A Maravilhosa Aventura de Cabeza de Vaca / Haniel Long

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A MARAVILHOSA AVENTURA DE CABEZA DE VACA

seguido de

MALINCHE

(Doña Marina)

Haniel Long

A MARAVILHOSA AVENTURA DE CABEZA DE VACA

seguido de MALINCHE (Doña Marina)

tradução e apresentação

Aníbal Fernandes

T ÍTULOS DOS ORIGINAIS: THE MARVELOUS ADVENTURE OF CABEZA DE VACA ; MALINCHE (DOÑA MARINA)

© SISTEMA SOLAR CRL

RUA PASSOS MANUEL 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2024

ISBN 978-989-568-155-6

1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO DE 2024

NA CAPA: LITOGRAFIA AMERICANA (SÉC. XIX)

REVISÃO: DIOGO FERREIRA

DEPÓSITO LEGAL 539181/24

ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS

Haniel Long («Enáiel, por favor», dizia ele, para corrigir os que não articulavam correctamente o seu nome). Haniel era filho de um casal de missionários que se afastara da América para propagar na Birmânia a sua fé metodista; tinha nascido em Rangoon (nessa altura chamado Miamnar), mas em 1891, apenas com três anos e pais já cansados daquele exotismo áspero, da frágil propagação dos seus ensinamentos e das contingências que a saúde de americanos enfrentava com as desconhecidas doenças dessa tão grande distância, foi levado para aos Estados Unidos. O casal Long instalou-se em Pittsburgh e transferiu para a Pensilvânia o seu programa metodista.

Mais tarde, já nos anos da sua formação académica, Haniel passou pela Phillips Exeter Academy e por Harvard. Depois quis ser repórter; e atraído pelo trepidante mundo de Nova Iorque cedeu a uma experiência que pouco o entusiasmou no New York Globe. Farto, porém, da grande cidade regressou a Pittsburgh e foi professor no Carnegie Institute of Technology: um professorado difícil, sustentado com um ardor místico que se encaixava mal nas directrizes terrenas da instituição. Esta luta inglória acabou numa nevrose e com o abandono do lugar.

Em 1920, o ano em que foi publicado Poems, o seu primeiro livro, conseguiu uma posição cimeira do English Department de Pittsburgh. E seis anos depois este escritor, que já não resistia à

força da escrita, publicou uma colecção de contos fantásticos que intitulou Notes for a New Mythology. Haniel sentia, cada vez mais, que o mundo intensamente marcado pelas comodidades supérfluas da civilização europeia se adaptava mal à sua forma de compreender a vida; e era uma convicção capaz de fazê-lo ter decisões drásticas. O seu desejo de ruptura acenou-lhe com o sonho de melhores dias nuns Estados Unidos «à tangente», chamado Novo México, mais precisamente em Santa Fé, a dois passos de um soberbo espectáculo de montanhas altas, de um deserto, e com a possibilidade de uma convivência próxima com índios pueblos.

Esta nova vida de Haniel Long começou com uma tácita recusa de hábitos excessivamente ligados ao conforto burguês. Ele, a sua mulher Alice e o seu filho Anton instalaram-se numa simples casa de adobe e puseram em prática uma teoria de bens partilhados; a que fez os índios pueblos espantarem-se com aquele americano culto que descia da previsível altivez de uma cultura de college para se aproximar, curioso e partilhante, das suas básicas e mais rudimentares formas de encarar a vida.

Foi possível, nesta placidez de Santa Fé, surgir uma editora sui generis: a Writers’ Editions, vocacionada para edições rudimentares marginalíssimas, com obras literárias não lucrativas e vendidas a preço de custo (hoje raras nos alfarrabistas de Nova Iorque e a fazerem hesitar com altos preços os que se dispõem a comprá-las), que limitavam o seu programa a autores do Novo México. Long não era um natural daquela região; mas, tão profundamente dominado por Santa Fé, podia considerar-se um deles. Em 1933 novos poemas seus surgiram na Writers’ com o título Atlantides, e em 1935 foi a vez do Pittsburgh Memoranda. Um primeiro texto

sobre Cabeza de Vaca teve em 1936 o título Interlinear to Cabeza de Vaca (depois revisto para surgir como The Marvelous Adventure of Cabeza de Vaca); seguiram-se Walt Whitman and the Springs of Courage (1938), Malinche (Doña Marina) (1939), Piñon Country (1941), Children, Students and a Few Adults e French Soldier Home from Being a War Prisoner (ambos de 1942), The Grist Mill (1945) e A Letter to St. Augustine (1950). Também foram vistos textos seus, laterais aos da sua editora, publicados no The New Mexico Sentinel.

Como seria de prever, as opções literárias de Haniel Long, à margem dos grandes circuitos editoriais e do gosto literário dominante, com ele próprio retido pelas simplicidades de Santa Fé, não lhe facilitaram em vida a divulgação do nome. Só com a sua morte em Outubro de 1956 (três dias depois do enterro da sua mulher) lhe foi reconhecido o direito a uma consagração, mesmo assim discreta e a denunciar sobretudo a sedução pelo caso raro, que pôs o seu nome a correr por todo o país e fez uma atenção mais condescendente demorar-se naquela rebeldia que repudiava os lados artificiais da civilização «climatizada».

Nos anos sessenta a geração hippie leu-o com interesse; mas, já antes desta fugaz emoção, Henry Miller tinha-se lembrado dele para recordar Cabeza de Vaca numa página do seu Books in my life:

«A história de Cabeza de Vaca (na América do Norte), e por causa disto é que eu falo sempre dela, traz consigo o sopro mágico da redenção. É uma história ao mesmo tempo comovente e inspiradora. De facto, este bode expiatório espanhol expia os crimes dos seus rapaces antecessores. Nu, abandonado, perseguido, caçado, reduzido a escravo, e mesmo abandonado pelo Deus que ele

superficialmente adorava, foi arrastado até ao derradeiro abismo. O milagre aconteceu quando aqueles que o tinham capturado (os índios) lhe ordenaram que rezasse por eles, que os curasse dos seus males ou morreria, e ele obedeceu. Foi de facto um milagre, o que ele consumou — a mando dos seus detentores. Ele, que não passava de pó, reergueu-se glorificado. O poder de curar e restaurar, de criar a paz e a harmonia, não desaparece. Cabeza de Vaca, como o Cristo ressuscitado, move-se através do deserto que hoje é o Texas. Revivendo a sua vida na Espanha como um “europeu”, como um fiel servidor de Sua Majestade o Imperador, compreende até que ponto essa vida era vazia. Só naquele ambiente selvagem, abandonado a um destino cruel, ficou apto a estar face a face com o seu Criador e os seus irmãos. Agostinho tinha-O reencontrado “nas grandes salas da sua memória”. De Vaca encontrou-O, como Abraão, numa “conversa directa”.

«Tivesse a nossa história tomado, nesse instante crucial, a sua orientação! Tivesse este espanhol podido transformar-se, com todo o poder e toda a glória que lhe foram revelados, num precursor do futuro homem americano! Mas não, esta inspirada personagem, este guerreiro autêntico, quase se afundou perante o nosso olhar. No entanto, aureolado por uma luz ausentou-se das crónicas que são dadas a ler aos nossos filhos. Poucos homens escreveram sobre ele. Muito poucos. Um foi Haniel Long, a interpretar-nos o documento histórico do próprio Cabeza de Vaca. É uma “leitura de entrelinhas” de primeira ordem. O verdadeiro e essencial relato foi exumado e transmitido com liberdade poética. Como um farol poderoso, derrama a sua luz sobre esta confusão sangrenta, sobre este pesadelo atroz dos nossos começos aqui, nesta terra dos Peles Vermelhas.»

Mas Haniel Long não acusa apenas nos seus escritos uma colonização feita de brutalidades e desumanas relações. Long estava convencido de que esta civilização, a nossa, anula e perverte as capacidades vitais do homem (que Cabeza de Vaca transfigura num milagroso poder de cura física) e só o regresso às origens pode recuperar-nos em tudo o que possuímos de mais nobre. Incitamento apetecível nalguns momentos deste mundo saturado e saturante, e a um passo — muito visível, já — do esgotamento.

A MARAVILHOSA AVENTURA DE CABEZA DE VACA

Monumento a Álvar Núñez Cabeza de Vaca,

Jerez de la Frontera

PREFÁCIO DE HENRY MILLER

Desde que eu fiz a viagem através de O Pesadelo de Ar Condicionado, tenho-me sentido obcecado pelo pensamento de que teve lugar neste continente o maior dos infortúnios que alguma vez visitou o homem branco. Ainda eu era criança e já me impressionava a história dos Índios a honrarem os primeiros brancos que aqui chegavam, considerando-os deuses. Mais tarde, comigo já homem e em especial americano, o vergonhoso relato das nossas relações com os Índios entristecia-me ao ponto de sentir que nada se lhe podia comparar no que respeitava à desumanidade do homem para com o homem. Ainda mais tarde cheguei a olhar de outro modo para esta fase da nossa história, e devo dizer que ainda mais triste. Vi a recusa do homem branco em desempenhar o papel que dele se esperava, de resto uma oportunidade perdida que ele nunca mais voltaria a ter.

Depois chega-nos a história de Cabeza de Vaca, dos milagres que fez tanto para si como para os outros. Foi este o primeiro ponto luminoso que encontrei na lenda sangrenta criada pelos conquistadores. Era um ponto luminoso na história do homem, devo acrescentar; tal como é exposto pelo autor no seu prefácio, Núñez deixa até certo ponto de ser uma personagem histórica e faz-se um símbolo. É esta a visão sobre a Viagem que eu prefiro no seu relato a todas as outras; este mé-

todo interlinear eleva o drama a um plano em que ele pode ser comparado com outros grandes acontecimentos espirituais na corrente dos incessantes esforços que o homem fez para a sua própria libertação. Para mim, a importância deste relato histórico não está ligada ao facto de Vaca e os seus homens serem os primeiros europeus a atravessar o continente americano ou de terem traçado um caminho que outros exploradores iam seguir, ou de as suas peregrinações provarem a existência de um conjunto de terras com proporções continentais ao norte da Nova Espanha, ou mesmo de os inflamados protestos de Vaca terem dado origem ao fim dos bárbaros e escravizantes ataques de surpresa nessa região, mas porque no meio das suas provações, depois de infrutíferos anos, de ásperas vagabundagens, o homem que noutros tempos tinha sido guerreiro estava em condições de dizer: «Ensinarei ao mundo como se conquista brandamente, e sem massacre.» Porque no decurso das suas tribulações — e triunfos — Cabeza de Vaca acabou por compreender que «um homem só é ele próprio enquanto estiver na presença de Deus, e não mais do que isso», para utilizarmos as palavras de São Francisco. A Viagem é o simples e dilacerante relato de um homem despojado de tudo e obrigado em todos os momentos da sua vida a actuar iluminado por Deus. Por mais terrível que seja estar separado dos seus companheiros, por mais terrível que seja estar nu e com fome durante dias e semanas, às vezes durante meses a fio, por mais terrível e humilhante que seja ter-se tornado escravo do povo que eles tinham vindo conquistar, pior é o que se declara com razão e ênfase nas entrelinhas: «a desfazermo-nos a pouco e pouco dos pensamentos que revestem a alma de um homem, e mais

ainda da ideia de que um homem alcança com punhal e adaga a sua força…» Como são eloquentes as banais palavras do espanhol quando encontra, já perto do fim da Viagem, outros membros da expedição que se tinham dedicado a pilhar a terra e a fazer dos índios escravos. «Perante estes larápios», escreve ele, «eu via-me incitado a ter à frente dos olhos o gentil-homem espanhol que oito anos antes eu tinha sido.»

Este tema surge vezes sem conta: o homem que eu era perante o homem que eu agora sou. Não só a conversão era fatal e completa, mas viva na sua consciência com um grau que é à leitura quase insuportável. Neste ponto devo voltar a dar graças a Haniel Long por ter tido a coragem de recriar imaginativamente a narrativa. «Para serem compreendidos dias e acontecimentos como aqueles, esta narrativa adicional é necessária como figura real que caminha ao lado de um espectro.» Esta passagem está nas entrelinhas, depois de ser relatada a forma como os milagres foram feitos por Vaca e os seus companheiros. Surge então um diálogo entre Vaca e um homem chamado Andrés. Diz o Andrés: «O que esta gente precisa não é de milagres. Precisa de tudo o que este destino nos tirou quando nos trouxe até eles despidos e numa situação idêntica à sua.»

A isto Vaca responde: «Andrés, deixa que a verdade seja dita.» «Tudo o que aprendemos do outro lado das águas, tivemos de deitar fora. Só que aprendemos ainda bebés nos braços das nossas mães em nós se mantém para ajudar os outros.»

Quando os comentadores se referem a estes milagres, tem sido tendência sua assumirem uma atitude ambígua. Incapazes de negar a verdade das ocorrências, tentam explicá-las insinuando que os espanhóis, com consciência ou de qual-

quer outra forma, não imitavam os xamãs hindus. Prestam homenagem à sua modéstia por atribuírem os seus êxitos à directa ajuda do poder divino, embora tentem com o mesmo ímpeto desculpar os exageros e os equívocos de uma imaginação inflamada. Mas parece-me que a sua atitude se furta ao problema de todos os milagres; porque se os poderes de Vaca e dos seus homens se fazem assim suspeitos, o que poderá dizer-se dos poderes dos xamãs? Este problema do poder era um dos que preocupavam imensamente os espanhóis. «O que me obcecava», lê-se na narrativa, «era saber como poderia dominá-lo ou se me caberia, aliás, fazê-lo — talvez fosse um poder que me percorria auto-dirigindo-se.» «Pensávamos, como europeus», lemos a seguir, «que a capacidade de curar tinha sido delegada aos médicos e aos padres… e éramos mais do que julgávamos.» Isto é repetido: «Ser mais do que eu julgava que era — uma sensação totalmente nova para mim.» E há depois lugar para esta significativa constatação: «Sozinho naquela região selvagem, nenhum tecido do corpo se opunha ao misterioso poder.»

Tenho consciência, claro está, de que muitas destas coisas são «entrelinhas», embora isso não me preocupe. O importante, que deve ser imposto ao espírito, é precisamente aquilo que as entrelinhas dizem com clareza, a saber: que o europeu civilizado de há quatro séculos tinha perdido qualquer coisa que os Índios ainda possuíam. Nenhum dos nossos médicos, apesar do seu conhecimento e do seu equipamento superiores, é capaz de executar estas milagrosas curas. Ao que parece, não foi notado que os espanhóis só adquiriam estes poderes curativos quando as suas vidas estavam ameaçadas. Se tivessem

sido perspicazes e astutos, e prestassem atenção às práticas dos xamãs, teriam explorado aquelas gentes antes de elas próprias chegarem a um ponto extremo. Nada se explica se atribuirmos o seu parcial ou provável êxito a «um novo e surpreendente processo». O que nos interessa saber é por que razão e como estes métodos funcionaram; e se então funcionavam, por que não funcionam agora?

A resposta a este enigma talvez nos seja dada de melhor forma pelo próprio Vaca quando termina a sua narrativa. «O poder que temos, dentro de cada um de nós, de manter a vida noutras vidas, de cada um de nós se retira se não for usado1.»

Esta resposta continua a ser um desafio para os que põem a sua esperança e a sua confiança num domínio externo, negando toda a responsabilidade individual. Nunca houve um tempo como o de hoje, em que esta ilusão alcançou tanto crédito. A tendência dos tempos vai toda no sentido de fazer capitular o poder e a autoridade individuais. Apesar disto foram consumados milagres, mas de que ordem e por que preço! Só o tempo dirá «se a nossa vida comum», como diz Vaca, «nos seca o leite.»

Acredito, e é esta a razão por que falarei sempre deste pequeno livro, que a experiência deste solitário espanhol abandonado nas regiões selvagens da América reduz a zero toda a experiência democrática dos tempos modernos. Acredito que se ele chegasse com vida ao tempo actual e lhe fossem mostrados os horrores e as maravilhas do nosso tempo, regressaria de

1 No original de Miller por vezes a transcrição não cumpre rigorosamente o original de Long, adoptado aqui nestes casos. (N. do T.)

Não foi preciso esperar muito para começarem a chegar pedras e flechas, e para ouvirmos o ruído que mais temíamos, o de pangaias que batiam nas águas do lago como um vento a levantar-se. Nas trevas mal conseguíamos ver o algodão branco das túnicas de um grande número de guerreiros.

A ponte móvel permitiu que franqueássemos em segurança a primeira travessia. Mas depois encravou. Com um grande reforço de energia duplicado pelo medo, os soldados fizeram malogradas tentativas até a levantarem e transportarem para o local da segunda travessia.

Houve um salve-se quem puder. A segunda travessia ficou atravancada com carroças de munições, com o tesouro, com os corpos de soldados que tinham pesados bolsos cheios de ouro.

O pânico generalizou-se.

Vozes e trompas: «Os demónios fogem… cortem-lhes a saída, matem-nos!» Gritos de dor, gritos de morte. O relinchar de cavalos aterrorizados. O cheiro a sangue.

Os mortos abandonados nas pontes eram o filho e as filhas de Montezuma, de Cacama, o senhor de Tezcuco, os outros reféns e prisioneiros, os cativos, as raparigas dos soldados, as filhas dos caciques, os valentes soldados da Espanha e de Tlascala.

Canoas aproximaram-se das pontes e capturaram os vivos para serem sacrificados.

Pavorosa noite.

Pesadelo onde homens que eu não conhecia entregaram a flor da sua vida para preservar a minha.

Agora, nesta manhã de Tlacopan, os filhos de Xicotenga e os seus tlascanos que nos salvaram nas extremidades da ponte entregaram-nos, a mim e a Doña Luisa, a Cortés.

Pedro de Alvarado a pé e oito homens pálidos, com ferimentos que os ensanguentavam, chegaram ao final desta desordem.

O pequeno trem de artilharia estava perdido. Nem um arcabuz restava. Todas as munições se tinham perdido. Todo o tesouro se tinha perdido. Todos os arquivos de Cortés se tinham perdido.

A jovem e muito bela Doña Elvira morreu. E também Juan Velásquez de León, braço direito de Cortés. E também o corajoso Francesco de Morla.

O meu querido Juan de Salasar, o pajem, morreu ao lado do seu senhor.

Sentado debaixo de uma grande árvore, com a cabeça entre as mãos, Cortés chorava. A sua angústia dominava-o.

Desde essa pavorosa noite soa-me nos ouvidos a voz de Sandoval, um rapaz com dezoito anos de repente transformado num homem adulto:

— Estamos em condições de sair disto vitoriosos. Tenhamos confiança em Deus. De acordo com as boas determinações de Deus, vamos sair disto com vida.

O corajoso e denodado jovem Sandoval.

E por baixo do meu coração, o filho de Cortés.

Xicotenga — Xicotenga.

Este nome martela-nos o sangue a cada um dos passos da derrota. O cacique cego receber-nos-á, agora que nos rebaixá-

mos até ao pó? Xicotenga é o nosso destino. A sua amizade, o seu alimento e o seu abrigo assistiram-nos durante a caminhada, desde que saímos do mar; e agora, com a ruína das nossas esperanças, só temos o seu bom coração para voltarmos a trabalhar.

— O meu coração sabe que ele vai receber-nos — digo a Cortés.

Cortés está deitado ao pé de mim e estremece, arrepiado. Depois reza as contas do seu terço a andar de um lado para o outro no pavimento da sala.

Às vezes penso que eu, da mesma substância que esta terra, amo Cortés, o estranho homem com um coração que não me pertence.

Nunca o amei mais do que agora amo, com ele esmagado e ainda assim a prosseguir com a sua luta.

Xicotenga vem com os seus capitães e a sua gente ter connosco. As lágrimas correm-lhe no rosto quando agarra nos seus braços a sua filha Doña Luisa; e as lágrimas voltam a cair-lhe quando abraça Mase Escasi, que perdeu na ponte uma filha juntamente com o seu marido León. Os tlascanos lamentam estas mortes; são gente boa, tão boa como a terra vermelha que lhes dá milho.

— Doña Marina, estou-te muito agradecido — diz Cortés. — Agora, com Xicotenga, Mase Escasi e os capitães que me restam, vou planear a minha vingança.

Durante muitas noites, e pela primeira vez, o meu senhor deixa de ser o homem febril que bebe e se agarra a qualquer palha como se estivesse esmagado pelo medo e pela confusão.

Já restabelecido da derrota, Cortés traça os planos da vitória. Oiço esses planos, fala deles durante o sono; são no seu conjunto determinados e de um homem resolvido a vencer. A cidade capitulará, não vai resistir a uma teia como aquela, de mortíferos pensamentos.

Cortés destruirá a cidade quando a tiver conquistado. E depois vai voltar a reconstruí-la.

Haverá então meses calmos. Sem homens mortos, sem sacrifícios.

Viveremos tempos sossegados e assistiremos a toda a espécie de jogos. E vou dar à luz o filho do meu senhor.

Para mim, as flores douradas significam o intemporal, e o vaivém das torrentes a eternidade. Desejo que Cortés possa contemplar as flores douradas nos campos vermelhos que neste minuto de delicada chuva agora vejo. Mas há coisas da terra mexicana que ele nunca verá, e um homem cego com a carga de muitos dias conseguirá perfeitamente ver. Neste tão calmo momento é ao lado de Xicotenga, no portal da sua placita, que fico a ver a chuva de Outono a saciar as douradas flores dos campos tlascanos.

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