José Bogalheiro_Se confinado um espectador_17-05.qxp:145x205 17/05/22 19:09 Page 11
Para a realização da dobragem das vozes de uma cena, nos estúdios de pós-produção, à moda antiga, recorria-se habitualmente ao uso de «pescadinhas» da banda de imagem cuja passagem em contínuo (loop) num projector servia para que o actor/intérprete da dobragem, face a face com a imagem projectada, em sucessivas tentativas de encarnação da personagem, conseguisse dar-lhe voz: uma voz que fosse, mais do que sincronizada, emocionalmente afinada. O que se exigia de uma tal acção performativa parece só poder ser atingido através da repetição que, em cada lance, ensaiando o balanço justo, se joga inteiramente no resgate da voz humana perscrutada em movimentos e articulações incertas de imagens ― fantasmas ― que aspiram a ganhar vida ou, por assim dizer, a ser animadas. Se confinado um espectador pode, na sua ocupação (criativa) do tempo, aspirar a mais? Haverá, porventura, quem lhe assinale que, tendo pretendido comparar-se a um viajante, cedo o espectador se desinteressara de saber o fim das histórias, esquivando-se inclusivamente a considerar a alternativa segundo a qual «o sentido último para que remetem todos os contos tem duas faces: a continuidade da vida ou a inevitabilidade da morte», perante o que, tendo também examinado de perto as múltiplas réplicas relativamente aos motivos de apego à leitura, aduzidos por cada um dos leitores em que o viajante de Italo Calvino se transformara, quanto a si, o espectador, sentindo-se inclinado a anuir a que, no que respeita à razão que lhe assiste, estaria a imagem que vinha da infância, mas sendo o que dela se lembra demasiado pouco para voltar a encontrá-la, perseverara em repor «sem parcimónia na lareira / a lenha», entregue à ocupação de ver nesse ecrã o que continua em brasa e iluminado no cinema. Sem querer adiantar mais, à imagem cabe a última palavra. Nota introdutória
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