O principal pode ser visto como o Governo Federal que procura melhorar a situação de vida da população mais pobre repassando verbas para o 1. Economista-Chefe do Centro de Políticas Sociais do IBRE/FGV e da EPGE/FGV. mcneri@fgv.br 249
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município, o agente que implementa as ações sociais. Um exemplo de programa desse tipo é aquele no qual o Governo Federal prioriza transferências para regiões com piores níveis de desenvolvimento humano. Em virtude do tamanho e da heterogeneidade brasileira, é impossível observar desde Brasília as necessidades específicas em cada recanto do país. O Governo Federal dispõe de menos informações sobre quem são os mais necessitados. Nada mais natural que os governos municipais sejam responsáveis por implementar as ações sociais. Ao Governo Federal caberia formatar parcerias com os municípios, transferindo recursos e monitorando os resultados alcançados. Usualmente, contudo, o Governo se limita a fazer uma análise da legalidade da utilização do dinheiro. A análise mais importante, mensurar o resultado social efetivamente alcançado, não costuma ser feita. O que se verifica, no melhor dos casos, é se a verba foi empregada segundo os ditames da lei. Analiso a partir de trabalho realizado em co-autoria com Marcelo Xerez, mestrando da EPGE/FGV, o impacto sobre o comportamento dos municípios de três tipos de ambientes institucionais, a saber: em primeiro lugar, o de transferências federais fixas, ou incondicionais. Nesse caso há deslocamento dos investimentos sociais realizados pela localidade, similar ao efeito crowding-out dos livros de macroeconomia. Nele as preocupações sociais do poder local seriam supridas pelo poder central. Como veremos, é preciso estimular um relacionamento de complementaridade, e não de substituição, das ações entre os vários níveis de governo. Num segundo caso, chamado de focalização repetida, as transferências privilegiariam sempre os municípios mais miseráveis. O resultado obtido pelos pobres dessas localidades é pior do que na ausência de transferências federais. Introduz-se incentivo perverso para os governantes locais manterem um grupo de pobres cativos a fim de justificar o acesso a novos recursos no futuro. Esse ponto não diz respeito ao debate brasileiro recente se é desejável ou não focalizar gastos sociais, mas sobre a melhor forma de fazê-lo. A crítica básica à focalização repetida no nível dos indicadores não é que os incentivos não sejam corretos, mas que eles são inadequados (“um tiro no pé do pobre”). Nesse caso, quanto mais dinheiro for destinado aos mais pobres, menos dinheiro chegaria aos mais pobres. É preciso evitar o ciclo do quanto pior a administração, melhor o orçamento concedido. Finalmente, temos contratos com cláusulas que estabelecem uma relação de proporcionalidade entre o valor a ser transferido e o progresso social obtido. O que se estabelece entre o Governo Federal e o município é algo parecido com um contrato de prestação de serviços. Numa situação realista, primeiro o município recebe o dinheiro, e depois o desempenho social é verificado. Podemos pensar como um Crédito Social para que o município efetue determinados avanços previstos em contrato. Posteriormente, se houver o cumprimento das metas estabelecidas, o pagamento do crédito será quitado. Caso as metas não sejam cumpridas satisfatoriamente, o limite de crédito do município com o 250
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Governo Federal fica comprometido. Esse tipo de contrato já é realizado entre governo e cidadão em programas como o Bolsa-Escola. Ao adicionar contrato similar entre governos, o sistema de distribuição de bolsas condicionais se tornaria mais consistente ao longo do tempo em seus diversos níveis, fazendo fluir os recursos para os maiores retornos sociais. Cabe lembrar que a avaliação de avanços é uma das poucas instâncias onde os resultados potenciais dos mais pobres superam o dos demais. Por exemplo, um município onde metade das crianças freqüenta a escola pode dobrar o indicador, ao contrário de um onde 90% já estão na escola. Agora, esse potencial tem de ser realizado. Hoje o coração e as veias da política social brasileira são os mecanismos de transferência de recursos do Governo Federal para municípios e Estados. Obviamente, o gasto de dinheiro nessas regiões resulta em melhoria nas condições de vida locais. Contudo, é importante abrir os olhos para as políticas sociais através da criação de mecanismos de monitoramento do orçamento social, não só para verificar se elas estão realmente sendo empregadas nas áreas previstas, mas principalmente para avaliar em que medida está melhorando a situação da população. É preciso ir além da análise da probidade das contas. Não basta saber quanto foi investido, é preciso mensurar o resultado alcançado, de forma a abrir os canais para que os recursos públicos cheguem às áreas que oferecem maiores retornos à sociedade.
Responsabilidade fiscal e motivação social A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) representa o marco de um novo regime de finanças públicas nos diversos níveis estatais. Ela constitui elemento-chave para a consecução da estabilidade duradoura. A LRF condiciona despesas às receitas auferidas no mesmo ano. Exploramos aqui um elo entre o limite creditício imposto pela LRF e a coordenação de ações sociais descentralizadas. Discutimos a existência de um canal alternativo aos argumentos contidos na lei, através do qual a responsabilidade fiscal conduz à ampliação da responsabilidade social. Inicialmente, vejamos algumas justificativas de fundo para adoção da LRF. A lei desempenha papel pedagógico na transição de uma cultura gerencial forjada no período inflacionário em direção a uma nova mentalidade integrada pela estabilidade, transparência e planejamento. Algumas causas fundamentais da irresponsabilidade fiscal são encontradas nas dificuldades de controle inerentes à esfera pública. As empresas privadas são fiscalizadas de perto pelos seus respectivos donos. Em particular, as empresas de capital aberto são monitoradas, dia a dia, no mercado acionário. Já o controle da coisa pública se dá, em última instância, no atacado e de maneira defasada através do mercado eleitoral. Outra diferença entre as administrações públicas e privadas é que as últimas 251
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possuem intervalos de duração definidos. Isso acarreta incentivos perversos para que dívidas crescentes sejam passadas de um administrador para outro. Ao suavizar as condições financeiras entre sucessivos mandatos, a LRF zela pela igualdade de oportunidades. Em termos conceituais, a LRF corresponde à imposição de uma restrição de liquidez à gestão pública. A restrição orçamentária tem de fechar ano a ano, e não num prazo mais dilatado. A LRF retira liquidez do sistema de gestão pública, atuando preventivamente contra a insolvência financeira e o oportunismo político. Joseph Stiglitz, o papa da restrição por liquidez, discute em vários trabalhos o conceito e as experiências bem-sucedidas de controles creditícios seletivos no direcionamento de ações privadas para alvos públicos preferenciais. A política opera em dois estágios: i) contenção geral do crédito através de medidas artificiais; e ii) criação de linhas de crédito especiais voltadas para segmentos estratégicos. O ponto de Stiglitz é que o primeiro passo potencializa os efeitos do segundo. Quer dizer, políticas creditícias setoriais são mais efetivas num ambiente de racionamento de crédito generalizado. Quando o crédito é coisa rara, cresce a sensibilidade dos demandantes de crédito a esquemas de incentivo. Não cabe aqui entrar no mérito de se vale a pena, ou não, criar restrições de crédito, de alguma ordem em alguma circunstância, mas apenas atentar para o fato de que a LRF assim já o fez. A LRF introduz uma variante do primeiro estágio supracitado aplicado ao caso das administrações públicas pelas razões sobreditas. O nosso ponto é aproveitar o ambiente pós-LRF para potencializar a eficácia das transferências entre diferentes níveis de governo. Esses mecanismos constituem o coração e as veias da atual política social brasileira. A LRF não apenas suaviza instabilidades financeiras danosas à conquista do desenvolvimento humano sustentável como aumenta a capacidade de coordenação de ações sociais descentralizadas. Temos hoje a possibilidade de implementar um sistema de incentivos mais potente que antes. É preciso notar que a gestão social tem se tornado cada vez mais complexa e desafiadora. No âmbito interno, a descentralização das ações públicas aliada à crescente atuação do terceiro setor e de empresas privadas cria uma vasta diversidade de ações simultâneas. Por outro lado, o processo de internacionalização das economias, ao mesmo tempo em que enseja instabilidades macroeconômicas contagiosas, amplia o leque de oportunidades para a realização de transferências entre países de recursos e de tecnologia de cunho social. A questão que nos interessa é: como aumentar o retorno auferido pela sociedade desta miríade de ações? Cabe aos diversos níveis da ação pública (organismos multilaterais, diversos níveis de governos e sociedade civil) atuar sinergicamente, o que envolve a coordenação de esforços difusos através da fixação de metas e da provisão de mecanismos de incentivo apropriados. 252
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A declaração do milênio, recém-promulgada, arbitra não só indicadores sociais, como também valores e prazos a serem perseguidos em escala global. A nossa proposta é que localidades específicas – em particular as do nível subnacional – anunciem compromissos com as metas globais, tal qual fixadas. Na prática isso envolveria que não só países, como também Estados e municípios, desafiassem as suas respectivas populações a atingir as auspiciosas metas propostas. Exemplificando: o Estado A, ou o município B, adeririam à meta de reduzir à metade, até 2015, a parcela da sua população com renda per capita inferior a U$ 1 PPP diário. A experiência brasileira recente com metas de inflação e de racionamento de energia elétrica é elucidativa da força dos objetivos palpáveis. Agora, por que adotar as metas do milênio, e não outras? i) os indicadores propostos já são gerados, monitorados e gozam da necessária credibilidade; ii) a uniformidade de metas pode contribuir para a convergência de esforços sociais na aldeia global; iii) o fato de o prazo das metas globais exceder o mandato de governantes inibe descontinuidades das ações entre mandatos. Metas externas tendem a estabelecer maior consistência temporal das decisões. As metas devem pertencer às sociedades e seus cidadãos, sendo percebidas como independentes de idiossincrasias de governos. Além do aspecto coordenador e mobilizador das metas sociais, um princípio interessante é condicionar o aspecto financeiro ao desempenho social observado - seja quando tratamos de indivíduos, seja de níveis de governo. O espírito do Bolsa-Escola, e agora do Bolsa-Família, de premiar as famílias pobres cujos filhos freqüentam a escola pode ser aplicado na realocação anual do orçamento social de diversos níveis administrativos. O processo de premiar com recursos adicionais as unidades que andem mais rápido pode ser aplicado em direção a níveis mais baixos de governo: da esfera federal aos Estados; destes aos respectivos municípios, e destes às respectivas regiões administrativas. Seguindo a mesma linha, a magnitude do perdão da dívida externa de países pobres altamente endividados (HIPC), hoje em voga, deveria também considerar a trajetória futura dos indicadores sociais desses países. Captadores de financiamentos a fundo perdido tendem a perder motivação. Muitas vezes o melhor remédio contra a pobreza não é a caridade, mas o crédito. Não existe dúvida de que o foco da ação social deve ser os mais miseráveis, mas é importante recompensar aqueles que caminharem em direção à emancipação de suas carências. A principal vantagem comparativa de ser miserável é a maior capacidade de prosperar. Deve-se, dessa forma, premiar o sucesso futuro, e não apenas compensar os fracassos passados. Um dos problemas das metas, em particular as de curto prazo, se refere à presença de choques, de forma que o resultado obtido pelo protagonista social não dependa somente do seu esforço ou competência, mas também, em parte, de fatores fora do seu controle. Daí a importância de usar um esquema de avaliação relativa 253
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entre localidades. A adoção de um sistema comparável internacionalmente permite situar cada localidade dentro da norma internacional. O sistema de incentivos deve ser anunciado a priori e o desempenho relativo aferido a posteriori. Tudo funciona com um sistema de crédito em que a dívida financeira contraída em projetos sociais possa ser quitada à base de avanços sociais. A vantagem do aparato creditício social, se bem desenhado, é atrair os melhores atores sociais e induzi-los às melhores práticas.
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Entre a pobreza e a cidadania: a política pública de assistência social no pós-1988 Luciana Jaccoud1
Introdução Nos últimos 20 anos, a política de assistência social no Brasil percorreu uma trajetória historicamente inovadora, consolidando não apenas uma nova configuração dessa política, como impactando no próprio formato da proteção social no país. Pela primeira vez, a assistência social passou a assegurar benefícios monetários permanentes, integrandose às políticas de garantia de renda da proteção social brasileira por meio do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e, posteriormente, do Programa Bolsa Família (PBF). Também de forma inovadora, afirmou-se a responsabilidade pública na oferta dos serviços assistenciais, seja no que se refere ao seu planejamento, financiamento e fiscalização, como a sua oferta. Com a instituição do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), buscou-se organizar a gestão descentralizada e integrada das diversas esferas de governo em torno de um projeto de política pública, padronizando proteções e implementando nova sistemática de financiamento. Todas essas mudanças tiveram sua fonte na Constituição de 1988, que afirmou a assistência social como responsabilidade do Estado e direito do cidadão, inserindo-a no âmbito da Seguridade Social. O presente artigo pretende discutir o papel que a política de assistência social tem assumido, nos últimos 20 anos, dentro do sistema brasileiro de proteção social. Em um primeiro momento, busca-se apontar as expressivas mudanças por que passou essa política após 1988. Em seguida, pretende-se resgatar as principais características da oferta e da cobertura da assistência social nos campos da garantia de renda e da prestação de serviços. Para concluir, será feita uma rápida reflexão sobre os desafios que vêm se apresentando a essa política em sua trajetória recente, com destaque para o debate sobre pobreza e cidadania. Buscar-se-á ainda destacar a necessidade de definir com clareza as proteções a serem afiançadas pela assistência social, assim como os critérios de acesso, de oferta e os padrões de qualidade. Dessa forma, será possível avançar na ampliação do bem estar, na redução das desigualdades e na promoção de oportunidades. As políticas de proteção social 1. Doutora em Sociologia e Técnica de Planejamento e Pesquisa do IPEA 255
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devem buscar não apenas contribuir para a redução da pobreza como, mais do que isso, promover a instituição de patamares aceitáveis de vida, de integração e convívio social.
A afirmação de uma política de assistência social No Brasil, pode-se falar em uma política pública de assistência social a partir dos anos 1930. A década de 1930 assiste à consolidação da legislação previdenciária e trabalhista no país, assim como a organização das instituições responsáveis pela implementação dos direitos sociais ali garantidos. A cobertura dos riscos sociais com o objetivo de estabilizar a força de trabalho assalariada, em especial na indústria e no comércio, de promover a integração social dos trabalhadores ligados aos setores modernos da economia e, ainda, de promover sua integração política pela via do corporativismo de Estado definiu historicamente o caráter da intervenção social do Estado, centrado na problemática do trabalho assalariado. Contudo, num contexto político onde a preocupação com a formação do povo e da nação mobilizava as elites políticas, o objetivo de integrar as camadas mais dissocializadas da população não esteve ausente da cena política, e permitiu a emergência da assistência social como campo de atuação governamental. De fato, até a década de 1930, a assistência social estava restrita à esfera privada, onde predominavam as obras particulares, em especial de origem católica. As iniciativas no campo da assistência nascem identificadas à tradição católica da caridade em direção aos necessitados, marcadas pela filantropia e pela benemerência, mobilizando todo tipo de ajuda em direção aos pobres e miseráveis. Muitas vezes contando com a colaboração financeira das esferas públicas, particularmente das municipalidades, as obras católicas voltavam-se prioritariamente ao atendimento de crianças, idosos, inválidos e doentes, especialmente via instituições como asilos, orfanatos, sanatórios e dispensários.2 Foi no final dos anos 1930 que se constituiu a intervenção organizada do Estado nacional na área assistencial. O Estado passou a atuar diretamente, através da criação do Serviço de Assistência ao Menor, futura Funabem, ao mesmo tempo em que instituiu a Legião Brasileira de Assistência (LBA). Mas a mais efetiva realização da época foi a criação, em 1938, do Conselho Nacional do Serviço Social (CNSS), por meio da qual o governo regulamentou a área organizando o sistema de subvenções e auxílios às instituições privadas e formalizando seu papel de subsidiar aquelas organizações. O Conselho, que contava com representantes das entidades assistenciais privadas, tinha a responsabilidade de avaliar os pedidos de subvenções e, posteriormente, isenções de impostos e contribuições sociais, fortalecendo a benevolência e a filantropia como instrumento de intervenção social. Essa foi a herança herdada pela Constituição de 1988 e a base sob a qual, até a década de 1990, se desenvolveu a assistência social no país. Caracterizada como uma ação 2. Ver a respeito Mestriner, Maria Luiza – “O Estado entre a filantropia e a assistência social”. São Paulo, Cortez, 2001, p. 45. 256
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residual, fragmentada e ancorada no dever moral de ajuda,3 a assistência social contava com a oferta de serviços e atenções diversas ofertadas prioritariamente pelo setor privado, com o Estado atuando de forma muito limitada na oferta direta de serviços assistenciais. No que diz respeito aos benefícios monetários, eles não haviam sido constituídos no campo da assistência social. Uma única exceção pode ser identificada na Renda Mensal Vitalícia (RMV). Esse benefício foi criado em 1974 para atender idosos de 70 anos ou mais e pessoas em situação de invalidez que estivessem sem condições de garantir sua sobrevivência. Contudo, ele era concedido apenas àqueles que houvessem efetuado, ao longo de sua vida, um mínimo de doze contribuições à previdência social, não tendo completado, portanto, as regras de acesso à aposentadoria por idade ou invalidez. De fato, a idéia de garantia de renda não havia começado a ganhar espaço no país, a não ser pelo instituto do seguro social. A sociedade brasileira recusou, durante essas longas décadas, o reconhecimento de um direito de acesso a benefícios monetários à população pobre, com exceção daqueles baseados diretamente no exercício passado ou presente do trabalho. Nesse contexto, a Constituição de 1988 representou uma efetiva inovação em diversos aspectos, dos quais se pode destacar ao menos quatro. O primeiro ponto a ressaltar é a integração da assistência social a um princípio mais amplo de proteção social, identificado com a Seguridade Social. O segundo se refere à garantia de atendimento a quem dele necessitar, independente de contribuição à Seguridade. Afirma-se, dessa maneira, a sua instituição como política não contributiva de Seguridade Social, e o direito de acesso a seus serviços e benefícios. O terceiro aspecto refere-se à instituição do BPC, benefício monetário continuado e não contributivo aos idosos e deficientes sem meios de prover o seu sustento. Uma quarta inovação que deve ser enfatizada diz respeito às regras de organização institucional, onde a descentralização da execução das ações é afirmada junto à responsabilidade da esfera federal na coordenação e definição de normas gerais, e a participação social na formulação e no controle dessa política. As grandes mudanças tiveram início com a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS (Lei n. 8.742) -, em 1993. Regulamentando o texto constitucional, a LOAS desenha uma política descentralizada, constituída, nas três esferas de governo, por órgãos gestores e por instâncias deliberativas de natureza colegiada. Determina ainda o comando único por esfera de governo e institui instrumentos de planejamento, gestão, financiamento e controle social. A partir de 2004, as mudanças se aprofundaram. Com a aprovação da nova Política Nacional de Assistência Social (PNAS), foi criado o Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Visando a consolidar o processo de descentralização da política e, ao mesmo tempo, estabelecer responsabilidades entre as diversas esferas de governo, a PNAS padronizou as proteções sob responsabilidade da assistência social e organizou uma nova sistemática de financiamento instituindo o repasse fundo a fundo e o co-financiamento dos três níveis de governo. Essas mudanças buscaram ampliar as garantias 3. Ver a respeito Aldaísa Sposati “A assistência social e a trivialização dos padrões de reprodução social”. In Sposati el all, “Os direitos (dos desassistidos) sociais”. São Paulo, Cortez, 1989. 257
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em torno do acesso da população às ações de assistência social pela via da organização da política nos territórios e da garantia de uma porta de entrada única para o usuário. O processo de mudanças avançou em 2005, com a aprovação de nova Norma Operacional Básica, a chamada Nob-Suas. Essa Norma, acompanhando a PNAS, organiza dois níveis de proteção social, o básico e o especial, e reconhece três níveis de gestão para os municípios, cada um deles associado a um conjunto de responsabilidades e incentivos. Como decorrência das novas regulamentações, atualmente a política de assistência social é entendida como parte integrante do sistema de proteção social, que visa a garantir as seguintes seguranças: de acolhida, de renda, de convivência familiar, comunitária e social, de autonomia e de sobrevivência a riscos circunstanciais. Seus objetivos, assim, expandem-se claramente para a garantia de renda e para a oferta de serviços nos campos da socialização, integração, desenvolvimento de autonomia e defesa em situação de violação de direitos, como nos casos de violência, abandono ou trabalho infantil. O escopo da assistência passa a não mais ser compreendido em função de públicos – como crianças, idosos ou indigentes - mas sim em termos da segurança que essa política de proteção social deve garantir. Nesse contexto de mudanças, as últimas duas décadas assistiram, no campo da assistência social, ao desenvolvimento de um amplo processo de debates acerca das finalidades e dos objetivos dessa política, levando a uma significativa alteração no entendimento de suas responsabilidades e atribuições. Contudo, os desafios ainda são significativos. A sua consolidação institucional ainda está em curso e, em que pese o esforço em prol da adesão dos municípios à nova sistemática, a incipiente organização dessa política em grande parte dos municípios, a forte presença da filantropia e a ainda expressiva influência da política partidária nos espaços locais, elas apontam para sérias dificuldades no processo de construção do SUAS. O envolvimento dos Estados e municípios no financiamento da política ainda é incerto, irregular e desigual. A padronização da oferta de serviços, incluindo modalidades e patamares de qualidade, ainda está por ser construído, assim como os instrumentos de acompanhamento e fiscalização.
A garantia de renda como parte da proteção ofertada pela assistência social Direito constitucional estabelecido pela Carta Magna de 1988 e regulamentado pela LOAS em 1993, o BPC é uma das mais significativas inovações da política social nas duas últimas décadas. O benefício institui, a partir do reconhecimento do princípio da solidariedade social, uma renda mínima no valor de um salário mínimo mensal às pessoas em situação de baixa renda reconhecidas como dispensadas ou impossibilitadas de arcar com sua sobrevivência pelo próprio trabalho. O BPC começou a ser concedido em 1996 e constitui uma garantia de renda de natureza incondicional e 258
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não contributiva às pessoas com 65 anos ou mais e às pessoas com deficiência severa, cuja renda familiar per capita seja inferior a um quarto de salário mínimo (R$ 103,75, em julho de 2008). Além de ser o primeiro mínimo social brasileiro garantido constitucionalmente, o BPC se destina a um público até então majoritariamente excluído de qualquer mecanismo público de transferência de renda. Sua criação trouxe uma mudança no padrão de proteção social brasileiro no campo da garantia de renda, tradicionalmente identificado com os seguros sociais, e sua implementação tem significado a manutenção de níveis mínimos de bem estar para mais de 2,7 milhões de pessoas idosas e com deficiência em situação de extrema pobreza.4 O impacto do BPC na melhoria das condições de vida das famílias beneficiárias e na redução da pobreza nos grupos atendidos tem sido atestado por vários estudos5 que confirmam a importância do benefício na garantia de um patamar civilizatório a um público extremamente vulnerável. A segunda inovação no campo da garantia de renda ofertada pela assistência social pode ser identificada no Programa Bolsa Família (PBF). Em que pese não ser oficialmente reconhecido como parte da assistência social, e ser operado por uma gestão própria e independente, o PBF pode ser considerado integrante daquela política. De um lado, é um um benefício não-contributivo, opera no âmbito da segurança de renda, e tem como objetivo a cobertura universal no grupo beneficiário. Sua importância no campo do alargamento da proteção social diz respeito ao fato de que, pela primeira vez, a política social brasileira opera um programa de distribuição de renda à população pobre, independente de comprovação de incapacidade para o trabalho ou de afirmação de mérito. Efetivamente, a identificação do “pobre merecedor” sempre organizou as práticas de ajuda e assistência social no país, sejam elas públicas ou privadas. Por esse meio era identificada a população pobre desobrigada de cobrir suas necessidades pelo exercício do trabalho - crianças, deficientes, idosos ou mulheres com filhos – ou a população trabalhadora vítima de situações trágicas ou episódicas como secas, acidentes, etc. Em que pese ter uma dimensão condicionada - as famílias beneficiárias devem cumprir condicionalidades, estando obrigadas a garantir a freqüência escolar e o acompanhamento da saúde de suas crianças -, o PBF representa um reconhecimento de que o acesso a uma renda mínima é direito de todo cidadão brasileiro, independente de, por exemplo, exercer ou não uma atividade remunerada, de ter ou não filhos, de 4. Do total de 2,7 milhões de benefícios pagos em dezembro de 2007, 1,3 milhões eram para idosos e 1,4 para pessoas portadoras de deficiência. Somando aos beneficiários do BPC aqueles que ainda recebiam a antiga RMV, o número de pagamentos no campo desses benefícios assistenciais sobia para 3,1 milhões. 5. Ver a respeito Soares et all– “Programas de Transferência de Renda no Brasil: impactos sobre a desigualdade”. Brasília, IPEA, 2006, Textos para Discussão n. 1228; Jaccoud, Luciana – “Indigência e pobreza: efeitos dos benefícios previdenciários, assistenciais e transferências de renda”. In Peliano, Anna Maria (org) – “Desafios e Perspectivas da Política Social”. Brasília, Ipea, 2006,Texto para Discussão n. 1248. 259
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habitar área urbana ou rural.6 De fato, o benefício ofertado pelo programa é dividido em duas partes. A primeira, chamada piso básico, atende a todas as famílias, independente de qualquer outra característica, desde que detenham uma renda mensal per capita inferior a R$ 60,00. Para as famílias com renda entre R$ 60,00 e 120,00, o programa atende apenas aqueles que têm crianças em sua composição, por meio do chamado piso variável.7 Se de fato o Programa Bolsa Família não pode ser identificado como um direito social, sua criação, entretanto, significou um alargamento expressivo da Seguridade Social brasileira no campo da segurança de renda. Esse programa, também assentado no princípio da solidariedade nacional, tem seus efeitos positivos observados por um conjunto amplo de estudos,8 em que pese as restrições representadas pelo limitado valor do benefício ofertado (cujo valor médio era de R$ 72,00 em dezembro de 2007) e pela a ausência de uma regra de indexação. O programa vem alcançando majoritariamente aquelas famílias cujos membros adultos estão em idade economicamente ativa e participam do mercado de trabalho,9 e atendeu, em dezembro de 2007, cerca de 11 milhões de famílias em todo o país, estimandose um alcance para 54 milhões de pessoas. Observa-se, assim, que desde a Constituição assiste-se à ampliação dos programas de garantia de renda no âmbito da assistência social. A emergência do BPC e do PBF, benefícios monetários de natureza não contributiva operados pelo Governo Federal, representam hoje parte importante do sistema de proteção social e da Seguridade Social brasileira. Eles expressam o surgimento de um pilar de garantia de renda à população em situação de extrema pobreza. Apesar de combatidas por um forte discurso de crítica à expansão da intervenção do Estado e dos gastos sociais representados por esses programas, tais iniciativas consolidaram-se no período com impactos significativos face à gravidade do quadro social brasileiro, confirmando o relevante papel das políticas de proteção social em um projeto de sociedade menos desigual.
6. Herdeiro dos programas de transferência de renda implementados no final dos anos 1990 em diversas cidades brasileiras, e após 2000, pelo Governo Federal, o PBF introduz essa inovação com relação aos anteriores. Os primeiros programas federais (o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação) beneficiavam famílias em situação de pobreza que contavam com crianças em sua composição, reafirmando assim a idéia da vulnerabilidade pela idade como condição para a legitimidade da transferência de renda. O PBF, ao contrário, mantém uma faixa de proteção que beneficia qualquer família, independente de sua composição. 7. O piso básico do programa tem valor de R$ 58,00. Desde o início de 2008, o programa opera com dois pisos variáveis: um no valor de R$ 18,00, para cada criança ou adolescente de até 15 anos, no limite de três filhos por família, e o outro no valor de R$ 30,00 para cada jovem entre 16 e 17 anos, no limite de até 2 jovens por família. Para as famílias sem criança, é concedido apenas o piso básico. Para as famílias com crianças e/ou adolescentes e cuja renda média per capita seja abaixo de R$ 60,00, são concedidos também os pisos variáveis, em função do número de crianças e/ou adolescentes. Para as famílias com renda mensal per capita entre R$ 60,01 e R$ 120,00, são concedidos apenas os pisos variáveis. Os valores pagos pelo Bolsa Família variam, assim, entre R$ 18,00 e R$ 172,00, de acordo com a renda mensal da família e o número de crianças e jovens. Ver a respeito o capítulo de assistência social do boletim “Políticas Sociais: acompanhamento e análise”, n. 15, IPEA, 2008. 8. Ver a respeito IPEA - “PNAD 2007: primeiras análises- pobreza e mudança social”; Brasília, 2008. IPEA – “Pnad 2006: primeiras análises”; Brasília, 2007. Soares et alli, (2006), op. cit. Jaccoud (2006), op. cit. 9. Ver a respeito Jaccoud, Luciana – “Pobres, pobreza e cidadania: os desafios recentes da proteção social”. In Fagnani, E.; Henrique, W; e Lúcio, C.- “Previdência Social: como incluir os excluídos? Uma agenda voltada para o desenvolvimento econômico com distribuição de renda”. São Paulo, LTr Editora, 2008. 260
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A oferta de serviços no contexto do SUAS Como já citado, com a aprovação da PNAS e a implementação do SUAS, o debate sobre os serviços no campo da assistência social sofreu uma mudança relevante. O escopo dessa política passa a ser compreendido em termos de seguranças a serem garantidas. A centralidade dada à família, reconhecida como organização social básica, e o núcleo, onde são partilhadas as estratégias primárias de enfrentamento de vulnerabilidades, pretende superar a visão centrada no indivíduo e assegurar mais eficácia aos direitos e proteções sociais assegurados. Cabe ainda lembrar que o SUAS organiza um modelo nacional de gestão, integrando as três esferas de governo na execução da assistência social como política pública. O SUAS também reafirma e reforça a autonomia do município no âmbito dessa política, tornando mais efetiva a divisão federativa de responsabilidade que aloca à esfera municipal o planejamento, a implementação e a fiscalização dos serviços assistenciais. Por outro lado, com a Constituição Federal de 1988, a participação das entidades beneficentes de assistência social foi reafirmada, assim como a imunidade relativa às contribuições sociais e aos impostos que essas organizações já usufruíam10. Procurando regular e integrar a ação dessas entidades na política de assistência social, a PNAS prevê a implantação de uma rede sócio-assistencial de caráter municipal. Essa rede é definida como “um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade que ofertam e operam benefícios, serviços, programas e projetos, o que supõe a articulação entre todas essas unidades de provisão de proteção social”. Ao ser articulada a partir de um planejamento local, essa rede poderá ser beneficiária de repasses diretos de recursos do fundo público e deverá ser objeto da fiscalização dos conselhos municipais da assistência social. A articulação de ações e instituições públicas e privadas por meio da construção de uma rede sócio-assistencial permitiria promover a integralidade do atendimento por meio de uma estratégia de integração dos diversos esforços sob a coordenação do poder público. Entretanto, a organização de sistemas de informações no que diz respeito aos serviços ofertados nesse campo da proteção social dá ainda seus primeiros passos. Pouco se sabe sobre as responsabilidades assumidas pelas esferas pública e privada no que diz respeito à oferta de serviços. As informações nacionais e mesmo municipais são precárias, seja no que diz respeito às modalidades dos serviços ofertados por município, seja ao tipo de oferta, número de pessoas ou famílias beneficiadas ou qualidade dos serviços prestados. Os desafios são, assim, expressivos para a consolidação de um patamar adequado de serviços públicos ou de uma rede sócio-assistencial. Após a aprovação da PNAS e da Nob-SUAS, os Centros de Referência em 10. As Entidades Beneficentes de Assistência Social têm asseguradas imunidades dos seguintes impostos e contribuições sociais: Imposto de Renda de Pessoa Jurídica - IRPJ; Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL; Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS, e Contribuição Patronal para a previdência social. 261
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Assistência Social (CRAS) passaram a ser identificados como a porta de acesso da política para o usuário da assistência social. Esse centro também deve ser responsável pela oferta de um conjunto importante de serviços. Efetivamente, o setor público parece responder pela maior parte das ofertas em serviços como plantão social, atendimento familiar e centros de atendimento à criança e ao adolescente. Contudo, serviços de abrigamento como casa de acolhida, moradia provisória, abrigos ou albergues, voltados para a acolhida temporária ou permanente de pessoas em diferentes idades e condições de vulnerabilidade, são predominantemente ofertados por entidades privadas, da mesma forma que os serviços dirigidos aos cuidados de crianças, pessoas com deficiência e idosos são prestados.11 Paralelamente, alguns estudos específicos vêm permitindo ampliar o conhecimento da oferta de serviços para públicos determinados. Pesquisa realizada sobre abrigos para crianças e adolescentes em todo o país aponta que o setor privado responde por 68% do total dos abrigos pesquisados.12 A pesquisa revela ainda que 67% das instituições pesquisadas têm vinculo ou orientação religiosa. Atuando segundo suas próprias crenças, “nem sempre coincidentes com os objetivos e os princípios da LOAS e do ECA”, essas entidades se caracterizam ainda por contarem com forte presença do voluntariado entre dirigentes e trabalhadores (59% dos dirigentes e 1/3 do total dos trabalhadores). Em que pese a declaração da primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social, a expressiva presença do setor privado na prestação de serviços traz dificuldades para sua implementação. A primeira delas, já destacada por vários autores, diz respeito ao conflito entre o dever de ajuda e a moral filantrópica, que rege a maioria das entidades privadas, e a política pública ancorada no reconhecimento de direitos sociais, regulada e coordenada pelo Estado e assentada em padrões e normas nacionais de oferta e operação. A grande heterogeneidade das formas de atuação, as relações diferenciadas com relação ao Estado, a instabilidade no financiamento, a incipiente profissionalização e as dificuldades para implementação de mecanismos de acompanhamento, fiscalização e controle social também devem ser lembradas. Também no setor público as dificuldades são igualmente expressivas. Destacamse problemas referentes à ainda modesta cobertura da maioria dos programas e serviços, a restrições observadas no financiamento dos serviços pelas três esferas de governo, assim como às ainda limitadas iniciativas no campo do diagnóstico da demanda, da definição de parâmetros de qualidade dos serviços, da implementação de instrumentos de acompanhamento e do estabelecimento de metas para o planejamento da progressiva ampliação da cobertura. De fato, em que pese a quase total ausência de informações no campo da demanda existente e dos serviços efetivamente disponibilizados, a gravidade 11. Duas pesquisas recentes e inovadoras realizadas pelo IBGE corroboram essa interpretação. Ver IBGE - “Pesquisa de Informações Básicas Municipais - Perfil dos Municípios Brasileiros: assistência social 2005”. Rio de Janeiro, 2006. IBGE - “Pesquisa das Entidades de Assistência Social Privadas sem Fins Lucrativos (Peas, 2006)”. Rio de Janeiro, 2007. 12. Silva, Enid Rocha Andrade – “O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil”. Ipea. Brasília, 2004. 262
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da situação social sugere para um elevado patamar de desproteção no que diz respeito aos serviços a serem ofertados pela política de assistência social.
Entre o combate à pobreza e a garantia de direitos sociais Após 1988, a assistência social vem buscando sua afirmação como política pública de proteção social. Definindo as seguranças sociais sob sua responsabilidade, a política de assistência social se consolidou nessas duas décadas como garantidora de direitos sociais, operando benefícios e serviços sócio-assistenciais de caráter não contributivo que devem ser prestados a quem dela necessitar. Os benefícios têm como referência o combate à pobreza, entendido como ausência ou insuficiência de renda, e os serviços visam ao enfrentamento de vulnerabilidades associadas à fragilização de laços de convivência, à exclusão social e ao risco ou violação de direitos pessoais associados à violência, exploração sexual, trabalho infantil, situação de rua, entre outros. Respondendo aos princípios constitucionais associados à Seguridade Social, a política de assistência social deve ter como características a universalidade de acesso, a uniformidade do atendimento e a seletividade e distributividade dos benefícios e serviços, tendo o acesso garantido pelo Estado e sendo passível de demanda pelo cidadão. Essas são as bases da assistência social identificada a um direito de proteção social, e é nesse contexto que a trajetória recente dessa política se distingue da histórica associação entre assistência e filantropia. Essa última, dependente dos esforços individuais, da boa vontade assentada em princípios morais e da discricionariedade da oferta e do acesso, não podendo fornecer as bases sob as quais se assentariam garantias de proteção social. Contudo, a trajetória recente da assistência social tem sido marcada por um conjunto expressivo de dificuldades e desafios. Além dos aspectos institucionais já citados, questões de fundo organizam um debate que ainda perpassa o processo de construção dessa política. Entre elas, será destacada aqui a que se refere à relação entre pobreza e cidadania. Essa questão tem inspirado uma larga literatura que não poderá aqui ser retomada. É importante lembrar, entretanto, que uma contradição pode ser identificada entre esses termos quando acolhidos como diretriz organizadora da política, com reflexos importantes no processo de formulação da ação pública. De fato, a cidadania, referenciada a direitos e deveres e ancorada na existência de um Estado nacional, é uma categoria assentada na noção de igualdade.13 Assim, não por acaso, no Brasil, o reconhecimento do direito social encontra tantas e tão profundas dificuldades em se consolidar. Aqui, o debate sobre a pobreza tende a se descolar das referências à igualdade e à justiça. Isso porque essa é “uma sociedade em que direitos não fazem parte das regras que organizam a vida social (...), as relações sociais se estruturam 13. Telles, Vera – “Pobreza e Cidadania”. São Paulo, Editora 34, 2001. 263
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sem outra medida além do poder dos interesses privados, de tal modo que o problema do justo e do injusto não se coloca e nem tem como se colocar, pois a vontade privada – e a defesa de privilégios – é tomada como a medida de todas as coisas” (Telles, 2001, p. 21). Ao contrário, a cidadania refere-se a padrões de igualdade, enquanto os direitos organizamse como “medidas de equivalência”, que operam na contramão de heterogeneidades, hierarquias e desigualdades. Nesse sentido, desenvolver o debate sobre o combate à pobreza e desigualdade não referenciando direitos e cidadania é abrir espaço para uma política social limitada a uma “gestão da pobreza”. Dessa forma, são reafirmadas não apenas a naturalidade da pobreza como fenômeno social permanente, mas também a sua manutenção como fato que escapa ao contexto das relações sociais historicamente construídas. A pobreza assim considerada se dissocia do debate sobre organização das relações de trabalho ou estruturação das hierarquias sociais, restringindo-se às dimensões morais e comportamentais na qual se assenta a visão naturalizada das desigualdades. É nesse difícil debate que se realiza a construção da política de assistência social, seja em termos de garantia de renda para idosos, deficientes ou famílias pobres, seja em termos de serviços como os de acolhida, abrigamento, convivência ou desenvolvimento de capacidades para grupos vulneráveis. Organizar tais benefícios monetários e serviços sob a ótica do direito implica em organizá-los como bens e serviços públicos que podem estar acessíveis a qualquer cidadão, a partir de um compromisso público assentado na promoção de oportunidades, na garantia de renda e na oferta de serviços de qualidade. As dificuldades de consolidar esses princípios são expressivas em uma sociedade como a brasileira, que se organiza pelo reforço das hierarquias e reprodução da desigualdade de posições, e onde os mitos da competência e da modernidade reforçam o individualismo ancorado na competição e na crença do bem-estar como fruto único da conquista individual. Por outro lado, organizar políticas públicas a partir da concepção de direitos é uma dificuldade face às enormes desigualdades e carências que marcam o país, e que parecem atestar a impotência dos direitos. Contudo, é pela afirmação de direitos associados a uma clara definição das proteções públicas a serem garantidas e dos critérios de acesso, oferta e padrões de qualidade, que pode se avançar na ampliação do bem estar, na redução das desigualdades, na promoção de oportunidades e na ruptura dos ciclos de pobreza familiar. As políticas de proteção social têm sido responsáveis, no Brasil e em inúmeros países, pela redução da pobreza e, mais do que isso, pela construção de patamares aceitáveis de vida, de integração e convívio social. Finalmente, é importante enfatizar que o acantonamento da temática da pobreza na órbita exclusiva da política social, que muitas vezes se observa no debate recente, minimiza a complexidade do debate sobre as políticas de proteção social e sua relação com a construção de um novo patamar de direitos, de igualdade e de oportunidades. Ao 264
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mesmo tempo, ele isola o debate sobre a pobreza retirando-o do campo da organização do trabalho e de sua distribuição na sociedade, assim como do campo do desenvolvimento. É necessário romper esse limite e enfrentar o desafio de pensar, em termos nacionais, e em cada Estado e em cada município, os rumos de seu desenvolvimento, entendido como a abertura de caminhos para a geração de ocupação e renda, oportunidades e capacidades para os segmentos sociais mais vulneráveis de sua população.
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Posfácio “A dificuldade não esta tanto em desenvolver novas idéias, mas sim fugir das velhas” John Maynard Keynes
Durante os trabalhos de elaboração deste livro, uma crise que se iniciou em Wall Street ganhou força e generalizou-se, atingindo todos os continentes e amplos setores da economia, indo muito além do seu berço no setor financeiro. Dado a sua relevância e as suas implicações, inclusive para o debate que fazemos sobre os 20 anos da Constituição de 1988, consideramos importante fazer alguns comentários, sem grandes pretensões1.
Ainda é cedo para que se possa pontificar o conjunto das conseqüências econômicas, sociais, políticas e ideológicas da crise. Mas em cada um dessas áreas já se delineiam as primeiras vítimas. Em 1989, a queda do Muro de Berlim consagrou o domínio da economia de mercado e do ideário neoliberal. Quase nada podia se opor aos conceitos que postulavam a superioridade do mercado, pois sua auto-regulação organizaria a sociedade, gerando e distribuindo, a seu modo, riquezas. Em setembro de 2008, cai outro muro. Aliás, agora são muitos. Uma crise se inicia num segmento de hipotecas imobiliárias americanas e alastra-se por todo o sistema financeiro, pelos efeitos potencializados dos novos instrumentos de securitização e de alavancagem de crédito. E, dos Estados Unidos, rapidamente alcança as grandes praças européias e asiáticas, em decorrência de uma globalização que não impõe limites ao fluxo dos capitais. Num curto espaço de tempo, o que aparentava ser problemas de liquidez no sistema bancário americano revelou um estado de insolvência de muitas dessas instituições. E resultou numa crise que, da paralisia dos circuitos financeiros, atinge quase toda a economia mundial. Numa apuração parcial, somente no mês de outubro de 2008, o equivalente a quase US$ 3,5 trilhões foram disponibilizados ao sistema financeiro pelos governos e bancos centrais dos EUA, Inglaterra, países da União Européia, Rússia, Japão e 1. Para a elaboração desse texto foram consultados os seguintes artigos: MORAIS, Lecio. O mundo capitalista em uma crise sistêmica: hora de cuidarmos do futuro do Brasil. Revista Princípios out/2008 - a ser editado KRUGMAN, Paul. O papel dos gastos públicos. Acessado em http://luisnassifonline.blog.uol.com.br/economia BELLUZZO, Luiz G.. “Corte de gastos públicos levou a Alemanha ao nazismo.” Acessado em http://www.cartamaior.com.br 267
outros países asiáticos e do Oriente Médio. Estatizações foram feitas e garantias públicas foram oferecidas buscando resgatar a confiança perdida. E nada parece suficiente para afastar as certezas de que uma grande recessão dominará o cenário nos próximos anos. Abalam-se as convicções de que o mercado, auto-regulamentado e orientado pelo mecanismo de opções racionais, poderia representar a solução definitiva para toda e qualquer sociedade. Em suma, agoniza o que Joseph Stiglitz e outros denominam de “modelo de fundamentalismo de mercado”, demonstrando a falsidade das argumentações em prol da liberalização e questionando as cognominadas “bases ideológicas” que regem a maior parte das decisões econômicas mundiais. Esses fatos altamente simbólicos têm a potencialidade de impor mudanças, mas não de defini-las. As saídas dependem da capacidade de construir alternativas. Em 1989, a queda do muro sacramentou rumos liberais que estavam traçados desde 1973. Teve o condão de romper as últimas resistências para consolidar um novo consenso. A situação de 2008 parece ser ainda diferente e muito provavelmente as idéias neoliberais ainda se farão ouvir por muito tempo. As disputas que se seguirão, sobre como equacionar as saídas para essa crise e a quem imputar todos esses ônus, definirão a magnitude das mudanças que estão por vir. A realidade econômica, as idéias e as políticas mudarão no mundo, e também no Brasil. Mas, poderemos ter desfechos diferenciados. Apesar de estar em melhores condições para enfrentar os problemas do que a maioria dos demais países, principalmente se comparado aos emergentes, a cada dia torna-se mais evidente que o Brasil sentirá pesadas conseqüências dessa recessão internacional. A diminuição do crédito externo e de novos investimentos no país, a redução do saldo da balança comercial – principalmente com a baixa dos preços das commotidies no mercado externo-, a saída de divisas e a vulnerabilidade frente aos especuladores são apenas algumas das probabilidades mais plausíveis. O Governo pouco pode fazer para evitar as duas primeiras. Mas a realidade é diferenciada nos demais casos e serão necessárias mudanças que permitam uma ação defensiva contra a drenagem das nossas reservas. Muitas políticas adicionais serão necessárias para a proteção da economia, em especial para o fortalecimento do mercado interno, da sua capacidade de produção e de consumo. Embora a alta do dólar tenha segurado um pouco a queda das exportações, quando a dificuldade das vendas externas aumentar será prudente majorar o grau de nacionalização da produção. Se não há confiança entre os agentes econômicos para garantir a fruição do crédito ou manter investimentos produtivos, o governo deve adotar medidas para restabelecer as relações produtivas. 268
Devemos fazer valer a superioridade que nos restou exatamente por termos rejeitado a aplicação integral do ideário neoliberal, especialmente após 2003. A ampliação do nosso mercado interno, com a diminuição da pobreza, o fortalecimento do emprego e as melhorias nos salários são apenas alguns exemplos. Mesmo a existência de 200 bilhões de dólares em reservas, que permitem um maior fôlego diante de tantos problemas decorreu de grandes embates, onde a ortodoxia do Banco Central saiu derrotada pelas forças que defendiam medidas mais ativas para proteção da moeda nacional. Além disso, a manutenção de bancos públicos, grandes empresas estatais capitalizadas que possam prestar amplos serviços públicos, ao contrário das privatizações, poderá revelar instrumentos valiosos para diminuir os efeitos da crise externa e a construção de um futuro mais promissor para o país. Pode ser que tudo isso seja a diferença que faltou aos inúmeros países que sucumbiram a esses interesses neoliberais e amargaram grandes crises, como a do México (1994), do próprio Brasil (1998), da Argentina (2002) e da Islândia (2008) – ressalte-se um desastre desproporcional naquele que foi um verdadeiro laboratório e também um grande mostruário das políticas neoliberais. Não faltarão vozes para postular que a saída está no corte dos gastos públicos. Contrapondo esse discurso, são apresentadas em alguns artigos desta obra, as benesses dos gastos públicos, principalmente quanto a sua eficácia social. Também é interessante enfatizar como as opiniões se divergem. Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia em 2008, afirma exatamente o contrário dos que defendem corte de gastos, quando assume como proposta ao enfrentamento da degradação social, do desemprego e da recessão oriunda da crise financeira; fortes investimentos em políticas públicas, aumento dos impostos para os mais ricos e fortalecimento do poder de negociação dos sindicatos. Também não faltarão sugestões em ampliar as reformas pelo corte de direitos, precarizar ainda mais as relações de trabalho, ampliar as garantias para o capital financeiro e a autonomia das Agências reguladoras e do Banco Central. Mas a elas devemos apontar o rastro de destruição deixado pelos seus paradigmas.
Flávio Tonelli Vaz Juliano Sander Musse Rodolfo Fonseca dos Santos Coordenadores
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