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entrevista
Luiza Erundina
Esta entrevista foi realizada no dia 6 de novembro, entre o primeiro e o segundo turnos das eleições municipais de 1992. Apesar da agenda sobrecarregada pelo momento político, a prefeita Luiza Erundina recebeu atenciosamente a revista Universidade e Sociedade para falar sobre um dos pontos de destaque da sua gestão - a educação.
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Universidade e Sociedade -
quais foram as prioridades de seu governo na área da educação?
Luiza Erundina - No primeiro ano, a prioridade da prefeitura foi recuperar a rede física, que estava num estado deplorável. Os equipamentos estavam todos deteriorados, faltavam equipamentos, havia um déficit de 15 mil carteiras, que estavam quebradas, e vagas ociosas por falta exatamente de condições físicas e quadro de pessoal. Então, o primeiro ano foi basicamente voltado para recuperar a rede, darlhe condições de funcionamento, melhorar a qualidade dos serviços e expandir os equipamentos. Foi a partir do segundo ano que começamos a investir. Como no primeiro ano se administra com o orçamento do prefeito anterior, você fica limitado. Embora a gente tenha feito um redimensionamento das prioridades e das metas no sentido de reverter, de inverter prioridades, investir mais recursos na área social, de qualquer forma o orçamento aprovado no governo anterior, pela Câmara, foi limitante. Só a partir do segundo ano pudemos investir na construção de prédios, e até o final deste governo teremos construído 65 novas escolas, além de termos recuperado mais de 200 escolas, enfim, toda a rede que estava deteriorada.
A outra prioridade foi democratizar a escola no sentido de garantir a participação dos pais, dos professores, dos educadores em geral, funcionários e estudantes, criando um mecanismo que é o Conselho de Escola. Através deste conselho, os pais e a comunidade escolar como um todo gerenciam, administram a escola. Democratizar no sentido de romper com a proibição de uso de certas revistas e publicações que haviam sido proibidas pelo governo anterior. Colocamos esse material à disposição da comunidade escolar. Melhoramos os salários dos educadores. Por exemplo, o Estatuto do Magistério foi um projeto de lei que encaminhamos à Câmara e foi aprovado. O estatuto garante ao professor o direito de optar por 30 horas semanais, sendo que dessas 30 horas ele trabalha 20 e fica com 10 horas para dar orientação a alunos, receber pais, preparar aulas. Passou a existir também o salário mínimo básico do educador, do professor1. Enfim, as prioridades foram essas: melhorar
a participação do educador e da comunidade escolar como um todo através de mecanismos de efetiva participação, melhorar as condições de trabalho e de salário (hoje os professores da prefeitura têm um salário competitivo com relação ao mercado de trabalho de escolas particulares) e ampliar a rede. Isto tem apresentado resultados tangíveis do ponto de vista de indicadores. Por exemplo, em 88 a evasão escolar atingiu 22% dos alunos. Em 91 esse índice caiu para 12% dos alunos. Quer dizer, a evasão escolar caiu 46%. Isso também se deve a quê? A que o aluno, o educando, tem inclusive uma alimentação quente na escola para suprir a deficiência da alimentação em casa. Quer dizer, tem um professor mais bem pago, motivado, treinado, há cursos permanentes de formação de educadores, condições de trabalho, ambiente e equipamentos. Temos escolas com computadores. Temos 50 escolas com certo número de computadores, introduzindo os alunos da rede pública do município à informática. Enfim, modernizamos, democratizamos a escola e criamos melhores condições de salário e de trabalho para os professores. Do ponto de vista
pedagógico, você acrescentaria alguma coisa?
Houve uma evolução, uma mudança curricular, uma flexibilização na forma de captar a realidade do educando e de forma a possibilitar ao educador trabalhar esses conteúdos. Houve mais flexibilidade, por exemplo, nos critérios de avaliação. O aluno não é reprovado ou aprovado a partir daquela abstração de notas. São aplicados outros conceitos, outros critérios de avaliação. Não há essa questão de reprovar o aluno de um ano para o outro. A educação é um processo que apresenta dificuldade e o aluno vai se inteirando dessas dificuldades. É um absurdo você fazer o aluno repetir o ano, certas vezes, apenas porque não passou numa matéria. Isso foi totalmente reformulado no sentido de mobilizar todo o potencial do educando e integrá-lo ao processo educativo como um processo global, integral, que englobe toda a pessoa.
É a idéia da progressão através dos três cíclos 2 , não?
É, exatamente. Agora, na sua avaliação,
como está funcionando este sistema de progressão, que inclusive tem causado polêmica?
Eu não sou professora, sou educadora no sentido mais amplo do termo, mas acredito nessa renovação. Os próprios resultados da aprendizagem, a motivação dos alunos, a participação da comunidade, essas mudanças nos aspectos mais estritamente pedagógicos, todos os resultados que estão sendo apresentados me parecem, pelo menos empiricamente, sem ter domínio maior das questões, já que não sou do ramo,, positivos, modernos, avançados. E atual do ponto de vista da dinâmica que hoje a
criança, o jovem, o adolescente vivenciam os estímulos que eles recebem de fora, como por exemplo, através da televisão, dos meios de comunicação, da convivência numa sociedade plural, heterogênea, como a nossa. Então, não se pode aplicar o velho esquema: pegar aluno, fechá-lo dentro de um ambiente de sala de aula, sem atentar para as determinações que estão dadas dentro e fora do educando. Não tenho maiores condições de avaliar precisamente essas mudanças do currículo pedagógico, mas, pelos resultados que me foram apresentados, com certeza estão dando certo.
Quais as maiores
dificuldades que sua administração enfrentou ao executar esta proposta de governo para a educação?
Considero a educação um direito, que está até na Constituição do país. No entanto, não conseguimos respeitar esse direito plenamente em relação à demanda. Ainda existem, de responsabilidade da prefeitura, 100 mil crianças de 7 a 14 anos fora da escola. Ou seja, sem ter uma vaga garantida na escola municipal. Isto porque não tive a receita que propus em termos de tributo. Tivemos esse ano uma perda de receita em torno de 400 milhões de dólares. Se não tivesse havido esse corte no IPTU, por uma ação judicial, além do corte que foi feito pela Câmara, eu teria zerado o déficit de vagas na escola pública sob a responsabilidade da prefeitura. Quando propus o reajuste do I PTU para este ano, a Câmara o cortou em mais de 50%, e depois o judiciário cortou ainda mais. Perdemos 400 milhões de dólares de IPTU, só este ano. Ora, o orçamento da educação é proporcional à receita. Chegamos a aplicar entre 27 e 30% da receita tributária na educação, embora a lei orgânica preveja 25%. Não fossem esses cortes, teríamos zerado o déficit educacional, construído 40 novas escolas e 16 novas creches. No entanto, não pude sequer iniciar essas escolas por falta de recursos. A distribuição das vagas na cidade também não é racional, não é inteligente. As escolas não foram construídas de forma a atender a demanda. E além dessas 100 mil vagas, ainda existem outras 200 mil vagas que são de responsabilidade do governo estadual. A competência na área da educação está distribuída em dois níveis de governo: municipal e estadual. O Estado é responsável por dois terços, e a prefeitura por um terço das vagas escolares. Desse terço ainda temos 100 mil crianças de 7 a 14 anos fora da sala de aula.
E o déficit de vagas no
estado?
No Estado como um todo, não tenho esse dado. Deve ser muito maior.
Como é o relacionamento da
prefeitura com o sindicato dos professores?
É positivo, embora eles tenham feito oposição sistemática ao governo, e muito acirrada em certos momentos. Não tivemos uma greve de professores nesses quatro anos. Mas por quê? Porque procuramos construir essa relação com o sindicato e atendemos a basicamente todas as suas reivindicações, a não ser aquele salário base previsto pelo DIEESE, que ninguém teria condições de dar3. Mas houve uma grande conquista, uma luta histórica dos educadores, que foi o Estatuto do Magistério, que hoje é lei. Foi aprovado este ano e já está implantado. Houve uma relação independente entre a prefeitura e o sindicato. Os dirigentes do sindicato não são do PT. São de outros partidos, do PC do B e de outras forças políticas. Então, não se pode dizer que esses avanços foram fruto de uma interação entre companheiros do partido. Eles nos fizeram oposição sistemática, mas procuramos lhes dar toda a atenção. Hoje os professores estão muito contentes com o governo. Como é o relacionamento
da sua administração com a universidade?
É muito positiva. Inclusive, procurei a universidade antes da minha posse. Procurei a reitoria da USP, depois a reitoria da PUC, da UNICAMP. E fiz convênios no comecinho do governo. O primeiro convênio que assinei com a universidade foi com a USP, um convênio guarda-chuva. A partir dele, já temos vários termos aditivos, com projetos e programas específicos feitos em parceria com a USP. Na área de vias públicas, pesquisas sobre asfalto. Temos convênios com o IPT, com a UNICAMP nas investigações em torno das ossadas de Perus. Com a PUC, temos vários convênios na área de formação de pessoal e de projetos comunitários. Enfim, temos trabalhado bastante com as universidades.
Qual a sua opinião sobre
as políticas dos governos estadual e federal para a educação?
Acho que são muito ruins. No Estado eles sequer conseguiram recuperar as condições físicas das escolas. Mesmo esse programa de escola padrão, que era para um certo número de escolas, as reportagens têm indicado que aparentemente, não tem dado certo. Acho que o Estado ainda não conseguiu implantar uma política educacional que represente uma mudança significativa na qualidade do ensino.
Quanto ao governo federal, a política para as universidades é de sucateamento total. Acho que não é uma ação só desse governo ou do outro que saiu. Há uma deficiência acumulada. Acho que a década de 80 foi uma década perdida, sobretudo para a universidade, para a pesquisa científica e tecnológica. Não existe uma política de pesquisa científica e tecnológica e isso se reflete em todo o desenvolvimento do país.
Portanto, em termos de educação, é zero a política no âmbito do governo federal. A educação não foi prioridade nos governos nem da ditadura e nem pós-ditadura. Ainda está para ser retomada. Cuba é uma experiência
socialista que tem logrado resistir numa conjuntura extremamente adversa. Qual sua opinião a respeito da experiência cubana.?
Sinto muita dificuldade em fazer uma avaliação. Em primeiro lugar, não conheço Cuba. Apesar de ter tido muitos convites, inclusive, do próprio comandante Fidel Castro quando esteve aqui. Fidel me fez convites insistentes para ir lá, mas infelizmente a agenda ainda não me possibilitou. É difícil você julgar. Em primeiro lugar, porque é um povo valoroso. Eles enfrentaram a ditadura de Batista décadas e décadas, e a relação de dominação, de opressão da burguesia, do latifúndio, durante séculos. Então, foi uma bravura incrível do povo cubano. Não se pode julgá-lo simplesmente porque eles estão vivendo uma crise profunda. E é evidente que, r dentro do quadro internacional, a crise não é só do socialismo. A crise é do capitalismo, do neoliberalismo, está tudo em cheque, não há nenhum modelo, nenhuma proposta de sociedade, de economia, de organização política, que se possa dizer que esteja respondendo aos anseios da humanidade, dos homens, dos seres humanos. E não se pode condenar Cuba, porque Deus sabe o sofrimento daquele povo para preservar seus ideais, sua utopia, seu projeto e acho que é irresponsabilidade de quem está de fora, de quem nunca foi lá, querer julgá-los. E evidente que vemos a situação de longe, sem maiores envolvimentos. Você pode dizer: eles não poderiam estar com uma abertura democrática, política? Bom, mas eles têm um vizinho que está de olho neles 24 horas por dia. Têm a contra-revolução interna, e acho que seria irresponsabilidade
de minha parte julgar isso aqui. Posso ter um posicionamento a respeito de determinados fatos isolados. Mas, é difícil entender esses fatos isolados do contexto de uma experiência, de uma riqueza, de uma grandeza, de uma generosidade. É difícil para qualquer um avaliar. Como quem está aqui pode avaliar o que o povo está sofrendo lá, o que viveu, o que criou, o que construiu, na área da educação mesmo, na área da medicina? Eram avanços incríveis. Eles têm problemas de sobrevivência, de subsistência, problemas econômicos profundos, e isso não os impediu de ter um desenvolvimento social, de aproveitar as oportunidades de estudo, de crescimento das pessoas e de avanço em certos setores, da educação. Enfim, acho que quem não viveu o processo lá não pode julgar Cuba de fora. Com a crise do leste
europeu, parece que o capitalismo está tendo um ressurgimento, um
renascimento até do ponto de vista ideológico. Qual a perspectiva da classe trabalhadora nessa situação em que o capitalismo aparentemente está na dianteira?
Não vejo assim. Pelo contrário. Como havia uma polarização muito grande entre o Leste e o Oeste, do ponto de vista ideológico, do ponto de vista político, do ponto de vista da disputa de poder, polarizado entre a União Soviética e o imperialismo norte-americano, a deblacle de um pode dar a impressão que foi a vitória do outro. Não é isso. A Europa está em crise. Os Estados Unidos estão em crise. Há o ressurgimemento do nazismo. O que que é isso? E a frustração com relação ao próprio modelo econômico, social e político desses países ricos do Primeiro Mundo. Então não é verdade que o socialismo morreu, e muito menos é verdade que o capitalismo está forte, cresceu. Ao contrário, acho que no final desse milênio, no final desse século, todos os modelos estão em cheque. E aí a juventude insatisfeita, frustrada com a falta de expectativas, com a falta de utopias, de ideais, está tentando voltar a um passado que se imaginava morto. Por que essa juventude começa a pregar de novo o nazismo? Não é que esses valores estejam atualizados, renovados, revitalizados. Não. E que o presente não apresenta nenhuma alternativa nova para essa juventude, sendo um perigo muito grave a volta do autoritarismo.
Acho que o socialismo está passando por uma crise. Não é a morte do socialismo, mas a deformação dos valores socialistas. Acho que o stalinismo e os governos do Leste Europeu foram a negação dos valores socialistas, que são essencialmente democráticos, de valorização do ser humano, da pessoa, e da história. Nada mais anti-histórico e a-histórico que imaginar um padrão ideológico de organização do Estado universalmente. Isso é um absurdo, é anti-histórico, quer dizer, contraria o materialismo histórico, contraria a teoria do materialismo histórico enquanto filosofia, enquanto teoria política. Então eu não vejo assim. Acho que vamos atravessar essa crise do socialismo fazendo com que ele se revitalize sem se fechar em modelos e padrões, muito menos importando padrões de outras culturas, de outros espaços históricos.
Luiza, você é radical?
Sou. Nos princípios em que acredito, eu sou. Mas não sou sectária. Já fui, já fui sectária. Achava que o meu partido, a nossa proposta política, era a única verdadeira. Nós éramos os únicos que tínhamos coerência, que tínhamos a verdade toda. Hoje, vejo que não é nada disso. Há pessoas que até estão em siglas partidárias que você poderia já encaixá-las no perfil que essa sigla partidária sugere; no entanto, são pessoas incríveis, sobretudo em realidades do interior. Na Frente Nacional dos Prefeitos, convivi com prefeitos que são incríveis, independentemente das siglas partidárias em que se encontram. Porque no Brasil não há muita coerência entre a sigla do partido, a proposta do partido e até mesmo o enquadramento das pessoas neste partido. A não ser no PT. O PDS está na extrema direita. E até mesmo o PDS, balança entre o PTB, o PFL. No fundo é tudo uma coisa só, tudo é direita. Mas há nuances.
Então, sou radical. Sou radical em relação a princípios, princípios éticos, princípios morais, princípios políticos, ideologia política. Se não for radical você não será capaz de se envolver com o grau de comprometimento que a prática política requer de você a partir desses princípios. Eu não abro mão deles nem morta. Tem que ser radical, e tem que ser mesmo. Mas não se pode ser sectário. O que é sectarismo? Fechar-se ao que o outro pensa, ao que o outro acredita, ao que o outro diz, ao que o outro faz. Você pode não aprovar, não aceitar, não participar, mas tem que respeitar, conviver democraticamente. Tenho amigos de outros partidos que não têm nada a ver como o meu. Consigo distinguir a pessoa do que ela pensa, do partido a que ele pertence. E acho que democracia é isso.
notas
(1) Os professores do município de São
Paulo são os únicos a ter piso salarial profissional garantido em legislação própria. O Estatuto do Magistério estabelece que o piso será fixado anualmente, no mês de maio, em negociação coletiva, e aprovado pela
Câmara Municipal. Prevê ainda que o piso profissional não poderá ser menor do que a média dos valores reais correspondentes a um padrão relativo aos últimos 12 meses, corrigidos mês a mês por índice oficial vigente de correção inflacionária, definido pela prefeitura, caso não haja negociação coletiva ou esta não seja aprovada pela
Câmara Municipal.
(2) A progressão através de cicios é uma proposta que reformula a seriação com o propósito de garantir, de fato, o direito da criança à escola, eliminando a evasão e a repetência desnecessárias.
Foi introduzida na rede municipal de ensino em 92 e estrutura o ensino de 1º grau em 3 ciclos: 1º (compreende a 1ª, 2ª e 3ª séries), 2º (4ª, 5ª e 6ª séries) e O 3º (7ª e 8ª séries).
(3) A prefeita refere-se à reivindicação de um dos sindicatos que propunha o piso salarial equivalente a um salário mínimo do DIEESE para a jornada de 20 horas.
Há dois regimes de trabalho no município de São Paulo: 20 horas e 30 horas. Em novembro de 1992, o menor salário dos professores era de Cr$ 1.941.505 e Cr$ 3.530.009, respectivamente, para as duas jornadas de trabalho. O salário mínimo do DIEESE para novembro de 1992 está estimado em Cr$ 3.800.000.
Há ainda um adicional de 30% para atividades noturnas (a partir das 19h) e adicional de difícil acesso de 30 e 50 %, conforme a região.
Entrevista concedida a Nídia Majerowicz, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e ex-presidente da ADUR-RJ (gestão 89/91).