Filosofia Prática – Homenagem a Jose Manuel Santos_excerto

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FILOSOFIA PRÁTICA

homenagem a José Manuel Santos

FILOSOFIA PRÁTICA

homenagem a José Manuel Santos

organização

José Manuel Santos

Nascido em Lisboa (1952), José Manuel Santos partiu para Paris (1972), onde estudou filosofia (licenciatura e mestrado) e se doutorou, na Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne (1982), com uma tese sobre as Investigações Lógicas de Edmund Husserl, orientada por Jean Desanti. Residiu na Alemanha, a partir de 1980, para preparar o doutoramento no Husserl-Archiv da Universidade de Colónia, e, em seguida, para estudos de pós-doutoramento na Universidade de Wuppertal, sob a orientação de Klaus Held, animador, na altura, de um importante centro de estudos fenomenológicos. É nesta universidade que inicia a sua actividade docente como professor de filosofia, tendo sido encarregado de seminários sobre filosofia francesa contemporânea (Bergson, Sartre, Merleau-Ponty, Foucault) e clássica (Descartes, Pascal).

Regressou a Portugal (1994) e, até à aposentação (2019), desenvolveu a sua actividade docente e de investigação na Universidade da Beira Interior, onde foi professor associado de filosofia, leccionando filosofia contemporânea, em particular fenomenologia, ética e pensamento político. Juntamente com João Paisana e Pedro Alves, fundou (2002) a Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica (AFFEN). Criou (2003) e coordenou até 2015, na Universidade da Beira Interior, o Instituto de Filosofia Prática, unidade de investigação reconhecida e financiada pela FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Foi coordenador principal de dois projectos de investigação financiados pela FCT: «Filosofia e Comunicação» (2001-2003) e «Practical Rationality, Judgment and Moral Motivation» (2014-2015, projecto internacional, no âmbito de uma cooperação entre as unidades de investigação Instituto de Filosofia Prática (UBI) e Philosophies Contemporaines (Universidade de Paris I). As suas áreas nucleares de investigação são a fenomenologia — com publicações

sobre Merleau-Ponty, Hans Blumenberg, Heidegger e Jan Patočka —, a ética e a filosofia política (em particular Aristóteles).

Entre as suas publicações podem ser referidos os livros O Mundo e o Tempo, Covilhã, Ta pragmata, 2007 e Introdução à Ética, Lisboa, Documenta, 2012, e quatro publicações mais recentes: «Notas sobre três emoções políticas: compaixão, amizade e ódio», in Ângelo Milhano; Fernanda Henriques (orgs.), Entre Mundos — Liber Amicorum para Irene Borges Duarte, Lisboa, Colibri, 2022; «Existence et éthique dans la philosophie de Patočka», in Jocelyn Benoist; Renaud Barbaras (orgs.), Phénoménologie et psychanalyse. Hommage à Guy-Félix Duportail, Paris, Hermann, 2021; «A forma e o apeiron», in Anabela Gradim; André Barata (orgs.), Palavras-Ensaio, Covilhã, UBI, 2022; «Communauté, individu, système: la question de la forme de vie dans la société des individus et des systèmes», in André Barata; José Manuel Santos (orgs.), Formas de Vida / Forms of Life, Praxis, Covilhã, 2021.

André Barata, Ana Leonor Santos

FENOMENOLOGIA

Global versus local. Uma falsa oposição? Uma proposta para uma

Pedro M.S. Alves

Nominalismo, atomismo lógico e discursividade metafórica: entre

António Campelo Amaral

André Barata

O normal e o virtual como situação hermenêutica: reflexões

Irene Borges-Duarte

Fundamentos da vida social: uma perspectiva fenomenológica ...............

Carlos Morujão

A fenomenologia da experiência histórica em Merleau-Ponty .................

Albano Pina

tu,

Inês Pereira Rodrigues

O olhar e a existência de outrem na fenomenologia de Jean-Paul

Sartre...................................................................................................... 123

Urbano Sidoncha

Teoria do corpo reflexivo: notas biranianas ............................................. 139

Luís António Umbelino

ÉTICA

A abordagem ao discurso político: uma breve reflexão ............................ 151

Bruno Ferreira Costa

Sobre o estatuto moral da natureza: uma leitura de Hans Jonas .............. 163

Diogo Ferrer

Questões éticas na teoria e prática das relações públicas ..........................

Gisela Gonçalves

185

A questão das mulheres em Kant ............................................................ 199

Fernanda Henriques

A Pós-Fenomenologia como Ética para o Desenvolvimento Tecnológico?

Peter-Paul Verbeek e a Agência Moral dos Artefactos .............................. 207

Ângelo Milhano

A «responsabilização» e seu uso institucional........................................... 225

Emmanuel Picavet

Ecosofia: uma forma de vida comprometida com a matéria .................... 237

Ana Leonor Santos

FILOSOFIA POLÍTICA

Repensar a paz justa em tempos de guerra .............................................. 247

Maria João Cabrita

O mundo da vida e as patologias da democracia na sociedade digital ...... 263

João Carlos Correia

Ciência, política e activismo: relações perigosas na era da pós-verdade ....

Alexandre Franco de Sá

O Leviatã e a proposta hobbesiana de Comunidade Política ...................

Idalina Maia Sidoncha

277

291

Pluralismo, conflito e a virtude da razoabilidade .................................... 301

Rui Sampaio da Silva

Uma discordância com Walter Benjamin? ...............................................

Viriato Soromenho-Marques

PALAVRA, EDUCAÇÃO E VIDA

313

O poder da palavra ................................................................................. 319

Tito Cardoso e Cunha

O sentido da vida ................................................................................... 327

Luís Filipe Fernandes Mendes

Convicções hermenêuticas sobre a educação: na linha de Gadamer......... 341

Maria Luísa Portocarrero

«Nasci para flagelar os Santos»: Pascoaes, leitor de Santo Agostinho ........ 359

José Maria Silva Rosa

DOCUMENTO

Criando filosofia na UBI em três longas cartas e alguns documentos mais ....................................................................................................... 379

António Fidalgo

A subtil ironia do pensar

Com este volume, homenageamos José Manuel Santos, colega, professor, investigador, filósofo, a quem a filosofia em Portugal deve empenho, pensamento e muita convicção desde há décadas. O reconhecimento e consolidação da área da fenomenologia em Portugal não dispensa referência à sua presidência da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica. Também a delimitação e afirmação do campo da filosofia prática no contexto da investigação filosófica no nosso país teve um momento marcante na criação do Instituto de Filosofia Prática, por si fundado e liderado ao longo de quase duas décadas. O surgimento dos estudos filosóficos na Universidade da Beira Interior, de que se fará algum trabalho documental neste volume, é indissociável da personalidade do Professor Santos. E, finalmente, há que mencionar a sua iniciativa de criar e dirigir a colecção «Ethos e Polis», com chancela da Documenta, que se tem firmado desde há uma década lugar filosófico coerente.

Expor a influência intelectual de José Manuel Santos passa, também, por sublinhar o seu carácter filosófico, a sua clareza de pensamento, quase uma geometria das ideias, que torna as suas conferências, os seus escritos, os seus livros leitura luminosa, com quem se aprende também a subtileza da inflexão. A este seu traço junta-se um gosto genuíno pelo debate filosófico, bem-humorado, a conjugar a seriedade conceptual com o toque da ironia.

Na Ética e na Filosofia Política ou, de forma mais abrangente, na Filosofia Prática, delimitação de campo que lhe é especialmente cara, José Manuel Santos é, para uma geração de estudiosos, referência incontornável. O seu manual de Ética tornou-se consulta transversal a áreas que vão muito além das especificamente ligadas à Filosofia.

Neste volume de homenagem, reúnem-se vinte e sete textos de personalidades que cruzaram as suas biografias intelectuais com a de José Manuel

Santos, seja enquanto colegas, alunos ou orientandos, contributos de pessoas que neste caminho de ideias, debates e projectos coincidiram ou divergiram, mas guiadas pela afinidade electiva, pela admiração, pela amizade intelectual.

O volume organiza-se em cinco secções, as primeiras três correspondendo aos grandes interesses científicos que atravessam o pensamento de José Manuel Santos — a fenomenologia, a ética, a filosofia política —, a quarta ligando temas abrangentes da filosofia prática, como a palavra, a educação e a vida, e uma secção final patenteia um documento em torno do debate que levou à criação da área científica de filosofia da Universidade da Beira Interior.

Na qualidade de organizadores deste volume, agradecemos a generosidade de todos os que nele participaram com o seu pensamento escrito. Um agradecimento muito especial é dedicado ao Manuel Rosa, editor da Documenta, que publica este volume.

FENOMENOLOGIA

Global versus local. Uma falsa oposição?

Uma proposta para uma fenomenologia do mundo social

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O que falta a uma fenomenologia do mundo social

Como o expus em vários outros textos, sou de opinião que uma fenomenologia do mundo social é ainda, em larga medida, um simples desideratum.

A Fenomenologia foi marcada, desde o início, pela só parcialmente verdadeira afirmação directora de que uma teoria do mundo social teria de estar ancorada e desenvolver-se a partir do estrato da fenomenologia da Intersubjectividade. Essa orientação vem de Husserl. A descrição do modo como há consciência de um alter ego parece ser a trave-mestra sobre a qual uma teoria da sociabilidade e do mundo social em geral devem ser prosseguidas. No entanto, a meu ver, esta obsessão pela descrição da relação face-a-face funciona também como uma obcecação para as estruturas do mundo social em que ela está sempre já embutida.

Quem mais fundo caminhou nesta direcção de uma fenomenologia do mundo social foi justamente um sociólogo de formação, marcado pelos trabalhos de Max Weber. Refiro-me, obviamente, à fenomenologia do mundo social de Alfred Schütz e, particularmente, ao seu trabalho de fundo, intitulado Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt. Eine Einleitung in die Verstehende Soziologie, publicado em Viena, no ano de 1932.

Nesse trabalho, que é, segundo a minha convicção, a obra mais significativa na produção fenomenológica sobre o tema, faz-se uma produtiva apropria -

1. Professor associado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Centro de Filosofia). Co-fundador e ex-presidente da AFFEN. Director da revista Phainomenon. Dedico este pequeno ensaio ao meu colega e amigo Professor José Manuel Boavida Santos, por quem nutro uma profunda estima intelectual e pessoal. Tratando-se de uma reflexão livre, expurguei-o totalmente do peso das tradicionais notas eruditas e referências bibliográficas.

ção da teoria fenomenológica da consciência do tempo, mas, no seu fundo, a positio questiones e todo o desenvolvimento subsequente move-se nesse quadro estrito de pressupor que uma teoria do mundo social é, no seu fundo, uma teoria da Intersubjectividade, ou seja, dos vários modos como há consciência de um outro sujeito, embora, para Schütz, só uma fenomenologia mundana, e não já focada no problema transcendental da constituição do alter ego, possa ser frutuosa no quadro de uma teoria do mundo social. A existência do outro não tem de ser transcendentalmente exibida: ela é tomada como garantida, tal como a existência do mundo. No entanto, apesar desta distância relativamente à matriz transcendentalista husserliana, a focagem na relação directa Eu-Tu, como núcleo de base, é sempre mantida como ponto de vista director.

Isso é bem atestado por dois traços relevantes da abordagem de Schütz. Primeiro, pelo facto de definir mundo social como o conjunto dos consociados, dos contemporâneos, dos predecessores e dos sucessores, como se tudo tivesse de estar orientado a partir do ponto de vista de um Eu central, que pode ser qualquer um, e como se não houvesse estruturas objectivas de sentido pré-dadas organizadoras do campo das subjectividades em relação directa ou mediata. Em segundo lugar, pelo facto de, para Schütz, a trajectória directora de análise ser dada pela oposição de base entre o «nós», em que ocorre uma relação intersubjectiva directa da forma «Eu-Tu», e a sua forma secundária ou derivada, em que essa relação está ausente quer acidentalmente (caso dos contemporâneos) quer essencialmente (caso dos predecessores e sucessores), forma secundária em que a relação directa Eu-Tu é transformada na relação mediata Eu-Eles e onde intervém mais decisivamente a compreensão do outro pela mediação de tipos ideais, à maneira weberiana.

Do ponto de vista de uma teoria da Intersubjectividade plenamente desenvolvida, falta obviamente aqui uma teoria do fenómeno da comunicação, mostrando as suas formas e processos no quadro dos consociados e contemporâneos, e uma teoria da generatividade, já esboçada por Husserl, que pudesse dar conta da conexão longitudinal entre predecessores, contemporâneos e sucessores. E falta sobretudo uma teoria descritiva suficientemente poderosa para distinguir com clareza entre formas de socialidade e dimensões de identificação comunitária.

O que falta decisivamente, porém, é uma teoria fenomenológica das estruturas do mundo social. De facto, a relação Eu-Tu, que aqui é posta como basilar, não é uma relação entre duas subjectividades nuas, uma espécie de descoberta original de um alter ego. Isso acontece muito raramente, apenas. A este respeito, o encontro dos mundos europeu e americano é um caso histórico paradigmático. No entanto, mesmo aí, funcionavam apercepções recíprocas do outro, não sobreponíveis entre si, a partir dos mundos sociais de cada um. Contudo, no caso normal da partilha, tanto a subjectividade própria como a alheia estão embutidas nas estruturas de um mundo social que está pré-dado para ambas. Schütz dá conta disso na medida em que afirma que a relação Eu-Tu é também mediada por tipos ideais. O outro que se me depara é, digamos, o carteiro que vem entregar a carta que espero, o polícia que regula o trânsito, o professor que dá uma aula, o amigo com quem converso sobre assuntos comuns, etc., não o desconhecido provindo de um mundo social completamente estranho, exótico ou desconhecido. Apesar da referência de Schütz a esta dimensão subjacente, não há, na verdade, uma teoria fenomenológica das estruturas dos mundos sociais, dos seus possíveis invariantes e, muito menos, qualquer abertura para uma descrição dos modos da colisão e mútua assimilação de mundos sociais estranhos entre si. A certo passo de suas análises, Schütz enumera as diversas formas de relação com os contemporâneos. Distingue aqueles que saíram do encontro face-a-face mas que podem retornar; aqueles que estiveram numa relação face-a-face com outro com o qual eu não estou (a relação não é transitiva); aqueles que brevemente irei encontrar; aqueles que conheço, não como indivíduos concretos, mas que estão definidos por uma certa função, como o carteiro, que conheço por meio de um tipo funcional apenas. Tudo isto se move, como é evidente, no plano de uma fenomenologia mundana da intersubjectividade. Não obstante, os outros exemplos de Schütz são significativos para o ponto que pretendo sublinhar. Na categoria dos contemporâneos, ele enumera ainda entidades colectivas não anónimas, como o Parlamento, entidades colectivas anónimas por essência, como Estado e Nação, e configurações objectivas de sentido, como normas reguladoras da vida social, da língua, etc., para finalmente referir os artefactos, que são, por excelência, objectos de uma ontologia social. Ora, o meu ponto é justamente

que estes últimos casos apontados por Schütz deveriam ser temas-guia para o que atrás designei como uma descrição organizada das estruturas de sentido do mundo social. Delas, há apenas uma menção rapsódica, ou seja, fragmentária, no seu fundo.

A segunda coisa que, em minha opinião, falta decisivamente na abordagem schütziana, e que é a todos os títulos relevante para uma fenomenologia do mundo social, tem que ver com a tipificação das formas de vinculação entre indivíduos, pelas quais são constituídas dimensões essencialmente diferentes de socialidade. De facto, um mundo social é um mundo coeso. Onde termina a vinculação entre indivíduos termina também um mundo social. Não se trata, aqui, de simples possibilidade de interacção. Trata-se, antes, das cadeias de conexão de onde um mundo social retira a sua especificidade em formas de ligação inter e supra-individual, que lhe dão a um tempo densidade e interna coesão. Os indivíduos que entram na esfera da consociabilidade ou da contemporaneidade estão desde sempre embutidos numa rede multifacetada de conexões. Essas formas de conexão estão em larga medida por achar. Tal seria uma tarefa fenomenológica maior. Nomeadamente, a de saber se há formas prototípicas, invariantes para todos os mundos sociais possíveis, que permitam estabelecer processos de identificação entre tipos de vinculação internos a um mundo social, a que chamaria «endotípicos», e outros tipos em mundos sociais diversos, a que chamarei aqui «exotípicos», de modo que pudesse haver algo como uma transposição de uns para os outros por um processo de variação sobre um protótipo-ideal que permitisse afirmar algo como: à forma de vinculação religiosa, política, familiar endotípica ao mundo social de referência X correspondem as formas de vinculação exotípicas do mundo social Y, as quais são variantes das formas prototípicas, eidéticas, «Família», «Estado», «Religião», etc. Husserl aproximou-se desta visão ideal-eidética das formas possíveis dos mundos social e cultural. Num passo do primeiro dos artigos sobre «Renovação», escreve:

Todos os conceitos em que embate, aqui, uma investigação que vai até às profundezas — portanto uma investigação que rompe até o que é da ordem dos princípios — são de uma generalidade apriorística formal, no bom sentido do

termo. Assim o é o conceito de Homem em geral enquanto ser racional, o conceito de membro da comunidade, o da própria Comunidade e não menos todos os conceitos particulares de comunidades, como Família, Povo, Estado, etc. Do mesmo modo para os conceitos de cultura e de sistemas de cultura particulares: Ciência, Arte, Religião, etc. (igualmente nas formas normativas: Ciência, Arte, Religião «verdadeiras», «autênticas»). (Hua XXVII, 11)

Combina-se aqui o desiderato de uma fenomenologia do mundo social e das formas da cultura, esta última na esteira das Geisteswissenchaften, de Dilthey, com o ideal normativo (e algo autoritário) da Humanidade e da Cultura «autênticas», como se houvesse uma prototípica ideal regendo toda a diversidade aberta das culturas, suposição conjugada, há que dizê-lo, com o pressuposto de que a Europa seria o lugar da sua mais plena realização. Na verdade, quanto ao lugar proeminente da Europa, trata-se de uma autoproclamação que não é de Husserl, que apenas lhe deu voz, mas que vem muito de trás. Sabemos o quanto este pressuposto foi ingénua e funestamente assumido na descoberta do Novo Mundo, em que as formas endotípicas da cultura europeia foram projectadas sobre a realidade social exotípica dos povos ameríndios, com o viés adicional, devastador, de que as formas europeias seriam, por si mesmas, as mais maduras e autênticas. O que por elas não poderia ser absorvido, os tipos «exóticos», foi visto como expressão do «incivilizado» e «anómalo» (a condenação dos sacrifícios humanos e da antropofagia são casos discutidos pela literatura coeva onde há uma razão plenamente justificadora; isso não obsta, porém, a que outras dimensões da cultura, que não suscitavam uma rejeição moral liminar, tenham sido desprezadas como expressão de «costumes bárbaros»). O discurso persistente sobre as tarefas de dominar para «educar», para «civilizar» e para «salvar» têm aqui a sua origem.

Um modelo anquilosado e… uma teoria tri-axial do mundo social

No entanto, indo para lá de Schütz e de Husserl, o suposto mais digno de ser questionado é, em minha opinião, o de que um mundo social é uma estru-

tura autocontida num círculo maior e delimitador, círculo que supostamente alcançaria a sua expressão plena na figura política do Estado. De facto, assim fala o pressuposto corrente. O Estado seria a figura em que um mundo social adquiriria individualidade, a sua forma-madura, por assim dizer, que conteria todas as sociedades menores dentro do seu círculo e que se conectaria com outros estados numa relação lateral de cooperação, mas também de concorrência e, por vezes — na verdade, vezes de mais… —, sob os sombrios matizes da confrontação belicista. Esta ideia de que o mundo social é como que um conjunto de esferas concêntricas que se contêm na esfera maior do Estado está, sem dúvida, associada à formação moderna dos estados territoriais na Europa. Ela recebeu a sua «entronização» teórica mais poderosa, entre as que conheço, nas célebres asserções de Hegel na sua Filosofia do Direito, onde, no seu costumeiro jeito grandiloquente, surpreende no Estado «a marcha de Deus no Mundo» («Es ist der Gang Gottes in der Welt, daß der Staat ist», §. 258, adenda), para logo de seguida o caracterizar como

[…] A actualidade do ideal ético ou espírito ético. Ele é a vontade que se automanifesta, torna clara e visível a si própria, realiza a si própria. É a vontade que pensa e conhece a si própria, que transporta o que conhece, e na medida em que conhece. O Estado encontra nos costumes a sua existência directa e irreflectida, e a sua existência directa e reflectida na autoconsciência do indivíduo e no seu conhecimento e actividade. A autoconsciência na forma de disposição social tem a sua liberdade substantiva no Estado, enquanto essência, propósito e produto da sua actividade. (§. 257, sublinhados meus)

É este pressuposto, de que o Estado levaria à plenitude estruturas antecedentes que teleologicamente para ele apontariam e nele se consumariam, como se fora a sua entelequia, é este o pressuposto que examinarei de seguida. É contra ele que defenderei a minha tese maior, a saber, a de que há eixos não só diferentes, mas sobretudo não coincidentes no mundo social, eixos que determinam outras tantas esferas que se intersectam mas não são sobreponíveis, esferas que, é essa a minha convicção, uma fenomenologia das estruturas e das formas de conexão do mundo social pode determinar. Algumas dessas

estruturas do mundo social, como os estados e as comunidades identitárias, são não universalizáveis e serão sempre locais, enquanto, em contraste, uma outra se destaca como sendo uma esfera por essência, se não de facto, de dimensão global, sustentarei. Perante a falsa oposição entre o particularismo, ou mesmo paroquialismo, de um lado, e o globalismo cosmopolita, do outro, defenderei que há dinâmicas globalizantes no mundo social que se conjugam, muitas vezes em tensão, com esferas para sempre e por essência histórica e territorialmente locais.

De facto, a compreensão mais comum do mundo social faz-se por um processo de composição em agrupamentos crescentemente mais abrangentes, que vai do local ao sucessivamente mais alargado até culminar no ponto-limite do global. É assim que se passa do indivíduo para o seu grupo de proximidade, deste para o grupo dos concidadãos, deste para comunidades mais latas, como a religiosa ou a política, da comunidade política do Estado para as relações de proximidade e vizinhança entre estados, destes, ainda, para comunidades internacionais multiestatais e, finalmente, para o todo abstracto da sociedade global das nações, dos estados ou mesmo da totalidade dos indivíduos, enquanto membros singulares do orbe terrestre no seu todo.

Designo metaforicamente este esquema aglutinador, muito disseminado na compreensão comum e não só, como o modelo «matrioska» ou das «bonecas russas». De facto, é como se se tratasse de um sistema de encaixes de estruturas em outras, segundo uma relação uniforme de continente a contido, em que só a estrutura mais pequena não é vazia e todas as outras são apenas réplicas semelhantes na sua superfície, mas sem um conteúdo interno próprio. Na verdade, dentro de si terão apenas outras estruturas igualmente ocas, e estas, outras ainda, até o elemento atómico, o mais pequeno, só ele com conteúdo. Duas interpretações são possíveis: ou o substantivo será o elemento atómico de base, o indivíduo, ou o plenamente efectivo será o lugar da sua amplificação e transcensão na forma de topo, como na visão organicista hegeliana. Neste esquema, há várias coisas deficientes que imediatamente saltam aos olhos. Nomeadamente uma que me parece decisiva. A passagem para unidades mais abrangentes é feita segundo relações diferentes que não são, contudo, claramente definidas: do indivíduo para o grupo familiar, do grupo familiar para os conci-

dadãos, dos concidadãos para associações e comunidades particulares de vários tipos, destas para o estado, do estado para conexões entre estados trata-se, de cada vez, de formas de composição suportadas em relações bem diversas entre si, relações que o modelo de agregação por composição não permite esclarecer nem na sua especificidade própria nem no modo como poderão gerar congregações de ordem superior. Para voltar à analogia das bonecas russas, ficamos para sempre enredados na dupla leitura que ela permite: será o Estado, enquanto figura de topo, um mero mecanismo para tornar segura a vida social dos indivíduos, só eles o elemento real, como sempre afirmaram os defensores da tradição liberal, ou será o Estado uma totalidade orgânica, que absorve e transcende indivíduos, comunidades e sociedades particulares, como o defenderam, cada um à sua maneira, os arautos da concepção organicista do Estado, de Hegel até os socialismos e fascismos que ensombreceram o século XX? Esta questão, sempre de novo agitada, tem impacto directo na determinação dos direitos e liberdades individuais, mas também para os de associações ditas «menores» dentro do Estado. Contudo, é também, segundo penso, uma questão viciada por um falso modelo de compreensão da pluralidade de dimensões do mundo social.

A minha proposta de uma fenomenologia do mundo social começa justamente aqui. Ela está atenta a formas de vinculação interindividual e a estruturas sobrevenientes, mais além do velho e relho modelo da Intersubjectividade e da relação face-a-face.

Quanto às formas de vinculação interindividual, distingo três eixos, a saber:

• As conexões advindas do sentido de pertença a uma determinada comunidade, em que surdamente se constrói a identidade concreta dos indivíduos — designo-as pelo termo grego oikeiósis, que adiante definirei;

• As conexões advindas de relações de comando e submissão, que têm múltiplas formas e condições concretas de efectivação, mas implicando todas elas uma relação vertical entre desiguais — designo-as pelo termo imperium;

• Finalmente, as conexões advindas das trocas, da circulação de bens sociais e de acordos expressos entre indivíduos ou grupos (promessa,

contrato, associação para a prossecução de quaisquer fins, etc.), que se fazem numa posição «horizontal» de igualdade entre as partes — designo-as pelo termo sociabilitas.

Estas três formas de conexão têm não só teores diferentes, quanto ao seu sentido interno e ao modo como a individualidade dos indivíduos fica nelas definida (pela pertença a um espaço comunitário, pelas cadeias de comando e obediência, pela capacidade de escolha e livre assentimento), como também dinâmicas absolutamente distintas, que afastam definitivamente o modelo «matrioska», como o designei atrás. Nenhuma delas pode subsistir isoladamente; no entanto, cada uma delas tem um poder de expansão diferente. Os indivíduos ficam nelas constituídos sob figuras diversas. Numa, pelo sentido da pertença a uma comunidade, que tem com outras comunidades uma relação de progressiva estranheza até o limite do totalmente alheio e da mútua incomunicabilidade. Noutra, pela posição nos vários sistemas hierárquicos de comando, em que, simultaneamente, detém tanto poderes como obrigações a que está vinculado. Finalmente, pela igualdade com outros indivíduos, em que todos os direitos e deveres podem ser retro-referidos a um acto expresso de acordo ou consentimento voluntários. Diria, pois, para o condensar numa formulação simples e breve, que, em cada uma delas, os indivíduos se constituem pelos princípios diferentes do eu sou (que tem que ver com a identidade surdamente constituída no seio de uma comunidade), do eu posso (que tem que ver com os contornos de acção dentro de uma rede hierárquica de poder), e, por fim, do eu quero (que tem que ver com o sistema de intercâmbios baseados numa livre decisão).

Ademais, coisa que importa sobretudo realçar, há estruturas objectivas do mundo social, nomeadamente instituições, que se baseiam predominantemente em cada uma destas formas de conexão, se bem que contenham sempre também elementos das outras. Essas estruturas objectivas maiores do mundo social em que cada uma delas tem de cada vez o primado são o que designarei, de um modo muito genérico, de molde a poder cobrir as múltiplas formas da sua realização ao longo das culturas e da história, o Templo, em que o sentido de pertença a uma comunidade detém a primazia; de seguida, o Palácio, em que

é a estrutura hierárquica de poder que está na posição dominante, abrindo o espaço que hoje-em-dia percepcionamos como o fenómeno político; e, finalmente, o campo aberto da circulação e das trocas de todos os tipos de bens sociais entre indivíduos e grupos, desde ideias a mercadorias, campo esse que designo, não obviamente por «mercado», mas pelo termo grego Ágora, termo mais polifacetado e, por isso mesmo, mais apto para captar o espectro largo da circulação, da comunicação e das trocas de bens sociais, desde bens materiais a bens intelectuais, espirituais ou morais.

Isto posto, direi em tese que um esclarecimento interno do sentido destas estruturas mostra várias coisas importantes. Primeiro, que o Palácio tem uma dimensão sempre local, confinada a um território, e não seria universalizável ou globalizável senão na figura excessiva, aberrante, de um Estado ou Império Mundial, que contradiria a sua própria natureza; segundo, que o Templo se organiza não a partir da categoria política do território, mas sim a partir da categoria sacral do local ou locais de culto e que, por sua natureza mesma, é estruturador de uma comunidade porosa e difusa, que não se contém nos limites de um território; terceiro, que a Ágora, por essência, só pode ser pensada como global, pois tudo o que impede essa dimensão universal das trocas e da circulação de indivíduos e bens provém ou de limites geográficos, hoje ultrapassados, ou da esfera política dos palácios ou de incomunicabilidades provenientes das esferas comunitárias e dos templos. Portanto, a sua globalidade universal é obstada apenas for forças ou motivos que lhe são externos. Assim, direi que, se olharmos o mundo social libertos do pressuposto de que todas as sociedades particulares são círculos dentro do englobante maior dos estados, verificaremos que há eixos com dinâmicas internas diferentes e que há estruturas objectivas com latitudes também diferentes, umas locais, outras transterritoriais e outras globais. Ao modelo dos círculos coincidentes na unidade de um círculo maior oporei, portanto, a tese de círculos que se intersectam, certamente, mas que jamais se sobrepõem. E digo isto pese a evidência histórica de que o desenvolvimento dos estados territoriais na Europa moderna implicou, em larga medida, uma tentativa de fechar o universo das trocas dentro dos territórios estatais, num vão projecto mercantilista de autarcia e de trocas geridas pelo objectivo de um superavit dos estados, que cul-

minou, teoricamente, na proposta fichtiana contra-natura de um «estado comercial fechado». A par disto, ocorreu também a tentativa de limitar o carácter transterritorial do Tempo, como em Inglaterra, com a criação de uma religião nacional dominada pelo poder régio, a Anglicana, e mesmo, mais tardiamente, de sintetizar as várias comunidades identitárias no sonho romântico da Nação, para conter de seguida essas identidades «nacionais» dentro da figura política do Estado-Nação. Apesar da força estuante deste movimento da modernidade na Europa, que extravasou para o mundo todo depois do movimento da descolonização na segunda metade do século XX, apesar disso, os círculos continuam teimosamente não-coincidentes: a religião continua a ser um fenómeno transterritorial; há várias comunidades nacionais contidas dentro de um só poder político, como os casos de Espanha ou da Bélgica o mostram, e há, em contraposição, comunidades nacionais divididas por diferentes estados. Este movimento europeu de constituição do estado secular e territorial é a base para a suposta evidência, que discuti, de que todas as sociedades e comunidades ditas menores se congregam e contêm no círculo político do Estado. Ele é também o sinal de quão forçado e contrário foi relativamente às várias dinâmicas internas do mundo social.

Não há, assim, um mundo social unificado sob uma qualquer instância totalizadora e plenificadora, mas mundos com dinâmicas e amplitudes diferenciadas e com natureza ora local ora global, que se cruzam e interpenetram, decerto, mas que jamais se fecham numa única estrutura de círculos concêntricos. Se me fosse permitido inverter o «modelo matrioska», diria ainda que é o círculo global da Ágora, suportado no que os clássicos peninsulares confrontados com a descoberta do Novo Mundo, como Francisco de Vitória, e bem antes de Grócio, Vattel ou Kant, designaram por ius perigrinandi, ius communicandi e ius comercii 2 , como direitos cosmopolitas, direi que é este círculo global da Ágora, onde emerge por vez primeira a figura de uma Humanidade única, que envolve os diferentes círculos menores dos palácios e dos templos,

2. Na sua Relectio de Indis, de 1532, questão 3, artigo 1, §§. 2 e 3, Francisco de Vitória estava a referir-se aos direitos dos espanhóis. No entanto, como implicitamente é reconhecido, trata-se de direitos de qualquer indivíduo, cosmopoliticamente considerado.

sempre plurais e locais, de modo que, em tese, nenhum desses círculos políticos, confessionais ou comunitários tem o direito de fechar artificialmente a circulação global das pessoas, das ideias e dos bens. Direi também, para matizar esta afirmação demasiado unilateral, que há igualmente um direito legítimo dos estados e das comunidades para moldar ou adaptar esse direito cosmopolita maior, não, porém, para de todo o suprimir.

Esboço de uma fenomenologia do mundo social

O que acabo de expor a respeito dos três eixos não deve ser lido disjuntivamente. É essa a primeira coisa que há a frisar. De facto, o mundo social consiste em conexões complexas entre todos eles e nenhum é, por si só, uma condição suficiente, que se baste a si mesma, para constituir um mundo social denso e coeso. Mas se nenhum deles é mais do que uma condição necessária, o conjunto dessas condições necessárias pode ser tomado como uma condição suficiente para a constituição de um mundo social. Na verdade, um mundo social limitado a um sistema de trocas, de liberdade de circulação e de comunicação, ou mesmo de fixação, seria um mundo social defectivo. Faltar-lhe-ia uma identidade concreta para os indivíduos e um sistema organizativo baseado em poderes e obrigações fixos, que desse estrutura normativa às conexões entre indivíduos ou grupos. Mutatis mutandis, o mesmo poderia ser dito dos dois eixos remanescentes.

Adicionalmente, os tipos ideais que dissociei sob os títulos de «Ágora», «Imperium» e «Sociabilitas» não devem ser lidos como tipos eidéticos puros, fornecendo a base para a determinação de leis apriorísticas com um suposto carácter normativo para as formas fácticas da sua realização. Uma fenomenologia do mundo social deve permanecer aberta à diversidade empírica da história e das culturas, em vez de se fechar numa suposta teoria eidética que tome esses tipos como portadores de um sentido ideal na base do qual se pudesse determinar as formas «racionais», «normativas» da sua concreta efectivação. Pelo contrário, eles são «universais abertos» ou «concretos», se assim me posso exprimir: não simples formas abstractas, vazias, portanto, mas conceitos capazes de acolher a

diversidade empírica e de a levar a uma integração sob a forma de um sistema de variações recíprocas mútuas e não de variações de um tipo puro, ideal-idêntico. Obviamente, afirmações genéricas, cobrindo as formas concretas da diversidade, são sempre possíveis e serão, aliás, o intento teórico maior que importa realizar, bem como a determinação das formas em que esses sistemas se interpenetram e parcialmente se fundem. É um seu esboço que darei de seguida. Em primeiro lugar, existe uma esfera de relações que cria vinculações interindividuais ou grupais que pode ser remetida para um acto expresso de aceitação e que não existirá se tal acto não tiver ocorrido. Uma promessa, um contrato, uma associação para um determinado fim, uma troca de bens sociais de qualquer tipo (não necessariamente comprar e vender apenas, embora estes estejam incluídos), uma dádiva, e actos semelhantes são formas deste tipo de relação. Eles dependem de um acto instituidor e de uma aceitação recíproca: o promitente e o promissário, o contratante e o contratado, o vendedor e o comprador, etc. Como característica essencial, envolvem indivíduos, ou associações de indivíduos (grupos), que possuem aquilo a que os clássicos da lei natural denominavam como condição sui iuris, ou seja, o estado de ser senhor (e não «proprietário») de si próprio e de poder praticar, por conseguinte, actos instituidores de novas conexões pelos quais se fica responsável. Assim, trata-se de laços estabelecidos entre indivíduos que se encontram num estado de igualdade em relação uns aos outros e que supostamente têm um poder de livre escolha. Além disso, outra característica essencial é que todos os compromissos desta esfera podem ser pensados geneticamente, de um ponto de vista fenomenológico, que envolve uma genealogia do sentido, como sendo decorrentes de uma posição original onde ainda ninguém tem reivindicações ou obrigações em relação aos outros: uma espécie de «estado original», em que a cada um é permitido fazer o que quer, na medida em que estes actos não afectem os outros. A partir deste ponto-zero, por assim dizer, surge passo a passo um sistema de direitos e deveres recíprocos, na medida em que os indivíduos se envolvem em actos recíprocos de acordo voluntário, criando assim uma rede crescente de conexões normativas que têm uma força obrigatória. Estes laços não significam que a liberdade original de cada um seja retirada. Pelo contrário, são uma sua densificação, pois são um produto de escolhas livres e criam, em catadupa, tan-

tos novos deveres como novos direitos, que se acrescentam à situação original. Kant nomeou este processo como uma Einschränkung da liberdade, conceito que não deve ser interpretado como uma simples limitação, mas como um condicionamento mútuo do qual brotam direitos e obrigações que os indivíduos não detinham na sua posição original ideal, uma situação que os jusnaturalistas costumavam tratar como a diferença entre direitos «inatos» e direitos «adventícios», nascidos de negócios jurídicos, como o contrato e outros, num suposto «estado de natureza».

Este é um sistema horizontal de relações, do qual podem surgir constrangimentos normativos que têm força obrigatória (o contrato deve ser satisfeito, a promessa deve ser cumprida, etc.). Também pode ocorrer entre grupos, ou seja, associações de indivíduos, e entre personalidades de ordem superior, tais como estados (por exemplo, tratados, alianças, etc.). Ainda que possa envolver entidades que não sejam simples indivíduos, a sua horizontalidade não é posta em causa por este motivo. Além disso, cada restrição normativa pode ser referida, num conjunto finito de etapas, a um acto de instituição e aceitação, que funciona como a sua origem efectiva.

Como atrás referi, é esta a esfera que designo como sociabilitas. Ela não é essencialmente limitada. Pode crescer indefinidamente sem qualquer limite interior, para além da possibilidade de compreensão e comunicação mútuas. Além disso, ela é auto-regulada. O universo das trocas, das transmissões e dos acordos entre indivíduos, a respeito de quaisquer bens sociais, depende precisamente da avaliação que cada indivíduo faz da «bondade» (da valia) desse bem social. É também uma esfera autopropulsionada. De facto, a tendência para a troca é sempre crescente, se nenhum factor externo a ela obstar. Este crescimento interno do sistema de troca e circulação de quaisquer bens, mercadorias ou bens «espirituais», envolve um esforço de constante inovação e procura da diferença que aumenta o «valor» dos bens sociais. Assim, a esfera da sociabilitas é essencialmente dinâmica, voltada para a inovação diferenciadora e para a satisfação de sempre novas necessidades. Ela é, como atrás frisei, uma esfera por natureza global. Pese embora as limitações culturais ou políticas que possam advir das outras esferas que se desenvolvem a partir dos outros eixos do mundo social, ela não contém internamente nenhum princípio autolimitador.

Ela tem, portanto, o potencial de criação de uma estrutura do mundo social absolutamente universal. Com efeito, historicamente, o comércio, que será a forma mais basilar da esfera das trocas, sempre atravessou a diversidade das culturas e dos diferentes poderes políticos, se bem que de um modo limitado e episódico, no início, para de seguida sempre se reforçar até o ponto extremo de um «mercado global». Não obstante, para escapar a este enviesamento «mercantil» desta estrutura objectiva do mundo social baseada no sistema das trocas, designo-a, como atrás o disse, pela palavra grega «Ágora».

O segundo eixo que hei relevado antes diz respeito à vinculação entre indivíduos baseada num sentimento comum de pertença. Como sublinhei, não se trata tanto de pertença uns aos outros, se bem que tal também seja o caso, mas, mais profundamente, de pertença de todos eles a algo que lhes é comum. Este laço define os contornos de uma comunidade, no sentido forte do termo. Várias notas o caracterizam. Desde logo, a experiência das formas e estruturas do mundo social marcada pela polaridade do próprio e do estranho (Husserl acercou-se de uma fenomenologia desta importante dimensão com a sua oposição entre Heimwelt e Fremdwelt). Esta oposição entre o próprio e o estranho não é, contudo, monolítica. Ela é, antes, gradativa e matizada. Certos elementos do mundo social (costumes, ideias, valores, regras de vida, etc.) são experienciados como mais ou menos próprios e mais ou menos estranhos, passando por elementos intermédios que são experienciados com a nota do «familiar», mas não, contudo, do próprio. Um mesmo indivíduo sempre tem uma relação deste tipo, polarizada entre o próprio e o estranho, com várias comunidades diferenciadas: a família e seus antepassados, os grupos interfamiliares, os povos e suas culturas, a nação, etc. Os pontos extremos seriam, de um lado, o sentimento de «estar totalmente em casa», no seu mundo próprio, de um lado, e a completa estranheza de um outro mundo social, que roçaria o extremo da incomunicabilidade, ou seja, da ausência de algo que se pudesse pôr em comum, como quiçá terá sido o caso no encontro de europeus com o Novo Mundo, em que suas formas exotípicas de vida eram largamente inacessíveis a partir das formas endotípicas da cultura europeia. Em segundo lugar, importa sublinhar que esta é a dimensão das «raízes», das «linhagens», da gens, para usar a expressão latina consagrada. Nela se dá uma dupla referência: a um

passado que congrega os membros da comunidade, e da comunidade por inteiro a um lugar no espaço físico terrestre, tido como o lugar da proveniência, da fundação ou do nascimento. Esta relação com o passado comum implica uma dinâmica poderosa de conservação. A fidelidade ao passado prepondera, pese outros factores que propendem para a transformação. E esta fidelidade ao passado que suporta uma comunidade foi tipicamente entregue às figuras dos anciãos, que deteriam uma voz autoritativa (mas não um poder, no sentido do poder político) no que diz respeito à constante repristinação das formas fundadoras de cada comunidade. Em suma, direi que este laço de vinculação constitutivo de uma comunidade experienciada com o sentido do «próprio», do «meu», ou melhor, do «nosso» é o laço da tradição: recepção de um fundo de sentido originariamente instituinte, transmissão, reinterpretação e constante repristinação das origens. Se a esfera da sociabilitas remete para actos instituidores cuja origem se pode traçar, porque se baseia num acordo expresso, esta esfera da pertença mergulha numa origem remota que não é remissível para um consentimento e um acto instituidor originário que assuma a forma de um expresso «eu quero». Ela mergulha, antes, num passado mais além dos passados dos indivíduos, passado que amiúde se apresenta sob a forma da narrativa de uma mais ou menos brumosa e «encantada» gesta fundadora. Do mesmo modo, os vínculos entre os indivíduos não envolvem actos que remetam para o estatuto sui iuris, que atrás sublinhei, mas são, outrossim, vínculos que surda e semiconscientemente se aprendem e que são constitutivos de uma identidade concreta, para lá da identidade abstracta e vazia dos indivíduos que, senhores de si, acordam, trocam ou contratam por via de actos explícitos de aceitação. Nesta esfera, não se acorda nem se aceita: é-se aquilo que a pertença a uma comunidade fez de nós já sempre de antemão, antes mesmo de sobrevir a unidade abstracta do indivíduo senhor de si, que estabelece conexões na base de actos voluntários de mútuo acordo ou aceitação.

Denomino este sentido do «estar em casa» ou do «mundo próprio», do Heimwelt, constitutivo de uma vinculação comunitária orientada sobre um passado comum e continuada numa tradição, denomino-o, dizia, pela palavra estóica oikéiosis, que provém justamente de oikos, «casa» e «família», e falo, de seguida, de um vínculo «oikeiótico», se me for também permitido este neolo-

gismo. Comunidades oikeióticas há-as de vários tipos, como atrás sublinhei, e combinam-se entre si de várias maneiras, nomeadamente por aglutinação, como, por exemplo, nos casos em que a tradição de um clã é conectada com outra, e com outra ainda para formar a comunidade oikeiótica maior de um povo, como no caso das doze tribos de Israel e da sua referência ao antepassado comum Jacó.

Há uma estrutura do mundo social que emerge como forma acabada deste cruzamento e sobreposição de múltiplas vinculações oikeióticas. Trata-se do espaço da narrativa mítica fundadora: das gestas dos heróis ou antepassados recua-se até a fundação mítica do mundo e, nessa narrativa, a comunidade oikeiótica, com os seus múltiplos ramos agora conectados, emerge com o receptáculo, como a curadora e veneradora de uma tradição. Numa palavra: emerge a instituição do Templo, como lugar central de referência, com o seu culto das divindades, com a sua narrativa mítica fundadora, com as convicções e regras de vida em que se preserva a fidelidade às origens e a identidade comunitária se mantém. Há que pensar o fenómeno plural do religioso a partir destas narrativas fundadoras originais. Os panteões são o lugar onde as múltiplas vinculações comunitárias particulares se congregam numa narrativa identitária comum, que a todos pertence e a todos irmana. Mesmo o monoteísmo não alterou profundamente esta situação, segundo penso. O caso flagrante é o do Judaísmo. Ele evoluiu do politeísmo para a monolatria, e, por fim, da monolatria para o monoteísmo. Mas esse Deus único era ainda o Deus que tem um povo escolhido, portanto, uma comunidade particular cuja identidade se mantém na fidelidade a um culto e a uma tradição. Com a universalização da pertença oikeiótica religiosa nas prédicas de Paulo de Tarso, fundador do Cristianismo, esta estrutura não se alterou radicalmente. Passou-se certamente do Povo de Israel, como povo eleito, a um ecumenismo que abarca tanto Judeus como gentios, que abarca toda a Terra habitada, como diz literalmente o termo oikoumenikós. No entanto, pese embora este carácter universal, que é justamente o que o termo «católico» (katholikós) significa, manteve-se a figura do Povo de Deus, agora congregado não mais pela etnia e pelos laços generativos, mas antes pela devoção e a fé. Isso haveria de entrar em profunda tensão com a terceira estrutura do mundo social, de que falarei em breve.

Se atentarmos nos fundos oikeióticos do Templo e do fenómeno religioso em geral, uma coisa ressalta com nitidez: pese embora a pretensão de algumas religiões monoteístas a uma igreja universal, o fenómeno religioso é, por essência, não universalizável. Narrativa mítica instituidora, religião e divindade só se declinam no plural. Uma globalização religiosa, uma religião única e um deus único seria a forma excessiva como uma vinculação comunitária particular esmagaria todas as outras e as suprimiria. Tal pode acontecer de facto, um dia. Mas tal contraria a radicação do templo em cada uma das comunidades oikeióticas singulares que estão na sua origem.

O terceiro e assaz diferente eixo de vinculações que importa sublinhar é o da relação de domínio e submissão. Ela não tem que ver com comunidades oikeióticas e suas autoridades internas, mas com relações de poder entre indivíduos ou grupos. Enquanto a vinculação comunitária é um sentimento de pertença comum a um espaço cultural vivido como «nosso» e, nos casos mais importantes, conectado a uma raiz ancestral por uma narrativa fundadora, a relação de poder não tem de envolver necessariamente a partilha de um sentimento de comum pertença e é, ao contrário da anterior, hierarquicamente estruturada: ela baseia-se na diferenciação das pessoas morais do Superior e do Subordinado. Originalmente, parece ser uma relação «atópica», sem radicação num lugar físico, pois é, verdadeiramente, uma pura relação entre indivíduos ou grupos: o grupo ou o indivíduo X tem um poder de coerção sobre um grupo de indivíduos Y. No entanto, o comando implica proximidade. Onde a distância se alarga para lá do alcance de quem comanda, dissolve-se também a relação entre superior e subordinado.

É difícil ver a origem genética da relação superior-subordinado, se houver apenas uma. Fenomenologicamente, traçar geneticamente uma origem não é somente uma indagação factual e positiva, mas antes a reconstrução do sentido de actos de instituição originária, segundo aquele modelo que Husserl exemplarmente seguiu para a origem da Geometria ou para a Europa, enquanto fenómeno espiritual. Se seguirmos nessa esteira, creio que a origem do poder de dominação deve ser procurada na esfera da vida onde a necessidade se sobrepõe à liberdade. É a esfera do trabalho. Ela tem que ver com a satisfação das necessidades básicas da vida material e, por essa razão, tem um carácter constrangedor

e urgente. Agora, o trabalho é uma actividade cooperativa, e diferencia-se num conjunto de subactividades coordenadas com uma crescente especialização. Não é de surpreender que os mais qualificados e os mais dotados na gestão de uma actividade cooperativa tivessem ganhado progressivamente controlo sobre todo o processo e, subsequentemente, tivessem alcançado domínio sobre os seus companheiros de trabalho. O domínio é, assim, multifacetado e assume diferentes formas, dependendo das várias actividades em que os indivíduos cooperativamente se envolvam. Como facto importante, a dominação tende a ganhar uma estrutura hierárquica crescente. A, que domina a actividade X, pode ser, por sua vez, dominado por B no exercício de uma actividade mais abrangente, e assim sucessivamente. Pelo contrário, a existência de dois superiores concorrentes para a mesma função deve culminar na supressão de um ou na reorganização das suas respectivas áreas de influência, de modo que um fenómeno essencialmente intersubjectivo ganha progressivamente uma dimensão quase-territorial.

No entanto, a mutação qualitativa crucial da dominação ocorre com o domínio não sobre as funções laborais cooperativas, mas com o domínio do próprio terreno onde elas se exercem. Tirando talvez o direito do primeiro ocupante, a posse de um território é um acto de força. Ela implica um dispositivo de controlo e de coerção, ocasional ou permanente, que tende a assumir a forma de uma força bélica. Tal passagem, que não é nunca sem violência, do poder para uma dimensão territorial é, assim, primitivamente veiculada pela apropriação da terra. Ela dá uma posição de dominação permanente, liberta da posição que cada um ocupa no trabalho cooperativo. De facto, aqueles que alcançaram o domínio sobre uma porção de terra podem, então, submeter à sua autoridade todos os que nela habitam ou por ela passam e todas as actividades que aí são desenvolvidas. A posse de terra é, assim, a marca primeira da propriedade privada e a origem remota dessas desigualdades permanentes entre os seres humanos que para sempre os diferenciam em superiores e subordinados. O caso da Europa feudal é exemplar. As relações de suserania e vassalagem distribuíram a posse da terra sob uma forma politicamente organizada numa estrutura de domínio hierárquico entre senhores nobiliárquicos e, destes, sobre o campesinato. A supressão do sistema feudal e a evolução para o estado

unificado entroncou nesta estrutura preexistente de deve ser lida, em minha opinião, como a progressiva submissão dos senhores terratenentes à unidade em construção do poder régio. Este «herdou», mais que subverteu, a projecção política do poder sobre um território, com as suas dimensões de domínio e submissão. De facto, não é necessário ser marxista para ver o profundo significado da propriedade privada e da propriedade de terra, que está ao que parece na sua base, na diferenciação interna entre aqueles que comandam e aqueles que estão sujeitos ao comando de outros. Jean-Jacques Rosseau teve a mesma opinião, em particular no seu ensaio sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.

Desta profusão de hierarquias de comando entre indivíduos e grupos, que é um eixo de vinculação no mundo social bem diverso da relação comunitária e da socialidade, há uma estrutura que parece emergir como sua forma mais acabada: o Poder a que hoje em dia chamamos político. Não o Templo, portanto, como centro de identificação de uma comunidade, mas antes o Palácio, para usar uma expressão sugestiva, que possa cobrir a pluralidade infinda de formas do domínio dito «político». E se as relações de superior e subordinado eram quase territoriais, o poder político é, por essência, algo que se exerce nos limites de um determinado território. Este dado de base é muitas vezes elidido. Na verdade, relativamente ao caso específico da origem do poder político, a propriedade da terra é a variável em falta, nomeadamente na tradicional versão contratualista, e a grande falha de todo o seu argumento. De facto, o esquema contratualista traduz, nesta abordagem que exponho, uma tentativa de derivar o Palácio da esfera da sociabilitas, como se o poder político, a posição de comando e de submissão tivessem emergido de um ficcional contrato ou acordo primitivo entre as partes. Esta tese, para lá da sua inverosimilhança de princípio (a derivação do imperium a partir da sociabilitas) tem ainda vários pontos fracos. Acima de tudo, ela não dá conta do factor territorial, que, como frisei, é essencial na génese desta estrutura. De facto, é difícil compreender como um pacto de associação entre indivíduos e, depois, uma transferência de poder de comando para uma pessoa, uma assembleia ou um grupo (aquilo a que Hobbes chamou «pactum subjectionis», em contraste com a tradição medieval da translatio imperii), que é uma relação intersubjectiva entre indivíduos que podem

de seguida dispersar-se por toda parte, não é fácil ver, digo, como esta relação está, porém, por essência, sempre condensada num determinado território e suportada por relações de proximidade. A questão é bastante evidente no contratualismo de Locke. Falta em todo o seu argumento a dimensão territorial, de modo que não é claro a razão por que um poder resultante de um acordo entre indivíduos pode ter eo ipso uma expressão territorial e, portanto, uma área de incidência e uma fronteira-limite para a sua eficácia. Não obstante essa ausência expressa da dimensão territorial do poder político, ela é sub-repticiamente introduzida por Locke no seu argumento pelo facto de aqueles que dão o seu consentimento serem claramente pater familias patriarcais e terratenentes. Assim, as fronteiras do poder político são sub-repticiamente tidas em conta: elas são desenhadas pela propriedade fundiária dos supostos contratantes. Como resultado, a dimensão territorial do poder político é introduzida dissimuladamente por este pressuposto, embora o modelo contratual não ofereça uma sua descrição suficientemente clara. É como se fora uma «constante escondida» em toda a teoria contratualista. Ao invés, uma boa teoria da génese do «Palácio» teria de ter em conta, desde o primeiro momento, este factor territorial. Efectivamente, segundo penso, antes de qualquer interrogação sobre as formas do poder, autocráticas ou democráticas, dinásticas ou electivas, havia que marcar fortemente esta dimensão originária e fundante de uma projecção geográfica que assume a forma de um território delimitado por fronteiras, quando um palácio reconhece a existência de outros palácios vizinhos, ou de um território aberto e sempre crescente, quando o Palácio assume a forma de um império em expansão. Geralmente, é-se obsessivamente direccionado para a morfologia do poder dito «político», para as suas instituições e para as formas de deliberação, autocráticas ou democráticas, que ele possa envolver. No entanto, do ponto de vista genealógico, essa é já uma questão secundária. Para o ilustrar mencionando um exemplo clássico, os Atenienses deliberavam democraticamente em assembleia de todos os cidadãos. Mas só o podiam fazer porque, colectiva e individualmente, estavam na posse de um determinado território. Essa posse primitiva de um território tornava possível a decisão colectiva e, ao mesmo tempo, delimitava a eficácia e a validade dessas deliberações: uma deliberação em Atenas nenhum valor tinha em Siracusa ou em

Esparta. Assim, o Palácio é, também ele, uma dimensão sempre local, telúrica, do mundo social. Ele projecta-se sobre um território, ao contrário do Templo, que irradia a partir de um local sagrado, e da Ágora, que é por sua natureza própria, se bem que não de facto, uma dimensão global do mundo social.

Para finalizar pondo as coisas em conjunto, quis sublinhar, em substância, que há formas de vinculação entre os indivíduos que são distintas entre si, as quais denominei, em geral, por «eixos» do mundo social e, mais especificamente, por sociabilitas, imperium e oikeiosis. Eles não se sobrepõem necessariamente, porque têm dinâmicas internas próprias. Sobretudo, podem dar origem a instituições ou estruturas do mundo social que se baseiam predominantemente num deles e que têm expressões ora locais, ora territoriais, ora globais. Assim são o que designei como «Templo», «Palácio» e «Ágora». A Ágora não tem limites internos; o Palácio estende-se dentro de limites territoriais, enquanto o Templo irradia a partir de um lugar central (ou de vários lugares «sagrados»), atravessando vários territórios. Além disso, existem entre eles relações complexas. Eles podem ficar lado a lado. No entanto, cada um deles pode também ter uma posição de domínio sobre os outros, e isto é o que normalmente se verifica ao longo da história. O Templo pode preponderar sobre o Palácio ou mesmo absorvê-lo num estado teocrático; o Palácio pode fundir-se parcialmente com o Templo por uma apoteose, como na deificação romana do Imperador; ou, ao contrário, o Palácio pode conservar intocados mas subordinados à sua autoridade política tanto o Templo como a Ágora, como foi o caso na formação moderna dos estados na Europa; ou a Ágora, assumindo a forma estreita de um mercado económico global, pode saltar sobre as autoridades territoriais dos palácios. Além disso, o próprio Palácio pode basear-se numa suposta comunidade oikeiótica de base, como no sonho romântico do Estado-Nação. Estas relações são sempre tensas e sujeitas a mudanças, porque ligam esferas essencialmente diferentes do mundo social.

Do ponto de vista de uma fenomenologia já não estática mas antes genética, haveria ainda que tentar dilucidar os processos pelos quais essas formas-tipo se diferenciam a partir de uma provável raiz comum. Isso seria, porém, o tema de uma inquirição de mais lato horizonte.

Nominalismo, atomismo lógico e discursividade

metafórica: entre Aristóteles e Ricoeur

António Campelo Amaral 1

Se partirmos do átomo, é-nos difícil conceber qualquer coisa que não seja sempre atómico; e se partirmos do nome das coisas, ser-nos-á difícil sair da região dos nomes. Tudo se reduzirá então […] a um dicionário bem feito.

Delfim Santos, Da Filosofia (1938)

Resta saber se […] uma teoria virtual da metáfora-discurso não fará rebentar pelas costuras a teoria explícita da metáfora-nome…

Paul Ricoeur, A Metáfora Viva (1983)

1. O núcleo onomológico da metáfora

Remonta a Aristóteles o primeiro esforço bem-sucedido para alcançar e estabilizar uma definição filosófica de metáfora: «A metáfora — refere o Estagirita — é a transferência “para uma coisa” do nome de uma outra “coisa”»2.

Por si só, a lapidar formulação aristotélica liberta um amplo leque de questões, numa esfera em que a Filosofia da Linguagem reclama plena autonomia. O desafio passa por calibrar conceptualmente e compaginar reflexivamente as noções de «transferência» (grg. «epiphora», transporte, transposição) e de «nome» (grg. «onoma», termo, designativo).

A primeira questão prende-se, naturalmente, com o estatuto ontológico (real ou virtual) do nome, na economia discursiva da metáfora, de forma que não é possível deixar de questionar: o que é isso de «nome»? E também: em que condições se opera a sua «transposição» para uma coisa?

1. PRAXIS, Universidade da Beira Interior.

O melhor esclarecimento possível passa por aceder ao «topos» originário do problema. Ele situa-se naquilo que o filósofo grego consagrou como «lexis» (λέξις). Deixando em prudente parêntesis todas as alternativas colocadas à fixação linguística de um conceito tão fluido e variável, traduziremos «lexis», neste preciso contexto, por «elocução», termo que parece aderir com mais consistência àquilo que Aristóteles pretendeu visar teoricamente.

Curioso é verificar que Aristóteles modela a noção de «lexis» pressupondo duas abordagens distintas à estrutura metafórica do discurso: uma de recorte tendencialmente esquematista, intimamente ligada à construção da metáfora na Poética; outra de contornos essencialmente atomistas, estritamente vinculada à desconstrução da mesma na Retórica. Qualquer uma das duas induz um conjunto de desafios e aporias que a Filosofia da Linguagem haverá de enfrentar no decurso do seu desenvolvimento histórico e epistémico.

No tocante à abordagem de tipo esquematista, a «lexis» articula-se com aquilo que o Estagirita designa de «figuras da expressão» (τὰ σχήματα

λέξεως: Arist, Poet., 1456b 9), das quais dependem estruturas e eventos discursivos tão heterogéneos como a ordem, a oração, a narração, a ameaça, a interrogação, a réplica, enfim, tudo aquilo a que Austin mais tarde se haverá de referir como actos performativos do discurso, na sua tríplice dimensão locucionária, ilocucionária e perlocucionária (cf. Austin, 1962: 62 ss). Por outro lado, a esta matriz esquematista (derivada, por assim dizer, de uma «fenomenologia» estrutural da expressividade), Aristóteles contrapõe uma matriz de feição mais atomista, basicamente caracterizada pelo rastreio «analítico» dos componentes intrínsecos do discurso. Neste caso, a força da «lexis» emerge já não ao nível das «figurações» (σχήματα), mas ao nível das «partes» (μέρη) em que a expressão se pode decompor, desde a sua infra-estrutura linguística até à sua optimização estilística (cf. Arist. Rhet., 1405b 1 ss). A letra, a sílaba, a conjunção, o artigo, o nome e o verbo, identificam-se, pois, com os ingredientes atómicos residuais de uma estrutura elocutória decomposta nos seus constituintes mais ínfimos e elementares.

Partindo do estatuto ambivalente que o Estagirita confere à «lexis», importa agora compreender em que medida é que a transposição de uma concepção esquematista para uma concepção atomista impacta necessariamente numa

teorização da metáfora. Para Ricoeur, é por demais evidente que a instauração do nome, tomado este como último reduto da elocução, acabou por traçar, século após século, o destino da metáfora: esta «ficou ligada de ora em diante […] não ao nível do discurso, mas ao nível do segmento do discurso» (Ricoeur, 1983: 22; destacado nosso). A posição-chave do nome na teoria da elocução reveste-se, assim, de uma importância decisiva, não havendo como evitar a questão de saber até que ponto é que as «partes» onomológicas da elocução serão susceptíveis de deslocar do nome para o enunciado (ou da palavra para a frase) o centro de gravidade semântico da metáfora. Num certo sentido, não parece oferecer qualquer dúvida que o nome se assume como primeira unidade dotada de significação: Aristóteles define-o na Poética como «som composto dotado de significado»3. Na esteira da linguística contemporânea, classificá-lo-íamos de unidade semântica elementar. Ora, é precisamente nesse limiar semântico da elocução que se entrelaçará o segundo momento da definição aristotélica de metáfora, a saber o da transposição do significado inerente a cada nome. O estudo das consequências dessa permuta sémica ofereceria inegáveis vantagens para um radical aprofundamento da teoria da metáfora, mas tal exorbitaria desnecessariamente do ponto que temos em vista, pelo que nos cingiremos tão-só a assinalar o impacto que a conjectura nominalista pode ter nas potencialidades e nos limites metafóricos da linguagem. Ao segmentar a totalidade do acto elocutório em «partes», visando captar não o epicentro semântico a partir do qual todas elas irradiam um significado interdependente, mas o núcleo auto-referencial de cada uma em particular, poder-se-á afirmar que a teoria aristotélica da «lexis» outorga ao nome a função, entre outras mais, de indutor semântico da elocução: com efeito, segundo o Estagirita, «qualquer um dos nomes ou é corrente, ou idiomático, ou metáfora, ou ornamento, ou inventado, ou alongado, ou encurtado ou modificado»4. Para Ricoeur, este trecho revela o lance teórico em que Aristóteles manieta expressamente a metáfora à «lexis» por intermédio do nome (cf. Ricoeur, 1983: 25).

e a cometer uma traição se participar activamente na criação de um curso de filosofia; nessa perspectiva acusa-me de estar a ser mal agradecido e ingrato à comunicação «que me acolheu». No fundo pensa talvez — a meu ver erradissimamente — que a criação de um curso de filosofia significaria abandonar, trair e, portanto, prejudicar a comunicação. No entanto, o primeiro problema que começa por se pôr é o de o Fidalgo estar a ser infiel e «mal-agradecido» à filosofia. O seu argumento de que a filosofia teria o seu lugar no curso de comunicação é daquelas boas intenções de que o inferno está cheio: O que diria um bom físico a quem dissesse: «Não é preciso um curso de física na faculdade de ciências, porque na engenharia mecânica também se faz física»? O que diria um matemático «puro sangue» a quem dissesse a mesma coisa em relação à matemática? Diriam que um «argumento» destes não é sério! O mesmo dirá qualquer filósofo minimamente amante da sua disciplina, e não só, em relação à sua teoria de «uma faculdade de letras com filosofia, mas sem curso de filosofia»! Isto é uma coisa incrível! É um «quadrado circular» ou «um banco de pau de ferro»! Para que é que o Fidalgo quer criar cursos de design, multimédia e sei lá mais quê? Se já temos cadeiras de artes gráficas, guionismo, cinema, ateliers de áudio-visual, etc., etc., no curso de comunicação? Acho que é pela mesma razão pela qual eu quero um curso de filosofia: Numa instituição como a universidade, sobretudo no sistema português, uma disciplina só tem existência e só é praticada a sério quando há um curso de licenciatura; tudo é calculado a partir daí: pós-graduações, mestrados, programas de investigação, etc. Eu sou o primeiro a defender que a filosofia não se deve fechar na história da filosofia e que deve fazer um esforço para pensar a cultura da modernidade, a técnica, a realidade que nos rodeia; no entanto, é claro que, tal como por exemplo em matemática, há em filosofia uma investigação fundamental, não só em ontologia, mas em ética, em epistemologia, em filosofia da linguagem, em filosofia da cultura, etc., absolutamente legítima e necessária, que não se pode fazer num curso profissionalizante e de «engenharia», como o de comunicação. Sem estar de modo algum a menosprezar a comunicação, é evidente que esta é às engenharias, aquilo que a filosofia é, nas ciências exactas, à matemática e à física. Nós na comunicação nunca podemos ir além de «introduções» (por vezes até no mestrado). Além disso, não menosprezando a grande importância do «paradigma da comunicação», há muitas coisas a pensar

que não se reduzem à comunicação! Por conseguinte, é evidente que um curso de filosofia, não só não ia prejudicar o de comunicação, como ia ser-lhe altamente benéfico. Eu não nego a existência ao curso de comunicação, e, por conseguinte, não a estou a «trair». O Fidalgo é que me parece negar ao curso de filosofia o direito de existência, primeiro sob o pretexto muito pouco convincente que há maus cursos e que é — estou-lhe agradecido por mais este argumento — uma forte razão suplementar para criarmos um: com a nossa experiência só poderia ser um óptimo curso! Em seguida, fingindo ignorar as consequências catastróficas que isso tem para a disciplina e para a «unidade de letras». (Este ignorar choca-me tanto mais quanto sei que o António Fidalgo é uma pessoa com um sentido muito agudo do significado de uma instituição, por um lado, e que sei, por outro, dos meritíssimos esforços que fizeram e fazem muitos filósofos para salvaguardar a existência institucional da sua disciplina). Seria aliás benéfico para ambas as partes: Punha os filósofos em contacto com a realidade, e fornecia aos comunicólogos o necessário background teórico e resultados da investigação fundamental. Pelo que me toca não pretendo de modo algum fazer mal à comunicação, nem sequer ser-lhe «infiel» — só sou realista e acho que, no plano teórico, não é uma menina suficientemente crescida e adulta, e não lhe faria mal nenhum apoiar-se científica e institucionalmente num curso de filosofia, tal como no ISCSP se apoia na sociologia. Por outro lado, sou o primeiro a apoiar iniciativas específicas ao curso de comunicação, destinadas a beneficiar a sua vertente profissionalizante, como sejam o convite de personalidades do meio jornalístico, político, etc., para fazer conferências ou mesmo leccionar.

Aqui, aproveito para corrigir uma afirmação que o António Fidalgo faz na sua carta, ao dizer que não há colaboração entre os departamentos de filosofia e comunicação na Universidade Nova, e que não é exacta. Porquê? Porque 1) no instituto de investigação do DCC da Nova, o CECL, «Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem», também trabalham membros do departamento de filosofia como o Carrilho e a Filomena Molder. Porque 2) os alunos de comunicação têm cadeiras em filosofia (X e Y tiveram filosofia política com o Pires Aurélio, da filosofia, estética com a Molder, etc., etc.). 3) O Miranda tem, em comunicação, muitos alunos de filosofia. Há, portanto, uma colaboração a todos os níveis entre os dois departamentos. É verdade que as dimensões do DCC da

Nova, com 33 ou 34 docentes e quase 20 doutorados, já são tais que se, por pura hipótese, se retirasse essa cooperação com o departamento de filosofia, eles ficariam um bocado mais fracos mas não «morreriam». Mas, justamente, sejamos realistas, o curso de comunicação da UBI é tão minúsculo, em termos de número de docentes e potencial de investigação, que é evidente que uma tal colaboração lhe seria imprescindível. O DCC da Nova devido às suas dimensões, e ao facto de estar em Lisboa, nem sempre é para nós um «exemplo».

Uma última observação pessoal, que é ao mesmo tempo uma retratação de algo que escrevi na outra carta: Dou-lhe razão, acho que de facto o António Fidalgo não é em tudo «maquiavélico»; é talvez mesmo, por vezes, o contrário disso: quando é, como neste caso, excessivamente fiel a uma coisa. O X utilizou em relação a si o termo «fanatismo» que eu acho exageradíssimo; o fanatismo é por assim dizer o excesso mais excessivo da fidelidade; no seu caso apenas parece haver, por vezes, um ligeiro desvio em relação à «linha mediana» da virtude (no ideal aristotélico).

Passo agora a formular as duas principais razões objectivas que me levam a defender a criação do curso de filosofia. É evidente que quando for falar com os responsáveis da universidade não lhes vou falar das razões pessoais e dos motivos subjectivos que foram evocados nestas cartas, mas apenas apresentar-lhes bons argumentos objectivos. Estou convencido que há razões para criar o curso que vão no sentido do interesse superior da universidade, e que essas razões, felizmente para a filosofia, são de facto fortíssimas e muito boas e podem ser apresentadas a não filósofos numa linguagem clara, de factos e de números, que eles vão compreender. Se os responsáveis quiserem o bem da instituição (e não tenho razão nenhuma para pensar que não o querem) e a sua mente não estiver cheia de preconceitos desfavoráveis à filosofia, a única conclusão lógica a que podem chegar é a da necessidade da criação do curso. Dito isto, também sou realista (ao contrário do que o Fidalgo afirma!) e admito que possam existir preconceitos anti-filosofia mais ou menos fortes que sejam de facto um obstáculo. Do lado do Prof. Pinto Peixoto não estou a ver, a priori, tais preconceitos desfavoráveis (talvez há já mesmo «preconceitos favoráveis»); da parte do Prof. Santos Silva, apesar de não conhecer praticamente nada da sua personalidade, não vejo porque é que uma pessoa que está aberta a cursos

tão exóticos no panorama português como música e línguas eslavas se oporia totalmente à filosofia!

Há duas razões muito fortes — de ordem objectiva e que se baseiam em análises da realidade — que me levam a fazer este esforço para criar aqui um curso de filosofia, em relação às quais estou convencido que, se o António Fidalgo meditar bem nelas, não poderá deixar de as partilhar comigo.

A primeira diz respeito à investigação. Eu respeito totalmente as suas ambições de investir nas tecnologias da informação e do multimédia; no entanto, continuo a pensar que o que vai dar dignidade científica e universitária a isso tudo é uma grande equipa que produza investigação teórica: que produza livros, artigos e publicações teóricas que sejam lidos e citados (e não textos para catálogos de material electrónico ou multimédia). Estou totalmente de acordo com a sua imagem do Erasmus a ir para Basileia, que prova de facto a importância do novo «medium»; só acrescento uma pequena mas mui importante observação: ele não foi para lá brincar com as máquinas dos tipógrafos; continuava a pensar e a escrever de manhã à noite. Não há dúvida que a tipografia contribuiu grandemente para a difusão das novas ideias; mas primeiro foi preciso que houvesse alguém, como o Erasmus, justamente, que produzisse essas ideias. Portanto, para voltar à questão da universidade, a equipa teórica é, em termos aristotélicos, a ‘substância’, as tecnologias são os ‘acidentes’; não quero dizer com isto que estas últimas não sejam importantes. São importantíssimas. Só quero dizer que sem teoria, sem ‘substância’ o resto não existe ou não vale nada. Para que é que teria servido a tipografia se não tivesse havido os textos dos humanistas e mais tarde do Descartes, do Newton, etc., para imprimir?

No nosso caso, isto quer dizer que devemos formar aqui uma grande equipa teórica; é esta a minha grande ambição — que é realista e ao nosso alcance — para esta universidade. Você tem outras, que eu respeito, que incluem a cidade e a região, mas esta é a minha e acho que também vai no sentido do interesse superior da instituição. Ora, aqui, permito-me fazer-lhe um apelo para que seja realista (eu acho que nisto estou a ser muitíssimo mais realista que o António Fidalgo). É preciso fazer una análise lúcida e realista de factos e números, do que temos e do que pretendemos ter. Aquilo que eu entendo por uma «grande equipa teórica» exige um departamento de dimensões que se aproximem do da

Nova, que conta actualmente com 33 docentes, entre os quais deve haver uns 10 a 15 que se podem considerar investigadores de bom nível teórico. Além disso o CECL, o instituto de investigação do DCC da Nova, que é apoiado pela JNIC, conta com vários investigadores do departamento de filosofia! Nestas coisas há sempre um desperdício, e é evidente que na Nova também há pessoas que, gelinde gesagt, são menos boas. No entanto este desperdício é, justamente, compensado pela colaboração dos do curso de filosofia (que ficaram nesse departamento e não são os filósofos que, como o Marques, foram para comunicação). A minha ideia, muito realista, é que nós só poderemos atingir essas dimensões, em termos de equipa teórica, com dois cursos: filosofia e comunicação. Ao contrário do que pensa, não sou contra o curso de comunicação; até estou contente que ele cá esteja, porque a filosofia sozinha, aqui, também seria sempre uma equipa demasiado pequena. Acho que constituir aqui uma equipa que esteja ao nível da da Nova e que a médio prazo «dê que falar» (positivamente) é uma coisa que está perfeitamente ao nosso alcance e que é realista; só que a conditio sine qua non é a criação de um curso de filosofia. O qual vai ser, evidentemente, um bom curso. Por razões que você próprio evoca na sua carta (demografia!) é impossível só com o curso de comunicação ter aqui uma equipa das dimensões da da Nova. Nestas condições é preciso, por razões ainda mais fortes que na Nova, que a equipa da comunicação se apoie numa de filosofia para formar um grupo simplesmente visível.

Analisemos agora, com olhos realistas, a nossa situação actual. Postos de parte os casos de nós os dois, só vejo dois ou três assistentes que poderão vir a produzir coisas notáveis. […] Na situação actual, que não se vai modificar se não se criar filosofia, a nossa equipa é tão minúscula que não é e não vai ser simplesmente visível como equipa teórica. Você quer ou não quer uma grande equipa teórica? Estou em crer que responde afirmativamente a esta pergunta. Mas se responde afirmativamente, é porque também quer os meios para atingir esse fim. É nestas coisas — de ordem baixamente material e quantitativa! — que eu acho que, muitas vezes, sou eu o realista e o Fidalgo o irrealista. (É irrealista, por exemplo, quando exige que o X e os outros sejam o Kant, o mesmo é dizer que sejam o super-homem, que sejam deuses). Em termos de números isto significa: Se tivermos na comunicação e na filosofia um total de uns 20 docentes (uns 10

em cada curso), haverá a médio prazo uma equipa teórica de uns 10, com sorte talvez 12, investigadores razoáveis ou mesmo bons (como sou realista já estou a contar com um inevitável «desperdício»), que já vai ser algo que se veja e que já vai estar em condições de jogar», na primeira divisão, com a equipa da Nova de igual para igual. Com os cursos de português, cursos de línguas e de design não vamos obter uma tal equipa teórica, por razões que são tão evidentes que não vale a pena estar aqui a desenvolver.

A segunda razão muito forte para criar um curso de filosofia diz respeito aos alunos e à universidade. Também neste aspecto tenho a impertinência de pensar que sou eu que estou a ser mais realista. O curso de filosofia é em todas as faculdades de letras onde existe o curso com notas de entrada mais elevadas. Lamento imenso ter de corrigi-lo, mas isto não aconteceu só este ano por pura irregularidade estatística; não foi só este ano que as notas mínimas de entrada nas universidades do litoral foram de 15! Elas foram sempre elevadas desde que eu cheguei a Portugal em 94 e me interessei pelo assunto, e segundo informações que me deu a Helena e a Fernanda Bernardo relativas a Coimbra, já eram muito elevadas e as mais elevadas em Letras nos anos anteriores a 94! Pessoalmente, como amigo da sophia acho maravilhoso que os melhores alunos optem por filosofia e regozijo-me com isso. (En passant confesso-me escandalizado quando vejo o António Fidalgo, que não abdica da condição de filósofo [e isso regozija-me], tentar a todo o custo menosprezar estes factos e desejar in pectore que os cursos de filosofia sejam cursos de más notas!) As notas altas em filosofia são, pois, uma tendência estável e que se vai manter, não porque os filósofos, com a inexplicável excepção do Fidalgo, desejam que isso seja assim, mas pela simples razão que o número de cursos e de vagas não é excessivo — o que manifestamente é o caso em comunicação! — e não o vai ser no futuro, visto que os politécnicos e as privadas não podem e não vão criar cursos de filosofia. Por conseguinte, a conclusão a que chego aplicando as regras do mais elementar bom senso, da lógica e da razão é que quem abre uma unidade de letras numa universidade onde ela ainda não existe, o primeiro curso que devia criar é o de filosofia. Não tenho nada contra o português e estou de acordo em que devia haver português; também estou contente que haja latim e cultura clássica (e partilho tudo o que diz na sua carta a este respeito) e estou triste por não se

meter o grego — outra razão a favor do curso de filosofia: eu faria votos para que neste curso a cultura clássica fosse obrigatória e o grego pelo menos opcional (coisa que não vai poder fazer no design multimédia…) —, mas por questão de política universitária, de bom senso e de perspicácia, devia-se ter estabelecido prioridades, ou seja: ter começado pelo curso em que entrariam alunos com notas mais altas, que é, evidentemente, o de filosofia. Uma tal estratégia seria tanto mais aconselhável que esta universidade tem as notas de entrada mais baixas do país. O português e os cursos de línguas já são cursos de notas baixas, mesmo em Lisboa. Aqui há o risco de o serem ainda mais, sobretudo tendo em atenção a tendência, que o Fidalgo reconhece na sua carta, de os alunos irem estudar para perto de casa, mesmo que seja num politécnico (coisa que com a nova Lei de Bases vai ter ainda menos importância do que agora). Considerações semelhantes podem ser feitas a propósito do curso de geografia, que em Portugal é um curso das faculdades de Letras e cuja criação na UBI parece estar praticamente decidida a nível superior. Também neste caso se trata de um curso cujas médias mínimas de entrada, à volta de 13 nas universidades mais antigas do litoral, são nitidamente inferiores às dos cursos de filosofia (15 nas universidades do litoral), além de se tratar, como se sabe, de um curso de pequenos efectivos (há muito menos estudantes e vocações para geografia do que para filosofia). Acho que é preciso de facto uma monumental má vontade anti-filosófica e uma grande carga de preconceitos para argumentar contra estes factos e para desaconselhar a criação de filosofia na UBI. Neste momento a Universidade de Évora, que teve a perspicácia de abrir um curso de filosofia, que começou a funcionar logo no primeiro ano com a notável nota de entrada de 14,3 — a segunda melhor nota da universidade a seguir a medicina veterinária — está numa posição, invejável, semelhante à da UBI nos tempos áureos em que esta era a única escola superior do interior com comunicação, recrutando estudantes em todo o país. Como a UBI ainda não abriu filosofia, Évora está a beneficiar deste «erro», está certamente a recrutar estudantes de filosofia na faixa interior, de Trás-os-Montes ao Algarve, passando pela Beira Interior, além de recrutar os da zona de Lisboa, de Coimbra ou do Porto que não têm o 15 que é necessário para entrar nos cursos de filosofia mais antigos, mas que mesmo assim têm 14,3 — mais que os nossos de comunicação com pouco mais de 13.

Finalmente, ainda dentro desta razão relativa «aos alunos e à universidade» incluo o futuro, a meu ver muito sombrio dos cursos de comunicação em Portugal. Estou convencido que a tendência vai no sentido da ultrapassagem da comunicação pela filosofia, em termos dos melhores alunos e das notas de entrada (mais uma vez: por fria análise dos factos e não por amor da filosofia). Isso vai atingir mais tarde a Nova e atingir menos porque está em Lisboa e tem prestígio. Isso já aconteceu na região Porto-Braga, cujas universidades funcionam em vasos comunicantes, visto que há menos de meia hora de viagem entre as duas cidades. Para entrar em filosofia no Porto é preciso um 15, para entrar em comunicação no Minho, curso que é muito frequentado por alunos do Porto por não haver comunicação na universidade pública desta cidade, já basta um 14,3. Para mim este 14,3 na zona de maior densidade populacional do país e onde, no ensino público, só há o curso do Minho (!) é muito mais significativo do que o facto de o curso do ISCSP ter ultrapassado o da Nova. É evidente para qualquer pessoa com um mínimo de realismo que há demasiados cursos de comunicação em Portugal e que quando estiverem a sair mais de 2000 licenciados por ano vai, sem dúvida, haver uma grave crise que vai afectar mesmo os melhores licenciados e as melhores escolas. O que é que nos vai acontecer nessa altura, quando já hoje a comunicação da UBI está a ser ultrapassada em termos de preferência pelos politécnicos de Viseu e de Portalegre? (cf. a tabela da minha última carta). Já nem sequer falo em termos de emprego, porque é mais que evidente que não vai haver emprego para 2000 licenciados por ano, mas em termos de inflação do valor e perda de prestígio de um tal diploma. A criação de um curso em que nunca teríamos concorrência dos politécnicos e das privadas, caso único de filosofia, e que por isso sublinharia o carácter de universidade da UBI, representaria para esta uma segurança suplementar. Não estou de modo algum a atacar a comunicação, mas acho que do ponto de vista da instituição, ela faria melhor em pescar (alunos) com duas redes do que só com uma, sobretudo tendo em conta a borrasca que se aproxima no mar dos cursos de comunicação; seria melhor ver o futuro assente em dois pilares do que só num. Sobretudo quando o «pilar» da filosofia me parece muito mais sólido do que o da comunicação. Resta-me acrescentar que, conforme à minha sugestão na última carta, estou pronto a ir falar com o Sr. Reitor e outras personalidades da universidade para

lhes explicar as boas razões de criar aqui um curso de filosofia e estou contente em poder contar com o seu apoio.

Em manuscrito (Um abraço amigo, José Manuel Santos)

Esta carta de Santos teve o mérito de nos colocar em sintonia na luta conjunta pela realização da Faculdade de Artes e Letras.

Nas duas primeiras das três cartas é referido o «paper» sobre as «14 razões para introduzir a filosofia na UBI». De facto, há um documento de três páginas com sete razões elencadas para a criação de um curso de filosofia na UBI, e que o Santos entregou em mão ao Reitor Santos Silva em 24 de Setembro de 1997. É esse documento que aqui se reproduz.

Algumas razões para criar um curso de filosofia na Unidade de Artes e Letras da UBI

Já foi decidido pelas instâncias universitárias competentes criar na UBI uma Unidade Científico-Pedagógica de Artes e Letras. Os cursos dessa área actualmente a funcionar na UBI, e que serão transferidos para essa Unidade, são apenas dois: Ciências da Comunicação e Língua e Cultura Portuguesa. É, pois, necessário criar mais alguns cursos, visto que apenas duas licenciaturas não parecem poder fornecer a massa crítica suficiente, em estudantes investigadores e corpo docente, para formar uma unidade. Entre os possíveis cursos da área de letras a acrescentar aos dois existentes, defende-se, aqui, a criação prioritária, de um curso de filosofia. Eventuais reticências do ministério à criação de novos cursos são contrabalançadas por alguns fortes argumentos a favor de um curso de filosofia, que são expostos a seguir.

1. A filosofia é a disciplina central e de base da área de Artes e Letras

A filosofia é a disciplina de base da área das Artes, Letras e Ciências Humanas. Ela é, nesta área, o que é a matemática na das ciências exactas: A filosofia é hoje a matemática das ciências humanas, das ciências da cultura e das Artes e

Letras. Em relação a cursos de «artes», como o de comunicação, que correspondem aos cursos de engenharia do lado das ciências exactas aplicadas, a filosofia corresponde à formação básica em matemática e física. É tão absurdo fazer uma unidade de artes e letras sem filosofia como fazer uma de ciências exactas sem matemática e física, e sem começar por estas disciplinas fundamentais. Quer em universidades anglo-saxónicas, quer alemãs, quer francesas não há exemplo de unidades ou faculdades de artes e letras sem um forte departamento de filosofia!

2. A situação da UBI na concorrência com outras instituições de ensino superior na região e no país e a filosofia

Existe a necessidade de a UBI, sobretudo ao nível da região do interior, acentuar o seu carácter de universidade. A criação de um curso de filosofia na UBI acentuaria o carácter universitário da instituição, visto que esta disciplina não é, nem será, ensinada nos institutos politécnicos. Em quase todos os outros cursos da área de letras (comunicação, português, línguas, etc.) a UBI encontra-se em concorrência directa com os institutos politécnicos da região (Viseu, Guarda, Castelo Branco, Portalegre) — que, com a nova lei de bases, também atribuem o título de licenciado — no que respeita ao recrutamento de alunos. Já no que toca à filosofia a UBI seria a única instituição da faixa interior do país a oferecer este curso e a recrutar alunos. Também no que toca à situação dos cursos de filosofia nas universidades públicas tudo aponta para a vantagem que haveria em criar este curso na UBI: Trata- se de uma disciplina em que ainda há muito poucos cursos: apenas 6 cursos nas universidades públicas do continente, mais dois na universidade católica. Não há nenhum curso de filosofia nas universidades privadas. Os únicos cursos que existem são os das três universidades clássicas mais o da Nova. Nos últimos 25 anos só foi criado um único curso novo na Universidade de Évora. Esta situação contrasta com o que se passa, por exemplo, nas áreas das línguas, da história e da comunicação, onde, nos últimos anos, se criaram dezenas de cursos (em história há 27 cursos, em comunicação 16, só no ensino superior público, além dos cursos das universidades privadas, que abrem todos os anos centenas de vagas por curso). Esta situação explica o assinalável sucesso do curso de filosofia que abriu na Universidade de Évora

no ano de 1996/97: houve 400 candidatos para 25 vagas e a nota mínima de entrada foi 14,3!

3. Facilidades que já existem na UBI (em termos de docentes e disciplinas já leccionadas) para a criação de um curso de filosofia

Na área das Artes e Letras um curso de filosofia seria, sem dúvida alguma, o mais fácil de criar e, provavelmente, o que ocasionaria menos custos, devido aos seguintes dois factores:

1. A UBI tem a sorte de já possuir no seu corpo docente pessoas altamente qualificadas na área da filosofia, já integradas na universidade: 2 doutorados e 1 licenciado (que obterá o grau de mestre a breve prazo). Além disso há mais três docentes do curso de ciências da comunicação a desenvolver projectos de investigação nas áreas da estética e da filosofia prática (como, por exemplo, a teoria política), capacitados para dar aulas nas disciplinas destas áreas de um curso de filosofia. O problema do pessoal docente, e sobretudo de doutorados (!), já estaria parcialmente resolvido. Trata-se de uma situação excepcional que só existe nesta disciplina da área das letras e que devia, sem dúvida alguma, ser aproveitada.

Uma outra facilidade na criação de um curso de filosofia é a existência, no mercado, de mestres desta área, e até mesmo alguns doutores, disponíveis.

2. Há várias disciplinas filosóficas que já existem no curso de comunicação (epistemologia, semiótica, estética, ética, retórica, teoria política, pensamento contemporâneo, etc.) e que poderiam ser leccionadas em conjunto aos alunos dos dois cursos: filosofia e comunicação. Isto permitiria uma notável economia de docentes. Seria, pois, possível pôr um curso a funcionar com a contratação de um número bastante reduzido de docentes.

4. Um curso de filosofia viria reforçar equipas e projectos de investigação já existentes

A criação de um departamento ou secção de filosofia viria reforçar equipas e projectos de investigação já existentes no curso de ciências da comunicação, em

particular nas seguintes áreas: lógica, semiótica e teoria da linguagem; estética e filosofia da imagem; teoria política; epistemologia e filosofia da ciência. Um doutorando do curso de comunicação já está a elaborar uma tese de doutoramento na área da estética e outro na área da teoria política — duas disciplinas filosóficas.

5. A filosofia é elo de ligação entre as «duas culturas» (científica e humanística); ela permitiria ligar, na UBI, as ciências exactas e engenharias às letras

A filosofia é provavelmente a única disciplina que permite uma ligação de conteúdo entre as chamadas «duas culturas»: Ligação entre as ciências exactas, as ciências técnicas (engenharias) e as letras. Só a filosofia permite uma ligação entre estas áreas, frequentemente apenas ligadas por um laço exterior e puramente institucional (o facto de serem praticadas numa mesma instituição) através da reflexão e de conteúdos. Numa Universidade onde predominam as ciências exactas e as engenharias haveria grande vantagem em que se estabelecessem estas ligações — e isto para o maior proveito, justamente, das ciências exactas e das engenharias. A elevada, e sem dúvida necessária, especialização nas ciências exactas e engenharias é contrabalançada em muitas universidades estrangeiras (nomeadamente alemãs e anglo-saxónicas) por disciplinas filosóficas da área da epistemologia, filosofia das ciências e filosofia da técnica. Na Universidade Técnica de Berlim, por exemplo, que foi a primeira na Alemanha a conceder o título de «doutor engenheiro», há um departamento e um curso de filosofia, orientados para a filosofia da técnica. Os estudantes de engenharia frequentam cadeiras de epistemologia, filosofia da ciência e da técnica. No espírito dos fundadores da Universidade Técnica de Berlim (princípio do século XX) esta componente filosófica vem conciliar a prática, cada vez mais especializada e, portanto, fragmentária, das ciências exactas e das engenharias com o antigo ideal da universidade, que era a unidade e a universalidade do saber humano. Tendo em conta o peso das ciências exactas e das engenharias na UBI haveria a possibilidade de criar um importante centro de investigação na área da epistemologia e filosofia da ciência e da técnica. Por este motivo, talvez ainda mais do que numa universidade «clássica», a filosofia é necessária numa universidade

«técnica» como a UBI. Universidades como a Technische Universität Berlin ou a Universidade Técnica de Aachen (Aix-la-Chapelle), onde também se ensina filosofia, poderiam servir de exemplo.

6. A filosofia trará melhores alunos para a UBI: Na área das letras os cursos de filosofia são, a par com os de comunicação, os que estão a atrair os melhores alunos

A UBI tem todo o interesse em atrair alunos que vêm do ensino secundário com notas altas. Acontece que os cursos de filosofia, provavelmente por serem em pequeno número, estão a atrair, na área de letras, os melhores alunos. No curso de Évora, no primeiro ano em que funcionou, a nota mínima foi de 14,3. Nas Universidades de Coimbra, do Porto e na clássica de Lisboa foi da ordem dos 15 valores. Tendo em conta a situação actual da «procura» é de prever que um curso de filosofia a criar na UBI atraísse alunos com médias mínimas semelhantes, ou até talvez superiores, às que se verificam nos cursos de ciências da comunicação e de língua e cultura portuguesa. (Nas universidades do litoral as médias de entrada em filosofia são superiores às dos cursos de português e línguas estrangeiras). Um curso de filosofia teria a vantagem de não estar em competição com cursos da mesma disciplina dos politécnicos da região.

7. A atitude do ministério tem sido relativamente favorável à filosofia

Apesar de não ver com bons olhos a criação de novos cursos de ensino, o ministério permitiu, em 96, a criação de um novo curso de filosofia (em Évora), e aumentou o número de vagas nos cursos de filosofia existentes. A medida de um aumento geral de vagas foi apenas tomada, na área das letras, em relação à filosofia, com a justificação de que estes cursos não tinham apenas «saídas» no ensino, mas davam acesso a carreiras nas mais diversas áreas das indústrias e instituições culturais.

A semente estava lançada para a criação de um curso de Filosofia na ainda inexistente Faculdade de Artes e Letras.

No 1.º número do jornal online Urbi et Orbi, de 8 de Fevereiro de 2000, em que a notícia central era a tomada de posse como reitor em segundo mandato de Manuel dos Santos Silva, escrevia eu no editorial, intitulado «Três desafios do novo reitorado»:

O primeiro desafio são as novas faculdades: Artes e Letras e Ciências da Saúde. Não basta tê-las no papel dos Estatutos ou do decreto governamental, há que as lançar no terreno e as pôr a funcionar. Os primeiros passos foram já dados com a criação dos novos cursos de licenciatura em Design Multimédia, Design Têxtil e do Vestuário, Estudos de Português/Espanhol e de Português/Inglês, e em áreas da saúde, Análises Clínicas, Radioterapia, Radiologia, e Anatomia Patológica, que a UBI se propõe ministrar em Outubro próximo.

Efectivamente a Faculdade de Artes e Letras só viria a tornar-se uma realidade com a criação do Departamento de Comunicação e Artes em 2000, que além dos cursos de Licenciatura e de Mestrado em Ciências da Comunicação, passava também a incluir os cursos de Design Multimédia e de Design Têxtil e do Vestuário, este último em parceria com o Departamento de Engenharia Têxtil. A Faculdade iniciava-se, portanto, com dois departamentos. O de Comunicação e Artes e o Departamento de Letras, onde, além da Licenciatura em Língua e Cultura Portuguesas, se passava também a ministrar as licenciaturas em Estudos de Português/Espanhol e Português.

O curso de Filosofia abre em 2001. No Urbi et Orbi de 29 de Maio de 2001 é anunciada a abertura de cinco novos cursos na UBI, entre eles o de Filosofia e o de Medicina. Como director do jornal, dedico o editorial ao curso de Filosofia e é feita uma entrevista ao Santos enquanto presidente do Departamento de Comunicação e Artes. A sintonia de opinião e a conjugação de esforços trouxera-nos à ambicionada meta. Era o encontro de, por vias diferentes, chegarmos ao mesmo ponto.

Escrevi no editorial:

A UBI vai ter um curso de licenciatura em filosofia. Há quem pergunte com estranheza: de filosofia?! Para quê um curso de filosofia nos dias de hoje? A me-

lhor resposta é a que é dada pela natureza e pela história da universidade desde a sua criação na Idade Média. Mas como nem todos conhecem essa história, nem sabem o que é a verdadeira natureza de uma universidade, aqui deixo dois argumentos muito simples e de fácil compreensão a favor de uma licenciatura de filosofia.

Primeiro argumento. Existe uma diferença entre aquilo que é e aquilo que deve ser. Todas as ciências da natureza são ciências sobre a realidade tal como ela é. A física, a química, a biologia, a botânica, estudam o que existe. E mesmo as ciências sociais como a economia e a gestão estudam a realidade económica e empresarial tal como é. A realidade é como é e importa conhecê-la como é e não como supostamente deveria ser. Ora, o que distingue o homem do resto da natureza é que ele vive não só segundo as leis da realidade tal como é — e nisso ele é um objecto físico, químico, fisiológico e zoológico —, mas segue também leis que dizem o que deve ser. Uma pedra, uma planta, um animal, existem apenas segundo as leis do que é, e os homens vivem igualmente segundo essas leis; têm peso e densidade como uma pedra, nascem, crescem e reproduzem-se como uma planta ou um animal. Além disso, porém, os homens têm algo que é o dever ser. E aqui entramos no reino dos valores, da religião, da ética e da estética. Fazemos algo porque é bom, gostamos de algo porque é belo, e difícil seria conceber a vida humana sem a dimensão dos valores e do dever ser. Ora, é esta dimensão do dever ser humano que a filosofia estuda.

Segundo argumento. O que a matemática e a física puras estudam pouca ou nenhuma utilidade prática tem para a vida do dia-a-dia, ao contrário das ciências aplicadas ou das engenharias. Achamos, porém, que são necessárias, não só porque o conhecimento em si é desejável, mesmo que seja sobre o momento inicial do universo, como também pelas consequências que mais tarde as ciências aplicadas saberão retirar dos conhecimentos adquiridos por essas ciências. Com a filosofia passa-se o mesmo. O que a filosofia estuda, Deus, o homem e o mundo, é primeiro por mor do próprio conhecimento, conhecer por conhecer. Mas é desse conhecimento que outras ciências humanas, como o direito, a sociologia, a psicologia e a economia, retiram ensinamentos e os aplicam ao estudo e à melhoria do que é propriamente humano e não natural.

Sem as ciências puras uma universidade não passaria de uma escola profissional, por mais superior e excelente que esta fosse.

* * *

Na entrevista, José Manuel Santos não escondia a satisfação pela criação do curso de Filosofia e a enorme ambição de fazer dele um farol do pensamento no país e na universidade. Creio que aqui vale a pena transcrever na íntegra essa entrevista. Ela revela melhor do que qualquer apreciação que o curso de Filosofia na UBI teve José Manuel Santos como o principal impulsionador.

Curso de Filosofia inédito no País

Por Rita Lopes, NC/Urbi et Orbi

Filosofia é a nova Licenciatura do Departamento de Comunicação e Artes da UBI que vai começar a leccionar em Outubro próximo. Na base da criação deste curso está a formação de «filósofos do futuro» e a aposta na especialização em áreas não exploradas. Explorar áreas como a Ética, a Bioética e a Política são pontos fortes da sua estrutura curricular, inédita no País.

NC/Urbi et Orbi — Como surgiu a ideia de lançar um curso de Filosofia na UBI?

José Manuel Santos — A ideia surgiu no contexto da expansão da Unidade de Letras. Uma Faculdade de Letras tem de ter alguns cursos e algumas faculdades básicas, faz parte do cânone da Universidade, e essas são as Letras e as Ciências. As engenharias nasceram mais tarde. Assim, a ideia de Universidade tem na sua base as Ciências, as Letras, a Medicina e o Direito. Foram as primeiras faculdades que a constituíram, desde a Idade Média. Nós não temos Direito, vamos ter Medicina, já temos Ciências e havia no limite da Faculdade de Letras o curso de Português. A Filosofia é um curso básico que desempenha o mesmo papel da Matemática na Faculdade de Ciências. É o curso de base que nos faltava.

NC/U@O — Mas há mais alguma razão?

JMS — Há razões suplementares para fazer um curso de Filosofia. As universidades mais recentes e mais periféricas ainda não o têm, de modo que achámos que estava um pouco na situação da Medicina, só havia cursos no Litoral e nenhum no Interior nem no Algarve. Por outro lado, pensamos que é um curso estruturante para toda a Universidade e que contribui para a sua unidade, na medida em que tem relações com todos os outros cursos. Por exemplo, na Física há a cadeira «Filosofia da Ciência», na Comunicação a de Ética, no Design a de Estética.

NC/U@O — Para avançar em Outubro, o corpo docente já deve estar assegurado. Em que fase está o processo?

JMS — Felizmente já temos docentes para começar o primeiro ano. Há três professores doutorados em Filosofia na UBI, eu e os professores António Fidalgo e Rui Bertrand. E temos mais três ou quatro mestres, assistentes, também licenciados. Por isso, podemos começar à vontade o primeiro ano com os docentes que cá temos.

NC/U@O — Qual vai ser o plano de estudos do novo curso?

JMS — Tem as cadeiras de base que se exigem e que existem em todos os outros cursos de filosofia do país: as Histórias da Filosofia, antiga, medieval, moderna e contemporânea, como coluna vertebral do curso. Depois vêm as cadeiras base da Filosofia da Ciência e do Conhecimento e as cadeiras da filosofia prática: ética e filosofia política.

NC/U@O — Portanto, vai ser um curso igual aos que já existem?

JMS — Não, este curso tem certas especificidades que o vai distinguir de outras universidades e é isso que vai ser a novidade da licenciatura. Um dos pontos fortes vai ser a atenção dada à ética e a ligação com a bioética.

NC/U@O — Mas essa não é uma área da saúde?

JMS — Sim, mas aí é que está a novidade. O curso vai estar em constante ligação com outras áreas e, sobretudo, com a Medicina. É a primeira licenciatura com essa faceta. Apenas há um mestrado em Filosofia que tem uma cadeira

de bioética, em Portugal. Isto vai ser a filosofia prática, especial, onde a ética e bioética serão o forte.

NC/U@O — A que outras áreas vai estar ligada a Filosofia?

JMS — O curso de Comunicação vai ser outra relação forte, para abordar os seus problemas nas sociedades modernas. A estética, a imagem, a sociedade de massas, a teoria da comunicação. Vão existir muitas cadeiras em comum nos dois cursos e é isto que lhe dá uma certa originalidade.

NC/U@O — Pretende-se, então, que a vida real esteja implícita no curso?

JMS — Os cursos de filosofia clássicos estão um pouco isolados da realidade. Este vai-se abrir à vida contemporânea, à comunicação e à biologia. Por isso, isto é um desafio não só para os médicos e biólogos, como também para os filósofos interessados nessas áreas.

NC/U@O — Isso significa que vai ser uma licenciatura interdisciplinar?

JMS — Sim, vai ser um curso muito interdisciplinar. Os alunos vão poder, sobretudo a partir do segundo ano, escolher cadeiras opcionais de outros cursos. Por exemplo, um aluno que se interesse por ciência pode fazer cadeiras na física e depois reflectir filosoficamente sobre elas. O mesmo acontece na comunicação, design, e outras. Também vamos ter docentes de outros departamentos a darem aulas aos filósofos. A cadeira «Filosofia da Ciência», por exemplo, vai ser dada por um astrofísico, que dá essa cadeira na Física.

NC/U@O — Ou seja, vai ser um curso pouco teórico ao contrário do que se pensa.

JMS — Claro. A Filosofia é uma reflexão sobre as diversas formas de vida, aquilo que faz o artista, o cientista. Se, por um lado, têm de produzir um aparelho muito abstracto de conceitos, por outro, têm de ter muita atenção àquilo que se passa à sua volta. Na cadeira de bioética, por exemplo, os alunos têm de tomar consciência de problemas que se põem na medicina, nas manipulações genéticas e para isso têm de observar. Aí está o aspecto prático, têm de pensar o que se deve e pode fazer em colaboração com os médicos e biólogos. A Filosofia é uma área muito interdisciplinar e há vocações muito diferentes. Há filósofos

que se dedicam à arte, à ciência, à ética. Consoante a sua vocação, o aluno pode jogar com as disciplinas opcionais e dedicar-se mais a essa área. A vantagem desta Universidade é que permite ter esse leque de opções e esta tem departamentos e investigação suficiente para os alunos poderem trabalhar.

Saídas alternativas são o futuro

NC/U@O — Quais as saídas profissionais do curso?

JMS — Há várias saídas, as clássicas (ensino e investigação) e as modernas. É óbvio que nem todos podem ir para as clássicas, até porque o ensino não está fácil, mas felizmente, não há uma proliferação excessiva de cursos, ao contrário do que acontece com outras áreas. Mas houve grandes filósofos na história que não foram professores. A nossa ambição na criação deste curso é tirar a filosofia do gueto do ensino. Filosofia é um curso em que as pessoas adquirem muitas capacidades que podem ser exercidas em muitas áreas. É um curso que dá capacidades de pensamento abstracto e de interpretação que pode ser útil em áreas como a política. Em Portugal há muitos políticos brilhantes e dirigentes de empresas que são licenciados em filosofia.

NC/U@O — É, portanto, um curso multifacetado?

JMS — É um curso que dá capacidades para a pessoa ir em várias direcções e assumir capacidade para funções com relações humanas, gestão de pessoal, política, edição. Talvez falte, apenas, uma espécie de ponte entre o curso e a profissão. A nossa ideia é oferecer aos alunos essa ponte. Quando os finalistas terminarem, fazem uma pós-graduação que os prepare para cada vocação.

NC/U@O — Já há pouco referiu a vocação. Acha que é a porta de entrada neste curso?

JMS — A Filosofia requer muita dedicação e vocação. O aluno tem de se dedicar, concentrar-se no curso e depois adquirir uma formação mais profissionalizante, sobretudo os que não querem ir para o ensino. É um curso de que se gosta ou não se gosta, é preciso ter uma paixão e os que vão, arriscam pela vocação e depois enveredam por outros caminhos.

NC/U@O — A ligação com a Medicina e outras áreas pode levar os alunos a dedicarem-se a essas saídas alternativas?

JMS — Acho que sim e deve ser uma saída para o filósofo do futuro. Essa é também uma das nossas ideias. Há cada vez mais instituições hospitalares na América, Bélgica, e outros, em que, quando surgem situações delicadas de vida ou morte, existe uma comissão de ética constituída por médicos, biólogos, sacerdotes e filósofos. Talvez isso não dê emprego a milhares de pessoas, mas é uma profissão que, a meu ver, vai ter futuro. As questões de manipulação da vida são cada vez mais complexas e o filósofo em colaboração com o médico e o biólogo é a pessoa indicada para reflectir sobre essas questões.

NC/U@O — São essas áreas que vão fazer da Filosofia da UBI um curso inédito?

JMS — Os outros cursos talvez abordem estes problemas no âmbito das cadeiras, na medida em que é um problema actual. Mas, ter cadeiras específicas disso, vamos ser os pioneiros, nomeadamente na bioética, cujos alunos vão colaborar com os alunos de medicina, que também devem ter cadeiras dessa natureza.

Curso registado no Ministério

NC/U@O — Já têm todas as garantias do Ministério da Educação de que o curso vai mesmo arrancar este ano lectivo?

JMS — O curso encontra-se registado no Ministério da Educação nacional e penso que isto é a garantia. A partir do momento que o Ministério aceitou o dossier e registou o curso, estão dadas as garantias.

NC/U@O — Quantas vagas vão abrir no primeiro ano?

JMS — Ainda não se sabe, mas provavelmente à volta de 30. Contudo, é o Ministério que decide e tem a última palavra.

NC/U@O — Em que departamento vai ficar integrado?

JMS — No de Comunicação e Artes, mas é provável que, mais tarde, venha a existir um departamento de filosofia, quando houver um corpo docente mais completo e quando o curso funcionar há mais anos.

NC/U@O — Há mais cursos ligados à Filosofia que venham a integrar o novo departamento?

JMS — Sim, há cursos que estão muito próximos da Filosofia e que, na minha opinião, seriam interessantes para esta Universidade, como o de Ciências Políticas. O pensamento e a filosofia políticos são áreas que também vão ficar bem marcadas neste curso, mas apenas como cadeiras.

NC/U@O — Como director e docente desta licenciatura inédita, o que vai transmitir aos alunos?

JMS — Vou-lhes tentar dizer que um filósofo é sempre um provocador. É sempre uma pessoa que coloca questões incómodas. O pai fundador da filosofia, Sócrates, provocava toda a gente, ia pelas ruas de Atenas e punha questões muito incómodas e desagradáveis. Se as pessoas fazem sempre as mesmas coisas, a mesma rotina e nunca pensam no que estão a fazer neste mundo, acho que a vida não vale a pena ser vivida. De modo que é preciso provocar sempre e quebrar a rotina. É esta a mensagem socrática que vou transmitir.

O contributo dado por José Manuel Santos à UBI não ficou por aqui. Refiro apenas alguns pontos muito relevantes. A criação da Unidade de Investigação Instituto de Filosofia Prática, a criação dos cursos de Mestrado e de Doutoramento em Filosofia. Cabe-lhe também o mérito de ter sido Santos um dos principais impulsionadores da AFFEN — Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica. Mas tratava-se aqui de dar o meu testemunho sobre o empenho e a acção crucial de Santos na criação do curso de Filosofia na UBI.

Textos © OS AUTORES, 2024

© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA)

RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA

1.ª EDIÇÃO: OUTUBRO DE 2024

ISBN 978-989-568-170-9

© PRAXIS | UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR RUA MARQUÊS DE ÁVILA E BOLAMA, 6201-001 COVILHÃ

ISBN 978-………………………

DOI: ……………………………

NA CAPA: FOTOGRAFIA DE JOSÉ MANUEL SANTOS, POR GISELA GONÇALVES (MARÇO DE 2023)

REVISÃO: LUÍS GUERRA

DEPÓSITO LEGAL: 536442/24

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ACDPRINT SA

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