
6 minute read
1. À espera de A Voz Humana de Pedro Almodóvar
Para a realização da dobragem das vozes de uma cena, nos estúdios de pós-produção, à moda antiga, recorria-se habitualmente ao uso de «pescadinhas» da banda de imagem cuja passagem em contínuo (loop) num projector servia para que o actor/intérprete da dobragem, face a face com a imagem projectada, em sucessivas tentativas de encarnação da personagem, conseguisse dar-lhe voz: uma voz que fosse, mais do que sincronizada, emocionalmente afinada. O que se exigia de uma tal acção performativa parece só poder ser atingido através da repetição que, em cada lance, ensaiando o balanço justo, se joga inteiramente no resgate da voz humana perscrutada em movimentos e articulações incertas de imagens ― fantasmas ― que aspiram a ganhar vida ou, por assim dizer, a ser animadas. Se confinado um espectador pode, na sua ocupação (criativa) do tempo, aspirar a mais?
Haverá, porventura, quem lhe assinale que, tendo pretendido comparar-se a um viajante, cedo o espectador se desinteressara de saber o fim das histórias, esquivando-se inclusivamente a considerar a alternativa segundo a qual «o sentido último para que remetem todos os contos tem duas faces: a continuidade da vida ou a inevitabilidade da morte», perante o que, tendo também examinado de perto as múltiplas réplicas relativamente aos motivos de apego à leitura, aduzidos por cada um dos leitores em que o viajante de Italo Calvino se transformara, quanto a si, o espectador, sentindo-se inclinado a anuir a que, no que respeita à razão que lhe assiste, estaria a imagem que vinha da infância, mas sendo o que dela se lembra demasiado pouco para voltar a encontrá-la, perseverara em repor «sem parcimónia na lareira / a lenha», entregue à ocupação de ver nesse ecrã o que continua em brasa e iluminado no cinema.
Advertisement
Sem querer adiantar mais, à imagem cabe a última palavra.
1. À espera de A Voz Humana de Pedro Almodóvar
A propósito do seu último filme, The Human Voice (A Voz Humana, 2020), cuja estreia comercial nas salas portuguesas se anuncia para breve1, Pedro Almodóvar fez por diversas vezes afirmações que, «nas presentes circunstâncias», são um interessante motivo para pensar o cinema e para avaliar os seus efeitos e o seu lugar na vida de um espectador.
De entre as várias declarações públicas do realizador, feitas inicialmente por ocasião da participação do filme no Festival de Veneza, onde foi apresentado na secção «Fora de Concurso», e reiteradas depois numa entrevista para o Festival de Cinema de Nova Iorque e, mais recentemente, retomadas aquando da estreia do filme2 em salas de cinema em Espanha, começaria por destacar a seguinte reflexão:
O confinamento fez-nos ver a casa como um lugar de reclusão. Um lugar a partir do qual podemos trabalhar, podemos fazer compras, pode-
1 A data anunciada para estreia do filme foi 3 de Dezembro de 2020: «“A Voz Humana”: curta-metragem de Almodóvar com Tilda Swinton vai estrear nos cinemas portugueses», https://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/a-voz-humana-curta-metragem-de-almodovar-com-tilda-swinton-vai-estrear-nos-cinemas-portugueses, 3 de Novembro de 2020. 2 Pedro Almodóvar, Entrevista a Pedro Almodóvar por David Noriega e Clara Morales, elDiario.es, 19 de Outubro de 2020, https://www.eldiario.es/cultura/pedro-almodo var-utilizar-pandemia-atacar-gobierno-peor-posible-democracia_128_6304973.html.
mos encontrar o amor da nossa vida, podemos encomendar comida; podemos fazer absolutamente tudo, mas de modo sedentário. Isso a mim parece-me perigoso. Aliás, as empresas já descobriram que os trabalhadores podem trabalhar em sua casa e que isso fica mais barato. Por isso, eu contraporia a esta situação de reclusão (apesar de no caso da covid se tratar de uma reclusão obrigada, mas dado que não me agrada que a situação se perpetue), eu contraporia a tudo isto o cinema. O cinema é absolutamente o oposto disto. Ir ao cinema é lançar-se numa aventura. É preciso vestir-se, é preciso pensar que imagem se quer dar aos outros; além disso é preciso ir à rua, dar de caras com a vida lá fora, é preciso escolher um filme e, depois, é necessário partilhar, num espaço escuro, na companhia de um monte de desconhecidos como acontece cada vez mais, dizia, partilhar emoções, passar por algo que os gregos chamavam catarse, aterrorizar-se, chorar, emocionar-se entre os outros. Creio que isso é uma experiência essencial a nível humano. 3
Nas crónicas que publicou4 no jornal digital elDiario.es nos primeiros tempos do confinamento e que a revista Sight & Sound (British Filme Institute) reproduziu em inglês, com um desfasamento de uma semana, como o seu «diário de confinamento» em quatro partes, Pedro Almodóvar dá testemunho, depois de um primeiro momento de recusa, da vida que leva «como um selvagem, ao ritmo marcado pela luz das
3 Jasmila Zbanic, Biennale Cinema 2020 — The Human Voice / Quo vadis, Aida? (Red
Carpet) (BiennaleChannel, 2020). 4 Pedro Almodóvar, «El largo viaje hacia la noche»; «Warren Beatty, Madonna y yo»; «Recomendaciones»; «¡Viva la tristeza!», elDiario.es, 30 de Março, 1, 6 e 11 de Abril de 2020, https://www.eldiario.es/autores/pedro-almodovar/.
janelas», mas em que nunca faltou a leitura e os DVD. Na ocupação dos seus dias tem lugar de destaque a «programação de cinema, telejornais e cultura» servindo quer para uso próprio quer de «recomendações» para os outros, enquanto a sua laboriosa memória evoca momentos profundamente marcados pelo afecto, e justifica também a oportunidade para convocar revelações indiscretas. Para o realizador, entregue a tarefas de espectador-leitor, a escrita torna-se «uma forma de fuga em frente» e um exercício de «muita confiança no cinema».
Se é verdade que durante o confinamento o recurso à ficção e, mais genericamente, à cultura pôde demonstrar até que ponto há uma tão grande dependência da ficção e teria mesmo tornado mais fácil explicar porque é que a cultura é absolutamente necessária para todos, tal não impediu que, ao mesmo tempo, se produzisse uma bem visível retracção dos consumidores e, por parte das grandes distribuidoras, um efectivo bloqueio à estreia e circulação de novos filmes; aliás, de semana para semana, multiplicam-se as notícias cada vez mais inquietantes sobre o encerramento de salas de cinema5 .
Ainda assim, num momento em que tudo parece indicar que temos pela frente tempos de grandes provações em que todo um mundo e uma forma de viver se afundam irremediavelmente, ao contrário dos que usam prognósticos de agoiro para invalidar as possibilidades de sobrevivência do cinema, irei recorrer a Roberto Calasso para afirmar que uma situação-limite contém preciosas indicações sobre aquilo de que não devemos de todo largar mão em tempos difí-
5 Rodrigo Nogueira, «O cinema em sala numa das suas horas mais negras», Público, 17 de Outubro de 2020, https://www.publico.pt/2020/10/17/culturaipsilon/noticia/ cinema-sala-horas-negras-1935667.
ceis. Foi numa conferência feita em Moscovo em 2001, sobre a arte da edição livreira, que Roberto Calasso, director editorial da prestigiada casa de edição Adelphi, evocou essa situação-limite protagonizada pela Livraria dos Escritores:
Um exemplo que chega da Rússia. Em plena Revolução de Outubro, […] quando as tipografias foram fechadas por tempo indeterminado e a inflação fazia disparar os preços de hora a hora, um grupo de escritores […] pensou lançar-se no projecto aparentemente insano de abrir uma Livraria dos Escritores que continuasse a permitir que os livros, e sobretudo certos livros, circulassem. […]. Aquilo que Osorguin e os seus amigos gostariam de ter criado era uma pequena editora. Mas as circunstâncias impossibilitavam-no. Então usaram a Livraria dos Escritores como uma espécie de duplo de uma editora. Já não era um lugar onde se produziam novos livros, mas onde se tentava acomodar e fazer circular livros de toda a espécie […]. Era importante manter vivos certos gestos: continuar a manusear aqueles objectos rectangulares de papel, folheá-los, encomendá-los, falar sobre eles, lê-los nos intervalos entre tarefas, em suma, continuar a partilhá-los. Era importante estabelecer e manter uma ordem, uma forma: reduzida à sua definição mínima e essencial, é esta precisamente a arte da edição. E assim foi praticada em Moscovo entre 1918 e 1922, na Livraria dos Escritores.6
Na tentativa de gizar uma possível correspondência em que, atravessando o cinema uma situação extrema, o exemplo da Livraria dos Escri-
6 Roberto Calasso, «L’editoria come genere litterario», em L’Impronta dell’editore, vol. 64, Piccola Biblioteca Adelphi (Milano: Adelphi Edizioni, 2013).
16 • José Bogalheiro