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Prólogo, Ana Rita Teodoro
from Delirar a Anatomia: Partituras-Poemas de Ana Rita Teodoro + (des)léxico para A.A. de Joana Levi
Prólogo
Delirar a Anatomia é uma coleção de estudos febris dedicados a uma parte do corpo. Delirar a Anatomia é uma coleção de peças de dança e uma coleção de partituras-poemas. o presente livro compila cinco partituras-poemas desta coleção, intercaladas pelo (des)léxico para A.A. de Joana Levi, artista, performer e estudiosa sensível ao corpo proposto por Antonin Artaud.
Delirar a Anatomia reestuda as partes do corpo, acumulando e entrelaçando visões díspares — poéticas exageradas, simplistas, descabidas, ignorantes e eruditas — para conceber um corpo que dança. Propõe um estudo que isola as diferentes partes (boca, pele, coração, joelho, esfenoide, nuca, intestinos, etc.) para tentar ver o corpo não como um todo — máquina útil —, mas como um ser de diversos, composto de plurissistemas. Para desviar o foco do eu-corpo-todo-potente ou do eu-corpo-que-me-mata, talvez se possa propor um corpo-plural composto de diversas potências.
Sendo a anatomia a disciplina que separa e nomeia o corpo, Delirar a Anatomia usa a escrita para renomear. A escrita é basal no processo de maturação da peça coreográfica, porque o ato de escrever torna possível e afirma um outro organismo ou uma outra função — por exemplo, a perna-língua lambe o pelo; iniciar o processo de secagem espiralando a coluna. Deste modo, as partituras-poemas resultam de uma exploração simétrica entre processo de escrita e processo coreográfico, entre palavra e gesto. A partitura-poema compõe-se da descrição de movimentos, de ações, de sensações, misturadas com factos e constatações. Pode funcionar como um monólogo interior do intérprete ou como guia para futuras interpretações performativas. Aqui neste livro, as partituras-poemas servem para desencadear o delírio no leitor, para que este possa encontrar uma dança que está para além do presente visual, próprio do espetáculo performativo. importa ainda acrescentar que o delírio desta anatomia diz respeito ao efeito de «aumentar» — aumentar as imagens, aumentar os sentidos, aumentar as sensações e deixar que este aumento de matéria se reorganize, sobrepondo-se, fun-
dindo-se, multiplicando-se… Um delírio que não provoca «histeria» ou «perda de sentidos», mas que convive, acalma e se reconstrói na desmesura.
Porém, Delirar a Anatomia não é uma ideia original, é uma manifestação individual de um pensamento sobre o corpo que encontra a sua genealogia em Antonin Artaud. Joana Levi e o seu (des)léxico para Artaud trazem ao leitor uma outra dimensão a este meu trabalho. Uma dimensão que é histórica, porque Artaud é o artista maldito da sociedade do início do século XX cuja obra marcou e continua a marcar estudiosos e artistas de diferentes domínios. E uma dimensão que é «mágica», pois potencializa o delírio, a imaginação e a interpretação das partituras-poemas.
Quando comecei a dançar, no início da década de 2000, o pensamento de Antonin Artaud e especificamente o texto «Corpo sem órgãos» desenvolvido por Deleuze e Guattari em Mil Planaltos estavam em voga no contexto da dança contemporânea. Coreógrafos, críticos e bailarinos evocavam constantemente este texto para atualizar (e por vezes justificar) os corpos presentes na dança, corpos que se afastaram da dança clássica e da dança moderna. Voltei a encontrar Artaud no meu interesse pelo Butô e, concretamente, em Hijikata Tatsumi, grande apaixonado pelo escritor, e que trabalhou na coreografia de um corpo virado do avesso, um corpo que fala desde as suas entranhas, e também um corpo que não-pertence — um corpo que não pertence aos cânones estéticos e sociais estipulados pela sociedade japonesa dos anos 60.
Delirar a Anatomia, como tantos outros projetos, está na continuidade dos processos e do corpo pensado por Artaud. manifesta o desejo de virar o corpo do avesso e procurar na constituição física dos corpos um mundo livre, sensual e à medida de cada 1.