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O financiamento público para a universidade pública é necessário
Francisco Miraglia e Soraya Smaili*
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As Universidades Públicas brasileiras vivem hoje um momento singular. Ao cabo de anos de uma política de desmonte e privatização das Universidades Publicas, nos últimos dois anos assistimos a manifestações fortes e contundentes contra o esquema que o governo federal e muitos governos estaduais tentam impor. Há pouco mais de um ano, professores, alunos e funcionários das universidades estaduais paulistas insurgiram-se contra o arrocho de salários e verbas através da greve. Mais recentemente, docentes e técnico-administrativos das Universidade Federais também sustentaram um duro embate com o governo federal. Ambos movimentos grevistas possuíam uma característica em comum : a ampla mobilização e organização, construindo a capacidade de conquistar um desfecho vitorioso. Neste momento, mais uma forte greve ocorre neste mesmo cenário : a das universidades estaduais do paraná.
Durante a greve das federais, o governo FHC mais uma vez mostrou a sua face autoritária, como no caso dos Petroleiros e do MST, entre outros. No lugar do respeito e de negociações efetivas, presenciamos atos incompatíveis com o exercício responsável e democrático do poder, todos dirigidos à destruição da organização e da dignidade de professores e funcionários. O corte ilegal dos salários, as campanhas milionárias de desinformação da opi
nião pública e de desqualificação dos professores que, para Paulo Renato, são “fascistas” e, para FHC, “coitados”, o desrespeito a compromissos assumi
dos publicamente e as decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal são alguns exemplos da postura política adotada pelo governo FHC, quando é pressionado por movimentos sociais organizados. É desnecessário dizer que a banqueiros e a grandes industriais estão reservados muito dinheiro e tratamento de dignitários. Só a coesão e a organização do movimento dirigido pelo Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino Superior (ANDES-SN), em defesa da Universidade Pública garantiram arrancar do governo melhorias significativas dos salários e das condições de vida e trabalho dos seus profissionais. É importante registrar que persistem problemas graves de financiamento da Universidade Pública, em particular, da reposição dos quadros docente e técnico-administrativo.
As greves dos últimos anos têm também o papel de explicitar para a opinião pública a inadequação da política do governo FHC, em relação à Educação, em particular, à Educação Superior. Como disse o Professor Luís Costa Lima, é preciso atentar para algo “que raia o incompreensível : o desmonte da Universidade de um país que demorou a construí-la.... Como se manter indiferente?” (Folha de São Paulo, 20/01/02). Neste aspecto, a participação ativa dos estudantes é um fato politicamente significativo, pois contribui de forma importante para a defesa de uma idéia que ataca o cerne da perspectiva privatista que norteia a ação governamental. Sem serviços públicos de qualidade, em particular, na área de Saúde e de Educação, em todos níveis, não há possibilidade de exercício pleno da cidadania, condição essencial para construção de uma sociedade mais justa e igualitária. As greves mostraram também que só a mobilização massiva é capaz de reverter a diretriz de destruição dos serviços públicos essenciais, sem os quais aumentarão ainda mais a exclusão e o empobrecimento da maioria da população brasileira. A Argentina, por exemplo, sob a direção de governos que eram pupilos aplicados do FMI e do Banco Mundial, foi destruída por políticas com diretrizes análogas às preconizadas pelo governo FHC e aliados. Não custa nada aprender com as experiências históricas ao nosso dispor.
Durante as greves, um debate volta sempre: a questão do financiamento das Universidades. Durante a greve das federais, o Ministro Paulo Renato declarou a necessidade de privatizar o ensino (Folha de São Paulo) e, não satisfeito, continua afirmando que as “...universidades devem buscar fontes de financiamento” (Uol educação 17/01/01). Já não é de hoje que os governos conservadores do nosso país falam, repetida e incansavelmente, do Sistema Público Universitário no Brasil. Entre outras coisas, a Universidade Pública tem sido rotulada de perdulária, ineficiente e até mesmo de corporativista. Hoje acrescentaram a esse discurso a afirmação de que o sistema não se sustenta e que um país “pobre” não tem como mantê-lo. Muitos são os clamores para a reformulação do sistema e para a necessidade de tornálo “moderno” e de “rediscuti-lo”.
Durante o governo FHC, conservador como os anteriores, a cantilena não mudou: propalam que a Universidade Pública precisa ser reformulada, indicando a privatização como solução necessária e urgente. Querem fazer crer que a proliferação de universidades particulares e a concessão de bolsas de estudos às custas de juros impraticáveis seriam a solução para o sistema. Quem acredita? Está claro que o recente caso de analfabetos aprovados em exames vestibulares não ajuda em nada os argumentos do governo federal.
O discurso da falta de recursos para As greves mostraram também que só a mobilização massiva é capaz de reverter a diretriz de destruição dos serviços públicos essenciais, sem os quais aumentarão ainda mais a exclusão e o empobrecimento da maioria da população brasileira.
o serviço público tem servido de pretexto para o arrocho de salários e verbas, tendo a comunidade acadêmica vivido, nos últimos 7 anos, uma das maiores reduções orçamentárias que se tem notícia. O volume de recursos públicos nominais das Universidades Federais que, em 1995, era de R$ 5,7 bilhões, passou a R$ 7,4 bilhões, em 2000. Como o menor índice de inflação para o período (IPC-FIPE) foi 58,22%, a correção dos valores de 95 nos levaria à casa dos 9 bilhões de reais, ou seja, cerca de 19 % a mais do que o efetivamente aplicado. E isto só para permanecer no patamar de 95, sem a necessária expansão do sistema. A tática é conhecida: alegam-se ineficiência e desperdício, arrocham-se os salários e as verbas, inviabiliza-se a capacidade de trabalho de um setor publico essencial para depois vendê-lo por um precinho módico ao setor privado. Assim, estes podem enriquecer com as necessidades sociais de Educação e Saúde da Nação.
Fruto do esforço dos profissionais que trabalham no sistema Universitário Público, no período de 1995 a 2000 e apesar da diminuição real dos recursos, houve um aumento de cerca de 30% nas vagas dos cursos de graduação oferecidos. Na Universidade Federal de São Paulo, que não e muito
diferente das demais Universidades Federais, houve uma diminuição do orçamento para pessoal ativo de 120 milhões para 84 milhões e, ao contrário do que querem fazer crer, não houve um aumento da folha dos aposentados, que se manteve praticamente igual, com 23 milhões. Por outro lado, o número de docentes e técnicos diminuiu e ao final de 2000, o déficit nas Instituições Federais era de 8 mil docentes (num total de 40 mil) e de 20 mil técnicos. No entanto, o trabalho realizado pelos servidores não estagnou ou diminuiu, ao contrário, apenas aumentou. As Universidades Públicas continuam oferecendo mais de 89% dos cursos de pós-graduação, fazem mais de 80% da pesquisa do país, proporcionam 91% das publicações acadêmicas e têm os cursos mais bem avaliados - seja qual for o instrumento de avaliação. Ou seja, a ladainha governamental não tem nenhum fundamento, embora seja propalada aos quatro ventos, com a colaboração da grande mídia, que freqüentemente representa os interesses do lucro, a partir das necessidades básicas do população brasileira.
Surpreendentemente, o modelo utilizado como exemplo pelos nossos governantes continua sendo o sistema norte-americano. Dentre as muitas inverdades, afirmam que o nosso sistema está errado porque depende essencialmente do dinheiro público, enquanto que, em países mais desenvolvidos, o sistema funciona com recursos privados para a manutenção de suas universidades e para a promoção da pesquisa e do desenvolvimento científico e tecnológico. Durante os últimos 7 anos, esta falácia obteve aliados dentro da comunidade acadêmica. Isso suscitou uma onda crescente de venda de serviços, obtenção de salários por consultorias e pagamento de mensalidades para cursos de especialização e mestrados “profissionalizantes”, agredindo o carácter público da Universidade e aprofundando o uso de sua capacidade instalada, tanto física quanto intelectual, para ganho privado. Está claro que este processo está articulado com o estrangulamento do orçamento e dos salários, criando um ambiente perfeito para a desobrigação governamental.
Talvez, o mais surpreendente seja conhecer o sistema educacional de alguns países centrais e ver que os argumentos que nossos governantes tentam impor ao mostrar outros exemplos, podem ser facilmente desconstruídos. Algumas perguntas podem então surgir neste debate :
Em países desenvolvidos, o ensino é privado?
Não. O governo americano, por exemplo, investe amplamente em educação e pesquisa. Apesar de a maior parte do ensino ser de responsabilidade dos governos dos estados e municípios, o governo federal dos EUA aplica 30 bilhões de dólares anuais em educação. Todos os estados americanos têm o seu sistema estadual universitário, que conta com um grande número de universidades, escolas técnicas e institutos de pesquisa. Para citar um exemplo, apenas no Sistema de Ensino de Superior de Maryland, o décimo terceiro no país, gasta-se anualmente 1,7 bilhão de dólares. Isso em apenas uma instituição norte-americana. Por outro lado, no Brasil, o custeio de todo o sistema federal de ensino superior não passa de 2,5 bilhões de dólares.
Outro aspecto relacionado a esta questão diz respeito à cobrança de mensalidade como fonte alternativa de financiamento. Nos sistemas europeus, em geral, não há cobrança de mensalidades, com algumas poucas exceções. Na França, o sistema é gra
tuito. O mesmo acontecia até recentemente na Inglaterra, que hoje cobra mensalidades, porém, a maior parte dos alunos têm bolsas concedidas pelo governo. Nesses países, praticamente não existem as Universidades totalmente privadas que seguem o modelo mercantilista existente no Brasil. Nos Estados Unidos, há várias universidades privadas, mas com características diferentes das do Brasil, pois muitas delas realizam pesquisas, sendo que os recursos provenientes das mensalidades (menos de 20%) não são suficientes para custear a totalidade do trabalho nestas universidades. Por outro lado, há uma grande oferta de Universidades Públicas em todos os estados americanos.
Nos Estados Unidos, país liberal por excelência, o setor privado financia a maior parte das pesquisas ?
O setor privado norte-americano certamente investe bastante em pesquisas e tem tradição neste tipo de financiamento. Ao contrário da indústria brasileira, no sistema norte-americano, o setor privado investe apenas 40% do total aplicado em pesquisa e desenvolvimento. Este total corresponde a 3,5% do PIB americano, que é de 7.1 trilhões de dólares. O governo norteamericano cobre mais de 50% dos gastos totais com pesquisa em desenvolvimento em todas as áreas. Somente na área de ciências biomédicas e ciências da saúde, através de seu Instituto Nacional da Saúde, o “National Institutes of Health” (NIH), gastam-se 16 bilhões de dólares anuais (corrigidos anualmente em cerca de 3% ou de acordo com a inflação). Dentre estes 16 bilhões, mais de 10 bilhões destinam-se a financiamento de pesquisa em diferentes universidades, em todo o país. Mais de 3 bilhões são aplicados em pesquisa dentro de seus institutos e o restante destina-se ao pagamento de estudantes e pósdoutorandos em treinamento.
Por outro lado, aqui a indústria não financia pesquisas, a menos que agências públicas de financiamento, como a Fapesp e Finep, criem programas de interação, e quem entra com o maior investimento é o erário público. As agências de financiamento de pesquisa não totalizam 2 bilhões de reais, aplicados em todas as áreas do conhecimento. Em todo o sistema Federal, que inclui as Universidades e Institutos Federais e onde e feita boa parte da pesquisa, o gasto não ultrapassa muito a cifra dos 7 bilhões (incluindo gastos com funcionários e manutenção). Ainda assim, no âmbito federal, os investimentos feitos pelas agências federais de fomento à pesquisa, como CAPES e CNPq, vêm sendo drasticamente reduzidas a cada ano.
Ainda nos EUA, a pesquisa básica também é financiada, quase que exclusivamente por dinheiro público. Há alguns anos, discutia-se, no Congresso Americano, uma redução neste item de despesa orçamentária. Presidentes e executivos de alta linha (CEO’s) de algumas das maiores multinacionais do planeta assinavam matéria paga no Washington Post, fazendo a defesa das Universidades e da pesquisa financiada pelo dinheiro público. Afirmavam que, sem o investimento público de larga escala, estava ameaçada o “american way of life”. A busca de lucro a curto prazo inviabiliza o investimento estratégico necessário para a produção de conhecimento das leis naturais, sem o qual é impossível alcançar o desenvolvimento tecnológico. A direção política do capitalismo pode ser tudo, mas não é intelectualmente raquítica. Ao contrário dos seus propagandistas nestes “Estados Unidos” do Brasil. Aqui a indústria não financia pesquisas, a menos que agências públicas de financiamento, como a Fapesp e Finep, criem programas de interação, e quem entra com o maior investimento é o erário público.
Como são os salários dos professores em países mais desenvolvidos ?
Como exemplo, podemos citar alguns dados da Universidade de Maryland, instituição pública estadual nos EUA, onde os médios mensais são de 4,3 mil dólares (cerca de 12 mil reais) para o professor em início de carreira, e de 7,8 mil dólares (cerca de 21 mil reais) para o professor em estágio mais avançado da carreira. Estas cifras são gerais, pois as instituições preferem não perder pessoal simplesmente por diferenças salariais nominais. A nossa realidade brasileira é bem diferente, pois os professores das Instituições Federais de Ensino Superior têm salários de 1,5 mil reais, em início de carreira, chegando a um máximo de 4,8 mil reais, ao final. Estes valores incluem adicionais por titulação (incluindo doutorado) e exigem do professor a Dedicação Exclusiva. Ou seja, a impossibilidade de ter outros empregos ou acumular funções. Para piorar, apenas 10-15% dos professores chegam ao topo da carreira, já que este nível depende de concurso e de abertura de vagas que é extremamente restrita. A análise mais geral mostra que a grande maioria dos professores recebe entre 2 e 3 mil e uma parcela considerável têm salários abaixo dos 1,5 mil (Folha de São Paulo). Apesar disso, o Ministro da Educação tem afirmado que a maioria dos Professores Federais ganham em média 4 a 5 mil reais mensais. Um tanto longe do mundo real.
Estes foram alguns exemplos de análise crítica de afirmações que costumamos ouvir dos pontífices da privatização. Assim como a natureza da sociedade americana tem raízes na sua história, a história social brasileira gerou especificidades que nos são próprias. A cópia pura e simples de políticas é, portanto, sem sentido. Mas esta obviedade não parece constranger aqueles que, interessados na destruição do sistema público, recomendam um arremedo, nem remotamente parecido com o original. Por que será que não recomendam tratamento penal para sonegadores de impostos ? Ou escala progressiva para o imposto sobre a renda ? É importante frisar que a indústria no Brasil não irá, a médio prazo, aplicar uma soma significativa de dinheiro em desenvolvimento tecnológico. Os grandes produtores de ciência aplicada têm os seus países sede como principal foco de investimento. Pretendem, isto sim, que brasileiros paguem, como valor agregado e gerando lucro, a pesquisa que fizeram nos seus laboratórios nos EUA, na Europa e no Japão (e.g., a indústria farmacêutica). A conclusão é simples : a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico devem ser financiados pelo dinheiro público, ou então a nossa dívida social não irá, jamais, deixar de crescer.
Torna-se irônico descobrir que os exemplos mais comumente utilizados para nos oprimir, enquanto professores e pesquisadores, possam ser tão facilmente refutados. Poderíamos até ser surpreendidos, se estas mesmas considerações fossem feitas utilizando como base países com tradição em investimentos sociais e em educação pública, como a França ou os países escandinavos.
Na realidade, ao pensarmos os países chamados “desenvolvidos”, uma diretriz fica clara: não existe desenvolvimento e autonomia sem investimento maciço em educação e pesquisa, em todos os níveis. Desta forma, é inaceitável que um professor e/ou um pesquisador não tenha um salário que o habilite a viver com dignidade, sem ter que ficar pensando em como “vender a alma”. Não precisamos copiar nenhum sistema, precisamos apenas aplicar o óbvio. Este mesmo óbvio, que a maioria dos governantes brasileiros, para atender aos interesses externos que controlam, fazem de tudo para que não sejamos capazes de enxergar.
Francisco Miraglia - Professor Titular da Universidade de São Paulo, doutor em lógica pela Universidade de Yale, é Pesquisador Convidado da Universidade de Paris VII, foi Professor Visitante da Universidade de Oxford (90-92) e Universidade de Maryland (97-98).
Soraya S. Smaili - Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo e Presidente da ADUNIFESP - doutora em Farmacologia pela Unifesp, pós-doutora pela Universidade Thomas Jefferson (1997), foi Pesquisadora Visitante do National Institutes of Health (EUA) (98-99).