O despertar para um olhar crítico

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Avaliação Banca Examinadora

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Agradecermos ao Roberto Piva que nos dedicou um dia inteiro de sua vida, para a discussão do livro Paranóia; ao poeta ensaísta e tradutor, Cláudio Willer que nos acolheu e favoreceu o nosso encontro com o poeta Roberto Piva; aos nossos orientadores Claudia Marinho e Nelson Somma Junior. Um agradecimento especial aos nossos amigos e familiares que se envolveram de forma indireta nesse projeto, compreendendo e incentivando cada integrante do grupo durante todo esse semestre.

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Resumo Este trabalho, que visa a discussão entre design e literatura, teve como objeto de estudo, o livro Paranóia de Roberto Piva, no qual o autor adotou a estética onírica surrealista e a influência do estilo de vida beat como meio de traduzir e registrar a cidade à partir de imagens fotográficas que se fundem a subjetividade do discurso poético caracterizado pela subversão do real e transgressão dos valores sociais vigentes. Neste sentido, a pesquisa busca identificar e reconhecer a utilização de um processo criativo que tanto pode ser utilizado no universo da literatura quanto no universo do design. Para isso, as questões que estão presentes no livro como: o caminhar pela cidade, a relação entre linguagem verbal e visual, a utilização de referências pelo viés da intertextualidade e a antropofagia, serviram de ferramenta para a construção de um olhar subjetivo. palavras-chaves: cidade, transgressão, subjetividade, poesia, design e fotografia

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Abstract This research, that try to discuss the diference between design and literature, had as its object of study, the book Paran贸ia of Roberto Piva, in which the author adopted the aesthetic on铆rica surreal and influence in lifestyle beat with a way to translate and record the city to photographic images that the subjectivity of the merging poetical discourse characterized by the subversion of the real transgression and the prevailing social values. In this sense, the research seeks to identify and recognize the use of a creative process that can be used both in the universe of literature and the world of design. For this, the issues that are present in the book as: the walk around town, the relationship between verbal and visual language, the use of the bias of intertextual references and anthropophagy, served as a tool for the construction of a subjective look. Key words: city, transgression, subjectivity, poetry, photography and design

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LISTA DE IMAGENS Fig. 00: Av. São João, São Paulo, 1960 16 Fig. 01: Oposição à beleza 26 Fig. 02: Fotografia das beatas católicas e a fachada de uma loja 27 Fig 03: Meninos brincando no Parque do Ibirapuera 27 Fig 04: Detalhe do Monumento à Bandeira de Victor Brecheret 33 Fig 05: Detalhe de uma lápide do Cemitério da Consolação 33 Fig 06: Fotografia da Rua Aurora e Avenida São Luiz 34 Fig. 07: Fotografia representando aquários desordenados da imaginação 35 Fig. 08: Seqüência fotográfica nos arredores do Largo do Arouche 41 Fig. 09: Fotos de meninos no Parque Ibirapuera 43 Fig. 10: Fotos do Parque do Ibirapuera 43 Fig 11: Foto do Parque Ibirapuera e Título do poema no livro Paranóia 44 Fig12: Meninos brincando no Parque Ibirapuera e poema do livro Paranóia 44 Fig. 13: Fotos do Parque Shangai 45 Fig14: Fotografia de uma pessoa deitada num banco de uma praça 46 Fig.15: Seqüencia fotográfica do Paranóia de Astrakan 47 Fig.16: Seqüência Fotográfica do Poema de ninar para mim e Bruegel 48 Fig.17: Fotografia de um manequim 49 Fig.18: Seqüência fotográfica do Poema Lacrado 51 Fig.19: Seqüencia fotográfica do poema Piedade 53 Fig. 20: Seqüência fotográfica do poema Anjos de Sodoma 54 Fig. 21: Seqüência do poema Submerso 56 Fig. 22: Fotografia dos meninos no Largo do Arouche 57 Fig. 23: Fotografia dos meninos no Parque do Ibirapuera 58

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3 34 4.1 O processo criativo fotográfico 40 4.1 Transformação da matéria-prima em poesia 42 4.2 Transformação da matéria-prima em imagem fotográfica 46

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10 1.1 Introdução ao universo Beat 10 1.2 Introdução ao surrealismo 13

20 3.1 O discurso poético do livro Paranóia 23 3.2 O estilo fragmentado 25 3.3 As linguagens verbal e visual 28

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51 5.1 A análise intertextual 55 5.2 Passeando pela cidade 55 5.3 Entre vertigens e alucinações psicodélicas 65 5.3 Entre o céu e o Inferno 73 5.4 Entre Eros e Meninos 79 88

94 Anexo A - Mapa do circuito de Roberto Piva 95 Anexo B - Roteiro Fotográfico 96 Anexo C – Entrevista com Roberto Piva 104 Anexo D – Poema América 108

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Anexo E – Poema Supermarket California 112 Anexo F – Manifesto do Surrealismo 114 Anexo G - Livro Paranóia 134

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Este trabalho tem o objetivo de estudar o livro Paranóia, do escritor Roberto Piva. Paranóia é um livro de poesia combinada à linguagem fotográfica que tem como tema a relação entre a cidade de São Paulo e seus tipos urbanos. O poeta adota o viés da estética surrealista, favorecendo a expressão da linguagem onírica, que fica evidente diante do estilo poético fragmentado e dos rompantes da linguagem fotográfica, contada a partir de várias histórias paralelas. Paranóia foi lançado em 1963 e reúne características do “Manifesto do Surrealismo”, como a subversão do real e a afirmação da palavra poética a partir da loucura, do sonho, da imaginação, da subjetividade e, principalmente, do registro automático de seus fluxos de criatividade. As características do manifesto são combinadas à influência beat, que se revela no andar pela cidade, nos personagens marginalizados, na expressão erótica do sujeito lírico e na transgressão dos valores sociais. A fusão das características surrealistas e beats resulta num discurso antropofágico administrado pela intertextualidade poética e fotográfica. Nesse sentido, foi possível observar que a identificação e o reconhecimento de um processo criativo podem auxiliar e fundamentar a inter-relação existente entre o design e áreas distintas. Desse modo, inserem o processo em reflexões de naturezas diversas e ampliam seu alcance, gerando objetos distintos e criativos no campo do design.

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Em virtude da falta de qualidade técnica de impressão das imagens fotográficas da primeira versão, a pesquisa teve seu início com a adoção da 2a edição do livro, pelo Instituto Moreira Salles, e se concentrou na identificação de um processo criativo capaz de auxiliar e fundamentar a relação existente entre a literatura e o design. Para isto, a representação da realidade percebida e expressada de diversas maneiras no livro Paranóia foi contextualizada a partir da comparação de sua obra com a de todos os escritores citados ao longo de seu discurso. Além disso, foi possível entrevistar o poeta Roberto Piva e compreender melhor seu processo criativo. A entrevista rendeu um material riquíssimo, que permitiu o mapeamento dos pontos da cidade por onde ele efetivamente circulou e a produção de um roteiro fotográfico inédito. Assim, o primeiro capítulo refere-se à definição da estética beat e surrealista e à forma como Roberto Piva se relaciona com elas. No segundo capítulo, se observa a relação entre o poeta e a metrópole, suas percepções sobre a cidade de São Paulo e como ela, representada por seus moradores, o vê. O terceiro capítulo apresenta as principais características de seu discurso, como o estilo fragmentado dos poemas e a relação constante entre as linguagens verbal e visual. Já o quarto capítulo apresenta o fazer poético de Roberto Piva, em que não existe distinção entre vida e obra; da soma desses elementos, nasce a experimentação e subjetividade. E, finalmente, o quinto capítulo apresenta a projeção intertextual de seu discurso.

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Seja pela maneira como roberto Piva se relaciona e se comporta diante da sociedade e o modo com isso se reflete em seu trabalho, iniciaremos nossa discussão com uma breve introdução dos movimentos que podem ser ligados diretamente ao poeta e que serão analisados e relacionados mais detalhadamente nos próximos capítulos.

1.1 Introdução ao universo beat Quando a burguesia da América dos contos de fadas da década de 1950 finalmente respirou aliviada diante da ascensão e do fortalecimento econômico, surgiu uma vanguarda1 decidida a pôr em xeque toda e qualquer forma de domínio conservador e opressivo, a essa vanguarda se deu o nome Movimento Beat e o curioso título de Marco Inicial da Contracultura. Ancorado no encontro de poetas de Nova York e São Francisco para a leitura do poema “O Uivo” (1955) de Allen Ginsberg na Galeria Six, em 1956, o movimento beat em sua gênese nunca teve qualquer outra ambição que não fosse manter o estilo de vida extravagante, promíscuo e boêmio em prol da liberdade de expressão.

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Idealistas, proféticos, e insanos, os beats estavam sempre de malas prontas para viver cada dia como se fosse último. “Mergulhados no budismo zen” (NOGUEIRA, 2005, on-line), viajavam pelos Estados Unidos, usando drogas, transando, desenvolvendo métodos de registros e contando seus “pensamentos mais íntimos” (GOFFMAN e JOY, 2007, p. 264) para quem quisesse ouvir. Mas, até aí, nunca imaginaram que a literatura que produziam seria capaz de interessar a tanta gente a ponto de ameaçar o autoritarismo do establishment. Todavia, o recital de poesia organizado para a leitura de “O Uivo”, em 1956, não poderia ter sido mais polêmico. O público que compareceu foi recebido com vinho e, quando Ginsberg começou a leitura, Kerouac ficou tão eufórico que “gritava ‘Vai!’ a cada verso e membros da platéia choravam abertamente” (GOFFMAN e JOY, 2007, p. 264). Ginsberg foi ganhando confiança para fazer daquela leitura uma performance à la Anton Artaud. O público foi ao delírio. Já quanto ao conservadorismo americano, não se pode dizer o mesmo. O livro foi perseguido e seu editor foi acusado de pornografia. Mas “essa era a mínima punição que se podia esperar da repressora sociedade da época que, ao se ver refletida e acusada na poesia do jovem transgressor (‘Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus’) vingou-se, para não enlouquecer com ele” (VERAS, 1997, on-line). Todavia, os beats já não eram os mesmos desconhecidos do início da década e todos esses episódios só serviram para render publicidade, conquistar a simpatia de um público de idade semelhante e promover o poema como marco inicial da contracultura. De uma hora para outra, as viagens beat ganharam nome e sobrenome, os drop outs se transformaram em epidemia nacional e milhares de jovens, foram buscar algum sentido para as suas vidas exilando-se do sistema na tentativa de conhecerem a si mesmos e afirmarem a sua individualidade. “Não era só o mundo lá fora que movia esta juventude insatisfeita a cair na estrada e buscar o novo, era sobretudo, o mundo interno que prometia aos

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viajantes, o entendimento, o entendimento de si e a superação dos limites impostos pela cultura” (CAPPELARI, 2007, p.29). E se a liberdade havia alcançado o status de ordem, era preciso vivê-la na sua mais expressiva modalidade. O ideal de cultura americana foi dispensado. O sexo deixou de ser uma mera ferramenta do amor, preso entre quatro paredes, para se transformar em desejo, orgias e manchetes de jornal, enquanto o uso de drogas simbolizava a

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[...] mais radical das experiências, a busca de novas maneiras de perceber o mundo e com ele se relacionar e nesta busca incessante, experimentar tudo o que possibilitasse a abertura das portas da percepção era a palavra de ordem (CARVALHO, 2002, p. 05)

E assim, o ideário restrito a um grupo de jovens intelectuais que foi buscar a espiritualidade na cultura oriental, formas de felicidade entre a natureza e sociedades primitivas, elos de amizade no sexo e a liberdade de expandir-se ao infinito nas drogas, se transformou numa verdadeira revolução comportamental. O legado beat e da contracultura no mundo de hoje nos permite viver uma sociedade mais aberta, menos repressiva, com maior liberdade no plano da conduta individual, da sexualidade, do maior respeito pela diferença e interesse pela diversidade e multiculturalismo. (NOGUEIRA, 2005, on-line)

Entretanto, por mais expansivo e revolucionário que tenha sido o alcance dos ideais filosóficos do movimento beat, considerá-lo como o começo de tudo significa anular as conquistas sociais, políticas e estéticas de outros movimentos, que em sua época e contexto, tiveram igual grandeza. Se separamos as principais características do movimento beat da cultura americana da década de 1950 (que reduzia qualquer coisa a bem de consumo) e dos meios de comunicação televisivos, é fácil perceber que a rebeldia impressa na poesia beat não aconteceu a partir do nada, mas tem fundamento histórico. Os beats, “foram leitores, acima de tudo.

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Por isto, se tornaram autores. Tornando-se autores, passaram a ser revolucionários” (WILLER in GINSBERG, 2005, p. 10). Uma revolução construída pela ampliação do intelecto e experimentalismo. O movimento beat não foi a primeira vanguarda que provocou uma renovação cultural. O povo judeu foi contracultural quando se opôs ao cristianismo, os transcendentalistas americanos foram contraculturais quando resolveram negar o ócio, os surrealistas foram contraculturais quando resolveram atribuir novos valores à arte.

É neste sentido de contracultura – não está datada –, que enxergamos uma proximidade na maneira como Piva se porta diante às regras e os padrões estabelecidos e na maneira desregrada como traduz isso em forma de palavras. Assim como os beatniks, Piva não separa vida da obra. Ele carrega consigo as mesma vertentes subjetivistas, descendente do simbolismo, que os beats. Podemos afirma que a obra Paranóia é a representante brasileira deste vertente.

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Dessa forma, (...) podemos entender por contracultura duas coisas diferentes: o conjunto de movimentos de rebelião da juventude que marcaram os anos 1960, um fenômeno datado e situado historicamente; ou um espírito, um modo de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente, de caráter profundamente radical e estranho às formas tradicionais de oposição a esta ordem dominante. Um tipo de crítica anárquica que rompe com as regras do jogo (PEREIRA, 1992, p.20).

1.2 Introdução ao surrealismo Depois da introdução da máquina nos meios de produção, tudo começou a acontecer muito rápido. De uma hora para outra, o mundo estava pavimentado de estradas e vivendo a Primeira Guerra Mundial. Paris vivia o ápice da sua re-

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novação cultural, era uma cidade prodigiosa, repleta de artistas interessados em renovar as artes e transformar a sociedade. Libertar o homem, transformar a realidade, reinventar o mundo, ideais de uma época em consonância com as descobertas da psicanálise e o alento reiterado pelas conquistas e esperanças do marxismo. Foi o suficiente para fazer transbordar as margens com seus escritores e artistas. E o ideal, por vezes cristalizado em mito (um de seus possíveis destinos), é o primeiro prenúncio da arte, para tornar-se em seguida seu emblema, sua bandeira de guerra (BORGES, 2003, on-line).

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A aposta de transformar o mundo por meio de uma arte livre de qualquer padronização normativa, centrada na afirmação da palavra poética e na descoberta individual do inconsciente, seduziu o poeta André Breton que, em 1924, publicou o “Manifesto do Surrealismo”. Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morreu há pouco, e que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupault e eu designamos com o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos. (BRETON, 1924)

O surrealismo nasceu com a idéia de revolucionar o mundo, colocou a loucura no topo (seguida pela liberdade e pela imaginação) , atribuiu novos valores às palavras e se aproveitou da popularização da mídia impressa para correr o mundo. O surrealismo foi uma revolução centrada na relação entre sociedade e poesia, em que toda a forma de expressão estética era válida. Todavia, o surrealismo podia ser resumido a contribuições distintas herdadas do ideal romântico somadas à estética simbolista e reguladas pelo fluxo automático de registro do inconsciente, que romperam com o new criticism vigente. De uma forma ou de outra, o surrealismo se constituiu em uma forma de desconstrução.

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Alguns autores consideram Paranóia como uma homenagem à cidade de São Paulo. No entanto, para Roberto Piva, é o reflexo do sentimento que a cidade lhe proporciona. O autor assume que esta metrópole lhe faz muito mal e que só vive nela por falta de opção. Sua visão da metrópole se traduz em uma necrópole transformada em alucinação. Diz-se um poeta na cidade e não um poeta da cidade. Apesar de lançado em 1960, Paranóia critica de maneira profética os costumes de uma sociedade voltada para a expansão econômica territorial desenfreada vinda das décadas anteriores. No período entre 1940 e 1960, a cidade de São Paulo sofreu uma transformação alucinante. Em menos de vinte anos, a população triplicou, chegando a 6 milhões de habitantes. Intensificou-se a criação de loteamentos em vários pontos da cidade, reformulou-se a estrutura urbana com ampliação e construção de grandes avenidas, aumentou o processo de verticalização com a construção de prédios residenciais, surgiram os policentros (subcentros distribuídos pela cidade) provocando um deslocamento do comércio de luxo para outras áreas da cidade e acarretando no início da degradação do Centro Novo, formando com isso uma distinção de classes pelo posicionamento territorial na ci-

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dade. O sonho de modernidade parecia cegar a sociedade para ao cenário que se desenrolaria no pólo econômico e produtivo mais importante do país. [...] E se desenvolvimento econômico, a princípio, seria sinônimo de aumento da riqueza social, aos poucos vai se configurando como a antítese do bem-estar geral, e a concentração ainda maior do capital em poucas mãos, sem um investimento compatível para dar condições mínimas de sobrevivência à mão-de-obra que lhe dá sustentáculo (GAMA, 1998, p. 319).

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Agência Estado

Av. São João, São Paulo, 1960

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Na mesma medida em que sustenta a grande cidade, esta maior porção da sociedade é posta em zonas periféricas representando o reflexo dela mesma e compondo a verdadeira fisionomia da cidade. Piva afirma ser um poeta marginalizado, e não marginal. Posto às margens, é de lá que dá seu grito para romper com a ordem estabelecida. Parece querer despertar aqueles que estão em sono profundo e fazê-los enxergar com outra visão a realidade, como pontua o crítico e escritor David Arrigucci no posfácio de Estranhos Sinais de Saturno: Assim, a fala se faz um instrumento poderoso para exprimir as iluminações líricas e os percalços da experiência da rua; canaliza as sombras da metrópole trepidante e predatória, condenada à periferia do mundo globalizado. Antes que esta expressão fosse corrente, a multiplicidade caótica do universo já estava irmanada na visão delirante que ele [Roberto Piva] tem da cidade. (2008, p. 201)

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No entanto, esta visão não é construída de dentro de seu apartamento em Santa Cecília, onde mora atualmente. Ele é uma figura, conforme diz David Arrigucci, na sinopse do documentário “Assombração Urbana”, com Roberto Piva, “uma personalidade poética que extrapolou os livros, que vive por aí, que existe de se ver”. À época do lançamento do livro, na década de 1960, o centro da cidade era o ponto de encontro do círculo cultural composto por estudantes, artistas, intelectuais, professores universitários, músicos e escritores. Cláudio Willer diz:

O poeta andarilho que traduz de maneira singular aquilo que vê em suas andanças pelas ruas da cidade. Semelhante à figura criada por Baudelaire, o flâneur. O viajante moderno passeia pela cidade; não é mais o peregrino, o nauta, o corsário – é o flâneur. É o flibusteiro da modernidade, que perambula entre a margem esquerda e a direita de Paris como Morgan velejava entre Tortuga e Cartagena. A cidade está sob sua jurisdição (ROUANET apud FREITAG, 2006, p. 32).

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Rico em obras e eventos, o período foi mais rico ainda em algo que não é inventariável, que só poderia ser escrito e recuperado por poemas em prosa: os encontros. Havia um centro e um roteiro balizado por bares de mesas na calçada – o último “footing”, da Biblioteca até a esquina-Sampa, seguindo pela São Luiz. Na sua paralela, a Sete de Abril, o MASP e a Cinemateca, nos prédios dos Diários, e o Cine Coral, cinema de arte, de filmes europeus (da Dante Ancona Lopes, que depois abriu o Belas Artes). Na São Paulo de transição do bonde para o automóvel, um breve movimento centrípeta, logo substituído pela tendência centrífuga que prossegue até hoje, fazendo que a cidade se tornasse, não propriamente descentralizada, porém descentrada. (1996, p. 115)

Enfrentando suas agonias e amparado por seus ‘deuses’, ele traça um mapa subjetivo dessa metrópole e pouquíssimos a conhecem tão bem como este forasteiro. Seu olhar da cidade é a soma do caos − aos olhos claustrofóbicos de um turista − e de um sincretismo literário complexo. Além disso, é o retrato da

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pessoa que aprendeu a se perder na cidade, que, segundo Walter Benjamin, é algo comparado a se perder numa floresta, que precisa ser aprendido (BENJAMIN apud CANEVACCI, 2004). Surge daí um novo tipo de observador que vai além do olhar contemplativo ou meramente descritivo. “Atribuir uma alma a esta multidão é o verdadeiro papel do flâneur. Seus encontros com ela são a experiência vivida da qual não cansa de desfrutar” (MATOS e RIBEIRO, 1997, p. 121). Consolidação de tempos modernos para as artes e início das vanguardas, somada à evolução e à ebulição proporcionadas pela fotografia, no final do século XIX, e, futuramente, pelo cinema. Sob a ótica dos artistas, havia necessidade da construção de um novo olhar, capaz de enxergar o invisível, ou seja, aquilo que fosse menos óbvio, que escapasse ao mapeamento instantâneo do advento tecnológico e no qual imperasse a abstração. Para tanto, faz suas rondas noturnas na cidade que nunca dorme, no horário em que o verdadeiro “eu” deixa cair sua máscara e a racionalidade do dia transforma-se em caos. Piva transfigura o sonho em realidade numa convergência natural e perfeita aos moldes vislumbrados pelo surrealismo. Tal opção pela noite, reino da instabilidade, não se resume porém à descrição da paisagem, estendendo-se à disposição interior do eu lírico: “a lua não se apóia em nada/ eu não me apóio em nada” (MORAES in PIVA, 2006, p. 152). Sua visão e sua maneira de retratar a cidade lembram vanguardistas de outros séculos, como Lautréamont e, em especial, Baudelaire. Considerados ‘poetas malditos’, muitas vezes tiveram suas obras lidas ou reconhecidas após suas mortes e são ainda hoje referências e objetos de estudos em campos que não se limitam à literatura. Existe um vínculo entre as visões da capital Paris do século XIX, de Charles Baudelaire, e da capital São Paulo do século XX, de Roberto Piva, pela maneira como as revelam e vivenciam.

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O ódio de Baudelaire pela burguesia se exprime no culto e na paixão pela beleza terrível, beleza “sinistra e fria”, que ao burguês parece feia e o assusta. Paris materializa esses infernos e paraísos da burguesia, dos quais, porém, ela é inconsciente e indigna, incapaz de piedade e discernimento moral justamente porque não sabe distinguir a beleza verdadeira da falsa. Paris se torna o teatro de uma luta entre o bem e o mal sob as máscaras de um combate entre o belo e o feio. Mesmo sentindo as presenças e sentindose atacado por fantasmas, pesadelos e espectros em pleno dia, Baudelaire não deixa de ser pintor e observador (BERARDINELLI, 2007, p. 149).

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Desta forma, conseguimos estabelecer e compreender uma das referências ligadas a esse poeta contemporâneo, na sua maneira de interagir com a cidade, explorá-la, experimentá-la e traduzi-la. Existe uma coerência de seus discursos e atitudes com sua poesia, o que lhe dá um caráter singular e especial, fato que nos reforça a impressão de que Paranóia é antes uma crítica que uma homenagem à cidade de São Paulo. Poesia marginalizada, inclusive pelas grandes editoras e pelos críticos, durante muitos anos. Piva e obra são na verdade um reflexo daquilo que a sociedade não quer ver e, mais ainda, renega, distancia e repudia. Aceitar a obra de Piva é enxergar o lado sem razão, o iconoclasta, o pederasta, o exótico, o marginal em último grau. Seu desregramento cutuca as feridas expostas e estampadas na sociedade e faz-se perceber balançando os alicerces, onde quase nada (professores, comunistas, padres, freiras, anjos, poetas) escapa a seus olhos e a seu espelho. Paranóia é a necessidade de alucinação nos olhos, daquilo que ainda poucos são capaz de ver e se ver.

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O livro Paranóia, de Roberto Piva, foi lançado em 1963, pela editora Massao Ohno, como um dos primeiros livros nacionais que combinava fotografia e poesia. Talvez o único da história nacional que reúna uma antologia poética tão rica, “os poemas deste livro equivalem, portanto, a colagens, apresentam afinidade com o simultaneísmo de Appollinaire, (...) e possuem uma sintaxe cinematográfica” (WILLER in PIVA, 2005, p. 152) que rompe com a linearidade marcada pela lógica clássica aristotélica. Em Paranóia, tudo é relativo, a presença das inúmeras referências intertextuais faz com que “a distinção entre passado, presente e futuro deixe de existir (...) em si mesmos, pois dependem de um observador, o que significa que podem assumir outro aspecto ou uma nova realidade” (COELHO, 1995, p.25). A lógica contada a partir da ruptura desse paradigma de tempo e espaço permite ao autor aproximações como os paradoxos entre realidade e fantasia, além de todos os contrastes que surgem desta relação e produzem imagens bombásticas, tanto nas seqüências poéticas, como nas seqüências fotográficas. Neste sentido, Roberto Piva estabelece em seu discurso o tom da alucinação proveniente dos delírios paranóicos ou da estética1 surrealista. É Bre1

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“A palavra estética vem do grego aisthesis com o significado de faculdade do sentir, compreensão pelos sentidos, percepção totalizante” (ARANHA e MARTINS, 1986, p. 378).

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ton quem vai valorizar os rompantes da linguagem onírica do surrealismo, afirmando que “o pensamento não tem solução de continuidade, é a soma dos momentos de sonho, do ponto de vista do tempo” (BRETON, 1924, p. 5) A transformação da linguagem onírica em linguagem estética alforria o poeta, permite que este se relacione com a fantasia de modo particular, a fantasia no sentido literal da palavra. Desse modo, tanto faz se o poeta combina fantasia e realidade ou se ele inventa sua própria fantasia. No livro Paranóia, fantasia é a possibilidade de unir espaço e tempo de forma intertextual. Poetas como Mário de Andrade, Conde de Lautréamont, García Lorca e tantos outros surgem em cena, em meio ao real espaço urbano paulistano. São freqüentadores da Praça da República, do Parque do Ibirapuera, da rua São Luís2 e se misturam aos transeuntes descriminados pela mentalidade provinciana e burguesa da época. As referências urbanas da cidade de São Paulo, assim como os tipos marginalizados do sistema, são imortalizadas pelas lentes do fotógrafo Wesley Duke Lee e distribuídas ao longo do livro em histórias paralelas, que servem para relacionar os paradoxos poéticos aos “bares abarrotados de gente anônima, das saunas de subúrbio, dos lascivos mictórios públicos e, sobretudo das calçadas urbanas, onde se cruzam bêbados, artistas, poetas, putas, michês” (MORAES in PIVA, 2006, p. 152). A combinação das linguagens textual e visual reforça o olhar para a crítica social e imprime a posição de subjetividade visual e textual quase aleatoriamente. Portanto, as fotografias aqui trabalhadas retiram os objetos, personagens e situações de seu contexto utilitário aparente, resignificando-os para abstrair daí a essência de uma paranóia urbana cotidiana. Isolados, tornam-se signos da anormalidade; em conjunto, conformam a normalidade urbana. A combinação das linguagens textual e visual reforça a crítica social em suas infinitas possibilidade de exploração por meio da leitura da cidade e imprime a subjetividade do poeta traduzida pela genialidade do fotógrafo. A Rua São Luiz é hoje conhecida como Avenida São Luiz

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Todavia, Roberto Piva (2008)3 relembra que o livro Paranóia “nasceu underground”. Se não bastasse a crítica ao senso comum e à cultura do espetáculo promovida pela burguesia, o livro não teve mais do que seis cópias disponíveis para o lançamento e as imagens fotográficas não tinham nenhuma qualidade de impressão: “Distribuído em livrarias e enviado à imprensa e aos críticos, foi objeto de um silêncio total (...) quase não há registros de seu lançamento, e nenhum crítico, por muitos anos, o examinou” (WILLER in PIVA, 2005, p. 155). Parte deste desinteresse se deve à legibilidade da obra, os brasileiros estavam acostumados à “poesia de gabinete4” governada pela “massificação ou padronização de formas de vida, sob o jugo de um sistema capitalista de produção no qual todas as virtudes se medem em função do princípio de utilidade.” (SANTOS, 2005, p.02) A capacidade de síntese simbólica registrada pela ambigüidade metaforizada da palavra exigia do seu leitor o abandono dos formalismos vigentes e assim, aos poucos, o livro foi conquistando o seu espaço entre aqueles que sabiam que “poesia era uma arte minoritária”5. Por volta de 1965, André Breton publicou a primeira resenha do livro na revista La Brèche. Em sua crítica, Breton elevou a obra ao patamar do surrealismo: Segundo a resenha, “Paranóia é o primeiro livro de poesia delirante publicado no Brasil” e ressalta as influências de Piva, como Lautréamont, Freud e “a mais moderna literatura beat norte-americana” (...) Com a publicação do livro, Piva também foi incluído no Dictionnaire Général du Surréalism [et de ses environs], de Adam Biro e René Passeron (MACIEL, 2003, on-line).

Todavia, o reconhecimento do livro Paranóia não foi suficiente para promover a sua divulgação e ele continuou marginalizado. Em contrapartida, atraiu fãs, rendeu críticas literárias em âmbito nacional e reedição com imagens fotográficas 3 4 5

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Entrevista realizada pelos alunos em 19/11/08 em anexo Forma como Roberto Piva se refere à poesia concreta ou construtivista Citação de Otávio Paz freqüentemente usada por Roberto Piva, como acontece no documentário “Assombrações Urbanas” (2002) e nas muitas entrevistas publicadas.

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em boa qualidade pelo Instituto Moreira Salles em 2000. Recentemente, em 2005, foi repaginado6 sob a direção de Alcir Pécora pela Editora Globo.

3.1 O discurso poético de Paranóia

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Em Paranóia, todo gesto e qualquer movimento são para falar de poesia, mas quase ninguém entende que poesia é linguagem simbólica, “sensibilidade operada pela percepção analógica, princípio produtor da linguagem original e verdadeira (...) sentida e imaginada a partir da ignorância e poderosa imaginação.” (SANTOS, 2005, p. 11). A maioria das pessoas reage aos poemas de Paranóia com total indignação, pois elas exigem da palavra exatidão científica e são incapazes de extrair flores e símbolos das paranóicas imagens blasfematórias ou pornográficas do livro. A força das imagens poéticas de Paranóia é uma das suas principais características, porque extrapola os valores morais e religiosos, “não nasce da comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos remotas” (BRETON apud REVERDY, 1924, p. 10), o que faz com que qualquer palavra possua inúmeros significados. Tudo em Paranóia é analógico e subjetivo: O maravilhoso contato imediato entre sujeito e objeto não depende fundamentalmente de uma apreensão consciente, ao contrário deve se à fixação sucessiva e inconseqüente de imagens. A imagem poética, portanto, desrespeita por completo os princípios racionais da lógica e nem mesmo a dialética nos é suficiente para desvendar lhe seus meios de aparição. A razão se vê ameaçada por sua cada vez mais visível incapacidade de digerir o caráter contraditório da realidade (SANTOS, 2005, p. 3).

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A paranóia poética de Roberto Piva, surge em “Um Estrangeiro na Legião” isenta de qualquer imagem fotográfica.

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Essa ambigüidade metaforizada das imagens de Roberto Piva em Paranóia nasce da sua livre associação de idéias associada à expansão de sua sexualidade, que “funcionam como veios imagéticos cuja abstração não os deixa tombar pra valer no chão do vulgar. A epopéia desses grandes elementos, orquestrada por uma imaginação veloz, é um espetáculo de grandeza, quase sublime” (RIZZO, 2006, on-line) e rompe com o racionalismo cartesiano, já que esta quebra de padrão mental permite o surgimento de uma expressão que não é individual e nem coletiva, mas sim uma união dessas duas realidades anteriormente separadas. Nesse sentido, para Roberto Piva, um cu é sempre um cu, mas para a poesia um cu deve simbolizar inúmeras representações e sentidos. A lógica não faz parte da linguagem poética. Quem atribui qualquer lógica e valores à poesia é a interpretação de cada leitor. Essa relação entre sociedade e poesia, representada pela força imagética, estabelece seu principal conflito paranóico, movimenta a crítica social e todos os paradoxos presentes do livro, em que a poesia é colocada como “um ato sexual, uma agressão, cujo propósito é a mais íntima das uniões” (PIVA, 1985, p. 55), um ritual sagrado entre vida e morte, devoção e servidão. Essa sacralidade distancia Paranóia cada vez mais do senso comum escravizado pela padronização cristã e, via imagem textual ou visual, se coloca contra a “sociedade marxista e positivista que inventa rótulos e embalagens com o objetivo de castrar as pessoas” (PIVA in ASSOMBRAÇÕES URBANAS, 2004). O discurso assume um tom irônico, a cidade se transforma num texto de imagens bombásticas e palavras fortes, escatologias que não conhecem disfarces ou meias verdades, espalhadas por toda a página. A noite se transforma em dia; citações, metáforas e paráfrases são transformadas em personagens marginalizados e “por esse motivo se oferecem às mãos do poeta para viver dentro de uma nova perversão, ou de uma nova transgressão” ( BRITO, 2007, on-line). Neste sentido, a transgressão representa a sacralidade de cada poeta, o fio de inspiração, o modo como ele se relaciona com a sociedade e também “o modo

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3.2 O estilo fragmentado

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como registra subjetivamente na sua história pessoal as marcas desta continua experiência pessoal” (ARRIGUCCI in PIVA, p. 202). Em Piva, esta sacralidade é simbolizada pela sexualidade exacerbada, pelo paradoxo entre o sacro e o profano e pelo uso de drogas, mas é representada pelo espírito original de ruptura. A ruptura não deixa de ser “a forma privilegiada da mudança, pois a razão crítica, cada vez que se examina, parte-se; cada vez que se contempla, descobrese como outra. Não edifica sistemas invulneráveis à crítica, mas consiste em um caminho, uma discussão, um método” (SANTOS, 2005, p. 5) que em Paranóia imprime um texto fragmentado, imagens fotográficas com forte apelo crítico-social e imagens poéticas governadas pelos paradoxos entre sexualidade e pecado, sacro e profano e realidade e alucinação.

Os poemas do livro Paranóia possuem um estilo lingüístico que é marcado pela fragmentação do texto. Ela encontra a sua gênese na transgressão narrativa que combina a sonoridade poética com a formação de um texto intertextual governado pela estética surrealista. Nos poemas de Piva, usualmente o leitor não dispõe de lugares comuns ou empregos lingüísticos que imediatamente habilitem estratégias de legibilidade. O acesso ao texto exige (...) uma experiência muitas vezes difícil (...), pois sua poesia evidentemente não quer produzir a recusa de uma significação banal para entregar se a outra banalíssima, na qual a ausência de sentido é apenas uma regra estética aplicada segundo procedimentos hoje bem conhecidos (...) a dificultação da leitura é aqui elemento estruturante do sentido (PÉCORA in PIVA, 2005, pp. 12 e 13).

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Em Paranóia, as palavras não conhecem regras ou qualquer vestígio de formalismo vigente. Surgem das alucinações ou dos fluxos interruptos de consciência, são autônomas, analógicas, se espalham aleatoriamente pela página, se integram e se moldam umas às outras, imprimindo influências ‘rimbaudianas’,7 ‘whitmanianas’,8 beats e surrealistas em versos livres em que a prosa se funde à poesia. e “renuncia ao verso, à rima, à metrificação e se fundamenta sobre a união dos contrários, prosa e poesia, de cuja tensão inerente brotam os pares de opostos” (DONIZZETI, 2008, p. 2).9 Uma das versões para o estilo fragmentado de Paranóia reflete a sua condição de poeta. Fonseca (2000) associa a fragmentação do texto ao cotidiano urbano do poeta, andarilho, bombardeado pelas explosões urbanas de progresso que transforma tudo em volúpia e alucinação, que tem por definição “simular o objeto real, ou fantástico, na sua poesia (...), o poema imita o objeto, é a transcrição verbal e simbólica da natureza de seu tema” (FONSECA, 2000), reprodução fantástica da realidade. Outra razão que define os rompantes metaforizados de sua realidade paranóica é o registro dos fluxos de sua imaginação, sem qualquer censura ou elaboração racional prévia, em versos longos e curtos que aproximam paradoxos analógicos e se configuram, por excelência, como o modus privilegiado de expressão da modernidade, pois exacerba tanto o ritmo e as imagens caóticas, dilaceradas e fragmentadas do inconsciente do poeta, quanto o ritmo e as imagens caóticas, dilaceradas, absurdas e fragmentadas do mundo exterior, em constante metamorfose. (DONIZZETI, 2008, p. 2).

Rizzo (2006) prefere definir que

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Arthur Rimbaud ficou conhecido pela sua capacidade de desconstrução do verso. Walt Whitman, foi o “inventor” do verso livre. Poema em prosa e modernidade lírica.

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a construção do verso longo de Piva (...) fornece o suporte de uma escrita em que o fluxo de imagens encadeadas é o principal mecanismo, pois o verso longo nos dá uma informação sobre a inflexão, o tom, a postação de uma voz transgressora: a utilização de “ritmos exaltatórios e declamativos” indicam celebração, conclamação, um gesto específico dentro do gesto de ruptura (RIZZO, 2006, on-line).

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A formação dos versos também é favorecida pela estética surrealista, que tem seu alicerce nos princípios da linguagem onírica, “o sonho, ao que tudo indica, é contínuo, possui traços de organização” (BRETON, 1924, p. 5). Da linguagem onírica, a primeira coisa que se observa é a sua indiscutível capacidade de romper barreiras, definida pela sua constante irregularidade e registro em imagens distorcidas do inconsciente individual e coletivo. A linguagem onírica também justifica as muitas invertidas de ponto de vista que surgem na expressão poética de Paranóia. Todavia, a linguagem onírica não serve para ditar ordens, ou para servir a qualquer desejo de manipulação: “nada nos permite induzir a uma maior dissipação dos elementos constitutivos do sonho” (BRETON, 1924, p. 5), pois o sonho simplesmente acontece em seu tempo, em sua total analogia, em seu espaço infinito, assim como a cidade delirante de Paranóia, que ao poeta oferece total liberdade de ir e vir e brincar com sonhos, transformando a cidade numa metáfora de união do mundo das coisas e dos símbolos; o encontro com Lorca num hospital da Lapa. É um procedimento analógico aos deslocamentos do sonho, quando pessoas aparecem de fora do contexto (...) a mesma analogia se repete quando Maldoror de Lautréamount é visto num sonho nas escadas da Santa Cecília, ou como uma alucinação, na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um lótus colando a sua boca em meu ouvido (WILLER in PIVA, 2005, p. 154).

A linguagem onírica não serve apenas para aproximar realidades distintas. Ela impõe suas condições assim como a poesia e favorece o livre exercício da

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intertextualidade, porque adota um ritmo narrativo que não é linear, vai de um ponto ao outro sem precisar obrigatoriamente obedecer ao princípio, o meio e o fim, “reproduzindo a descontinuidade do tempo-espaço, da memória, do inconsciente e da sociedade industrial; uma voz irônica e melancólica − expressão do desencanto com o mundo” (FONSECA, 2000). Essa possibilidade de fragmentação textual é, por definição, transgressiva, porque rompe com antigos paradigmas lingüísticos, mas a total ausência de controle é intrínseca à linguagem onírica. Serve para estabelecer o caos, pois é incapaz de pertencer ao poeta, mas não deixa de governá-lo. Este paradoxo entre sonho e realidade se repete em Paranóia e reproduz uma nova dimensão do real, governada pela ambigüidade eu não me apóio em nada.

3.3 As linguagens verbal e visual O fotógrafo, assim como o poeta, é um observador nato, andarilho de muitas histórias, que perambula pelas cidades, poeta dos registros de luz e da síntese não verbal. É a “a versão armada do flâneur que percorre as cidades e sua realidade contraditória e desigual (...) atraído pelo que pode ser encontrado em suas áreas esquecidas e degradadas” (LOUZAS, 2004, p. 57), refém do tempo e do ofício que imortaliza fragmentos de realidade e produz linguagem. Assim, a linguagem fotográfica é meio de comunicação, percepção do olhar, registro social analógico e subjetivo de realidades instantâneas que não voltam nem se desfazem no tempo, ilustração da linguagem verbal, ampliação dos sentidos. A linguagem fotográfica parece exercitar o olhar circular, não-causal e alegórico (allos=outro; agorien=falar) e parece nos convidar à experiência da evasão, da novidade e da imaginação, que produz um outro dizer, um outro saber, em que as metáforas precedem as explicações e conceituações (WUNDER, p. 8, on-line ).

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A fotografia, assim como a poesia, é produto social, portanto produz história, porque transforma o pensar em dizer. Tanto uma linguagem quanto a outra transformam o pensar de uma época, tempo e espaço delimitado pela dimensão cultural em que se inserem, em formas de linguagem. Neste sentido, a linguagem dos poetas andarilhos se reserva o direito de seguir ou não a ideologia dominante. Aos que seguem a linguagem dominante, o mundo se afunila numa realidade cada vez mais comum e menos autoral, porque, para estes agentes de comunicação, a formação da realidade é bem de consumo governado pela reprodutibilidade técnica. Wunder define a massificação do olhar da seguinte forma:

Mas aos agentes de comunicação, que preferem produzir realidades, o mundo se abre em muitos caminhos. A realidade está onde ninguém percebe, para onde ninguém olha e exige, tanto do fotógrafo como do poeta. investigação, seleção e experimentação: “não basta apenas olhar, mas estar dentro do que se vê” (LOUZAS, 2004, p. 115), caso contrário, não existe construção. Zagni defende a idéia − que parte do princípio segundo o qual não existe formação da realidade− de que se a idéia de construção não estiver combinada à idéia de

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Atrelada ao racionalismo da ciência, nossa cultura construiu um olhar que se distancia da sensibilidade, que fragmenta, classifica, analisa, avalia e corrige. Um olhar geometrizado e em perspectiva que quer ver e organizar o mundo dentro de uma única lógica. Um olhar ativo e racional que não se deixa afetar pelas coisas. (WUNDER, p.03, on-line )

mudar o foco das lentes, de uma produção propagandista e de registro documental para um emprego crítico que se volte para o âmbito conceitual da imagem, construindo próprios nexos de ligação com uma crítica, (...) ou como preferimos chamar: um sentido (ZAGNI, 2007, p. 10).

No livro Paranóia, este sentido é definido pelo acréscimo da imagem fotográfica combinada à imagem verbal. Normalmente, quando se utiliza esse tipo

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de combinação, o objetivo é ilustrativo. Em Paranóia, o objetivo não é diferente, serve para materializar a força das imagens poéticas. Todavia, a forma como cada imagem fotográfica é inserida no contexto faz com que o sentido exato da ilustração sofra a ação da alucinação piviana e tudo mude de sentido: a fotografia não reproduz ou traduz o texto, porém sugere correspondências e afinidades, inclusive através de detalhes, partes de algum todo difícil de identificar, e de formas ambíguas, como a foto da capa, imagem tirada de um daqueles espelhos deformantes de parque de diversões (WILLER, 2000, on-line).

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Mesmo assim, o apoio visual vai ao encontro do espírito crítico-social de Roberto Piva, pois imprime seus antagonismos poéticos, a sua transgressão dos valores ssociais e morais, a representação do espaço urbano, as trocas sociais e se integra “à prática social excludente cotidiana (...) que desagrada o olhar e se destoa da concepção estética do belo” (ZAGNI, 2007, p. 1). A oposição ao belo é um princípio que não pode ser interpretado de forma isolada, pois quem fundamenta a beleza de cada estação é a ideologia dominante. Beleza é, assim, sinônimo de bem de consumo. Hara define a idéia de que A ordem capitalista contemporânea (...) é uma produtora de modelos de relações humanas até em seus refúgios mais inconscientes. Essa ordem fabrica formas de amar, de ensinar, de comer, de sonhar; impõe modos específicos do homem se relacionar com a natureza, com o corpo, com a história social ou pessoal. Em suma – diz Guattari –, ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo (HARA, 2004, p. 5).

No livro Paranóia, as imagens fotográficas são organizadas de forma cinematográfica, em histórias paralelas e independentes, em que a discussão entre beleza, consumo e progresso pode ser observada nas diferentes seqüências fotográficas. A seqüência abaixo representa a clássica oposição ao belo, pois o mendigo não produz e não gera renda; o mesmo acontece em relação ao lixo.

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Fig. 01: Oposição à beleza – Fonte: Livro Paranóia, 2000

Zagni (2007) observa que no livro Paranóia o diálogo entre a imagem fotográfica e a imagem poética acontece em oposição ao fetiche da imagem promovido pela sociedade do espetáculo.10 Nesse sentido, a crítica social incide na reprodução de uma realidade movimentada pelos seres que ele define como ‘invisíveis’:

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deitados no berço esplêndido de uma calçada, os componentes harmoniosos da imagem acinzentada, passam quase desapercebidos, como se tivessem sido tragados pela paisagem. “Seres invisíveis na ordem capital vigente”, (...) sentado sobre o passeio público, o indigente contrasta com o apressado transeunte que toma para si as luzes da definição da imagem em contraposição às trevas daquele que não é visto pela classe dominante (ZAGNI, 2007, p. 5). 10 De acordo com Evangelista (2001), a “sociedade do espetáculo” emerge da reprodução da cultura, que se dá pela proliferação de imagens de todos os tipos. A produção e o consumo de massa de mercadorias são acompanhados pela difusão sem precedentes da imagem. A vida moderna é tão maciçamente invadida pela imagem que a própria experiência humana é percebida e vivenciada como um mundo de imagens oscilantes, em que é cada vez mais difícil separar fantasia e realidade” (EVANGELISTA, 2001, p. 35).

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Mas nem todas as seqüências de Paranóia possuem as mesmas características em relação à oposição ao belo. Na seqüência fotográfica abaixo, a oposição ao belo mantém o seu apelo crítico social, mas o princípio fotográfico é oposto à idéia dos ‘seres invisíveis’ disfarçados pela paisagem acinzentada e incide naquilo que a burguesia mais preserva: o consumo e o progresso.

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Fig. 02: Fotografia das beatas católicas e a fachada de uma loja – Fonte: Livro Paranóia, 2000

No livro Paranóia, essas duas possibilidades de leitura da oposição ao belo se convergem numa única expressão estética, governada pelas inúmeras possibilidades analógicas e subjetivas. As seqüências fotográficas fragmentadas de forma não-linear ao longo do livro estão desvinculadas da obrigação de ilustrar o texto. Mesmo assim, das inúmeras imagens fotográficas que compõem o livro, existem aquelas que se traduzem instantaneamente na poesia ao lado, como é o caso desta imagem do Parque do Ibirapuera, em que o parque é reconhecido tanto de forma verbal como visual.

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Fig 03: Meninos brincando no Parque do Ibirapuera – Fonte: Livro Paranóia, 2000

Mas nem sempre a seqüência fotográfica acompanha a seqüência poética. Ao longo do livro, existem inúmeras passagens em que o registro fotográfico é feito de forma inconsciente, não possuindo relação direta com a poesia ao lado, ficando armazenado no cérebro do leitor, como é o caso da figura abaixo. No livro, a imagem poética dos “pequenos paquidermes que saem escondidos das tocas11” surge na página anterior à imagem fotográfica do elefante, que por sua vez reforça a afirmação da palavra de modo intertextual. Esta estratégia intertextual focada na afirmação da palavra se repete até mesmo quando a imagem fotográfica se funde à poesia e “ganha vigor pela simultânea afirmação do seu realismo, de que as imagens não representam apenas um mundo onírico, porém concreto” (WILLER, 2000, on-line). Isso se repete em sua síntese ao longo do livro e lhe atribui propriedades de forte apelo transgressivo, porém original à formação de uma realidade que se desdobra a partir da percepção e da construção do olhar.

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11 PIVA, 2000, 27.

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O processo criativo de Roberto Piva não marca hora, acontece simplesmente, faz parte de sua personalidade. As palavras, as imagens, os estrondos e os delírios surgem naturalmente, são frutos de sua natureza de observador contemplativo, de sua vivência na cidade, de suas relações sociais, dos poetas que lê, dos lugares de que gosta, das paisagens que venera. Roberto Piva “transforma as músicas, as vivências, as drogas, o erotismo em sangue. Escreve com sangue”12, porque sangue é vida e vida é poesia, espaço onde tudo se converge. A exemplo dos surrealistas, a vida de Roberto Piva se rende à poesia e a poesia se funde à sua vida, formando a mesma unidade, não se separando (PIVA in ARRUDA, on-line). Ao longo de todo material publicado a seu respeito, é possível perceber que a fala do poeta é intertextual. Às vezes, pontua uma frase com citação de outrem ou usa uma obra de seus ícones favoritos, nem sempre poetas, para explicar o que passa em sua mente. Também é comum vê-lo eufórico com alguma coisa que lhe apetece o espírito e perceber que nele, a vontade de compartilhar e de comunicar é uma necessidade urgente. E quando percorre a cidade, é possível observar que “em meio ao flu12

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Transcrição da frase máxima de Nietzsche, “Escreves com sangue e verás que sangue é o espírito”, freqüentemente usada por Roberto Piva.

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xo urbano, Roberto Piva flagra detalhes particulares (...) que fazem todo sentido, pois são parte de uma experiência histórica a que de algum modo seus versos dão forma ao glosar, o ritmo profundo com que a cidade troca de pele” (ARRIGUCCI in PIVA, p. 202). Roberto Piva é o alquimista antropófago13 dos tempos modernos, do mundo que surge à sua frente. Roberto Piva recorta, subverte e reordena aquilo que lhe interessa “no ouro do conhecimento” e, como ele mesmo diz, faz isto à la Salvador Dali. O método paranóico-crítico desenvolvido por Salvador Dali é usado por Roberto Piva como um sopro de inspiração. A paranóia é a desordem da mente que move um observador crônico, contemplado pela realidade distorcida de sua mente, que privilegia a loucura e as alucinações. Esse indivíduo “procura um sentido e, não achando, cria o seu próprio, torna se autor do mundo” (DALCASTAGNE, 2001, p. 127). O resultado é um conjunto fragmentado de formas delirantes que surgem da observação de cada um. São formas irracionais de associação originadas pelos instintos reprimidos, possuem lógica interna própria e fazem alusão direta aos sonhos. E assim, andando pela cidade, Roberto Piva observa a cidade e se relaciona com ela e seus ínfimos detalhes. A cidade é sempre o lugar onde tudo acontece, o burburinho urbano favorece seu frenesi criativo que “entre as colisões, o parto e o estrondo” (PIVA, 1963, p. 45) sai em busca da sua poesia na agitação das esquinas, no movimento dos pedestres, na singularidade dos bancos na praça, nas cores de suas pombas, na violenta transformação da província em cidade e encontra “cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos”, prostitutas, pederastas, meninos que dão o cu nos mictórios da praças publicas, “máquinas de fezes conquistados pelo tempo” e fábricas que vomitam escravos. O “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade, teve como motes a apropriação, reaproveitamento e transformação das influências européias e norte-americanas em cultura nacional. O processo, que se repete numa infinidade de linguagens e assuntos, consiste em assimilar, deglutir, subverter e reordenar todas as influências que constróem a personalidade e a cultura do lugar.

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O olhar do poeta para o mundo assume desta forma várias perspectivas ao mesmo tempo: de um lado, mostra se poroso e até mesmo integrado ao espaço público que se forma à sua volta; do outro, enfatiza as sensações corporais de uma experiência lasciva particularizada em detalhes sensíveis. A estas duas camadas soma-se ainda uma terceira, bastante recorrente em sua literatura, que opera no sentido de amplificar a intensidade do erótico que predispõe o sujeito lírico ao delírio (MORAES in PIVA, 2006, p. 158).

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Durante o desenvolvimento do livro Paranóia, o processo criativo foi dividido em duas etapas. A primeira fase do projeto estava destinada à produção dos poemas e a segunda, à produção das fotografias, já que o projeto original não englobava imagens fotográficas. Na primeira fase, se observa que a multiplicidade do discurso poético do livro surge desde os primeiros passos do processo criativo e engloba o diálogo com outras obras, o andar pela cidade, o método paranóico-crítico delirante de Salvador Dali e a busca pelo sagrado e pelo êxtase. Já a segunda fase envolve um misto de liberdade fotográfica de Wesley Duke Lee e direção de arte de Roberto Piva. Muito do que surge em Paranóia é influência da Revolução Romântica do século XVIII,adotada e adaptada por outros autores,14 que vão exercer forte influência na produção poética de Roberto Piva. A Revolução Romântica “foi a negação de todos os princípios e fez da mudança perpétua o seu princípio” (SANTOS, 2005, p.4). Foi a estética romântica que libertou a poesia das amaras do racionalismo científico e reconquistou o seu espírito subjetivo imaginativo e lúdico, rompendo com todos os valores modernos e partindo para a afirmação da liberdade de expressão. Com o objetivo de devolver aos indivíduos a oportunidade de exploração do universo de sua imaginação e o acesso à própria espiritualidade, a estética romântica esteve centrada na idéia de revolução por meio da afirmação da palavra, como o único meio de salvar o homem da subversão do “caráter humano em ferramentas de progresso” (FONSECA, on-line), da total alienação promovida pelo capitalismo e da destruição da natureza promovida pelo avanço industrial. 14 A estética romântica foi adotada pelo movimento surrealista e beat.

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Este caráter de salvação associado às palavras vai ser o mote de toda uma geração de poetas malditos, pervertidos e transgressivos, que vão exercer influência direta no processo criativo de Roberto Piva, em função do resgate da sacralidade poética, que desde as suas origens é temperada pelo uso de drogas e rituais orgásticos, como afirmam os “aedos e rapsodos, cantores ambulantes que davam forma poética aos mitos gregos recolhidos pela tradição e transmitidos oralmente” (ARANHA e MARTINS, 1986, p. 31). A mitologia nasce em paralelo à poesia, como a forma pela qual o homem atribui significado ao mundo que o cerca de forma intuitiva, fantástica e subjetiva.

Já a poesia é, desde então, capacidade de síntese simbólica registrada pela ambigüidade metaforizada da palavra e única forma de transmissão de conhecimento de geração para geração. Portanto, uma das críticas sociais que surge em Paranóia é justamente essa desvalorização da mitologia promovida pela ambição católico-burguesa, que substitui o princípio de prazer pelo princípio da realidade, que transforma a sociedade paulistana dos anos de 1960 em “máquinas de fezes conquistadas pelo tempo”.

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O mito surge como uma (...) verdade intuída e percebida de maneira espontânea, sem necessidade de provas. (...) é uma intuição compreensiva da realidade, uma forma espontânea de se situar no mundo (ARANHA e MARTINS, 1986, p. 22).

Com o controle político assumido pela burguesia, a palavra mito-poética perdeu seu respeito; se antes eram os poetas quem davam nome e sentido às coisas, agora era a ideologia dominante, uma espécie de senso comum que condicionava a mente e a conduta dos indivíduos à custa de sua adaptação prática e moral (SANTOS, 2005, p. 6).

Essa crítica social vai ter a sua gênese no processo criativo quando Roberto Piva prefere a marginalização à produção de poesia como bem de consumo, como capital católico-burguês.

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Neste sentido, o uso de drogas enteógenas15 durante o processo criativo de Paranóia vai ser como amálgama facilitando “um processo alquímico (...) e desregramento de todos os sentidos, um estado de transe, (...) a subversão do corpo” (PIVA in ARRUDA, on-line). As experiências com drogas enteógenas vão provocar alteração da percepção do mundo linear e usual do estado de vigília, exploração do mundo mágico, combinação de fantasia e realidade e provocar surtos de criatividade, além de afirmar o culto a Dioniso. Dioniso é o deus do vinho, do autoconhecimento, do êxtase, da loucura, da liberdade e da transgressão.

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Dioniso cria o vinho, unindo a natureza à cultura e a matéria ao espírito (...) Os adeptos de Dioniso, através do êxtase, operavam uma saída de si mesmos e, pelo entusiasmo, realizavam a comunhão com a divindade, ultrapassando a condição de simples mortais, se tornavam heróis, aqueles que ultrapassam o métron. Dioniso leva o homem à ultrapassagem do métron para poder realizar o encontro com a sua essência mais profunda, com o Self” (CAVALCANTI, 1995).

Os rituais em homenagem a Dioniso eram promovidos na floresta por sacerdotisas de diferentes classes sociais, as bacantes. “Em Atenas, esse ritual era praticado por moças da sociedade, que carregavam enormes pênis alados pelas ruas da cidade, como representação do deus” (BARBOSA, 2008, p. 3). Durante o culto, as moças dançavam, comiam carne de carneiro, bebiam vinho, reverenciavam a natureza, alcançavam o êxtase e praticavam atos orgásticos. O ritual nunca foi bem visto pela sociedade, mas foi amplamente divulgado na tragédia grega As Bacantes, de Eurípides, e desde então a alusão a Dioniso exerce forte influência na produção poética, porque delimita um campo de tensão governado pelo paradoxo apolíneo-dionisíaco. 15 O termo Enteógeno vem do grego ‘entheos’, que significa ‘deus dentro’. Chegar a ser o deus de dentro é pertinente, uma vez que essas substâncias psicoativas mediam as diversas partes da psique do próprio indivíduo, facilitando o acesso ao inconsciente e ao próprio self do usuário, sem ser exatamente uma ‘percepção sem objeto’, que caracteriza o termo alucinógeno (http://orbita.starmedia.com/~oxigenio/ nov00/enteogenos.htm).

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39 4. O processo criativo de Roberto Piva

Dioniso surge no processo criativo de Roberto Piva para universalizar a orgia por meio do encontro simbólico-sexualizado entre imagem e texto. Paranóia não existe sem o sexo, que é antes de tudo a libido do poeta, o seu princípio do prazer em constante reintegração, o paradoxo entre o sacro e profano, a representação intima do “sentir tudo de todas as maneiras até ao que podemos chamar a ekstasis dionisíaco do Eu”.16 A estética dionisíaca se repete em outras obras que dialogam com Paranóia. Allen Ginsberg, por exemplo, vai gritar para quem quiser ouvir a sua liberdade homossexual e seus textos são cheios de referências homoeróticas. Em “O Uivo”, seus personagens “uivaram de joelhos no Metrô, são arrancados dos telhados sacudindo genitais e manuscritos, se deixaram foder no rabo por motociclistas santificados e urram de prazer (GINBERG, 2005, p. 28). Mas assim como Allen Ginsberg, existem outros poetas que vão exercer forte influência no processo criativo de Roberto Piva. Arthur Rimbaud, além de considerado por Piva “um alquimista xamã avant la lettre” (PIVA in WEINTRAUB, 2000, on-line), era sinestésico, simbolista e surrealista. Adicionou à poesia uma nova combinação de sentidos entre imagem e texto, por meio da “desconstrução da poesia como forma manifesta do sufoco e do despeda­çamento do indivíduo na sociedade e rompendo assim com a ordem lógico-frasal e reproduzindo o caos da cidade” (FONSECA, 2008, on-line). Tanto Ginsberg como Rimbaud tinham hábitos de vida, como a boemia e o nomadismo, que se fundem ao processo criativo de Roberto Piva, poeta andarilho das ruas do Centro Velho de São Paulo sob a luz da lua. Além disso, existe uma outra característica ainda mais marcante, ambos produziram textos intertextuais, assim como Paranóia. Todavia, por mais que Paranóia represente uma antologia intertextual, não foi só de poesia que Roberto Piva construiu seu repertório. A música e as artes plásticas, ainda que em menor escala, também participaram da produção do livro, conforme 16 E-dicionário de termos literários. Edição e organização de Carlos Ceia (http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/ verbetes/A/apolineo_dionisiaco.htm)

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ele mesmo cita. E todo resto, no que se refere à produção dos poemas, faz parte da sua incrível capacidade de criar-atividade para a sua imagem-ação, que à primeira vista vê o mundo com grande mistério, mas sua qualidade nata de observador permite a ele transformar mistérios em poesia.

4.1 O processo criativo fotográfico

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Roberto Piva (2008)17 relembra que as fotos não faziam parte do projeto original. A idéia surgiu do próprio artista plástico que, ao voltar de Paris, soube do livro pelo jornalista Thomas Souto Correa e imediatamente entrou em contato com Piva, falando de sua vontade de ilustrar o livro. A produção das imagens fotográficas que compõem o livro acontecia da leitura dos poemas e resultava em várias possibilidades de exploração que extrapolavam o perímetro urbano sugerido no livro. Desse processo, algumas fotos surgiram das “andanças em companhia” (WILLER in PIVA, 2005, p. 148), outras foram sugestão do artista e outras foram exatamente aquilo que Roberto Piva tinha em mente. Embora Cláudio Willer seja o crítico literário que melhor conheça o valor semântico do livro Paranóia, Roberto Piva18 acrescentou a esse processo novas informações. Entre elas, a direção de arte de algumas fotos, como esta que aparece na figura abaixo, onde os cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos pelo cometa sem fé19 são representados por uma parte da imagem do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, localizado próximo ao Parque do Ibirapuera. 17 Esta legenda tem que se repetir de forma igual à entrevista realizada pelos alunos em 19 de novembro de 2008. 18 Como nesse aspecto, que relaciona as poesias do livro Paranóia com a produção da seqüência fotográfica, existe uma enorme carência de material publicado, muitas informações foram coletadas em conversas informais com o próprio Roberto Piva. 19 PIVA, 2000, p. 19.

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Por outro lado, Roberto Piva também citou a genialidade perceptiva de Wesley Duke Lee, que fez algumas imagens fotográficas na sua ausência, apenas com os poemas em mãos, como mostra a figura abaixo, produzida no cemitério da Consolação. O que chama a atenção de Piva, nessa foto, é a forma oval do espaço reservado à imagem fotográfica de Lydia e sua total ausência representativa, que gera uma atmosfera subjetiva de grande poder metafórico, pois acompanha um poema que se chama “L´ovalle delle apparizioni”, ou seja, a imagem fotográfica de Lydia desbotada pelo tempo combinada à sua forma oval, é para o poeta a representação do vale das aparições. Além da direção de arte de Roberto Piva e da genialidade de Wesley Duke Lee, existe outro aspecto de vital importância na produção das imagens fotográficas: as locações onde as fotos foram produzidas. No livro Paranóia, Roberto Piva faz alusão a alguns pontos específicos da cidade de São Paulo, “como a rua São Luís, a Praça da República, o Largo do Arouche, a rua Aurora, as escadas de Santa Cecília, a rua das Palmeiras ... roteiros que vão ser efetivamente percorridos” (WILLER in PIVA, 2005, p. 147), assim como o Parque do Ibirapuera, o Parque Shangai, o cemitério da Consolação, a feira na Praça Roosevelt. Apesar da proximidade entre grande parte destas localidades, o motivo que levava Roberto Piva até cada um deles era bem diverso e se resumia ao mistério de cada rua, como acontece na foto da rua Aurora ou da rua São Luís. Em ambos os casos, esse mistério é impresso na foto. Piva compartilha com o leitor o seu ponto de vista, a sua sensação, a sua impressão. Outra evidência de que o processo criativo das poesias se estendeu ao processo criativo fotográfico são as nuances distorcidas de algumas fotografias, que fazen alusão à aplicação do método paranóico-crítico, como se observa na figura abaixo, onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da imaginação20. A imagem fotográfica cuja origem Roberto Piva desconhece lhe encanta, porque mais uma vez Wesley Duke Lee representa com fidelidade a sua poesia. 20 Piva, 2000, p. 30.

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Nesse sentido, ao longo das observações do processo criativo fotográfico, se observa que Wesley Duke Lee fez uma releitura do livro Paranóia e transformou a linguagem poética em linguagem cinematográfica.

4.1 Transformação da matéria-prima em poesia

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Durante o desenvolvimento do livro Paranóia (2000), o processo criativo foi dividido em duas etapas. A primeira fase do projeto estava destinada à produção dos poemas e a segunda fase estava destinada a produção das fotografias, já que o projeto original do livro Paranóia (2000), não englobava imagens fotográficas. Nesta primeira fase do projeto, se observa que a multiplicidade do discurso poético do livro Paranóia (2000), surge desde os primeiros passos do processo criativo e engloba o diálogo com outras obras, o andar pela cidade, o método paranóico-crítico delirante de Salvador Dali e a busca do sagrado e do êxtase. Enquanto que a segunda fase envolve um misto de liberdade fotográfica de Wesley Duke Lee e direção de arte de Roberto Piva. Muito do que surge em Paranóia (2000), é influência direta da Revolução Romântica do século XVIII, que por sua vez vai ser adotada e adaptada por outros autores21 que vão exercer forte influência na produção poética de Roberto Piva. A Revolução Romântica “foi a negação de todos os princípios e fez da mudança perpétua, o seu princípio” ( SANTOS, 2005, p.04). Foi a estética romântica quem libertou a poesia das amaras do racionalismo científico e reconquistou o seu espírito subjetivo imaginativo e lúdico, rompendo com todos os valores modernos e partindo para a afirmação da liberdade de expressão. Com o objetivo de devolver aos indivíduos a oportunidade de exploração do universo de sua imaginação e acesso à própria espiritualidade, a estética romântica esteve centrada na idéia de revolução por meio da afirmação da palavra, como 21 A estética romântica foi adotada pelo movimento surrealista e pelo movimento beat

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O mito surge como uma (...) verdade intuída e percebida de maneira espontânea sem necessidade de provas. (...) é uma intuição compreensiva da realidade, uma forma espontânea de se situar no mundo (ARANHA e MARTINS, 1986, p.22)

Enquanto que a poesia é desde então capacidade de síntese simbólica registrada pela ambigüidade metaforizada da palavra e única forma de transmissão de conhecimento de geração para geração, portanto, uma das críticas sociais que surge em Paranóia (2000), pois é justamente esta desvalorização da mitologia promovida pela ambição capital católico-burguesa, que substitui o princípio de prazer, pelo princípio da realidade que transforma a sociedade paulista dos anos de 1960 em “máquinas de fezes conquistados pelo tempo”.

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o único meio de salvar o homem da subversão do “caráter humano em ferramentas de progresso” (FONSECA, online), da total alienação promovida pelo capitalismo, da destruição da natureza promovida pelo do avanço industrial. Este caráter de salvação associado às palavras vai ser o mote de toda uma geração de poetas malditos, pervertidos e transgressivos que vão exercer influência direta no processo criativo de Roberto Piva, em função do resgate da sacralidade poética, que desde as suas origens é temperada por uso de drogas e rituais orgásticos, como afirmam os “aedos e rapsodos, cantores ambulantes que davam forma poética aos mitos gregos recolhidos pela tradição e transmitidos oralmente” (ARANHA e MARTINS, 1986, p.31) A mitologia nasce em paralelo à poesia é como a forma, da qual o homem atribui significado ao mundo que o cerca de forma intuitiva, fantástica e subjetiva

Com o controle político assumido pela burguesia, a palavra mito-poética perdeu seu respeito, se antes eram os poetas quem davam nome e sentido as coisas, agora era a ideologia dominante, uma espécie de senso comum que, que condicionava a mente e a conduta dos indivíduos à custa de sua adaptação prática e moral. (SANTOS, 2005, p. 6)

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Esta crítica social vai ter a sua gênese no processo criativo, quando Roberto Piva, prefere a marginalização à produção de poesia como bem de consumo, capital católico-burguês. Neste sentido, o uso de drogas enteógenas22 durante o processo criativo de Paranóia (2000) vai ser como amálgama facilitando “um processo alquímico (...) e desregramento de todos os sentidos, um estado de transe, (...) a subversão do corpo” (PIVA in ARRUDA, online). As experiências com drogas enteógenas vão provocar alteração da percepção do mundo linear e usual do estado de vigília, exploração do mundo mágico, combinação de fantasia e realidade e provocar surtos de criatividade, além de afirmar o culto ao Dionísio. Dionísio é o deus do vinho, do autoconhecimento, do êxtase, da loucura, da liberdade e porque não da transgressão? Dionísio cria o vinho, unindo a natureza à cultura e a matéria ao espírito (...) Os adeptos de Dioniso, através do êxtase, operavam uma saída de si mesmos e, através do entusiasmo, realizavam a comunhão com a divindade, ultrapassando a condição de simples mortais, se tornavam heróis, aqueles que ultrapassam o métron. Dioniso leva o homem à ultrapassagem do métron para poder realizar o encontro com a sua essência mais profunda, com o Self.”(CAVALCANTI, 1995)

Os rituais em homenagem à Dionísio eram promovidos em meio da floresta por sacerdotisas de diferentes classe sociais, conhecidas como bacantes “Em Atenas, este ritual era praticado por moças da sociedade, que carregavam enormes pênis alados pelas ruas da cidade, como representação do deus” (BARBOSA, 2008, p.03). Durante o culto, as moças dançavam, comiam carne de carneiro, bebiam vinho e reverenciavam a natureza, alcançavam o êxtase e praticavam atos 22 O termo Enteógeno vem do grego ENTHEOS - que significa “Deus dentro” com a raiz GEN que é chegar a ser, sobrevir. Chegar a ser o Deus de dentro é pertinente uma vez que o efeito destas substâncias psicoativas mediam as diversas partes da psique do próprio indivíduo, facilitando o acesso ao inconsciente e ao próprio self do consumidor, sem ser exatamente uma “percepção sem objeto” que seria a caracterização do termo alucinógeno. http://orbita.starmedia.com/~oxigenio/nov00/enteogenos.htm

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orgásticos. O ritual nunca foi bem visto aos olhos da sociedade, mas foi amplamente divulgado, via tragédia grega As Bacantes (1992) de Eurípides e desde então a alusão a Dionísio exerce forte influência na produção poética porque delimita um campo de tensão governado pelo paradoxo apolíneo-dionisíaco Dionísio surge no processo criativo de Roberto Piva, para universalizar a orgia por meio do encontro simbólico-sexualizado entre imagem e texto. Paranóia (2000) não existe sem o sexo, o sexo é antes de tudo a libido do poeta, o seu princípio do prazer em constante reintegração, o paradoxo entre o sacro e profano, a representação intima do “sentir tudo de todas as maneiras até ao que podemos chamar a ekstasis dionisíaco do Eu”23 A estética dionisíaca se repete em outras obras que dialogam com Paranóia (2000) Allen Ginsberg, por exemplo, vai gritar para quem quiser ouvir a sua liberdade homossexual, seus textos são cheios de referências homoeróticas. Em o Uivo (1956) seus personagens “uivaram de joelhos no Metrô, são arrancados dos telhados sacudindo genitais e manuscritos, se deixaram foder no rabo por motociclistas santificados e urram de prazer. (GINBERG, 2005, p.28) Mas assim como Allen Ginsberg, existem outros poetas, como é o caso Arthur Rimbaud que vão exercer forte influência no processo criativo de Roberto Piva. Arthur Rimbaud além de ter sido idealizado por Roberto Piva como “um alquimista xamã avant la lettre” (PIVA in WEINTRAUB, 2000, online), era sinestésico, simbolista e surrealista, adicionou à poesia, uma nova combinação de sentidos entre imagem e texto através “des-construção da poesia como forma manifesta do sufoco e do despeda¬çamento do indivíduo na sociedade e rompendo assim com a ordem lógico-frasal e reproduzindo o caos da cidade”. (FONSECA, 2008, online). Tanto Ginsberg como Rimbaud, tinham hábitos de vida, como a boemia e o nomadismo, que se fundem ao processo criativo de Roberto Piva, poeta andarilho das ruas do centro velho de São Paulo sob a luz da lua. Além disto, existe outra característica ainda mais marcante, ambos produziram textos intertextuais, assim como Paranóia (2000). 23 e-dicionário de termos literários edição e organização Carlos Ceia http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/ verbetes/A/apolineo_dionisiaco.htm

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Todavia, por mais que o livro Paranóia (2000) represente uma antologia intertextual, não foi só de poesia que Roberto Piva construiu seu repertório. A música e as artes plásticas, ainda que em menor escala, também participaram da produção de Paranóia (2000), conforme ele mesmo cita e todo resto que se confere a produção dos poemas faz parte da sua incrível capacidade de criar-atividade para a sua imagem-ação que a primeira vista vê o mundo com grande mistério, mas a sua natureza de observador desde nascença o permite transformar mistérios em poesia.

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4.2 Transformação da matéria-prima em imagem fotográfica Roberto Piva (2008)24 relembra que as fotos, não faziam parte do projeto original, a idéia surgiu do próprio artista plástico que ao voltar de Paris soube do livro pelo jornalista Tomas Souto Correa e na mesma hora entrou em contato com o Roberto Piva dizendo da sua vontade de ilustrar o livro. A produção das imagens fotográficas, que compõe o livro, acontecia da leitura dos poemas e resultava em várias possibilidades de exploração que extrapolava o perímetro urbano sugerido no livro. Deste processo, algumas fotos surgiram das “andanças em companhia” (WILLER in Piva, 2005, p. 148), outras foram sugestões do artista e outras foram exatamente aquilo que Roberto Piva tinha em mente. Embora Cláudio Willer seja o crítico literário que melhor conheça o valor semântico do livro Paranóia (2000), Roberto Piva25, acrescentou à este processo novas informações, como a direção de arte de algumas fotos como esta que aparece na figura abaixo, onde os “cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúr24 Entrevista realizada pelos alunos, vide anexo 25 Como, neste aspecto, que relaciona as poesias do livro Paranóia (2000) com a produção da seqüência fotográfica, existe uma enorme carência de material publicado, grande parte das informaçoes foram coletadas em conversas informais com o próprio Roberto Piva

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bios demoníacos pelo cometa sem fé26” são representados por uma parte da imagem do Monumento à Bandeira de Victor Brecheret localizado nas mediações do Parque Ibirapuera.

Fig 04: Detalhe do Monumento à Bandeira de Victor Brecheret – Fonte: Livro Paranóia, 2000

Por outro lado, Roberto Piva também citou a genialidade perceptiva de Wesley Duke Lee que fez algumas imagens fotográficas na sua ausência, apenas com os poemas em mãos, como mostra a figura abaixo, produzida no Cemitério da Consolação.

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26 Piva, 2000, p.19

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O que chama a atenção de Roberto Piva, nesta foto, é a forma oval do espaço reservado à imagem fotográfica de Lydia e sua total ausência representativa que gera uma atmosfera subjetiva de grande poder metafórico pois acompanha um poema que se chama L´ovalle delle apparizioni, Fig 05: Detalhe de uma lápide do Cemitério da Consolação – Fonte: Livro Paranóia, 2000 ou seja, a imagem fotográfica de Lydia desbotada pelo tempo combinada a sua forma oval, é para Roberto Piva a representação do vale das aparições. Afora a direção de arte de Roberto Piva e genialidade de Wesley Duke Lee, existe outro aspecto de vital importância na produção das imagens fotográficas, as locações onde as fotos foram produzidas. No livro Paranóia (2000), Roberto Piva faz alusão a alguns pontos específicos da cidade de São Paulo “como a Rua São Luís, a Praça da República, o Largo do Arouche, a Rua Aurora, as escadas de Santa Cecília, a Rua das Palmeiras... roteiros que vão ser efetivamente percorridos” (Willer in Piva, 2005, p147), assim como o Parque do Ibirapuera, o Parque Shangai, o Cemitério da Consolação, a Feira na Praça Roosevelt.

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Fig 06: Fotografia da Rua Aurora e Avenida São Luiz – Fonte: Livro Paranóia, 2000

Apesar da proximidade entre grande parte destas localidades, o motivo que levava Roberto Piva até cada um destes lugares, era bem diverso e se resumia ao mistério de cada rua, como acontece na foto da Rua Aurora ou da Rua São Luiz, em ambos os casos, este mistério é impresso na foto, Roberto Piva compartilha com o leitor, o seu ponto de vista, a sua sensação, a sua impressão. Outra evidência, de que o processo criativo das poesias se estendeu ao processo criativo fotográfico, são as nuances distorcidas de algumas fotografias que faz alusão à aplicação ao método paranóico-crítico, como se observa na figura abaixo, onde a “cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da imaginação27”. A imagem fotográfica da qual Roberto Piva desconhece a origem, lhe encanta porque mais uma vez Wesley Duke Lee, representa com fidelidade a sua poesia.

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27 Piva, 2000, p.30

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Fig. 07: Fotografia representando aquários desordenados da imaginação – Fonte: Livro Paranóia, 2000

Neste sentido, ao longo das observações do processo criativo fotográfico, se observa que Wesley Duke Lee, fez uma releitura do livro Paranóia (2000) e transformou a linguagem poética em linguagem cinematográfica.

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Entre as várias características atribuídas à poesia ‘paranóica’ de Roberto Piva, a intertextualidade28 é como um amálgama que renova a experiência pessoal do poeta, pelo leitor. A intertextualidade pode ser explicada pelo viés do diálogo entre obras diferentes, pela leitura que se faz da cidade, pelas “diversas práticas que promovem o entrecruzamento entre diferentes sistemas” (SILVA, 2003, p. 211) e, principalmente, por sua capacidade de comunicação. Como qualquer outro recurso de comunicação, o objetivo inicial da intertextualidade é a troca de informação, transmissão do conhecimento e renovação da experiência. “Comunicar é fazer participar, é trazer para a comunidade aquilo que estava isolado” (MELO apud VELOZO, 1977, p. 14). Nesse sentido, a intertextualidade do livro Paranóia emerge da leitura que o poeta faz da sua cidade, combinada à sua personalidade de leitor insaciável, resultando no diálogo entre texto e imagem, que se renova a cada leitor. A intertextualidade é, assim, a “relação entre autor e leitor (...) referente à relação entre um texto e os demais (intertextos), sejam eles contempo28

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O termo intertextualidade foi definido pela primeira vez por Julia Kristeva como sinônimo de intersubjetividade, para explicar aquilo que Mikhail Bakhtin havia definido na década de 1920 como dialogismo.

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râneos ou anteriores ao texto que, com eles, dialoga.(...) projetados a partir do trabalho do leitor (...) cuja interação surge o texto” (KRISTEVA apud SILVA, 2003, p. 215). O texto vai ser definido por Favero e Kock (2002), “como qualquer manifestação de capacidade textual do ser humano (quer se trate de um poema, de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura etc), isto é, qualquer tipo de informação realizado através de um sistema de signos” (FAVERO e KOCK apud GOUVEIA, 2007, p. 58). E o conceito de intertextualidade vai ser atualizado por Murray (2003) como sinônimo de “narrativa multiforme”, pois tanto a intertextualidade como a narrativa multiforme remetem a um processo cíclico, governado pelo pensamento livre e associativo que “fornece ao público, o acesso à matéria prima da criação” (MURRAY, 2003, p. 51), permitindo a este um tipo de intervenção que gera uma infinita gama de combinações, significados e diferentes possibilidades de leitura. Outra possibilidade de intertextualidade é aquela definida pela arquiteta e filósofa Raquel Rolnik: ao fazer uma breve reflexão sobre o fenômeno urbano no seu trabalho O que é cidade, trata a cidade como escrita traçando um paralelo temporal entre o surgimento e desenvolvimento de uma e de outra “impulsionados pela necessidade de memorização, medida e gestão do trabalho coletivo”. Mais que isso, a cidade é tida como local de produção e fixação de uma memória, “é como se a cidade fosse um imenso alfabeto, com o qual se montam e desmontam palavras e frases” . O objeto cidade é reconhecido, então, por meio de códigos, estabelecendo uma analogia entre o estudo da comunicação e o estudo da cidade compartilhando da idéia de apreensão de uma realidade (urbana) através de elementos significantes e da articulação entre eles, signos e sintaxe numa linguagem (LEITE apud ROLNIK, 2006, on-line).

A idéia de que a cidade é um texto evoca a soma de histórias, de imagens, de vozes, relações e todos os signos responsáveis pela transmissão do conhecimento, que fazem parte do repertório comum aos homens das grandes metrópoles e aos dos pequenos centros urbanos.

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Esta possibilidade de comunicação não-verbal é reforçada pela professora Lucrécia Ferrara, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, que define as cidades como:

Neste sentido, toda cidade possui um sistema de organização semiótico idêntico, como parques, praças, igreja e outros. O que muda são as representações culturais que se divergem pela arquitetura, pela política, pela gastronomia ou por qualquer outro aspecto cultural que só mesmo “a escrita é capaz de reunir” (FILHO, on-line). “Escrever as cidades”29 é tecer relações, permitir a sua expansão para além do tempo-presente e do espaço geográfico, é transformá-la em linguagem visual e textual ou em infinitas formas de diálogo entre a população e todos os símbolos que lhe cercam. Do diálogo com a cidade, emerge a fotografia. Por todas as “suas características indiciais” (LOUZAS, 2004, p. 54), a linguagem fotográfica pode ser considerada intertextual desde a sua origem. A sua incrível capacidade sintética de representação permite: O leitor transita entre formas, cores e palavras, aciona as próprias vivências, as memórias e referências extratextuais ancoradas em outros tempos e espaços. Nas relações entre os modos de construção do discurso, o fazer e o saber do sujeito leitor competente instala-se no texto; os estados estésicos e estéticos são criados no destinatário. O percurso de significação vai sendo constituído ao longo do texto sincrético” (RAMOS e PANOZZO, 2004, on-line).

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um espaço privilegiado do não-verbal (...) onde os códigos da cidade se formam não através de um único signo, mas por meio de signos variados como sons, palavras, cores, texturas, cheiros, sem uma convenção de sintaxe que os relacione, ‘não há um sentido, mas sentidos produzidos que não se impõem’ . Constitui, assim, o texto não-verbal, percebido e registrado por toda a cidade através da experiência urbana, do uso dos espaços, uso esse que os qualifica, caracterizando lugares e sedimentando uma memória urbana, ‘a fala da imagem da cidade’, dentro de uma abordagem em que interessa mais o plano dos sentidos do que o do significante (LEITE apud ROLNIK, 2006, on-line).

29 Termo ilustrativo definido pelo grupo de pesquisa.

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Mesmo quando não se tem certeza da origem exata das imagens, a sua contemplação na sua total e gratuita existência individual representa inúmeras possibilidades de leituras e se transforma em temas universais. Sendo assim, a intertextualidade transforma o texto em suporte em que tudo se converge e se expande. Como convergência, a composição do (inter) texto é tecida por múltiplas referências textuais, imagéticas ou sonoras que fazem alusão direta ao seu significante, independente de seu contexto histórico-lingüístico. A alusão − assim como as epígrafes, paráfrases e paródias − é uma forma de intertextualidade que serve para expandir o significado do texto e rompe com a lógica clássica aristotélica.30 O resultado é a expansão do texto de forma não-linear, múltipla e simultânea, em que o diálogo simultâneo se converge “entre vozes, entre consciências ou entre discursos” (ZANI, 2003, p. 125). No livro Paranóia, a expansão intertextual é via “dinamite, abre caminho por conta própria” (PIVA in ASSOMBRAÇÕES URBANAS, 2002) e define dois tipos de intertextualidade. Uma é governada pelo diálogo com a cidade, via poesia, onde a alusão a vinte poetas e quatro pintores imprime relações sociais urbanas que movimentam as referências urbanas31. Já a outra forma de intertextualidade é definida pelo diálogo constante entre poesia e fotografia, que faz do livro um sistema híbrido dadas as diferenças semânticas entre as linguagens poética e fotográfica.

30 Até o advento da Teoria da Relatividade, o mundo era governado pela lógica aristotélica, e não existiam duas versões para a mesma coisa. Segundo Coelho, “nada mais é igual a si mesmo o tempo todo sob o mesmo aspecto. O tempo universal, verdadeiro e matemático transcorre uniformemente e chama-se duração” (COELHO, 1995, p. 25). 31 Rua Aurora, Largo do Arouche, viaduto Santa Ifigênia, rua São Luís, Parque do Ibirapuera, Parque Shangai, avenida Rio Branco, Santa Cecília, Praça da Republica, Alto da Lapa, Praça Roosevelt, rua Lopes Chaves...

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5.1 A análise intertextual

5.2. Passeando pela cidade: Nessa categoria, a intertextualidade vai ser discutida a partir da relação que Roberto Piva estabelece com as vias de acesso da cidade de São Paulo e com as atividades recreativas da década de 1960. A categoria “Vias de acesso da cidade de São Paulo” faz alusão ao roteiro pelo qual Roberto Piva efetivamente circulava, enquanto a categoria “Atividades recreativas da década de 1960” faz alusão aos parques que freqüentava. “Para a realização desta análise, os poemas selecionados foram; “Visão 1961”, Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico”, “Praça da República dos meus Sonhos” “Stenamina boat”. “O Volume do Grito” e “Parque do Ibirapuera”.

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55 5. A intertextualidade e o processo antropofágico em Paranóia

A possibilidade oferecida pela intertextualidade combinada à discussão do espírito transgressivo do livro Paranóia permite a análise da obra pelo viés de quatro grupos diferentes: “Passeando pela cidade”, “Entre vertigens e alucinações”, “Entre o céu e o inferno” e “Entre Eros e meninos”. Para a definição destes grupos, foi definido um critério autoral com o objetivo de explorar características intertextuais intrínsecas a cada uma das poesias elencadas. Destas características, a primeira coisa que se observa é a sua função semiótica, que permite ao leitor se localizar no tempo e no espaço, já que uma praça é sempre uma praça e um parque é sempre um parque. Nesse sentido, algumas poesias evocam a discussão pelos vieses poético e visual, mas nem sempre. A discussão intertextual via linguagem não-verbal é regra estabelecida para a análise.

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5.2.1 As vias de acesso da cidade de São Paulo:

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As primeiras referências textuais que fazem alusão à cidade de São Paulo emergem do poema “Visão 1961”, em que “um enxame de Harpias vacilava com cabelos presos nos luminosos e minha imaginação32” e os “postes da Rua Aurora comichando nas omoplatas irreais do meu Delírio33”. A rua Aurora é “conhecida pelos cinemas ‘eróticos’ em decadência (...) faz parte da vizinhança do Largo do Arouche” (SAMPACENTRO, on-line) e da avenida Rio Branco, desde então uma das principais avenidas comerciais da cidade. Claudio Willer relembra que, naquela época, os ecos do legado beat já haviam promovido a liberdade sexual, o sexo havia deixado de ser mera ferramenta do amor, para ser transformado em palavra de ordem pelos jovens contraculturais. o sexo havia-se desconfinado e estava à solta, fazendo parte da vida da cidade. (...) os pederastas, antes reduzidos, em sua parcela aparente, a dois ou três freqüentadores de uma cafeteria da Avenida São João e aos espécimes que atuavam na porta do Cine Marabá, já podiam circular como pessoas iguais às outras (WILLER, 2003, on-line).

Este erotismo, que embala as histórias do Centro Velho de São Paulo na década de 1960, também foi favorecido pela concentração de atividades comerciais e culturais que atraíam os mais variados tipos urbanos e se repete de forma sistemática nas poesias de Roberto Piva. No poema “Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico”, entre a “esquina da rua São Luís34 uma procissão de mil pessoas acende veias no meu crânio35” e no poema “Praça da República dos meus sonhos” onde “tudo se fez febre e pombas crucificadas36”alguém o “espera no largo do Arouche no ombro de um santuário37”, a refe32 33 34 35 36 37

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PIVA, 2000, p. 11. PIVA, 2000, p. 15. A rua São Luís é hoje conhecida como avenida São Luís. PIVA, 2000, p. 34. PIVA, 2000, p. 56. PIVA, 2000, p. 88.

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rência intertextual faz alusão ao perímetro geográfico das prostitutas, michês e pederastas.38 A delimitação deste perímetro urbano é reforçada por Mattoso que conta sobre suas perambulações pelo Centro Velho da seguinte forma: eu costumava andar nas adjacências da Praça da República, entre os restaurantes do Arouche e os teatros da Roosevelt. Nos fundos do colégio Caetano de Campos, onde começa a rua São Luís, a calçada fronteira a uns prédios neoclássicos é bem larga e ali ficava um ponto que não era só de ônibus: a maioria dos que esperavam estava era no aguardo dum outro tipo de táxi, ou seja, o taxi-boy (MATTOSO, 2004, on-line).

38 A pederastia é uma relação que acontece entre homens de idades diferentes, que possui origens históricas. “O termo pederastia é composto das palavras paîs (criança) e erân (amar). Segundo Vrissimtzis, era apenas uma amizade entre um adulto educado, chamado de erastés (amante), encarregado de transmitir experiência a um jovem, na idade entre 12 e 18 anos, denominado de erósmenos (amado). O adulto ensinava as regras de cortesia, os valores morais, a disciplina e as noções básicas sobre vida social. Nas imagens de cerâmica, é sempre o adulto que faz o toque nos órgãos genitais dos garotos, não há nenhuma cena ao contrário. As representações permitem deduzir que havia apenas ato sexual intrafemural. A pederastia estava situada entre o século VI e IV a.C., praticada pelas classes superiores. Entre os atenienses era inadmissível que um homossexual ocupasse algum cargo público, perderia seus direitos políticos, pois “se um homem vende seu corpo, não hesitará em vender os interesses da cidade” (Vrissimtzis, 2002., pp. 101-111).

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Neste sentido, a alusão ao erotismo é favorecida pelo registro fotográfico dos adolescentes imberbes no Largo do Arouche e adjacências, conforme mostra a seqüência fotográfica abaixo.

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Fig. 08: Seqüência fotográfica nos arredores do Largo do Arouche – Fonte: Livro Paranóia, 2000

Este erotismo combinado à cidade de São Paulo encontra a sua versão na combinação de realidade e fantasia, como acontece nos poemas “Praça da República dos meus Sonhos”, “Stenamina boat” e “O Volume do Grito” onde Roberto

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5.2.2 As atividades recreativas da década de 1960 A mudança do ponto de vista não altera a função semiótica das citações intertextuais que fazem alusão aos registros geográficos da cidade de São Paulo, mas servem para o registro dos costumes da época.

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Piva rompe com as barreiras da realidade e coloca ícones da literatura circulando nos mesmos lugares que ele. Entre estes poemas, a alucinação é o recurso de alusão mais usado, de modo que é possível andar pela praça entre “visões Lembranças de Rimbaud Praça da República dos meus sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa”39 ou sonhar com “Lautréamont num sonho nas escadas de Santa Cecília”,40 além da possibilidade de “Encontrar com Lorca num hospital da Lapa”.41 Ao fazer a opção por essa combinação intertextual mista, Roberto Piva alude aos lugares por onde circulava e aos poetas que exerceram forte influência em sua obra. Federico García Lorca, por exemplo, foi homossexual, andarilho e registrou a sua aversão aos costumes de uma sociedade moderna em Poeta en Nueva York (1929-1930), que segue a estética alucinante do movimento surrealista. Willer (2000), observa que “assim como o foi Allen Ginsberg, Roberto Piva é um continuador declarado do Poeta en Nueva York de García Lorca; em Paranóia, escreveu o seu Poeta em São Paulo” (WILLER, 2000, on-line). Assim como Federico García Lorca, Arthur Rimbaud e Conde de Lautréamont possuem características lingüísticas que podem ser reconhecidas no livro Paranóia. Nesse sentido, quando Roberto Piva faz alusão a um poeta, se estabelece um diálogo contínuo entre o livro Paranóia e sua referências.

39 PIVA, 2000, p. 58. 40 PIVA, 2000, p. 87. 41 PIVA, 2000, p. 81.

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Estas atividades foram registradas em dois parques diferentes: o Parque do Ibirapuera e o Parque Shangai. São lugares onde o erotismo embala as histórias. O Parque do Ibirapuera surge como principal espaço urbano do livro Paranóia, dá nome a um poema, estabelece diferentes relações com as linguagens verbal e visual. No livro, como na vida real, o Parque do Ibirapuera é sinônimo de flertes e desejos lascivos.

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O “autorama”, estacionamento localizado numa área do Parque do Ibirapuera pouco movimentada durante o dia. Esse espaço, me parece, é área onde o Detran aplica teste de direção para carteira de motociclista À noite, o estacionamento transforma-se em um espaço de sociabilidade homossexual, figurando na maioria dos “guias gays” como um dos lugares tradicionais de “pegação” da cidade e ganhando um intenso tráfego de automóveis, a que se deve o nome pelo qual é conhecido (FRANÇA e SIMÕES, on-line, p. 15).

Neste sentido, é possível observar que no poema “Parque do Ibirapuera”, o sentido imagético para “os gramados regulares do parque Ibirapuera”42 e “todos os meus sonhos são reais oh milagres epifânias”43 é alcançado com o apoio do registro fotográfico de imagens de garotos na parte interna do Parque do Ibirapuera.

Fig. 09: Fotos de meninos no Parque Ibirapuera – Fonte: Livro Paranóia, 2000 42 PIVA, 2000, p. 116. 43 PIVA, 2000, p. 139.

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Todavia, a imagem fotográfica tanto imprime as interações sociais como imprime as relações urbanas, “a linguagem da fotografia é a linguagem do ver. Ver é sempre dinâmico. Reconhece e descobre objetos. Cria relações e atribui significados. Projeta nossas fantasias, evoca nossos sentimentos e provoca reações” (LOUREIRO, on-line).

Fig. 10: Fotos do Parque do Ibirapuera – Fonte:Livro Paranóia, 2000

Na imagem abaixo, observe os diálogos entre o marco textual inicial e o marco visual inicial, ambos os modos fazem alusão direta ao Parque do Ibirapuera. Enquanto o marco textual inicial escreve o seu título poético, o marco visual inicial imprime a imagem fotográfica da porta do Parque do Ibirapuera. Todavia, enquanto o título poético sugere o começo de tudo, a imagem fotográfica sugere o contrário, que essa visão só é possível para quem está saindo do parque.

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62 Fig 11: Foto do Parque Ibirapuera e Título do poema no livro Paranóia – Fonte: Livro Paranóia

Esse diálogo entre fotografia e poesia se repete no “Poema da Eternidade sem Vísceras”44 em que a leitura do Ibirapuera tanto se faz pela imagem fotográfica como pelo texto.

Fig12: Meninos brincando no Parque Ibirapuera e poema do livro Paranóia – Fonte: Paranóia, 2000 44 PIVA, 2000, p. 135.

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Parque Shangai era como o Playcenter da época (...) gostava do trem fantasma, já estava todo caindo aos pedaços, a gente não via a hora que aqueles monstros que aparecem caíssem em cima da gente. Era tudo meio precário, mas era muito divertido 46

No livro Paranóia, a referência ao Parque Shangai segue como um registro histórico e pessoal formalizado de forma visual e textual. Na poesia, o “Parque Shanghai é conquistado pela lua de adolescentes que beijam-se no trem fantasma”.47 É possível perceber a forte influência da estética romântica, em que “a história pessoal, as paixões e traços de personalidade do artista passam a responder pela natureza e caráter da sua criação” (SANTOS apud ROSENFELD, 2005, p. 9). A estética romântica também marca o registro fotográfico. A seqüência fotográfica do Parque Shangai conta com oito fotos, a maior com a mesma locação no livro e a única onde a locação se repete na imagem seguinte.

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Assim como apresentado em “Vias de acesso da cidade de São Paulo”, o erotismo combinado à cidade de São Paulo, também encontra a sua versão na combinação de realidade e fantasia em “Atividades recreativas da década de 1960” pelo viés do poema “Parque do Ibirapuera”. que se desdobra em combinações de intertextualidade mista. Dessas relações, a primeira intertextual que Roberto Piva estabelece com Mario de Andrade é semelhante à que ele estabelece com o poeta Federico García Lorca. Paranóia, a alusão indireta ao livro Paulicéia desvairada (1922) de Mário de Andrade, oferece ao leitor a possibilidade de atualização do cenário urbano da cidade de São Paulo. Já a outra possibilidade é outra vez uma referência indireta à obra de Allen Ginsberg que será analisada na categoria “Entre Eros e meninos”. Outro atrativo da época era o Parque Shanghai.45 Roberto Piva conta que o

45 De acordo com o site VIVA SP, “o Parque Shangai, instalado nos anos 40 na baixada do Glicério por muito tempo, sucumbiu ao progresso e foi desalojado para dar lugar aos viadutos hoje lá existentes”. 46 Evento que os alunos presenciaram com Roberto Piva na Casa das Rosas, na capital paulista. 47 PIVA, 2000, p. 66.

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Fig. 13: Fotos do Parque Shangai – Fonte: Livro Paranóia, 2000

Observe como esse diálogo entre fotografia e cidade é representativo. Segundo Louzas, ele só é possível porque a fotografia atualiza os passos dos fotógrafos e poetas (...) na busca do contato com sua época e consigo mesmo por meio da cidade, é entender que nestes labirintos urbanos, percorrem-se lugares, momentos e da mesma maneira, as notas da própria intimidade. Cidades são feitas de passagens, convidam ao trânsito. E também passam por meio dos seus habitantes (LOUZAS, 2004, p. 115).

Neste sentido, a seqüência fotográfica está além do diálogo com a cidade e sua arquitetura. Coloca em cena atividades recreativas, como hábitos culturais, como acontece desde a primeira imagem fotográfica da seqüência, que anuncia as festas juninas e a grande queima de fogos.

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5.3. Entre vertigens e alucinações psicodélicas

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Nessa categoria, a intertextualidade vai ser discutida a partir das influências beat. Os beats combinaram a estética surrealista a um estilo de vida totalmente desgovernado, condicionado pelo registro de suas alucinações. Para a realização desta análise, os poemas selecionados foram: “Visão 1961”, “Paranóia em Astrakan”, “Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico”, “Poema de ninar para mim e Bruegel”, “Stenamina boat” e “Poema lacrado”. No poema “Visão 1961”, o uso de drogas faz alusão direta à figura do poeta Mário de Andrade, que surge no poema como personagem de sua alucinação. Todavia, a representação da figura do Mário de Andrade para Roberto Piva pode ser comparada à representação da figura de Walt Whitman para Allen Ginsberg. Ainda no mesmo poema, existe outra alusão ao uso de drogas, quando Roberto Piva se refere aos “Porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos esperando a sangria diurna de olhos fundos e neblina enrolada na voz exaurida na distância.”48 O discurso poético é enfatizado pelo diálogo entre poesia e imagem fotográfica e se funde numa crítica social.

Fig14: Fotografia de uma pessoa deitada num banco de uma praça – Fonte: Livro Paranóia, 2000 48 PIVA, 2000, p. 17.

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A relação da imagem com o texto pode ser lida como uma paráfrase do poema “O Uivo” (1955), de Allen Ginsberg, quando ele diz Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca uma dose violenta de qualquer coisa. (GINSBERG, 2006, p. 25)

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Já a intertextualidade do poema “Paranóia em Astrakan” exige do seu leitor bons conhecimentos históricos e sociais. A cidade russa de Astrakan possui um histórico trágico de epidemias, manifestações, saques e diversos incêndios consecutivos que fazem alusão direta à bomba atômica. O “holocausto global, impessoal e instantâneo poderia estar logo depois da esquina” (GOFFMAN e JOY, 2007, p. 249), promovido pela Guerra Fria. “Paranóia em Astrakan” serve para ironizar o caos governado pela idéia de progresso. Os “drinks de emergência” surgem para despertar os sentidos de emergência até mesmo nos leitores menos avisados, “onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das beatas, onde as cartas reclamam drinks de emergência para lindos tornozelos, arranhados, onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas, penas”.49 Observe como a força imagética dos “drinks de emergência” é explorada na seqüência fotográfica que começa num ambiente que sugere um bar. A imagem fotográfica dos elefantes com a tromba levantada simboliza ameaça e maus presságios. E a imagem fotográfica da feira livre produz uma realidade analógica, subjetiva e paranóica, pois nesse caso a emergência pode sugerir fome:

49 PIVA, 2000, p. 30.

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Fig.15: Seqüencia fotográfica do Paranóia de Astrakan – Fonte: Livro Paranóia, 2000

quando a literatura se caracterizava pela linguagem discursiva da estética realista, Lautréamont escreve algo inédito, Cantos de Maldoror, e com isso destrói para sempre a prosa francesa como discurso e demonstração, e mais, ao minar os fundamentos da prosa − levando até o limite (...) Cantos de Maldoror é uma obra altamente onírica e fantástica. Nela, o narrador não respeita o princípio racional de que uma coisa, sendo o que é, não poder ser outra. Ao contrário, as coisas e o próprio narrador (Maldoror) se metamorfoseiam o tempo todo(SANTOS, 2005, p. 13).

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Outra relação possível que o poeta estabelece entre imagem e texto é entre a força da imagem poética e da imagem fotográfica que está por vir. O último verso do poema “Paranóia em Astrakan” descreve seu estado de alucinação: “a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da imaginação”.50 Todavia, de acordo com o próprio Roberto Piva, a imagem fotográfica que faz alusão a essa imagem poética aparece na pagina seguinte. No poema intitulado “Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico”, a influência beat do efeito das taças de maré alta, quando Roberto Piva faz alusão ao poeta Conde Lautréamont em “Maldoror surge em taças de maré alta”,51 o personagem dos Cantos de Maldoror (1896) se funde à alucinação do poeta e conversa diretamente com o seu autor, o Conde de Lautréamont:

50 PIVA, 2000, p. 30. 51 PIVA, 2000, p. 37.

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A alusão ao discurso ambíguo e intertextual do Conde de Lautréamont reforça o efeito das taças em maré alta, porque além de um questionamento filosófico constante, Lautréamount − assim como toda a geração de poetas que influencia a produção do livro Paranóia − faz uso da linguagem intertextual, se “apropria de tanta criação literária” (Willer, 2006) que é impossível manter algum sentido lógico, pois isso faz com que a obra esteja o tempo inteiro se expandindo, num sentido de ser e deixar de ser, quase que no mesmo instante. No poema intitulado “Poema de ninar para mim e Bruegel52”, o tom alucinado surge desde o título, quando Roberto Piva evoca a figura do pintor Pieter Bruegel e remete o seu leitor ao universo das artes plásticas, de onde surge a imagem dos saltimbancos de Picasso: Os saltimbancos de Picasso estão reunidos num grupo de cinco, e um sexto elemento aparece fora do grupo. Nenhum olha para o outro. Vê-se que são todos solitários, absortos em algum tipo de profunda indagação íntima (...). A suavidade dos corpos contrasta com a inquietação dos espíritos. É impossível dizer se acabaram de se apresentar ou se estão prestes a fazê-lo. Como as personagens de Pirandello, estão à cata de um sentido para seu destino (WALLACE, 2004, p. 83).

Apesar das duas citações terem sido extraídas do universo das telas e dos pintores, o poema fala sobre um grupo de adolescentes que se divertem no Parque Shangai. A diversão em grupo faz alusão ao estilo de vida beat, em que a amizade era um dos valores mais importantes. A imagem dos saltimbancos de Picasso é uma paródia que serve para reforçar o tom da sua alucinação, pois compara a divergência entre a fantasia e a sua realidade de vida: “Drogas davam movimento demais aos olhos Saltimbancos de Picasso conhecendo-se numa viela maldita, os ruídos agachavam-se nos meus olhos turbulentos, resta dizer uma palavra sobre os roubos”.53 52 PIVA, 2000, P. 61. 53 PIVA, 2000, p. 65.

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A seqüência fotográfica do poema começa e termina com imagens da entrada do Parque Shangai e do trem fantasma que, assim como o texto, possui cortes abruptos:

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70 Fig.16: Seqüência Fotográfica do Poema de ninar para mim e Bruegel Fonte: Livro Paranóia, 2000

Em relação às drogas, nada pode ser mais sugestivo do que um poema chamado “Stenamina boat”, sendo a stenamina um tipo de anfetamina. A droga surge como o título deste poema acompanhada de uma citação indireta ao inferno da Divina comédia (1321), poema de Dante Alighieri dividido em três partes: “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”:

Declamava Dante com estas palavras que a Divina Comédia é um poema alegórico54. Não somente no poema há alegorias particulares, mas o poema na sua inteira tem uma significação, ou melhor várias significações (...) a obra poética de Dante se prende, na sua máxima parte ao seu amor puramente spiritual por Beatriz de Folco Portinari (ebooks, p. 13).

E serve para reforçar o tom da alucinação, pois funciona como uma paráfrase ao “Inferno”: “Eu queria ser um anjo de Piero della Francesca, Beatriz esfaqueada num beco escuro, Dante tocando piano ao crepúsculo, Eu penso na vida sou reclamado pela contemplação”.55 O tom de loucura intrínseco dessa paráfrase é reforçado ao término do poema de forma textual quando a “minha loucura atinge a extensão de uma alameda”56 e também de formal visual com a imagem fotográfica de uma manequim de loja que sugere a imagem de Beatriz. 54 O termo alegórico vai ser definido por Wunder como “allos=outro; agorien=falar 55 PIVA, 2000, p. 86. 56 PIVA, 2000, p. 88.

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O que atribui nome ao “Poema lacrado” é a alusão direta ao universo das vertigens e alucinações psicodélicas beat. O poema em si é uma alucinação desde o primeiro verso do “meu braço abraço plurissexual na sua imagem niquelada”.57 É, portanto, o que possui a maior complexidade intertextual dos poemas Fig.17: Fotografia de um manequim – Fonte: Livro Paranóia, 2000 selecionados nesta categoria, pois a linguagem adotada é muito subjetiva e exige que o leitor conheça os principais nomes e características do movimento beat, surgindo as drogas no poema como uma paráfrase do processo criativo beat. Entre as muitas influências beat, Miles Davis é o trompetista que inspira Jack Kerouac na elaboração do seu método de escrita inspirado na dinâmica entre o saxofonista e seu instrumento. O método centrado na sonoridade do jazz se parecia com a escrita automática do surrealista; todavia, o registro automático do fluxo de inconsciência era regulado pelo tempo que o saxofonista levava entre uma nota e outra. 57 PIVA, 2000, p. 90.

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Observe no trecho a seguir como Miles Davis influencia esse processo criativo que não aconteceria sem uma alucinação prévia: “Miles Davis a 150 quilômetros por hora, caçando minhas visões como um demônio, uma avenida sem nome e uma esferográfica Parker, nos meus manuscritos”.58 Além disso, outro nome que surge como paráfrase desse processo criativo beat é o do poeta andarilho e transcendentalista Walt Whitman. Walt Whitman foi um dos primeiros a romper com a “métrica poética herdada do Velho Mundo (BARROS, 2004, p. 3). Em seu livro Folhas da Relva (1855), enfatizou o contato com a natureza, falou de erotismo, fez uso de gírias e exerceu influência direta sobre os beats: 5. A intertextualidade e o processo antropofágico em Paranóia

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Whitman foi muito além da literatura; era um homem de ação, da aventura, da estrada e do mundo. Daí a semelhança com os beats como Allen Ginsberg, Norman Mailer, Hemingway, Jack Kerouac, entre outros, que sofreram sua influência não apenas no modo de escrever sobre a América, mas também em seu estilo on the road, que ia contra os valores colocados pelo american way of life: a busca desenfreada pelo poder e dinheiro (BARROS, 2004, p. 4).

No livro Paranóia, a alusão à sua figura em “minhas alucinações arrepiando os cabelos do sexo de Whitman”59 simboliza a transcrição do desejo lascivo beat que pode ser reconhecido nos vários poemas que compõem o repertório beat. A seqüência fotográfica desse poema faz alusão ao estilo de vida desregrado e ao processo criativo dos beats. Os cortes bruscos e a alusão a universos completamente distintos, como o bar e as pessoas encostadas à grade, podem ser interpretados como a ação dos efeitos provocados pelo consumo de drogas, que rompe com a lógica o tempo inteiro.

58 PIVA, 2000, p. 93. 59 PIVA, 2000, p. 93.

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Fig.18: Seqüência fotográfica do Poema Lacrado – Fonte: Livro Paranóia, 2000

5.4 Entre o céu e o Inferno Nessa categoria, a intertextualidade vai ser discutida a partir da relação que Roberto Piva estabelece com a cidade. Para ele, a relação entre sacro e profano simboliza a aplicação de toda a sua transgressão, é a construção do olhar que não se universaliza com o senso comum. Para ele, sagradas são todas as possibilidades politeístas que lhe ajudam a expandir a mente e profano é tudo aquilo que a sociedade burguesa padronizada pelos valores cristãos produz. Para essa análise, os poemas selecionados foram: “Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico”, “A Piedade”, “Poema de ninar para mim e Bruegel” e “Os anjos de Sodoma”.

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No poema “Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico”, Roberto Piva reúne Rannier Maria Rilke, Brahma, Cristo e imagens fotográficas que servem para reforçar o ataque aos valores burgueses padronizados pela lógica do pecado. A lógica do pecado vai ser definida por Nietzsche como a doutrina (...) inventada principalmente para punir, para encontrar um culpado. Os teólogos, por meio da idéia do “mundo moral”, contaminam a inocência do devir com o “pecado” e a “pena” sendo “o cristianismo é uma metafísica do carrasco” (SANTOS apud NIETZSCHE, 2005, p. 6).

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A parte sacra deste poema faz alusão à imagem de “Brahma sentado em flor de lótus” em que a imagem de Brahma, mesmo distorcida pela alucinação, não muda de sentido. Brahma, o deus hindu que: não é cultuado da mesma maneira que os outros deuses, pois realizou a sua tarefa e não voltará mais para aquilo que não lhe pertence, até a próxima criação do mundo. Em suas oito mãos, ele segura os quatro Vedas, um cetro, uma colher, um colar de contas, uma taça de água sagrada, símbolo da fertilidade e uma flor símbolo de criação ( BOWKER, 1997, p. 20).

Já a parte profana do poema tem origem na profanação das imagens religiosas, quando os anjos são colocados perante os homens como iguais. Logo se observa que, em meio às praças, “há um sino que não toca, há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios reino-vertigem glorificado”.60 Para Rannier Maria Rilke, os anjos são como “mediadores entre o homem e o mistério” (RILKE, p. 67). Diz ainda que o anjo é um homem na terra, distinguindo-se para o sagrado por meio de exercícios que visam ao aperfeiçoamento espiritual.

60 PIVA, 2000, p. 38.

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A imagem de Rilke é assim uma paródia dos valores cristãos, serve para protagonizar a orgia que a burguesia tanto repudia. Ao associar os anjos de Rilke aos mictórios, Roberto Piva não os degrada, mas os tira do pedestal metafísico e os coloca no mictório, elevando o baixo e irregular dos parques e praças em que ele vagueia. Outra profanação que emerge desse poema faz alusão à figura de Cristo, que surge “roubando a caixa dos milagres”.61 O roubo destrói qualquer resquício de moral cristã. Em relação à seqüência fotográfica −, idem à do Largo do Arouche e adjacências, já colocada no trabalho −, se observa que a proliferação de garotos imberbes ou michês surge como uma provocação. Quando Roberto Piva os coloca em cena em plena luz do dia, tudo aquilo que a sociedade omite entre as trevas é iluminado por fortes holofotes. No poema “A Piedade”, Roberto Piva ironiza a vida social paulistana, sob a condição de ser piedoso, sinônimo de aceitação dos valores cristãos. Mas ser piedoso também pode ser entendido como uma paráfrase do poema “América”62 (1956), de Allen Ginsberg onde “há trechos com numerações caóticas , escritas sob inspiração direta das longas frases sobre façanhas dos beats (...) em ‘A Piedade’, Roberto Piva adota o mesmo tom ao falar de quem é piedoso que Ginsberg em ‘América’ ao referir às pessoas sérias” (WILLER in PIVA, 2005, p. 154). Nesse sentido, quando Roberto Piva afirma: “urrava nos poliedros da justiça meu momento abatido na extrema paliçada os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida”,63 ele se mostra abatido pelas várias faces da justiça e inconformado pelas cercas que o aprisionam na sociedade, onde o indivíduo é desde pequeno treinado e ensinado a obedecer ao padrão imposto. No trecho “as senhoras católicas são piedosas os comunistas são piedosos os comerciantes são piedosos”,64 Roberto Piva enfatiza o poder do rótulo. Quando ele PIVA, 2000, p. 41. Vide Anexo C. PIVA, 2000, p. 47. PIVA, 2000, p. 51.

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cita que as católicas, os comunistas e os comerciantes são piedosos, sugere que as pessoas são exatamente o que esperam que elas sejam: comunistas, freiras e trabalhadores atendem as expectativas alheias de acordo com os rótulos que lhes são dados.

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(...) Se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos / sábados à noite / eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me / fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda? / eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de / fortes dentaduras / iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou / barbudos / eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho / todas as virtudes / eu não sou piedoso/ eu nunca poderei ser piedoso. (PIVA, 2000, p. 53).

No geral, o trecho acima explica como ele seria se estivesse regido pela sociedade, subordinado aos seus dogmas e rótulos. Ele nos mostra como seria apenas mais uma marionete numa sociedade hipócrita, deixando claro que jamais se renderá a essa prisão. No último trecho do poema, Roberto Piva faz uma referência direta ao cenário contracultural americano, que ambicionava a liberdade de escolha: “Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos”. A idéia de que os dois poemas questionam os valores sociais, a ideologia dominante, a formação da sociedade do espetáculo, o consumo à la american way of life e a possibilidade de uma nova guerra é reforçada pela seqüência fotográfica, em que a imagem do comunismo se funde à fachada de loja, ao pátio de uma escola católica, ao plano fechado de imagem que faz alusão a explosivos.

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Fig.19: Seqüencia fotográfica do poema Piedade – Fonte:Livro Paranóia, 2000

Eu vi os anjos de Sodoma escalando/ um monte até o céu [...] Eu vi os anjos de Sodoma semeando prodígios para a criação.[...] Roubando o sono das virgens / Criando palavras turbulentas. / Eu vi os anjos de Sodoma inventando a loucura e o arrependimento de Deus (PIVA, 2000, pp. 105 e 106).

Segundo a Bíblia judaico-cristã, Sodoma é a cidade dos grandes pecadores, onde todo mundo transa com todo mundo: homem com mulher, adulto com criança, homem com homem e mulher com mulher. Preocupado em salvar a população, Deus manda dois anjos disfarçados à cidade, mas o disfarce dura pouco.

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Em “Anjos de Sodoma”,65 Roberto Piva atinge a excelência da transgressão dos valores religiosos. O poema é uma paródia aos valores cristãos aplicada à cidade de São Paulo, que se transforma na cidade de Sodoma, assim como a sua população se transforma nos anjos de Sodoma.

65 PIVA, 2000, p. 105.

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A população logo descobre onde os anjos estão hospedados e começa a se digladiar para transar com eles. Mas Deus não dá chance aos pecadores e resolve incendiar a cidade, exterminando com quaisquer práticas imorais, transformando a cidade de Sodoma na cidade dos pecadores. A seqüência fotográfica deste poema pode ser justificada pela analogia e pela subjetividade. A imagem dos garotos pode fazer alusão à sacralidade do poeta, a imagem dos cães pode aludir aos “seres invisíveis”66 e a última imagem faz alusão ao progresso burguês

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Fig. 20: Seqüência fotográfica do poema Anjos de Sodoma – Fonte: Livro Paranóia, 2000

Tudo que a analogia e a subjetividade desta seqüência fotográfica pode sugerir em relação ao paradoxo entre o sacro e profano, remete a crítica ao progresso burguês. O enquadramento dos cachorros simbolizando a marginalia vai ser enfatizado por Zagni (2007) a partir da relação entre sociedade e cidade,

66 Os ‘ser invisível’ é uma expressão colocada por Zagni e já comentada no trabalho, simbolizando “os componentes da paisagem (...) invisíveis na ordem capital vigente” (ZAGNI, 2007, p. 5).

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A sociedade e a cidade se encarregam de tornar invisíveis esses seres, excluídos do mercado regular de trabalho, excluídos, portanto das relações de consumo, não interagem economicamente com o mercado, invisíveis portanto para o Estado. São visíveis apenas temporariamente para a sociedade, no caso exclusivo em que esta dirija seu frio olhar para debaixo dos viadutos, para as favelas, semáforos, praças, se queixando em seguida da paisagem obliterada pelo elemento humano indigente, que degrada e violenta o meio, na concepção do olhar burguês (ZAGNI, 2007, p.05)

5.5 Entre Eros e Meninos Em Paranóia, o erotismo67 define a principal tensão poética e estabelece os princípios de formação de suas imagens poéticas, em que o tempo sempre está a favor do desejo alucinado do seu poeta, que por sua vez mistura realidade, sonho e fantasia. Esse princípio define o espírito onírico, paranóico, subjetivo e delirante do livro Paranóia, que ora segue a identificação com o universo feminino, ora serve às 67 A associação do erotismo com a formação de imagens é definida pelo paradoxo entre vida e morte, entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Nesse sentido, erotismo vai ser definido por Bataille como a origem da transgressão, como a grande ameaça ao controle exercido pela supremacia cristã. Assim, “o nascimento do ser dá-se a partir da morte daqueles que o engendraram, deixando no vivo a marca deste passo. Como conseqüência, a noção de que a existência de súbito pode cessar compromete a excitação vital, ficando este saber meio adormecido frente ao imortal da espécie, num inútil recurso da dilação do existir individual. A mediação da vida pela morte promove o surgimento do desejo associado a um fascínio fundamental da extinção” (ALBUQUERQUE apud BATAILLE, 2007, p. 68).

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Neste sentido é possível observar que a primeira imagem fotográfica torna visível uma dupla de garotos, que tanto podem simbolizar o desejo do poeta, como podem simbolizar os seres excluídos do mercado de consumo. Já o enquadramento dos cachorros pode simbolizar muita coisa, mas sugere a visibilidade de todos os tipos invisíveis e por fim uma imagem que inspira tecnologia e conversa com a cidade.

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narrativas homoeróticas explícitas, onde se observa que a formação das imagens poéticas combina liberdade vocabular e desejo carnal. Para a realização desta análise, os poemas selecionados foram “Visão 1961”, “Poema Submerso”, “Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico”, “Stenamina boat”, “Rua das Palmeiras” e “No Parque do Ibirapuera”.

5.5.1 A identificação com o universo feminino

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No “Poema Submerso”, o sujeito lírico “caminhava pelas aléias olhando com alucinada ternura as meninas na grande farra dos canteiros de insetos baratinados”.68 O princípio de formação da força imagética dessa seqüência poética faz alusão à ternura misturada à alucinação, que serve tanto para as meninas como para os insetos. O princípio analógico e irracional da formação das imagens poéticas é o mesmo aplicado à seqüência poética. Observe que a primeira foto faz alusão à infância, assim como às meninas. Todavia, as meninas do poema são figuras de linguagem. Já a segunda foto possui poder imagético ainda mais forte. Os pássaros podem até fazer alusão aos insetos se ambos forem reduzidos a animais, mas o fato dos pássaros se colocarem em oposição a uma arma, atribui à imagem o seu espírito explosivo, em virtude da condensação de duas realidades opostas.

68 PIVA, 2000, p. 25.

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Fig. 21: Seqüência do poema Submerso – Fonte: Livro Paranóia, 2000

No poema “Rua das Palmeiras”, o princípio de formação das imagens poéticas se repete. O mistério é calculado pelas “meninas que saem de mãos dadas sem que a tarde deixe marca nas unhas”,69 questionando-se “onde está tua alma sempre que o velho Anjo conquista as árvores com seu sêmen?”70 O princípio de formação da força imagética, desta seqüência poética faz alusão a combinação “das meninas de mãos dadas”71 ao “velho Anjo que conquista as árvores com seu sêmen”72.

5.5.2 As narrativas homoeróticas explícitas No poema “Visão 1961” a força da imagem poética surge do “espaço de uma Tarde os moluscos engoliam suas mãos em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão 69 70 71 72

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o cu”.73 O princípio de formação da força imagética dessa seqüência poética é governada pela alucinação das palavras e faz alusão à combinação dos moluscos com os meninos das vielas e rompem com a lógica do pecado, associando liberdade ao sexo como meio de se libertar das amarras sociais. No poema “Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico”, há “místicos falando bobagens ao coração das viúvas (...) fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes chupando-se como raízes”.74 A seqüência imagética revela que a força das imagens poéticas une o gozo ao delírio e choca, porque ser amante é uma afronta à moral cristã e mais uma vez reforça a idéia de liberdade e autonomia.

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Fig. 22: Fotografia dos meninos no Largo do Arouche – Fonte: Livro Paranóia, 2000

A imagem fotográfica paralela ao poema reforça o princípio de formação imagética, que Rizzo define como “o jogo de extremos (...), suspensão da lógica corrente como instauração do espaço de uma indisciplina que se manifesta na 73 PIVA, 2000, p. 13. 74 PIVA, 2000, p. 34.

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“Eu vi você, Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas carnes do refrigerador e lançando olhares aos garotos da mercearia. Ouvi o fazer perguntas a cada um deles: Quem matou as costeletas de porco? Quanto custa a banana? Será você meu Anjo?” (GINSBERG, 1956, p. 49).

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amplitude e na força subversiva das imagens, das associações, das analogias” (RIZZO, 2006, on-line). Neste sentido, o movimento de carros tanto pode sugerir o ponto de vista do sujeito lírico como pode aludir a mais uma alucinação das palavras. Em “Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico”, a força da imagem poética foi discutida sob o viés da relação entre sacro e profano. Todavia, do paradoxo entre a luz e as trevas, emerge uma nova metáfora explosiva, que nasce “ao contrapor a lógica implacável do poder financeiro, próprio do dia–-a-dia da metrópole, à ousadia juvenil do par homossexual” (MORAES in PIVA, 2006, p. 155). Tudo aquilo que é marginalizado pela sociedade é iluminado pela luz do dia. Por isso, não é à toa que os anjos de Rilke75 vão parar nos mictórios da praça, enquanto o rosto imberbe do adolescente refém do sexo é reforçado pela imagem fotográfica colocada em paralelo ao poema. No poema “No Parque do Ibirapuera”, o princípio de formação da força imagética combina realidade e fantasia e está associado à paráfrase do poema “Um supermercado Califórnia” (1955), de Allen Ginsberg. Observe o papel desempenhado por Walt Whitman em “Um supermercado Califórnia”:

Observe que Roberto Piva reproduz um ambiente parecido cheio de gente, a mesma insinuação de flerte e principalmente o mesmo fetiche homoerótico. 75 “Há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios / reino-vertigem glorificado espectros / vibrando espasmos êxtase”

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“Olho para os adolescentes que enchem o gramado de bicicletas e risos Eu te imagino perguntando a eles: onde fica o pavilhão da Bahia? qual é o preço do amendoim? é você meu girassol? O desejo lascivo dessa paráfrase de Ginsberg é reforçado pela imagem fotográfica em paralelo ao poema: “Olho para os adolescentes que enchem o gramado de bicicletas e risos”,76 como segue na figura abaixo, onde a imagem fotográfica faz o leitor contemplar o universo dos flertes e das paqueras:

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Fig. 23: Fotografia dos meninos no Parque do Ibirapuera – Fonte: Livro Paranóia, 2000

Através da análise do livro Paranóia vimos que a intertextualidade explora a codificação entre realidade e fantasia, registrando um tempo e espaço que une gerações, transforma gestos, cores e sons em transmissão de conhecimento que se 76 PIVA, 2000, p. 122.

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renova a cada instante, intercambiando informações. A leitura que o poeta faz da cidade é oferecida á subervsão do real, a transformação dos ícones consagrados da poesia em personagens marginalizados pelo devaneio e a livre associação, com o ambiente urbano facilitam a compreensão da obra. Vimos que as possibilidades intertextuais que Roberto Piva faz da leitura na cidade, permite que a cidade se materialize no espaço atemporal governado pela não-linearidade, onde cada leitor favorecido pela própria imaginação faz a sua tomada de decisão e transforma tudo ao mesmo tempo em formas urbanas de diálogo e novas releituras. Enfim, a intertextualidade nos fez explorar a construção de um olhar crítico, a subjetividade poética, o diálogo entre linguagens diferentes, a linguagem onírica através das histórias paralelas e os diversos caminhos percorridos em direção à linguagem fotográfica.

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86 Roberto Piva é um poeta polêmico e marginalizado pelo sistema. No livro Paranóia, teceu críticas aos costumes sociais, ao sistema capitalista e aos valores cristãos, falando de sexo abertamente e profanando as imagens católicas. Paranóia é reflexo de um universo muito particular. A sua legibilidade está associada à leitura de outras obras e ao diálogo entre linguagem visual e verbal. Evoca o abandono dos sentidos pela alucinação das palavras e pelo estilo poético fragmentado, delimitado pelo registro automático dos seus fluxos de criatividade. A complexidade de Paranóia emerge da influência surrealista aplicada à fusão da vida do poeta em poesia. Em relação ao processo criativo antropofágico, se observa que Roberto Piva produziu um livro em que a leitura que faz da cidade se transforma em referência para a sua produção criativa e seu registro poético. A percepção e a construção desse olhar, que fogem da massificação e do senso comum, se traduzem no diálogo entre as linguagens verbal e visual. No livro, as imagens fotográficas são organizadas em histórias paralelas, que se fundem à subjetividade do discurso poético, caracterizado pela subversão do real e pela transgressão dos valores sociais vigentes. Nesse sentido, se observa que a produção do livro Paranóia é resultado de um processo criativo pontuado por características como as andanças sem destino ou a ruptura com valores estabelecidos, que podem ser perfeitamente aplicáveis

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87 aos projetos desenvolvidos pela área de design, pois ambas as linguagens estão associadas à produção de formas singulares e originais de comunicação pelo viés do despertar para um olhar crítico, sintetizado pela codificação perceptiva do poeta ou do designer. Nesse sentido, aquilo que surge no discurso de Piva em Paranóia como transgressivo, pode ser traduzido pelo design como inovador. Além disso, o design pode fazer uso das mesmas relações que o poeta estabelece com a cidade como referência, com a produção coletiva, com a relação entre as linguagens verbal e visual. Todas essas referências elencadas ao longo do processo criativo de Roberto Piva possuem valores intrínsecos, que servem para inovar − por meio do design ou da literatura − a produção de novas formas de comunicação.

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Anexos

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Anexo A

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Anexo B

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01 - Parque do Ibirapuera - Foto 1

02 - Praรงa Roosevelt - Foto 1

02 - Praรงa Roosevelt - Foto 2

02 - Praรงa Roosevelt - Foto 3

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Anexo B

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02 - Praรงa Rooseveld - Foto 4

02 - Praรงa Roosevelt - Foto 5

03 - Parque do Ibirapuera - Foto 1

03 - Parque do Ibirapuera - Foto 2

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Anexo B

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03 - Parque do Ibirapuera - Foto 3

03 - Parque do Ibirapuera - Foto 4

03 - Parque do Ibirapuera - Foto 5

04 - Rua Aurora - Foto 1

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Anexo B

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07 - Largo do Arouche - Foto 1

07 - Largo do Arouche - Foto 2

07 - Largo do Arouche - Foto 3

07 - Largo do Arouche - Foto 4

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Anexo B

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08 - Parque Shangai - Foto 1

08 - Parque Shangai - Foto 2

08 - Parque Shangai - Foto 3

08 - Parque Shangai - Foto 4

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Anexo B

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08 - Parque Shangai - Foto 5

08 - Parque Shangai - Foto 6

08 - Parque Shangai - Foto 7

09 - Praça da Repúplica - Foto 1

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Anexo B

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09 - Praça da Repúplica - Foto 2

09 - Praça da Repúplica - Foto 3

11 - Cemitério da Consolação - Foto 1

Casa no Centro - Foto 1

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Anexo B

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Casa no Centro - Foto 2

Circo - Foto 1

Circo - Foto2

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ANEXO A - ENTREVISTA COM ROBERTO PIVA 19.11.2008

Anexo C

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Tudo começou quando Cláudio Willer nos convidou para o debate “Poesia Imaginativa ou a Subversão do Real com Roberto Piva” realizado no Centro Cultural Casa das Rosas, em São Paulo. Nesse debate, tivemos a oportunidade de conhecer, conversar e agendar com Roberto Piva, a entrevista realizada no Jardim Botânico que rendeu ao grupo um material riquíssimo ao seu respeito, pois de um modo ou de outro Roberto Piva nos inseriu em seu processo criativo. Durante o caminho da entrevista, foi possível perceber que a intertextualidade dos seus poemas emerge da sua voz. O seu discurso oral é repleto de citações, fazem alusão a sua leitura da cidade, aos escritores que fazem parte da sua formação pessoal e vez ou outra, aos gaviões que guiam o seu destino. A chegada ao Jardim Botânico é pontuada por um misto de alívio e loucura, Roberto Piva, reage às reformas do Jardim Botânico, e se arrisca parque à dentro, onde se comprova a sua intelectualidade invejável. Sabe o nome de quase todas as flores, reconhece e classifica o barulho dos pássaros de longe, mostra os lagos de ninféias, o jardim dos cinco sentidos, o túnel do bambuzal e se encanta com a adolescente que surge no meio do caminho, no colo do namorado, (pede uma foto) diz que ela é a deusa do lugar, a ninfa cercada de gente. Apesar dos movimentos enrijecidos pelo Parkinson, seus passos continuam apressados pelo Jardim Botânico, até que de repente, Roberto Piva escolhe um banco protegido pela sombra da enorme folha em frente a um dos lagos de ninféias. É chegada a hora, a entrevista vai começar e das nossas mochilas saem máquina fotográfica, filmadora e a 2a edição do livro Paranóia. Um bate papo que rendem informações inéditas á respeito do processo criativo fotográfico.

1. Como foi o processo criativo fotográfico do livro Paranóia, você e o Wesley freqüentavam as mesmas rodas sociais e a produção das fotos acontecia de forma quase que simultânea, conforme os poemas iam surgindo? As fotos surgiram depois. Na época do Paranóia, eu não conhecia o Wesley, conheci o Wesley depois quando Tomaz Souto Corrêa, jornalista da Abril e do Estadão mostrou o livro para o Wesley Duke Lee, que havia acabado. Aí ele me ligou dizendo que queria ilustrar o livro com fotografias de São Paulo. Foi ai que eu conheci e disto, indiquei algumas fotos, outras ele pegou o textos, os versos e foi fotografando. 2. Vimos que as imagens fotográficas foram realizadas em algumas locações específicas, qual era a idéia de colocar fotografias do zoológico em meio ao Paranóia (2000)? Foto do zoológico? Não teve fotografia do zoológico, as fotos foram produzidas num circo que o Wesley achou.

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3. Mas e a fotografia da página 95 ? Parece a entrada do Zoológico, onde tem os macacos... Isso foi na Praça de República. E a foto da página 66 foi feita no Cemitério da Consolação. Oval das Aparições e esta fotografia da página 100 na seqüência, do poema Rua das Palmeiras foi produzida lá na Rua Aurora. Gosto dessas referências de tipografia. 4. Então sobre o poema Rua da Palmeiras e o fato da Rua Aurora fazer parte do poema 1961, o que te levava até lá? Existia algum bar, teatro, ou coisa assim? São ruas pelas quais eu passava, peguei o mistério daquele momento.

6. Nos poemas, observamos que o paradoxo entre o sacro e o profano se estende à fotografia. Prova disto é uma fotografia com restos de peixe da página 64... (Roberto Piva interrompe a pergunta) Peixes? Isto são folhas. Fizemos essa foto e todas as fotos de feira numa feira que tinha na Praça Roosevelt. Acho que feira existe até hoje.

105 Anexo C

5. Nos poemas você fala do parque Shangai... (Roberto Piva interrompe a pergunta com certa nostalgia). O Parque Shangai era como o Playcenter da época (...) gostava do trem fantas¬ma, já estava todo caindo aos pedaços, agente não via a hora que aqueles monstros que aparecessem e caíssem em cima da gente. Era tudo meio precário, mas era muito divertido.

7. Uma fotografia que despertou a nossa curiosidade é esta fotografia da página 46, que da início ao poema “Piedade”. Existiu a manipulação e intervenção nas fotos? Esta fotografia é da comemoração da copa de quando o Brasil foi campeão. Ai tem que olhar que quando foi isto. 8. Você fez parte do elenco de algumas fotos? Como assim? 9. Você aparece em algumas fotografias? (Roberto Piva pega o livro e nos mostra as fotos em que aparece no livro) Na internet tem uma comunidade no orkut que a pessoa colocou esta foto(página 52). Este cara no centro da página, é um michê que diga-se de passagem, não tem nada haver comigo para começar eu nunca fumei ... Depois olha para este cabelo! Eu sou este aqui de perfil. No dia eu parei para fazer uma pergunta e o Wesley bateu a foto, no Largo do Arouche. Foi só isto, eu não conhecia ninguém dali... Será que da para avisar a pessoa lá do orkut, quem sou eu na foto?

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10. Mudando um pouco de assunto, gostaríamos de saber sobre o Paranóia, quando você teve a idéia de escrever o livro e quanto tempo demorou para escrever as poesias? Como foi seu processo criativo? Escrevi o Paranóia em 1962, foi publicado em 1963 pelo Massao Ohno. A produção das poesias foi acontecendo naturalmente, conforme eu ia vivenciando a cidade, as pessoas, as paisagens... 11. E como foi o lançamento do livro Paranóia? O Paranóia teve uma carreira underground, uma trajetória underground. É um livro que consta de várias antologias e até o dia do seu lançamento não tinha livro pronto, só existiam seis cópias prontas.

Anexo C

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12. Logo após o lançamento do Paranóia, teve a ditadura em 1964. Você conseguiu ter uma freqüência desses recitais de suas poesias após a ditadura? Os recitais de poesia é uma atividade recente. Na época da ditadura não era costume, não tinha público para poesia como tem hoje em dia. A poesia sempre foi e será uma arte minoritária, atribuí isso ao método da população; aumentou a população aumentou o interesse daquela minoria que gosta de poesia. 13. Em 1963, na época do Paranóia, já existia alguma movimentação pré-ditadura? Como era a sua relação com o pessoal da militância? Eu fui mais perseguido pela esquerda do que pelo pessoal da militância. Essa esquerda brasileira à qual nos referimos, foi o pessoal mais “fachista” que já vi. Passolini já falava isto: que os “fachistas” são aqueles que querem saber se você é casado, ou se é solteiro e eles mesmos... É uma baixaria só... Ficam azucrinando as pessoas criativas, por serem homossexuais... Para eles o mundo devia ser governado por àquelas mulheres vestidas de espantalho... Quanto pior a fantasia, quanto mais feia melhor. 14. O que mais te incomodava em São Paulo na década de 1960? Eu não tava muito preocupado com o que me incomodava, acho que tudo me incomodava. Mas o que não me incomodava era o amor, as aventuras eróticas, as festas, a casa de campo do Cláudio Willer em Eldorado que era uma beleza. 15. Como surgiu a idéia da formação do Grupo Novíssimo? O grupo novíssimo foi uma agementação ao acaso que fizeram para juntar o pessoal novo que estava escrevendo. 90% daqueles que estavam lá nunca mais se ouviu falar como poetas, sumiram. E os que estavam lá apareceram numa minoria que estava lá dentro também continuou escrevendo.

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16. Qual foi a primeira impressão quando você chegou à cidade de São Paulo? Eu não tinha arame farpado nas idas e vindas. Sempre vinha de trem pra São Paulo, passava semanas aqui, semanas na fazenda, não tinha essa coisa de arame farpado nas estradas é como quem vai ao Embu.

18. Como o xamanismo pode ser aplicado na tradução e leitura que você faz da cidade? Rimbaud já dizia que era preciso produzir todos os venenos possíveis, para deles extrair a quinta essência, toda espécie de amor, de transgressão... A poesia é sempre uma experiência iniciática. Os primeiros poetas legisladores eram xamãs, e o xamanismo começou a ter uma relação com o sagrado independente porque não era uma religião de teologias, é religião de poesia... O xamã é o curador ferido... Aliás, quem fala disso é Cotazar que a poesia é um ato mágico, um ato de outra magia, pura feitiçaria. Então o êxtase do xamanismo coincide com o êxtase da poesia.

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17. Existe alguma fórmula para sobreviver em São Paulo odiando a cidade? Não chega a ser ódio, é uma experiência que já se esgotou, é besteira ficar falando disso. A cidade está esperando o fim, o último centauro trotando nos limites dos subúrbios, o último centauro ta só esperando a hora para invadir o parque temático. Por isso que tem horas que me parece impossível viver em São Paulo sem um bom livro. Castaneda, por exemplo ... São livros que você precisa ter em casa, porque nos ajuda a enfrentar as nossas crises existenciais, é um antídoto para São Paulo, um companheiro de jornada, e as caminhadas xamânicas são essenciais para recarregar as baterias, nesta cidade que me consome...

19. Seguindo esse raciocínio qual é o futuro da poesia para você? Tem uma reportagem com essa mesma pergunta à Breton e o Reverdy e concordo com Breton, que o futuro da poesia é a assombração repleta de seduções, (acho isso muito interessante!) a assombração é repleta de apelos da sociedade industrial e de consumo. 20. Em relação ao uso de drogas, existia algum ritual ou para você o uso das drogas tinha a mesma simbologia que tinha para os beats? Bom, a questão das drogas... Fumar maconha começou com uma coisa lúdica... Você tem que ler o Castaneda, tem uma hora que ele chega e fala para o Don Juan, pois é Don Juan, você não vai me dar o fumito agora? (Ele chama o alucinógeno de fumito... você não vai me dar o alucinógeno agora?) e Don Juan responde: “- Não! Eu te dava o fumito na época em que você era imbecil, agora não precisa mais!” Comigo é mais ou menos a mesma coisa!

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Anexo D - Poema América

Anexo D

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América América quando acabaremos com a guerra humana? Vá se foder com sua bomba atômica. Não estou legal não me encha o saco. Não escreverei meu poema enquanto não me sentir legal. América quando é que você será angelical? Quando você tirará sua roupa? Quando você se olhará através do túmulo? Quando você merecerá seu milhão de trotskistas? América por que suas bibliotecas estão cheias de lágrimas? América quando você mandará seus ovos para a Índia? Eu estou cheio das suas exigências malucas. Quando poderei entrar no supermercado e comprar o que preciso só com minha boa aparência? América afinal eu e você é que somos perfeitos não o outro mundo. Sua maquinaria é demais para mim. Você me fez querer ser santo. Deve haver algum jeito de resolver isso. Burroughs está em Tanger acho que ele não volta mais isso é sinistro. Estará você sendo sinistra ou isso é uma brincadeira? Estou tentando entrar no assunto. Eu me recuso a desistir das minhas obsessões. América pare de me empurrar sei o que estou fazendo. América as pétalas das ameixeiras estão caindo. Faz meses que não leio os jornais todo dia alguém é julgado por assassinato. América fico sentimental por causa dos Wobblies. América eu era comunista quando criança e não me arrependo.

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Fumo maconha toda vez que posso. Fico em casa dias seguidos olhando as rosas no armário. Quando vou ao Bairro Chinês fico bêbado e nunca consigo alguém para trepar. Eu resolvi vai haver confusão. Você devia ter me visto lendo Marx. Meu psicanalista acha que estou muito bem. Não direi as Orações ao Senhor. Eu tenho visões místicas e vibrações cósmicas. América ainda não lhe contei o que você fez com Tio Max depois que ele voltou da Rússia. Eu estou falando com você. Você vai deixar que sua vida emocional seja conduzida pelo Time Magazine? Estou obcecado pelo Time Magazine. Eu o leio toda semana. Sua capa me encara toda vez que passo sorrateiramente pela confeitaria da esquina. Eu o leio no porão da Biblioteca Pública de Berkeley. Está sempre me falando de responsabilidades. Os homens de negócios são sérios. Os produtores de cinema são sérios. Todo mundo é sério menos eu. Passa pela minha cabeça que eu sou a América. Estou de novo falando sozinho. A Ásia se ergue contra mim. Não tenho nenhuma chance de chinês. É bom eu verificar meus recursos nacionais. Meus recursos nacionais consistem em dois cigarros de maconha Milhões de genitais uma literatura pessoal impublicável a

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2.000 quilômetros por hora e vinte e cinco mil hospícios. Nem falo das minhas prisões ou dos milhões de desprivilegiados que vivem nos meus vasos de flores à luz de quinhentos sóis. Aboli os prostíbulos da França, Tânger é o próximo lugar. Ambiciono a Presidência apesar de ser Católico.

Anexo D

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América como poderei escrever uma litania neste seu estado de bobeira? Continuarei como Henry Ford meus versos são tão individuais como seus carros mais ainda todos têm sexos diferentes. América eu lhe venderei meus versos a 2.500 dólares cada com 500 de abatimento pela sua estrofe usada. América liberte Tom Mooney América salve os legalistas espanhóis. América Sacco & Vanzetti³ não podem morrer América eu sou os garotos de Scottsboro América quando eu tinha sete anos minha mãe me levou a uma reunião da célula do Partido Comunista eles nos vendiam grão de bico um bocado por um bilhete um bilhete por um tostão e todos podiam falar todos eram angelicais e sentimentais para com os trabalhadores era tudo tão sincero você não imagina que coisa boa era o Partido em 1935 Scott Nearing¹¹ era um velho formidável gente boa de verdade Mãe Bloor me fazia chorar certa vez vi Israel Amster cara a cara. Todo mundo devia ser espião. América a verdade é que você não quer ir à guerra. América são eles os Russos malvados. Os Russos os Russos e esses Chineses. E esses Russos. A Rússia nos quer comer vivos. O poder da Rússia é louco. Ela

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Quer tirar nossos carros das nossas garagens. Ela quer pegar Chicago. Ela precisa de um Reader’s Digest vermelho. Ela quer botar nossas fábricas de automóveis na Sibéria. A grande burocracia dela mandando em nossos postos de gasolina. Isso é ruim. Ufa. Ela vai faze os Índio aprende vermelho. Ela quer pretos bem grandes. Ela quer nos faze trabalha dezesseis horas por dia. Socorro!

111 Anexo D

América tudo isso é muito sério. América essa é a impressão que tenho quando assisto à televisão. América será que isso está certo? É melhor eu pôr as mãos à obra. É verdade que não quero me alistar no Exército ou girar tornos em fábricas de peças de precisão. De qualquer forma sou míope e psicopata. América eu estou encostando meu delicado ombro à roda. Allen Ginsberg

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Anexo E - Poema Supermarket California (Um Supermercado na Califórnia)

Anexo E

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Como estive pensando em você esta noite, Walt Whitman, enquanto caminhava pelas ruas sob as arvores, com dor de cabeça, autoconsciente, olhando a lua cheia. No meu cansaço faminto, fazendo o Shopping das imagens, entrei no supermercado das frutas de néon sonhando com tuas enumerações ! Que pêssegos e que penumbras! Famílias inteiras fazendo suas compras a noite ! Corredores cheios de maridos! Esposas entre os abacates, bebês nos tomates! - e você, Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias? Eu o vi WW, s/ filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas carnes do refrigerador e lançando olhares para os garotos da mercearia. Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles; Quem matou as costeletas de porco ? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo? Caminhei entre as brilhantes pilhas de latarias, seguindo-o e sendo seguido na minha imaginação pelo detetive da loja. Perambulamos juntos pelos amplos corredores com nosso passo solitário, provando alcachofras, pegando cada um dos petiscos gelados e nunca passando pelo caixa. Aonde vamos, WW? As portas fecharão em uma hora. Para quais caminhos aponta tua barba esta noite? (Toco teu livro e sonho com nossa odisséia no supermercado e sinto-me absurdo.) Caminharemos a noite toda por solitárias ruas? As árvores somam som-

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bras as sombras, luzes apagam-se nas casas, ficaremos ambos sós. Vaguearemos sonhando com a América perdida do amor, passando pelos automóveis azuis nas vias expressas, voltando para nosso silencioso chalé ? Ah, pai querido, barba grisalha, velho e solitário professor de coragem, qual América era a sua quando Caronte parou de impelir sua balsa e Você na margem nevoenta, Allen Ginsberg, in Uivo, L&PM.1984

Anexo E

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Anexo F - Manifesto do Surrealismo Manifesto do Surrealismo

Anexo F

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Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhadordefinitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama decisão! ). Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recémnascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente. Se conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir. Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz. Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite

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ser desconsiderada. Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas conseqüências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação. Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares. Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem? Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade ( o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível.

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A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou. Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação. O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz reação contra algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento. Ao contrário, a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora hoje em dia desses livros ridículos, dessas peças insultuosas. Fortificase incessantemente nos jornais , e põe em xeque a ciência, a arte, ao aplicar-se em bajular a opinião nos seus critérios mais baixos; a clareza vizinha da tolice, a vida dos cães. Ressente-se com isso a atividade dos melhores espíritos; a lei do menor esforço afinal se impõe a eles como aos outros. Conseqüência divertida deste estado de coisas, em literatura, é a abundância dos romances. Cada um contribui com sua pequena “observação”. Por necessidade de depuração o sr. Paul Valéry propunha recentemente fazer antologia do maior número possível de começos de romances cuja insensatez ele muito esperava. Os mais famosos autores seriam chamados a participar. Tal idéia dignificava também Paul Valéry, que, não há muito, a propósito dos romances, me garantia que, ele, sempre se recusaria a escrever: “A marquesa saiu às cinco horas.” Mas cumpriu ele a sua palavra?

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Se o escrito de informação pura e simples de que a frase precipitada é exemplo, tem emprego corrente nos romances certamente é por não ir longe a ambição dos autores. O caráter circunstancial, inutilmente particular, de cada notação sua, me faz pensar que estão se divertindo, eles, à minha custa. Não me poupam nenhuma hesitação do personagem: será louro, como se chama, vamos sair juntos no verão? Outras tantas perguntas resolvidas decisivamente, ao acaso; só me restou o poder discricionário de fechar o livro, o que não deixo de fazer, ainda perto da primeira página. E as descrições! Nada se compara ao seu vazio; são superposições de imagens de catálogo, o autor as toma cada vez mais sem cerimônia, aproveita para me empurrar seus cartões postais, procura fazer-me concordar com os lugares-comuns: A salinha onde foi introduzido o moço era forrada de papel amarelo: havia gerânios e cortinas de musselina nas janelas; o sol poente jogava sobre tudo isso uma luz clara... O quarto não continha nada de particular. Os móveis, de madeira amarela, eram todos velhos. Um sofá com grande encosto inclinado, uma mesa oval diante do sofá, um toucador, com espelho, entre as janelas, cadeiras encostadas às paredes, duas ou três gravuras sem valor, representando moças alemãs com pássaros nas mãos – eis a que se reduzia a mobília. (Dostoievski, Crime e Castigo)

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Que o espírito se proponha, mesmo por pouco tempo, tais motivos, não tenho disposição para admiti-lo. Podem sustentar que este desenho clássico está no lugar certo e que neste passo do livro o autor tem seus motivos para me esmagar. Perde seu tempo, pois não entro no seu quarto. A preguiça, a fadiga dos outros não me prendem. Tenho da continuidade da vida uma noção instável demais para igualar aos melhores os meus momentos de depressão, de fraqueza. Quero que se calem, quando param de ressentir. E entendam bem que não incrimino a falta de originalidade pela falta de originalidade. Digo apenas que não faço caso dos momentos nulos de minha vida, que da parte de qualquer homem pode ser indigno de cristalizar aqueles que lhe parecem tais. Esta descrição de quarto, e muitas outras, permitam-me, digo: passo.

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Ora, cheguei à psicologia, e com este assunto nem penso em brincar. O autor pega-se com um personagem, e escolhido este, faz seu herói peregrinar pelo mundo. Haja o que houver, este herói, cujas ações são admiravelmente previstas, tem a incumbência de não desmanchar, parecendo porém sempre desmanchar, os cálculos de que é objeto. As vagas da vida podem parecer arrebata-lo, roda-lo, afunda-lo, ele sempre dependerá deste tipo humano formado. Simples partida de xadrez, da qual me desinteresso mesmo, sendo o homem, qualquer um, um medíocre adversário para mim. Não posso é suportar estas reles discussões de tal ou qual lance, desde que não se trata nem de ganhar nem de perder. E se o jogo não vale um caracol, se a razão objetiva prejudica terrivelmente, como é o caso, quem nela confia, não convirá fazer abstração destas categorias? “É tão ampla a diversidade, que todos os tons de voz, todos os passos, tosses assôos, espirros...” Se um cacho de uvas não tem duas sementes iguais, como querem que lhes descreva este bago pelo outro, por todos os outros, que dele faça um bago bom para comer? Esta intratável mania de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, embala os cérebros. O desejo de análise prevalece sobre os sentimentos. Disso resultam dilatadas exposições cuja força persuasiva reside na sua própria singularidade, e que iludem o leitor pelo recurso a um vocabulário abstrato, bastante mal definido, aliás. Se as idéias gerais que a filosofia se propõe até aqui debater, marcassem por aí sua incursão definitiva num domínio mais extenso, seria eu o primeiro a me alegrar. Mas por enquanto é só afetação; até aqui os ditos espirituosos e outras boas maneiras nos encobrem à porfia o verdadeiro pensamento que se busca ele próprio, em vez de se ocupar em obter sucessos. Parece-me que todo ato traz em si mesmo sua justificação, ao menos para quem foi capaz de comete-lo, que ele é dotado de um poder radiante que a mínima glosa, por natureza, enfraquece. Devido a esta última ele deixa mesmo, de certo modo, de se produzir. Não ganha nada com esta distinção. Os heróis de Stendhal caem aos golpes deste autor, apreciações mais ou menos felizes, que nada acrescentam à sua glória. Onde os encontraremos de fato, é onde Stendhal os perdeu.

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Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil faze-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiuse banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, capta-las primeiro, para submete-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso. Mas é importante observar que nenhum meio está a priori designado para conduzir este empreendimento, que até segunda ordem pode ser também considerado como sendo da alçada dos poetas, tanto como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou menos caprichosas a serem seguidas. Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É inadmissível, com efeito, que esta parte considerável da atividade psíquica (pois que, ao menos do nascimento à morte do homem, o pensamento não tem solução de continuidade, a soma dos momentos de sonho, do ponto de vista do tempo a considerar só o sonho puro, o do sono, não é inferior à soma dos momentos de realidade, digamos apenas: dos momentos de vigília ) não tenha recebido a atenção devida. A

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extrema diferença de atenção, de gravidade, que o observador comum confere aos acontecimentos da vigília e aos do sono, é caso que sempre me espantou. É que o homem, quando cessa de dormir, é logo o joguete de sua memória, a qual, no estado normal, deleita-se em lhe retraçar fracamente as circunstâncias do sonho, em privar este de toda conseqüência atual, e em despedir o único determinante do ponto onde ele julga tê-lo deixado, poucas horas antes: esta esperança firme, este desassossego. Ele tem a ilusão de continuar algo que vale a pena. O sonho fica assim reduzido a um parêntese, como a noite. E como a noite, geralmente também não traz bom conselho. Este singular estado de coisas parece-me conduzir a algumas reflexões: 1.º nos limites onde exerce sua ação ( supõe-se que a exerce ) o sonho, ao que tudo indica, é contínuo, e possui traços de organização. A memória arroga-se o direito de nele fazer cortes, de não levar em conta as transições, e de nos apresentar antes uma série de sonhos do o sonho. Assim também, a cada instante só temos das realidades uma figuração distinta, cuja coordenação é questão de vontade. Importa notar que nada nos permite induzir a uma maior dissipação dos elementos constitutivos do sonho. Lamento falar disso segundo uma fórmula que exclui o sonho, em princípio. Quando virão os lógicos, os filósofos adormecidos? Eu gostaria de dormir, para poder me entregar aos dormidores, como me entrego aos que lêem, olhos bem abertos; para cessar de fazer prevalecer nesta matéria o ritmo consciente de meu pensamento. Meu sonho desta última noite talvez prossiga o da noite precedente, e seja prosseguido na próxima noite, com louvável rigor. É bem possível, como se diz. E como não está de modo nenhum provado que, fazendo isso, a “realidade” que me ocupa subsista no estado de sonho, que Lea não afunde no imemorial, porque não haveria eu de conceder ao sonho o que recuso por vezes à realidade, seja este valor de certeza em si mesma, que, em seu tempo, não está exposta a meu desmentido? Por que não haveria eu de esperar do indício do sonho mais do que espero de um grau de consciência cada dia mais elevado? Não se poderia aplicar o sonho, ele também, resolução de questões fundamentais da vida? Serão estas perguntas as mesmas num caso como no outro, e no sonho elas já estão? O sonho terá menos peso de san-

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ções que o resto? Envelheço, e mais que esta realidade à qual penso me adstringir, é talvez o sonho, a indiferença que lhe dedico, que me faz envelhecer; 2.º. retomo o estado de vigília. Sou obrigado a considera-lo um fenômeno de interferência. Não apenas o espírito manifesta, nestas condições, uma estranha tendência à desorientação (é a história dos lapsos e enganos de toda espécie cujo segredo começa a nos ser entregue) mas ainda não parece que, em seu funcionamento normal, ele obedeça a outra coisa senão a sugestões que lhe vêm desta noite profunda das quais eu recomendo. Por mais bem condicionado que ele esteja, seu equilíbrio é relativo. Mal ousa expressar-se, e se o faz, é para limitar à constatação de que tal idéia, tal mulher, lhe faz impressão. Que impressão, seria incapaz de dize-lo, dando assim a medida de seu subjetivismo, e nada mais. Esta idéia, esta mulher, o perturba, predispõe-no a menos severidade. Ela tem a ação de isola-lo um segundo de seu solvente e de deposita-lo no céu, como belo precipitado que ele pode ser, que ele é. Em desespero de causa, invoca ele o acaso, divindade mais obscura que as outras, à qual atribui todos os seus desvarios. Que me diz que o ângulo sob o qual se apresenta esta idéia que o afeta, o que ele ama no olho desta mulher não é precisamente o que o liga a seu sonho, o prende a dados que ele perdeu por sua culpa? E se isso fosse de outro modo, do que não seria ele capaz, talvez? Eu gostaria de dar-lhe a chave deste corredor; 3.º. o espírito do homem que sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. A angustiante questão da possibilidade não mais está presente. Mata, vi mais depressa, ama tanto quanto quiseres. E se morres, não tens certeza de despertares entre os mortos? Deixa-te levar, os acontecimentos não permitem que os retardes. Não tens nome. É inapreciável a facilidade de tudo. Que razão, eu te pergunto, razão tão maior que outra, confere ao sonho este comportamento natural, me faz acolher sem reserva uma porção de episódios cuja singularidade, quando escrevo, me fulminaria? E no entanto, posso crer nos meus olhos, nos meus ouvidos: chegou o belo dia, esse bicho falou. Se o despertar do homem é mais duro, se ele quebra muito bem o encanto, é que o levaram a ter uma raça idéia da expiação;

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4.º. do momento em que seja submetido a um exame metódico, quando, por meios a serem determinados, se chegar a nos dar conta do sonho em sua integridade (isto supõe um disciplina da memória que atinge gerações; mesmo assim comecemos a registrar os fatos salientes), quando sua curva se desenvolve com regularidade e amplidão sem iguais, então se pode esperar que os seus mistérios, não mais o sendo, dêem lugar ao grande Mistério. Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer. Parto à sua conquista, certo de não consegui-la, mas bem despreocupado com minha morte, vou suputar um pouco os prazeres de tal posse. Conta-se que todo o dia, à hora de dormir, Saint-Roux mandava colocar à porta de seu solar em Camaret um cartaz onde se lia: O POETA TRABALHA. Muito haveria ainda a dizer, mas de passagem, só quis aflorar um assunto que, por si só, necessitaria um alongado discurso e um maior rigor; voltarei a esse ponto. Desta vez, minha intenção era dizer a verdade sobre o ódio ao maravilhoso que grassa em certos homens, deste ridículo no qual o querem fazer cair. Falando claro: o maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo. No domínio literário, só o maravilhoso é capaz de fecundar obras dependentes de um gênero inferior, como o romance, e de modo geral, de tudo que participa da anedota. Uma prova admirável é O Monge, de Lewis. O sopro do maravilhoso o anima por inteiro. Bem antes de o autor ter libertado seus principais personagens de qualquer coerção temporal, já se percebe que estão prontos para agir com altivez sem precedente. Esta paixão da eternidade, que os exalta sem cessar, confere inesquecíveis acentos a seu tormento e ao meu. Entendo que este livro só exalta, do começo ao fim, e da forma mais pura do mundo, aquilo que do espírito aspira a deixar o chão, e que, despojado de uma parte insignificante de sua afabulação romanesca, à moda do tempo, constitui um modelo de justeza, de inocente grandiosidade. parece-me que não se fez melhor, e a personagem de Matilde, em particular, é a criação mais comovente que se possa pôr ao

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ativo deste modo figurado em literatura. É menos um personagem que uma contínua tentação. E se um personagem não é uma tentação, o que é? Tentação extrema aquela. O “nada é impossível a quem sabe ousar” dá em O Monge toda a sua convincente medida. As aparições aí têm um papel lógico, pois que o espírito crítico não se apodera delas para contesta-las. Também o castigo de Ambrósio é tratado de maneira legítima, pois é finalmente aceito pelo espírito crítico como desenlace natural. Pode parecer arbitrário que eu proponha este modelo, quan do se trata do maravilhoso, do qual as literaturas no Norte e as literaturas orientais tiraram subsídios e mais subsídios, sem falar das literaturas propriamente religiosas de toda a parte. É que a maior parte dos exemplos que estas literaturas poderiam me fornecer estão eivadas de puerilidade, pela boa razão de serem dirigidas às crianças. Cedo elas são cortadas do maravilhoso, e mais tarde, não guardaram suficiente virgindade de espírito para sentirem extremo prazer com Pele de Asno. Por mais encantadores que sejam, o homem julgaria decair ao se nutrir de contos de fadas, e concordo que estes não são todos de sua idade. O tecido de adoráveis inverossimilhanças requer mais finura, à medida que se avança, e ainda se está à espera destas espécies de aranhas... Mas as faculdades não mudam radicalmente. O medo, a atração do insólito, as chances, o gosto do luxo são molas às quais não se apela em vão. Há contos a escrever para adultos, contos de fadas, quase. O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por algum tempo. Nestes quadros que nos fazem sorrir, no entanto sempre se pinta a inquietação humana, e é por isso que os levo a sério, que os julgo inseparáveis de algumas produções geniais, as quais, mais que as outras, estão dolorosamente impregnadas dessa inquietação. São os patíbulos de Villon, as gregas de Racine, os divãs de Baudelaire. Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para suportar, eu que tenho do gosto a idéia de um grande defeito. No mau gosto de minha época, procuro ir mais longe que os outros. Para

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mim, se eu tivesse vivido em 1820, para mim “a freira sangrenta”, a mim, não poupar este sorrateiro e banal dissimulons de que fala o periódico Cuisin, a mim, a mim, percorrer em metáforas, como ele diz, todas as fases do “disco prateado”. Por hoje, penso num castelo, cuja metade não está obrigatoriamente em ruína; este cabelo me pertence, eu o vejo num sítio agreste, não longe de Paris. Suas dependências não acabam mais e, quanto ao interior, foi terrivelmente restaurado, de modo a nada deixar a desejar, em matéria de conforto. Junto à porta, encoberta pela sombra das árvores, estão os automóveis, estacionados. Alguns de meus amigos aí estão, em permanência: eis o Louis Aragon que parte – ele só tem tempo para cumprimentar-nos; Philippe Soupault se levanta com as estrelas Paul Eluard, nosso grande Eluard, ainda não voltou. Eis Robert Desnos e Roger Vitrac, que decifram no parque um velho edital sobre o duelo; Georges Auric, Jean Paulhan, Max Morise, que rema tão bem, Benjamin Péret, em suas equações de pássaros; e Joseph Delteil; e Jean Carrive; e Georges Limbour (há uma fileira de Georges Limbour); e Marcel Noll; eis T. Traenkel que nos acena de seu balão cativo, Georges Malkine, Antonin Artaud, Francis Gerard, Pierre Naville, J. A . Boiffard, depois Jacques Baron e seu irmão, belos e cordiais, tantos outros ainda, e mulheres deslumbrantes, palavra. Estes jovens não podem se recusar nada, seus desejos são, para a riqueza, ordens. Francis Picabia vem nos visitar e, na semana passada, recebeu-se na galeria dos espelhos um tal Marcel Duchamp que ainda não se conhecia. Picasso caça aí por perto. O espírito de desmoralização ergueu domicílio no castelo, e é com ele que tratamos sempre que há problema de relação com nossos semelhantes, mas as portas estão sempre abertas, e sabeis, não se começa “agradecendo” às pessoas. De mais a mais, a solidão é vasta, não nos encontramos muito. Pois o essencial não é sermos senhores de nós mesmos, das mulheres, do amor também? Vão atribuir-me uma mentira poética; cada um vai dizer que moro na Rua Fontaine, e que não vai beber desta água. Na verdade! mas este castelo cujas honras lhe faço, tem ele certeza que seja uma viagem? E se, não obstante, o palácio existisse? Meus hóspedes estão aí para responderem por isso; seu capricho é a es-

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trada luminosa que aí conduz. Vivemos de fato à nossa fantasia, quando estamos lá. E como o que um faz poderia incomodar o outro, ali, ao abrigo da procura sentimental e dos encontros ocasionais? O homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer-se por inteiro, isto é, manter em estado anárquico o bando cada vez mais medonho de seus desejos. A poesia ensina-lhe isso. Traz nela a perfeita compensação das misérias que padecemos. Ela pode ser também uma ordenadora, bastando que ao golpe de uma decepção menos íntima se tenha a idéia de tomá-la ao trágico. Venha o tempo quando ela decrete o fim do dinheiro e parta, única, o pão do céu para a terra! Haverá ainda assembléias nas praças públicas, e movimentos dos quais não pensaste participar. Adeus seleções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, longas paciências, a evasão das estações, a ordem artificial das idéias, a rampa do perigo, tempo para tudo! Basta se Ter o trabalho de praticar a poesia. Não é a nós que compete, que já vivemos dela, o esforço de fazer prevalecer o que guardamos para nossa mais ampla inquietação? Não importa se há desproporção entre esta defesa e a ilustração que vai segui-la. Tratava-se de remontar às fontes de imaginação poética, e mais ainda, ficar aí. Não tenho a pretensão de ter feito isso. É preciso muito domínio sobre si, para querer se estabelecer nestas recuadas regiões onde tudo parece andar tão mal, e com maior razão, para querer aí conduzir alguém. E nunca se tem certeza de aí estar em absoluto. Como não se vai gostar, fica-se disposto a se deter em outra parte. A verdade é que agora uma flecha indica a direção destes lugares e que alcançar a meta verdadeira só depende de resistência do viajante. Conhece-se, pouco mais ou menos, o caminho percorrido. Tive o cuidado de contar, no decurso de um estudo sobre o caso de Robert Desnos, intitulado: ENTRADA DOS MÉDIUNS, que eu tinha sido levado a “fixar minhas atenções sobre frases mais ou menos parciais, que em plena solidão, quase pegando no sono, ficam perceptíveis para o espírito, sem ser possível descobrir-lhes uma determinação prévia”. Eu mal acabara de tentar uma aventura poética, com o mínimo de chances, isto é, minhas aspirações eram as mesmas de hoje, mas eu tinha

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fé na lentidão de elaboração para fugir a contatos inúteis, contatos que eu reprovava intensamente. Era o pudor do pensamento, de que me sobra ainda alguma coisa. No fim de minha vida, com dificuldade chegarei a falar como falam todos, culpa de minha voz e de meus gestos escassos. A virtude da palavra (da escrita: bem maior) me parecia ligada à faculdade de encurtar de modo marcante a exposição (pois era uma exposição) de alguns poucos fatos, poéticos ou outros, substanciais para mim. Em minha idéia, não era outro o processo usado por Rimbaud. Eu compunha, e o meu empenho de variedade merecia melhor sorte, os últimos poemas do Mont de Pieté, isto é, conseguia tirar das linhas em branco desse livro um partido incrível. Essas linhas eram o olho fechado sobre operações de pensamento, que, julgava eu, deviam ser ocultadas do leitor. Não era trapaça, mas sim, gosto de precipitar as coisas. Eu obtinha a ilusão de uma cumplicidade possível, cada vez menos dispensável para mim. Eu pegara o vezo de afagar imoderadamente as palavras pelo espaço admitido em torno delas, por suas tangências com outras inumeráveis palavras não pronunciadas por mim. O poema FLORESTANEGRA marca exatamente este estado de espírito. Passei seis meses a escrevê-lo e, podem acreditar, não descansei um só dia. Mas tratava-se da estima que eu então me dedicava, não é bastante, compreendam. Adoro estas confissões estúpidas. Naquele tempo, a pseudopoesia cubista procurava se implantar, mas saíra desarmada do cérebro de Picasso, e quanto a mim, eu era tido como tão enfadonho quanto a chuva (ainda sou). Eu desconfiava, aliás, que do ponto de vista poético, eu estava no caminho errado, mas eu me safava como podia, desafiando o lirismo, a golpes de definição e de receitas (os fenômenos Dada não tardariam a se manifestar), e fingindo encontrar uma aplicação da poesia na publicidade (eu sustentava que o mundo acabaria, não por um belo livro, mas por uma bela propaganda do inferno e do céu). Na mesma época, um homem, tão ou mais enfadonho que eu, Pierre Reverdy, escrevia:

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A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de duas realidade mais ou menos remotas. Quan to mais longínquas e justas forem as afinidades de duas realidades próximas, tanto mais forte será a imagem – mais poder emotivo e realidade poética ela possuirá... etc.

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Estas palavras, se bem que sibilinas para os profanos eram indicadores muito fortes, e sobre elas meditei longamente. Mas a imagem era fugidia. A estética de Reverdy, estética toda a posteriori, fazia-me tomar os efeitos pelas causas. Entrementes, fui obrigado a renunciar definitivamente a meu ponto de vista. Certa noite então, antes de adormecer, percebi, nitidamente articulada a ponto de ser impossível mudar-lhe uma palavra, mas bem separada do ruído de qualquer voz, uma frase bem bizarra que me alcançava sem trazer indício dos acontecimentos aos quais, segundo o testemunho de minha consciência, eu estava preso, nessa ocasião, frase que me pareceu insistente, frase, se posso ousar, que batia na vidraça. Rapidamente tive a sua noção, e já me dispunha a passar adiante quando o seu caráter orgânico me reteve. Na verdade, esta frase me espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era algo como: “Há um homem cortado em dois pela janela”, mas não poderia haver ambigüidade, acompanhada como estava pela fraca representação visual de um homem andando, e seccionado a meia altura por uma janela perpendicular ao eixo de seu corpo. Fora de dúvida era a simples aprumação no espaço de um homem debruçado à janela. Mas esta janela tendo seguido o deslocamento do homem vi que se tratava de uma imagem de tipo bastante raro e logo pensei em incorporá-la a meu material de construção poética. Assim que lhe concedi este crédito ela deu lugar a uma sucessão quase ininterrupta de frases que não me surpreenderam menos e me deixaram sob a impressão de uma tal gratuidade que me pareceu ilusório o império que até então eu mantinha sobre mim mesmo, e só pensei então em liquidar a interminável disputa travada em mim (Knut Hamsun põe na dependência da fome este tipo de revelação que me assaltou, e talvez não esteja ele errado (o fato é que nessa época eu não comia todos os dias). Com toda certeza são de fato as mesmas manifestações que ele relata nestes termos:

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“No dia seguinte acordei cedo. Estava ainda escuro. Meus olhos estavam abertos fazia tempo, quando ouvi o relógio do apartamento inferior bater cinco horas. Quis novamente dormir mas não consegui, eu estava completamente desperto e mil coisas baralhavam na minha cabeça. De repente me vieram uns bons trechos, próprios para utilização num esboço, num folhetim; subitamente, por acaso, achei frases muito bonitas, frases como jamais escreverei. Eu as repetia lentamente, palavra por palavra, eram excelentes. E vinham mais outras. Levantei-me, peguei lápis e papel na mesa atrás de minha cama. É como se eu tivesse rompido uma veia, uma palavra seguia outra, colocava-se em seu lugar, surgiam as réplicas, em meu cérebro, eu gozava profundamente. Os pensamentos me vinham tão rapidamente e fluíam tão abundantemente que eu perdia uma porção de detalhes delicados, porque meu lápis não podia andar tão depressa, e entretanto eu me apressava, a mão sempre em movimento, eu não perdia um minuto. As frases continuavam a brotar em mim, eu estava prenhe de meu assunto”.

Apollinaire afirmava que os primeiros quadros de Chirico haviam sido pintados sob a influência de distúrbios cenestésicos (enxaquecas, cólicas). Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado com os seus métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar em doentes durante a guerra, que decidi obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma reticência, e que seja tão exatamente quanto possível o pensamento falado. Pareciame, ainda me parece – a maneira como me chegara a frase do homem seccionado o comprovava – que a velocidade do pensamento não é superior à da palavra e que ele não desafia forçadamente a língua, nem mesmo a caneta que corre. Foi com estas disposições que Philippe Soupault, a quem eu comunicara estas primeiras conclusões, e eu começamos a escrevinhar, pouco nos importando com o que pudesse suceder literariamente. A facilidade de realização fez o resto. No fim do primeiro dia podíamos ler umas cinqüenta páginas obtidas por este meio, e começar a comparação de nossos resultados. No conjunto, os de Sou-

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pault e os meus mostravam notável analogia: mesmo vício de construção, falhas similares, mas também, de cada lado, a ilusão de um estro maravilhoso, muita emoção, escolha considerável de imagens de uma tal qualidade que não teríamos sido capazes de preparar uma só delas, mesmo com muito empenho, um pitoresco muito especial, e de um lado e de outro, alguma proposição de pungente burlesco. As únicas diferenças entre nossos dois textos me pareceram corresponder essencialmente a nossos temperamentos recíprocos, o de Soupault menos estático que o meu, e se ele me permite esta leve crítica, ao fato de Ter ele cometido o erro de distribuir, ao alto de certas páginas, e sem dúvida por espírito de mistificação, algumas palavras à guisa de títulos. Em compensação, devo-lhe a justiça de dizer que ele se opôs sempre, com toda energia, a qualquer retoque, à mínima correção ao curso de toda passagem desse gênero que me parecia até descabida. Tinha ele toda razão nisso. É com efeito muito difícil apreciar em seu justo valor os diversos elementos presentes, diga-se mesmo, é impossível apreciá-los numa primeira leitura. A vós que escreveis, estes elementos, na aparência, vos são tão estranhos quanto a outro qualquer, e naturalmente desconfiais. Falando poeticamente, eles se reconhecem sobretudo por um alto grau de absurdidade imediata, sendo o próprio desta absurdidade, num exame mais aprofundado, dar lugar a tudo que há de admissível, de legítimo no mundo: a divulgação de certo número de propriedades e de fatos não menos objetivos, em suma, que os outros. Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morrera há pouco, e que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupault e eu designamos com o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos. Creio não ser mais necessário, hoje, repisar esta palavra, e que a acepção em que a tomamos acabou por prevalecer sobre a acepção apollinairiana. Ainda com maior razão poderíamos ter-nos apossado da palavra SUPERNATURALISMO, empregada por Gerard de Nerval na dedicatória de Filles de Feu. Com efeito, parece que Nerval possuiu às mil maravilhas o espírito ao qual recorremos,

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enquanto Apollinaire não possuía senão a letra, ainda imperfeita, do surrealismo, tendo sido incapaz de lhe traçar um esboço teórico que valha a pena. Eis duas frases de Nerval que acerca disso me parecem bem significativas: Vou explicar-lhe, meu caro Dumas, o fenômeno que você citou acima. Como você sabe, há certos contistas que não podem inventar sem se identificarem aos personagens de sua imaginação. Você sabe com que convicção nosso velho amigo Nodier narrava como ele tivera a desgraça de ser guilhotinado na época da Revolução; ficava-se de tal modo persuadido que se ficava querendo saber como ele conseguira recolocar sua cabeça. ... E já que você teve a imprudência de citar um soneto composto neste estado de devaneio onírico SUPERNATURALISTA, como diriam os alemães, vai ouvi-los todos. Não são nada mais obscuros do que a metafísica de Hegel ou as MEMORÁVEIS de Swedenborg, e perderiam encanto se fossem explicados, se a coisa fosse possível, conceda-me ao me nos o mérito da expressão... Só com muita fé poderiam nos contestar o direito de empregar a palavra SURREALISMO no sentido muito particular em que o entendemos, pois está claro que antes de nós esta palavra não obteve êxito. Defino-a pois uma vez por todas. SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral. ENCICL. Filos. O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associações desprezadas antes dele, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos, e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas da vida. Deram testemunho de SURREALISMO ABSOLUTO os srs. Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Eluard, Gerard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac. Parece que são, até agora, os únicos, e não haveria engano, não fosse o caso apaixonante de Isidore Ducasse, sobre o qual me faltam elementos. E certamente,

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não considerando senão superficialmente seus resultados, bom número de poetas poderiam passar por surrealistas, a começar por Dante, e, em seus melhores dias, Shakespeare. No curso das diferentes tentativas de redução, em que empenhei, do que se chama, por abuso de confiança, o gênio, nada encontrei que se possa finalmente atribuir a outro processo que não seja este. As NOITES de Young são surrealistas do começo ao fim; infelizmente é um padre que fala, mau padre, sem dúvida, mas padre. Swift é surrealista na maldade. Sade é surrealista no sadismo. Chateaubriand é surrealista no exotismo. Constant é surrealista em política. Hugo é surrealista quando não é tolo. Desbordes-Valmore é surrealista em amor. Bertrand é surrealista no passado. Rabbe é surrealista na morte. Poe é surrealista na aventura. Baudelaire é surrealista na moral. Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures. Mallarmé é surrealista na confidência. Jarry é surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no beijo. Saint-Pol-Roux é surrealista no símbolo. Fargue é surrealista na atmosfera. Vaché é surrealista em mim. Reverdy é surrealista em sua casa. Saint-John Perse é surrealista a distância. Roussel é surrealista na anedota. Etc. Insisto, eles nem sempre são surrealistas, neste sentido que descubro neles um certo número de idéias preconcebidas, às quais, bem ingenuamente, eles se

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apegavam. Apegavam porque ainda não tinham ouvido a voz surrealista, a que continua a pregar à véspera da morte e acima das tempestades, porque não queriam servir somente para orquestrar a maravilhosa partitura. Eram instrumentos soberbos demais, e por isso nem sempre produziram som harmonioso. Nós, porém, que não nos dedicamos a nenhum trabalho de filtração, que nos fizemos em nossas obras os surdos receptáculos de tantos ecos, modestos aparelhos registradores que não se hipnotizam com o desenho traçado, talvez sirvamos uma causa mais nobre. Assim devolvemos com probidade o “talento” que nos atribuem. Falem-me do talento deste metro de platina, deste espelho, desta porta, e do céu, se quiserem. Não temos talento, perguntem a Philippe Soupault: “As manufaturas anatômicas e as habitações baratas destruindo as mais importantes cidades”. A Roger Vitrac: “Recém-invocara eu o mármore-almirante (A Mesa de Mármore era um Tribunal instalado no Palácio de Justiça em Paris, realizando suas sessões numa imensa mesa de mármore, que lhe deu o nome; era de sua alçada o julgamento de militares, e sua jurisdição tinha três divisões: o almirantado, as florestas e águas, e a área do condestável) quando este virou nos calcanhares como um cavalo que se empina diante da estrela polar e me indicou no plano de seu chapéu bicorne uma região onde eu devia passar a minha vida”.

A Paul Eluard: “Conto uma história bem conhecida, releio um poema célebre: estou apoiado a um muro, orelhas verdejantes, lábios calcinados”. A Max Morise: “O urso das cavernas e sua companhia que mia, o volante e seu valete no vento, o grão-chanceler com sua mulher, o espantalho e seu amigo alho, a fagulha com agulha, o carniceiro e seu irmão carnaval, o varredor com o seu tapaolho, o Mississipi e seu sapo, o coral e o colar, o Milagre e seu santo por favor desapareçam da superfície do mar”.

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A Joseph Delteil: “Ai de mim! Creio na virtude das aves. E basta uma pena para me matar de rir!”. A Louis Aragon: “Durante uma interrupção da partida, quando os jogadores, reunidos, rodeavam a poncheira escaldante, perguntei à árvore se ainda tinha sua fita vermelha”. A mim mesmo, que não pude me impedir de escrever as linhas serpentinas, alucinantes, deste prefácio.

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