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A greve e o limite da institucionalidade
Lara Lorena Ferreira *
Não é o objetivo, neste breve ensaio, trazer à colação o histórico das disposições legais que já trataram sobre a greve dos servidores públicos no Brasil, para melhor contextualização do problema, ou fazer um estudo comparado do direito de greve, já que o espaço não permitiria. Assim, o foco dessa análise passa a ser mais pontual e centralizado no atual cenário institucional e no conflito que a ausência da norma regulamentadora desse exercício de direitos acarreta.
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No que concerne à Administração Pública Direta e Indireta, dispõe o arti
go 37, inciso VII, da Constituição Federal pátria: “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica” . Desde a promulgação de nossa Constituição, bem como da Emenda Constitucional nº 19/98, o tema do exercício do direito de greve tem colecionado muita polêmica doutrinária e jurisprudencial. Vários juristas já se debruçaram sobre a questão e nossos tribunais não permaneceram à margem do debate.
Um breve panorama sobre as posições atuais tomadas pelos operadores do Direito, sem delinear os argumentos envolvidos, se faz necessário. Defendem alguns doutrinadores a eficácia contida da norma acima transcrita, reconhecendo nela a possibilidade do exercício do direito de greve mesmo antes da edição de lei, e que seria regulada dentro da esfera do poder discricionário do Poder Público. Há quem defenda ainda que esta lei deve se revestir sob a forma de lei complementar para a aplicabilidade do dispositivo constitucional; outros, apenas de lei ordinária. Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal (STF) defende a posição da inviabilidade do exercício do direito de greve dos servidores públicos, enquanto a norma não for regulamentada por lei. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem enten
dimento majoritário de que o exercício do direito de greve pode ser exercido amplamente, mesmo sem a regulamentação do inciso VII, artigo 37 da CF, porém, com a restrição do desconto dos dias parados enquanto a norma infra-constitucional não sobrevier.
Toda essa discussão se torna ultrapassada à medida que, nesta matéria, os cidadãos não têm sucesso efetivo na garantia de seus direitos, mesmo recorrendo aos instrumentos constitucionais disponíveis para dar aplicabilidade a direitos e garantias individuais, tal como o mandado de injunção.
Na realidade, o cidadão vem sendo penalizado pela inércia do Poder Público, e os instrumentos constitucionais à sua disposição, embora acionados, se mostram totalmente inócuos. O mandado de injunção, garantia constitucional do cidadão sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos, tem se tornado obsoleto, visto que não cumpre seu papel, em parte, em razão do próprio Poder Judiciário. Se o Poder Legislativo não realiza seu trabalho ordinário, de elaboração de leis, cabe ao Poder Judiciário, no caso o Supremo Tribunal Federal, assumir a responsabilidade de suprir tal lacuna no caso em concreto, conforme diretriz constitucional, saindo da posição passiva que assumiu quanto ao problema em tela, de não reconhecer o direito de greve enquanto a lei infra-constitucional não for editada.
Ora, a discussão é de fato ultrapassada, não cabendo mais argüir se depende ou não de elaboração de lei para o pleno exercício do direito de greve porque, uma vez tendo sido o Poder Público chamado, como o foi nesta matéria, por via do mandado de injunção, a cumprir sua função de editar a lei, e permanece até então sem tê-lo feito, o ônus se transfere ao Poder Público, e não ao cidadão. Este é um passo à frente da discussão em pauta. A despeito da tímida posição que o STF assumiu nesse caso, não impondo O cidadão vem sendo penalizado pela inércia do Poder Público, e os instrumentos constitucionais à sua disposição, embora acionados, se mostram totalmente inócuos
sanção ao Legislativo, em caso da não elaboração de lei, não pode mais o cidadão ver seu direito constitucional, legítimo, constrangido em virtude da ineficiência do Poder Público, ou ainda, da falta de interesse político de elaboração de determinadas leis.
A polêmica que cerca a questão do direito de greve do servidor público ocorre não somente pelos interesses em pauta, mas também porque envolvem direitos que estão nas paixões do ser humano. O direito de greve acaba sendo um desdobramento de direitos individuais, como o direito à liberdade, à igualdade, de associação e de direitos políticos à medida que a greve constitui um instrumento democrático a serviço da cidadania.
A posição adotada pelo STF e a inércia do Poder Legislativo podem, num primeiro momento, trabalhar a favor de uma determinada convicção, mas terminam agindo contra a própria Constituição e colocando em xeque as instituições públicas que, constantemente, se defrontam com o problema da greve.
A instituição pública que enfrenta uma greve entre seus servidores, sem o respaldo legal para equacionar o problema, tem como contrapartida para reprimir a greve a ameaça do uso da sua autoridade para cortar funcionários ou a folha de pagamento, ou ainda, autorizar o emprego da violência física, concentrada nas mãos do monopólio estatal, deflagrando então nessas ações toda a mácula da falta de tradição democrática que os anos de repressão nos impuseram, levando a instituição pública ao descrédito e, por vezes, à antipatia da sociedade.
Dessa forma, a instituição pública sempre tem muito a perder. A falta de respaldo legal para intermediar essa situação, cuja ausência, tal como dissemos, inicialmente, pode parecer interessante, sob uma determinada perspectiva política, se revela deletéria à instituição, havendo desgaste sob todos os aspectos da mesma e das autoridades administrativas envolvidas que, ao mesmo tempo, devem lidar com os prejuízos que a falta do serviço público acarreta, com a insatisfação dos funcionários, com a opinião pública e com a pressão de autoridades administrativas superiores. Contudo, nesse caso, o problema criado para a instituição pública não reverte a favor do servidor que também, sem a regulamentação da lei, arca com o ônus de permanecer à mercê do poder discricionário da autoridade administrativa da instituição. Afinal, quem sai ganhando nessa situação?
O problema da greve no serviço público é ainda maior por se realizar como uma desobediência civil direta ao Estado, diferentemente de greve dos trabalhadores que agem contra empresas. Como tratar esses desobedientes civis? Penalizando suas ações, mesmo sendo legítimas? O exercício do direito de greve representa assim o limite da cidadania e o instrumento mais adequado para ela se impor. É, neste sentido, um teste à democracia no país, e, na prática, um teste aos dirigentes das instituições públicas, que devem perseguir a consolidação dessa democracia.
* Lara Lorena Ferreira é advogada da Associação dos Docentes da USP e mestranda em Filosofia do Direito, na PUC-SP