Extinção - Uma Derrocada / Thomas Bernhard

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EXTINÇÃO

Thomas Bernhard no Hotel Tivoli, Sintra, 1987. Fotografia de Peter Fabjan.

Thomas Bernhard EXTINÇÃO

uma derrocada

tradução e prefácio

José A. Palma Caetano

Título do original: Holzfällen. Eine Erregung

© Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1984

All rights reserved by and controlled through Suhrkamp Verlag Berlin

© Sistema Solar Crl | chancela Documenta

Rua Passos Manuel 67 B, 1150-258 Lisboa

Tradução © Herdeiros de José A. Palma Caetano

ISBN 978-989-568-002-3

1.ª edição, Outubro de 2024

Capa: xilogravura de Ilda David’, 2024

Revisão: Helena Roldão

Depósito legal: 539183/24

Impressão e acabamento: Europress

josé a. palma caetano

Extinção, o mais longo romance de Thomas Bernhard e o último a ser publicado, não terá sido, de acordo com alguns dados hoje conhecidos, o último a ser escrito. Possivelmente esta obra narrativa, vinda a público em 1986, foi concebida e redigida, pelo menos em grande parte, ainda no princípio dos anos oitenta, antes, portanto, da publicação de O Náufrago (1983), Holzfällen (1984) e Antigos Mestres (1985). A confirmar-se esta suposição, seria Antigos Mestres o último romance escrito por Bernhard, mas o facto de ter sido «reservado» a Extinção o último lugar na cronologia das suas publicações não deixa de ter uma certa lógica, pois esta obra constitui uma espécie de cúpula e, ao mesmo tempo, de resumo das ideias e da estética literária do escritor austríaco.

Toda a temática de Extinção gira em torno de um local, Wolfsegg, centro de uma grande propriedade agrícola, com uma forma ainda a lembrar as estruturas do feudalismo. Bernhard tomou como modelo para a sua narrativa o verdadeiro Wolfsegg — a «fortaleza» no cimo do monte e a povoação «lá em baixo» —, que se situa na região da Alta Áustria e o escritor conhecia muito bem, pois tinha uma casa em Ottnang, uma povoação vizinha desse local que ele transpôs para a ficção. O «complexo de Wolfsegg», com o palácio ou edifício principal e todas as suas dependências, é descrito por Bernhard com grande precisão, mas, em diversos aspectos, com o exagero que lhe é peculiar e que ele nesta obra particularmente menciona e acentua, classificando-se a si próprio de «artista do exagero». A propósito de Wolfsegg, disse

Hans Höller, numa conferência proferida nesse mesmo palácio em 2 de Junho de 1999, o seguinte: «Em toda a obra de Thomas Bernhard, Wolfsegg constitui o cenário mais rico em alusões tanto biográficas como históricas e precisamente este romance, historicamente de todos o mais multifacetado, é também, entre todas as suas obras, aquela que, no domínio visual, apresenta uma maior riqueza de perspectivas e de aspectos.» (Hans Höller: Das schönste Gebäude weit und breit im ganzen Land. Bernhards Wolfsegg. Linz, 2001, p. 33) No glossário que acrescentámos no final deste livro forneceremos algumas indicações sobre o palácio e as suas dependências, particularmente no que se refere à tradução das suas designações para português.

Mas não foi só o local da acção — se de acção se pode falar nas narrativas de Bernhard — que o autor tirou da realidade. Algumas personagens sugerem também as figuras reais que lhe serviram de modelo e que vamos aqui referir de forma muito sumária. Uma delas é Maria, «a minha grande poetisa», como diz o narrador, na qual não é difícil reconhecer a notável escritora austríaca Ingeborg Bachmann. As figuras de Spadolini e Zacchi foram inspiradas pela mesma pessoa, nomeadamente o arcebispo e núncio papal Cesare Zacchi, que Bernhard conheceu em Roma. Eisenberg, o rabino de Viena e amigo do narrador, tira o seu nome do verdadeiro rabino da Comunidade Israelita de Viena, Bela Akiba Eisenberg, ou do filho, Paul Chaim Eisenberg, que sucedeu ao pai nesse lugar em 1983. Mas, segundo informou o segundo, nem ele nem o pai tiveram qualquer relacionamento com Thomas Bernhard e, para além do nome, não há nas suas biografias nada que coincida com o que no romance se descreve. O casal Schermaier, por seu turno, identifica-se com pessoas que não só existiram na realidade, mas cuja história corresponde, pelo menos em parte, ao que se conta na obra, tendo Bernhard aproveitado essa história para lhe dar, ainda de forma mais acentuada, a configuração trágica em que consistiu a perseguição nazi. Também Alexandre, o primo

do narrador, a quem este chama o visionário, terá tido como modelo, mesmo em determinados traços biográficos, uma figura real, Alexandre Üxküll, que Bernhard conheceu em Salzburgo e com o qual estabeleceu amizade, tomando-o como uma espécie de «mentor filosófico». E o nome do próprio narrador, Franz-Josef Murau, contém alusões importantes, sendo de salientar especialmente, no apelido Murau, a «contaminação linguística» de Maria e Saurau, o príncipe do romance Verstörung (traduzido para português com o título de Perturbação), enquanto Franz-Josef aponta para figuras notáveis relacionadas ou com Wolfsegg ou com a região, em especial um conhecido ou amigo de Bernhard, Franz Josef Altenburg, que era neto do imperador Francisco José e tinha duas filhas chamadas Cecília e Amália (cf. Hans Höller: «Menschen, Geschichte(n), Orte und Landschaften», in Antiautobiografie. Zu Thomas Bernhards «Auslöschung», hrsg. von Hans Höller und Irene Heidelberger-Leonard. Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1995). Ficção e realidade, literatura e biografia combinam-se, entrelaçam-se assim duma forma que, aliás, é típica em toda a obra de Bernhard, mas neste romance se diluem ainda mais uma na outra, tornando real o que é fictício e fazendo da realidade pura ficção, num acto criativo que obedece fundamentalmente a dois factores principais, como disse o próprio Thomas Bernhard numa entrevista com o crítico francês Jean-Louis Rambures: «o prazer do jogo» e «uma questão de ritmo», que «tem muito a ver com música». Mais do que o assunto em si, que considera «absolutamente secundário», é sobretudo o «elemento musical» que lhe dá «grande satisfação», acrescido ainda do «pensamento que se pretende exprimir». E, acrescentaríamos nós, o resultado é, por assim dizer, uma «partitura linguística» com profundas sugestões no domínio das ideias, da filosofia, da imaginação, do sentir humano.

Em Extinção, essa estrutura musical revela-se ainda mais apurada, com ritmos mais fluentes, mais límpidos, mais insinuantes, conju-

gando-se da melhor maneira com todas as outras formas estilísticas que caracterizam o estilo de Bernhard e que documentam a sua criatividade e esse seu «prazer do jogo». Isto faz com que, para além das dificuldades inerentes a qualquer tradução literária, a linguagem de Thomas Bernhard ponha ainda ao tradutor um maior desafio, já que nem sempre é possível transpor facilmente e com a aproximação desejada a musicalidade e os numerosos artifícios usados pelo autor na sua língua, não só a imagética e a estrutura sintáctica, mas também toda a espécie de redundâncias, tautologias, jogos de palavras, jogos de conceitos, especificidades de significado de muitas palavras, criação de novos termos, etc., o que de certo modo justifica o facto de Bernhard se ter manifestado contra a tradução dos seus livros, declarando, numa entrevista com o jornalista Kurt Hofmann, que «uma tradução é um outro livro» e que «uma peça de música é tocada como as notas lá estão em toda a parte do mundo. Mas um livro teria de ser em toda a parte, no meu caso, tocado em alemão. Com uma orquestra.» Assim, porém, a «audição» da sua obra, para ser devidamente compreendida e apreciada, ficaria necessariamente limitada ao público de língua alemã, o que seria profundamente de lamentar. Para a dar a conhecer ao público de todo o mundo é preciso traduzi-la. Foi o que fizemos, criando uma «partitura» que se aproximasse tanto quanto possível da que ele criou, uma «partitura» com outras «notas», mas com uma estrutura tão idêntica quanto possível. Procurámos, pois, deixar no português as formas repetitivas que são tão características da linguagem de Bernhard, os longos períodos em que as ideias se sucedem, se repetem, se enredam, girando muitas vezes como que em espiral, as redundâncias, as tautologias, nem sempre fáceis de reproduzir, mesmo as mudanças de perspectiva do narrador, tudo o que, enfim, é fascinante nessa linguagem, mas tentando, ao mesmo tempo, produzir um texto que não desmerecesse inteiramente ou não perdesse por completo esse fascínio do original. Há, porém, alguns jogos de palavras ou

palavras que, em virtude das diferenças culturais, não têm qualquer correspondência no português, bem como certas questões específicas da linguagem do autor impossíveis de reproduzir inteiramente na língua-alvo e requerendo, portanto, soluções especiais para a sua tradução, pelo que decidimos, para proporcionar ao leitor uma melhor compreensão de certas passagens mais difíceis, elucidar pelo menos alguns desses casos num pequeno glossário que acrescentámos no final do livro. São, portanto, questões de linguagem, relacionadas com as diferenças das duas línguas e das culturas que veiculam, que nesse glossário procurámos esclarecer, tendo sido muito poucos os topónimos que nele também incluímos, considerando que mesmo alguns locais menos conhecidos não dificultam de modo algum a compreensão do texto. As dificuldades que na leitura possam surgir são por certo de outra natureza, mas o nosso desejo seria que o leitor sentisse, mesmo com essas possíveis dificuldades, o mesmo fascínio e o mesmo prazer que a nós próprios nos deu a leitura do original. Um desiderato com certeza demasiado ambicioso, quase uma «pouca-vergonha», para usar uma expressão tão frequente em Thomas Bernhard, mas que não pode deixar de constituir o ideal de qualquer tradutor.

Ingeborg Bachmann
Cesare Zacchi
Thomas Bernhard e Alexandre Üxküll, em Ottnang
O casal Schermaier
O edifício principal de Wolfsegg

EXTINÇÃO uma derrocada

Sinto como a morte me tem permanentemente nas suas garras. Como quer que eu me comporte, ela aí está por toda a parte.

montaigne

O telegrama

Depois da conversa com o meu aluno Gambetti, com o qual me encontrei no dia vinte e nove no Pincio, escreve Franz-Josef Murau, a fim de combinarmos as datas para as lições em Maio, e de, surpreendido pelo seu elevado grau de inteligência, mesmo agora após o meu regresso de Wolfsegg, ter ficado de tal modo entusiasmado e com uma sensação tão reconfortante que, contra o meu hábito de seguir logo pela Via Condotti para a Piazza Minerva, e levado também pela ideia, que aumentava a minha boa disposição, de há muito tempo me sentir de facto em Roma muito mais no meu ambiente do que na Áustria, me dirigi para casa pela Flaminia e a Piazza del Popolo, percorrendo todo o Corso, recebi cerca das duas horas da tarde o telegrama em que me era comunicada a morte dos meus pais e do meu irmão Johannes. Os pais e Johannes mortos num acidente. Cecília, Amália. Com o telegrama nas mãos, cheguei-me à janela do meu gabinete de trabalho, calmamente e com toda a lucidez, e olhei para a Piazza Minerva, onde não se via vivalma. Tinha dado a Gambetti cinco livros, convencido de que lhe seriam úteis e necessários para as semanas seguintes e incumbindo-o de estudar esses cinco livros com a maior atenção e com o vagar indispensável no seu caso: Siebenkäs, de Jean Paul, O Processo, de Franz Kafka, Amras, de Thomas Bernhard, A Portuguesa, de Musil, Esch ou A Anarquia, de Broch, e pensava agora, depois de ter aberto a janela para poder respirar melhor, que fora acertada a minha decisão de dar a Gambetti precisamente estes cinco livros e não outros, porque seriam para ele,

no decorrer das nossas lições, cada vez mais importantes, de tal modo que, na nossa conversa, aludi ao de leve à minha intenção de, na próxima vez, tratar com ele das Afinidades Electivas e não de O Mundo como Vontade e Representação. Falar com Gambetti tinha voltado a ser para mim nesse dia um grande prazer, depois das conversas penosas e arrastadas com a família em Wolfsegg, conversas limitadas às necessidades quotidianas, inteiramente privadas e primitivas. As palavras alemãs pendem da língua alemã como pesos de chumbo, disse eu a Gambetti, e fazem o espírito baixar, em qualquer caso, para um nível pernicioso a esse mesmo espírito. O pensar alemão, tal como o falar alemão paralisam rapidamente sob o fardo desumano da sua língua, que reprime tudo o que é pensado ainda antes de chegar a ser expresso; com a língua alemã, o pensamento alemão só dificilmente se conseguiu desenvolver e nunca atingiu a sua plena floração, ao contrário do pensamento românico com as línguas românicas, como prova a história dos esforços seculares dos Alemães. Embora eu tenha em mais apreço o espanhol, provavelmente porque me é mais familiar, Gambetti deu-me nessa manhã mais uma preciosa lição sobre a fluidez, a leveza e a infinidade do italiano, que está para o alemão como uma criança duma família feliz e abastada, que cresceu inteiramente livre, para uma que foi oprimida, espancada e se tornou, por isso, aleivosa, nascida de gente pobre ou paupérrima. Muito mais apreciadas devem ser, portanto, disse eu a Gambetti, as obras que os nossos filósofos e escritores conseguiram realizar. Cada palavra, disse eu, puxa forçosamente o seu pensamento para baixo, cada frase, seja o que for que eles se tenham atrevido a pensar, pende para o chão e assim faz cair sempre tudo no chão. Por isso, é também a sua filosofia e é também o que eles escrevem como se fossem de chumbo. De súbito, disse a Gambetti uma proposição de Schopenhauer, do Mundo como Vontade e Representação, primeiro em

alemão e depois em italiano, tentando provar-lhe, a ele, Gambetti, como a balança se inclinava pesadamente para o lado do prato alemão simulado com a minha mão esquerda, enquanto por assim dizer o prato italiano com a minha mão direita subia rapidamente. Para meu gáudio e de Gambetti, disse várias proposições de Schopenhauer primeiro em alemão, depois na minha própria tradução italiana e coloquei-as por assim dizer de forma bem visível para todo o mundo, mas sobretudo para Gambetti, na balança das minhas mãos e a pouco e pouco criei a partir daí um jogo, que levei até ao exagero e que acabou por fim com proposições de Hegel e com um aforismo de Kant. Infelizmente, disse eu a Gambetti, nem sempre as palavras pesadas são as mais ponderosas, tal como nem sempre as proposições pesadas são as mais ponderosas. O meu jogo depressa me deixou exausto. Parados diante do Hotel Hassler, fiz a Gambetti um pequeno relato da minha viagem a Wolfsegg, que no fim a mim mesmo me pareceu minucioso de mais e até, francamente, com demasiada bisbilhotice. Tentei estabelecer uma comparação entre as nossas duas famílias, opondo o elemento alemão da minha ao italiano da sua, mas ao fim e ao cabo só o que fiz foi pôr a minha em confronto com a dele, o que necessariamente distorceu o meu relato e perturbou Gambetti de uma forma desagradável, em vez de o elucidar com um intuito pedagógico. Gambetti é um bom ouvinte e tem um ouvido bem apurado e adestrado por mim para o conteúdo de verdade e para a coerência de um discurso. Gambetti é meu aluno, mas, ao invés, sou eu próprio aluno de Gambetti. Eu aprendo com Gambetti tanto, pelo menos, como Gambetti comigo. A nossa relação é ideal, porque uma vez sou eu professor de Gambetti e ele é meu aluno, depois é Gambetti que é meu professor e eu seu aluno, e até acontece muitas vezes que nenhum de nós sabe se Gambetti é então o aluno e eu o professor ou vice-versa. É nesse caso que se

verifica o nosso estado ideal. Oficialmente, porém, sou eu sempre o professor de Gambetti e sou pago por Gambetti ou, mais precisamente, pelo pai de Gambetti, pessoa abastada, para exercer essa actividade pedagógica. Dois dias depois de ter regressado do casamento da minha irmã Cecília com o fabricante de rolhas para garrafas de vinho natural de Friburgo, seu marido, agora meu cunhado, tenho de voltar a fazer a mala que só no dia anterior tinha desfeito e que ainda nem sequer guardara, tendo-a deixado em cima da cadeira ao lado da minha secretária, para voltar a Wolfsegg, que nos últimos anos se me tornara, com efeito, mais ou menos repugnante, pensei eu, enquanto continuava a olhar pela janela aberta para a Piazza Minerva, onde não havia vivalma, e o motivo não é agora ridículo e grotesco, mas sim horroroso. Em vez de conversar com Gambetti sobre o Siebenkäs e sobre

A Portuguesa, vou ter de me entregar às minhas irmãs, que me esperam em Wolfsegg, disse eu para comigo, em vez de falar com Gambetti sobre as Afinidades Electivas, terei de falar com as minhas irmãs sobre o funeral dos nossos pais e do nosso irmão e sobre a sua herança. Em vez de andar com Gambetti, no Pincio, para cá e para lá, tenho de ir à Câmara Municipal e ao cemitério e à casa paroquial e discutir com as minhas irmãs sobre as formalidades do enterro. Enquanto ia metendo de novo na mala as peças de roupa que só na véspera dela tinha retirado, procurei ver com clareza as consequências que iriam trazer a morte dos meus pais e a morte do meu irmão, sem chegar a qualquer resultado. Mas tinha naturalmente consciência do que de mim exigia agora a morte destas três pessoas que, pelo menos no papel, eram para mim as mais próximas: toda a minha energia, toda a minha força de vontade. A calma com que fui enchendo a mala de tudo o que me era necessário para a viagem, ao mesmo tempo que deitava contas ao meu futuro próximo, abalado por esta inquestionavel-

mente horrível desgraça, só já muito depois de ter fechado a mala me pareceu inquietante. A questão de saber se amava os meus pais e o meu irmão, imediatamente repelida com a palavra naturalmente, ficou não só no fundo, mas também efectivamente sem resposta. Havia já muito tempo que eu não tinha com os meus pais nem com o meu irmão o que se chama um bom relacionamento, mas apenas uma relação tensa e, nos últimos anos, só já indiferente. Eu já havia muito que não queria saber de Wolfsegg, nem deles, portanto, e inversamente eles não queriam saber de mim, esta é que é a verdade. Em face desta consciência, as nossas relações recíprocas só já assentavam numa base mais ou menos necessária à existência. Os teus pais, pensava eu, baniram-te há vinte anos não só de Wolfsegg, a que te queriam acorrentar para toda a vida, mas também, simultaneamente, dos seus sentimentos. O meu irmão invejou-me constantemente, nesses vinte anos, o facto de eu ter partido, a minha independência megalómana, como ele uma vez me disse, a liberdade sem atenção por ninguém, e odiava-me. As minhas irmãs tinham ido, na desconfiança com que sempre me haviam olhado, muito mais longe do que aquilo que era permitido entre irmãos, perseguindo-me também com ódio a partir do momento em que voltei as costas a Wolfsegg e, portanto, também a elas. Esta é que é a verdade. Levantei a mala, que estava, como sempre, demasiado pesada, pensei que no fundo era absolutamente desnecessária, pois tenho tudo em Wolfsegg. Para que é que vou carregado com a mala? Decidi viajar para Wolfsegg sem mala, tirei tudo o que já nela tinha metido e arrumei-o em seguida no armário. Nós amamos naturalmente os nossos pais e naturalmente também os nossos irmãos, pensei eu, de novo em pé junto da janela e olhando para baixo, para a Piazza Minerva, que continuava deserta, e não notamos que, a partir de um determinado momento, os odiamos, contra a nossa vontade, mas também

da mesma forma natural como antes os tínhamos amado por todas essas razões que só anos, muitas vezes mesmo décadas, mais tarde se tornaram conscientes. O momento exacto em que deixámos de amar os pais e os irmãos, para passarmos a odiá-los, já não é possível de determinar e também já não nos esforçamos por descobrir esse momento exacto, porque, no fundo, dele temos medo. Quem abandona os seus contra a vontade deles e ainda por cima da maneira mais inexorável, como eu fiz, tem de contar com o seu ódio e, quanto maior tiver sido primeiro o seu amor por nós, tanto maior é o seu ódio quando pomos em prática o que jurámos. Sofri durante décadas com o seu ódio, disse eu agora para comigo, mas há anos que ele já não me faz sofrer, habituei-me ao seu ódio e ele já não me molesta. E o ódio que eles me tinham provocou necessariamente o ódio que eu lhes passei a ter. Mas também eles deixaram, nos últimos anos, de sofrer com o meu ódio. Eles desprezavam o seu romano, do mesmo modo que eu os desprezava como os «Wolfsegger», e no fundo eles já nem sequer pensavam em mim, tal como eu, na maior parte do tempo, também já nem sequer pensava neles. Eles sempre me tinham chamado um charlatão e um fala-barato, um parasita que os explorava e a todo o mundo. Eu, para eles, só tinha à disposição a palavra idiotas. A sua morte, só pode ter sido um acidente de automóvel, disse eu para comigo, em nada altera esta circunstância. Eu não tinha a recear qualquer sentimentalidade. Nem sequer as mãos me tremiam ao ler o telegrama e o meu corpo nem um momento estremeceu. Vou participar a Gambetti que os meus pais e o meu irmão morreram e que tenho de suspender as lições por alguns dias, pensei eu, só alguns dias, pois não vou ficar mais que alguns dias em Wolfsegg; uma semana será suficiente, mesmo no caso de formalidades imprevistas que tragam complicações. Por um momento ainda pensei em levar Gambetti, porque tinha medo da supremacia

dos «Wolfsegger» e queria ter a meu lado pelo menos uma pessoa com a qual eu ficasse em condições de me defender do ataque de Wolfsegg, uma pessoa comigo condizente e um aliado numa situação desesperada, possivelmente sem saída, mas desisti logo dessa ideia, porque não queria expor Gambetti ao confronto com Wolfsegg. Ele veria então que tudo o que eu lhe tenho dito nos últimos anos sobre Wolfsegg é inócuo em face da verdade e da realidade que ele teria ocasião de ver, pensei eu. Ora pensava em levar Gambetti, ora em não o levar. E acabei por decidir não o levar. Com Gambetti vou fazer em Wolfsegg demasiada sensação e no fim de contas isso vai provavelmente ser para mim repugnante, pensei eu. De modo nenhum compreendem em Wolfsegg uma pessoa como Gambetti. Mesmo os estranhos completamente inofensivos são recebidos em Wolfsegg com repulsa e ódio, tudo o que é estranho foi sempre rejeitado por essa gente, que nunca se permitiu estabelecer, de um momento para o outro, como é meu hábito, qualquer tipo de relação com algo que seja estranho ou com um estranho. Levar Gambetti a Wolfsegg significaria proceder conscientemente para com Gambetti de um modo chocante e desagradável e, em última análise, magoá-lo profundamente. Eu próprio dificilmente me sinto em condições de lidar de alguma forma com Wolfsegg, quanto mais uma pessoa e um carácter como Gambetti. O confronto de Gambetti com Wolfsegg poderia efectivamente conduzir a uma catástrofe, pensei eu, cuja principal vítima não seria senão Gambetti. Eu já podia ter levado antes Gambetti a Wolfsegg, pensei eu, mas sempre me abstive de o fazer por assim me parecer melhor, embora muitas vezes dissesse a mim mesmo que ir uma vez com Gambetti a Wolfsegg poderia ser útil não só para mim, mas também para o próprio Gambetti. Os meus relatos sobre Wolfsegg adquiririam assim, através da observação pessoal de Gambetti, uma autenticidade que de outro modo não seria possí-

vel alcançar. Há quinze anos que conheço Gambetti e nem uma única vez o levei comigo a Wolfsegg, pensei eu. Possivelmente Gambetti pensa sobre isto de maneira diferente, disse eu agora a mim próprio, pelo facto de não parecer normal, e naturalmente não é, que eu não tenha convidado uma pessoa com a qual mantenho há quinze anos uma convivência mais ou menos íntima a ir comigo sequer uma única vez nesses quinze anos à localidade de onde sou natural. Porque é que eu não dei a Gambetti, nestes longos quinze anos, a oportunidade de conhecer os segredos da minha terra natal? pensei eu. Porque sempre tive medo de o fazer e disso continuo a ter medo. Porque me quero proteger do conhecimento que ele pudesse vir a ter de Wolfsegg e, portanto, do seu conhecimento das minhas origens, porque eu próprio o quero proteger de um tal conhecimento, que possivelmente só iria exercer sobre ele uma acção devastadora. Durante estes quinze anos do nosso relacionamento nunca quis expor Gambetti a Wolfsegg. Embora geralmente o mais agradável tivesse sido para mim não ir sozinho a Wolfsegg, mas na companhia de Gambetti, passando com Gambetti os dias da minha permanência em Wolfsegg, sempre me recusei a levar Gambetti. Naturalmente Gambetti teria ido comigo a Wolfsegg a qualquer momento que eu lhe dissesse. Ele estava sempre à espera do meu convite. Mas eu não o convidei. Um funeral é não só uma ocasião triste, mas também profundamente repugnante, disse eu agora para comigo, e precisamente nesta ocasião não vou convidar Gambetti a ir comigo a Wolfsegg. Vou participar-lhe que os meus pais morreram, sem ter confirmação, direi eu, de que pereceram com o meu irmão num acidente de automóvel, mas não direi uma palavra no sentido de ele ir comigo. Ainda há duas semanas, antes de partir para Wolfsegg, a fim de assistir ao casamento da minha irmã, falei a Gambetti com a maior rudeza sobre os meus pais e considerei o meu irmão uma

de todos. Talvez eu seja esse mais indecente, pensei eu. Mas não senti qualquer vergonha, até chegarmos diante da sepultura aberta. A Gambetti disse eu uma vez que, quando estamos diante de uma sepultura aberta, o que há em nós é só aleivosia. Apercebi-me da perversidade da cerimónia quando o arcebispo de Salzburgo se aproximou da sepultura, para proferir um elogio fúnebre, no qual, logo no princípio, falou do grande e corajoso combatente no campo da honra, que não era outro senão o meu pai, segundo entendia o arcebispo de Salzburgo. Só se falou do meu pai, a minha mãe nem sequer foi mencionada, Johannes também não, mas não deliberadamente, apenas por esquecimento, por arrogância, por egoísmo masculino e presunção masculina, como eu pensei. Foram proferidas doze alocuções junto da sepultura aberta por aqueles homens que se arvoraram, todos eles, nos melhores amigos do meu pai, que, porém, naturalmente nunca o foram, o arcebispo de Salzburgo e os bispos de Sankt Pölten e Linz afirmaram-no, os dois antigos chefes de distrito afirmaram-no, dois oficiais da SS afirmaram-no, o presidente do Kameradschaftsbund também e também o presidente da Sociedade dos Caçadores. Uma hora inteira foi o nosso pai apontado sempre como o melhor amigo por aqueles que nunca se deviam ter permitido uma tal arrogância e que não tiveram, como é habitual nos funerais, qualquer contestação. As urnas já estavam havia muito na sepultura. Por fim Spadolini avançou e eu julguei que ele ia dizer qualquer coisa, mas isso teria sido inteiramente contra o verdadeiro Spadolini que nele havia, ele recuou imediatamente e voltou à completa discrição, como ele queria fazer crer, o que, porém, como ele tinha sido o centro absoluto desta cerimónia, era hipócrita; ele colocou-se, sem se ter permitido uma única trivialidade sequer, entre os que se comprimiam junto da sepultura. Eu estivera quase a subestimar Spadolini, pensei eu. O discurso do presidente do Kameradschaftsbund foi abjecto, mesmo infame,

o presidente disse nomeadamente do meu pai que ele verdadeiramente tinha vivido só para os objectivos do Kameradschaftsbund. Primeiro achei esse discurso do presidente abjecto e infame, mas alguns minutos depois já não, pois tive de dizer a mim próprio que o presidente tinha, até um certo grau, dito a verdade. O presidente da Sociedade dos Caçadores também disse a verdade, fui eu forçado a dizer a mim próprio, também disseram a verdade os dois antigos chefes de distrito, o meu pai, o camarada do partido, era um deles, para todos os que aqui falaram ele era um deles. Disse repetidamente a mim próprio que era desagradável não terem dito nem uma palavra sobre a minha mãe, por negligência. A Cecília disse eu ainda junto da sepultura que ninguém cuidara sequer de dizer uma palavra sobre a nossa mãe. Falou o mundo dos homens, pensei eu, e a esse mundo dos homens não merecera a minha mãe nenhuma atenção. E Johannes era uma pessoa que em tudo isso não tinha a mínima importância e que, pela sua morte prematura, se tornara ele próprio uma pessoa sem qualquer importância e também sem interesse. Para além de terem levado a sua urna e de a terem feito baixar à sepultura, não houve absolutamente mais nada em que dele se ocupassem. O meu pai era a grande personalidade, de que era preciso tirar proveito junto da sepultura e que todos aproveitaram tanto quanto puderam. O meu pai era mais uma vez aquele que era útil aos seus fins, mais ninguém, pensei eu. O arcebispo de Salzburgo e os bispos olharam mais uma vez para a sepultura e retiraram-se. A seguir desfilaram todos, passando por nós, por mim e pelas minhas irmãs, como é costume. Cento e vinte e dois lenhadores, agora são vinte, pensei eu, duas dúzias de jardineiros, agora são sete, pensei eu junto da sepultura. Enormes danos nas florestas, na região a norte até cá abaixo a Gallspach, pensei eu, só pelo chamado emparcelamento perdidos trinta e dois hectares de terrenos de primeira categoria, isso exasperou o meu

pai durante semanas. Por outro lado, pensei na enorme fraude fiscal cometida pelo consultor fiscal de Wels. Como ele diz a palavra Wolfsegg é-me sempre repugnante, também como a dizem os outros de Wels e de Linz e de Vöcklabruck e de Ebensee. Ódio sempre à palavra Wolfsegg, pensei eu junto da sepultura, ódio sempre a tudo o que com esta palavra Wolfsegg se relaciona, aversão e ódio. Por isso, ódio sempre a tudo o que com Wolfsegg se relaciona, já na infância, esta é que é a verdade, pensei eu. Uns vão hipocritamente de Wolfsegg até à aldeia e à região lá em baixo e os outros vêm exactamente da mesma forma hipócrita da aldeia e da região lá em baixo até cá acima, a Wolfsegg. Logo cedo recolhido a mim, devido à repulsa que sentia por eles, pensei eu agora, junto da sepultura aberta. Tudo uma gigantesca burla de Wolfsegg, pensei eu, uma comunidade do crime com centenas de anos. Primeiro medo da Igreja, depois ódio, pensei eu, primeiro medo de tudo o que provinha da Igreja e depois ódio, um ódio cada vez mais profundo, pensei eu. A Igreja continua, em última análise, a dominar tudo neste país e neste Estado, pensei eu junto da sepultura aberta, o catolicismo continua a ter tudo na mão neste país e neste Estado, seja quem for que o governe. Catolicamente, charlatanisticamente, pensei eu, párocos da hipocrisia. Já não queremos ter nada a ver com isso, dizemos nós, e sentimo-nos enojados. Aos padres católicos continua a não escapar nada neste país e neste Estado, pensei eu. Fugir, fugir a tudo, pensei eu, já não tinha outro pensamento. Aguentar a cerimónia e depois fugir para sempre, pensei eu. Vi como todos me odiavam, não só em segredo. Interesse filosófico por um lado, desinteresse filosófico por outro. Fanatismo artístico repugnante, pensei eu. As pessoas em Roma também não são diferentes, ainda muito mais hipócritas, mas com que alto grau de inteligência, pensei eu. Algumas centenas de pessoas não são de modo algum suficientes, têm de ser alguns milhões, pensei

eu, milhões de hipócritas, não só centenas, milhões de repugnantes, não só centenas. Tomar por assim dizer um banho de espírito numa cidade como Roma e nele desaparecer, pensei eu. Os passos das pessoas odiadas, as vozes das pessoas odiadas, pensei eu junto da sepultura aberta, a absoluta repugnância que inspiram as pessoas odiadas. O funeral é o ponto final, pensei eu. Não foi só a vila das crianças que me conspurcaram, conspurcaram-me tudo, pensei eu. Primeiro tive medo da vida, depois odiei-a, pensei eu junto da sepultura. Quando imaginamos que Roma é a solução, naturalmente também nos enganamos. Agarramo-nos a uma pessoa como Gambetti, que possivelmente já destruí, ou a uma pessoa como Maria e estamos também perdidos com esses caracteres, pensei eu junto da sepultura. Ah, sabe, Gambetti, disse eu a este em frente do Hotel Hassler, pensei eu agora junto da sepultura, se formos sinceros, o processo geral de estupidificação já está tão avançado que não há já possibilidades de voltar para trás. Com a invenção da fotografia, isto é, com o começo desse processo de estupidificação há muito mais de cem anos, o estado de espírito da população mundial começou a piorar e tem vindo piorando continuamente. As imagens fotográficas, disse eu a Gambetti, puseram em marcha esse processo mundial de estupidificação e ele atingiu esta velocidade efectivamente mortal para a humanidade no momento em que essas imagens fotográficas adquiriram movimento. Hoje e de há décadas para cá, a humanidade só olha estupidamente essas imagens fotográficas que são mortais e está por elas como que paralisada. Na viragem do milénio, o pensar já não será possível para esta humanidade, Gambetti, e o processo de estupidificação, que foi posto em marcha pela fotografia e que, com as imagens em movimento, se tornou um hábito a nível mundial, estará no apogeu. Existir num mundo assim, só já dominado pela estupidez, muito dificilmente já será possível, Gambetti,

disse eu a este, pensei eu agora junto da sepultura aberta, e será bom que nos suicidemos ainda antes que esse processo de estupidificação do mundo se realize na totalidade. Vistas as coisas assim, é lógico, Gambetti, que, na viragem do milénio, aqueles que existem do pensamento e pelo pensamento já se tenham suicidado. O meu conselho às pessoas pensantes só pode ser o de que se suicidem antes da viragem do milénio, Gambetti, esta é realmente a minha convicção, disse eu a Gambetti, pensei eu agora junto da sepultura. Pareceu sempre que a todo o momento ia chover, mas não choveu. Eu tinha tomado a decisão de não estender a mão a nenhuma das pessoas que iam desfilar na minha frente. E assim foi. Algumas tentaram estender-me a mão, mas eu não peguei na mão que me estendiam. Essa atitude desagradável assumi-a eu com plena consciência. Só o pensar nesta Áustria mutilada e degradada e, em última análise, liquidada, pensei eu, disse eu só alguns dias antes deste funeral quase insuportavelmente insensato, já provoca vómitos, para já não falar deste Estado inteiramente degradado, Gambetti, cuja abjecção e baixeza não têm exemplo não só na Europa, mas em todo o mundo; de há décadas para cá governos estúpidos, abjectos e depravados e um povo horrivelmente estropiado por esses governos abjectos e depravados e estúpidos até se tornar irreconhecível, tinha eu dito a Gambetti, pensei eu agora. Primeiro esse abjecto e infame nacional-socialismo e depois esse pseudo-socialismo abjecto e infame e criminoso, disse eu a Gambetti no Pincio, pensei eu agora junto da sepultura aberta. Essa destruição e aniquilação nacional-socialista e pseudo-socialista da nossa pátria austríaca em colaboração com o catolicismo austríaco, do qual para esta Áustria só veio sempre desgraça. Hoje a Áustria é um país governado por traficantes sem escrúpulos de partidos sem consciência, disse eu a Gambetti, pensei eu agora junto da sepultura. Este povo austríaco em tudo defraudado, disse

eu a Gambetti, ao qual, nos últimos séculos, o catolicismo, o nacional-socialismo e o pseudo-socialismo arrancaram o entendimento da maneira mais infame, Gambetti, disse eu a Gambetti, pensei eu agora. A infâmia é o lema, a baixeza a força impulsionadora, a hipocrisia a chave desta Áustria de hoje, Gambetti. Cada manhã em que acordamos devíamos morrer de vergonha desta Áustria de hoje, Gambetti, disse eu a Gambetti, pensei eu agora junto da sepultura aberta. Sem cessar digo a mim próprio, nós amamos este país, mas odiamos este Estado, Gambetti. Em Roma e seja em que lugar for do mundo, Gambetti, pensei eu agora, disse eu a Gambetti, esta Áustria já não nos diz respeito. Aonde quer que vamos nesta Áustria de hoje, entramos na mentira, para onde quer que olhemos nesta Áustria de hoje, olhamos apenas para o que é hipócrita, seja com quem for que você fale nesta Áustria de hoje, fala com um mentiroso, Gambetti, disse eu a Gambetti, pensei eu agora junto da sepultura. No fundo, este país ridículo e este Estado ridículo têm tão pouca importância que nem deles vale a pena falar, disse eu a Gambetti, pensei eu agora junto da sepultura, e cada pensamento que lhes dedicamos não é mais afinal que desperdício de tempo. Mas ai daquele que neste país não seja cego, disse eu a Gambetti, e não seja surdo e não tenha perdido o entendimento! Ser austríaco hoje é uma pena de morte e a essa pena de morte estão condenados todos os Austríacos, disse eu a Gambetti, pensei eu agora junto da sepultura. Tudo o que é austríaco não tem carácter, disse eu a Gambetti, pensei eu agora. O regresso à Áustria provoca todas as vezes um efeito total de conspurcação, pensei eu diante da sepultura aberta. Os detentores da Ordem do Sangue, os oficiais da SS apoiados nas suas muletas e nas suas bengalas, os heróis nacional-socialistas, nem sequer, por seu lado, como se costuma dizer, se dignaram olhar-me. Os nossos hóspedes, com excepção dos arcebispos e bis-

pos e dos nossos familiares mais próximos e íntimos, foram convidados para almoçar nos restaurantes Brandl e Gesswagner. Aí tocava para eles a banda de música, mandada pela minha irmã Cecília tanto para o Brandl, como para o Gesswagner. Os arcebispos e os bispos e os familiares foram convidados para o almoço em nossa casa. A maior parte deles ficou até ao fim da tarde. Spadolini partiu ainda nessa noite para Roma, primeiro ainda pensei, vou já com ele, mas esta ideia era afinal, como reconheci de imediato, absolutamente disparatada. Vemo-nos em Roma daqui a alguns dias, disse-lhe eu. Ele desapareceu de uma forma inteiramente discreta. Para falar com Alexandre, retirei-me com ele para o meu quarto e fechei a porta à chave, de modo a não ser mais incomodado. Alexandre estava de novo obcecado por uma das suas ideias vitais, queria pedir ao Presidente do Chile que libertasse todos os presos políticos do Chile, essa ditadura que era a mais horrível de todas as ditaduras. Não o incomodou o facto de eu dizer que não teria qualquer êxito com o seu pedido. Ele partiu uma hora depois de Spadolini, de regresso a Bruxelas. Eu fiquei até pela noite dentro fechado no meu quarto e só dele saí quando tive a certeza de já não encontrar mais nenhum dos hóspedes. Durante esse tempo reflecti sobre o que iria fazer com Wolfsegg, que, como entretanto se tinha verificado sem qualquer dúvida, me pertencia agora exclusivamente, com todos os direitos e deveres, como juridicamente se diz. Eu tinha já na cabeça um plano para o futuro de Wolfsegg e de tudo o que também lhe pertencia na Baixa Áustria e no Burgenland e em Viena quando conversei com as minhas irmãs sobre o futuro de Wolfsegg, até às duas horas da madrugada, sem permitir que o meu cunhado estivesse presente, o que eu expressamente proibi. No fim da conversa não pude dizer o que iria acontecer com Wolfsegg, embora eu nesse momento já o soubesse, disse às minhas irmãs, que durante toda essa conversa não

tiveram nada para me dizer, mas mostraram sempre os seus rostos trocistas e amargos, que não sabia o que iria acontecer com Wolfsegg, não tinha a mínima ideia sobre essa questão, enquanto ao mesmo tempo estava já firmemente decidido a marcar um encontro com Eisenberg em Viena, para uma conversa na qual lhe desejava oferecer, como uma dádiva absolutamente incondicional à Comunidade Israelita de Viena, todo o Wolfsegg, tal como está e com tudo o que lhe pertence. Essa conversa tive-a eu com Eisenberg, o meu irmão intelectual, dois dias apenas depois do enterro e Eisenberg aceitou a minha dádiva em nome da Comunidade Israelita de Viena. De Roma, onde estou agora novamente e onde escrevi esta Extinção e onde ficarei, escreve Murau (nascido em 1934 em Wolfsegg, falecido em 1983 em Roma), agradeci-lhe o ter aceitado essa oferta.

Glossário

«Badischen» — O adjectivo alemão «badisch» significa «de ou relativo a Baden», a região da Alemanha que forma com o Württemberg o estado de Baden-Württemberg. O adjectivo substantivado («Badischen»), que conservámos assim no texto, tem, portanto, o sentido de «o que se refere à região de Baden» ou simplesmente «a região de Baden».

«badischer Wein» — Vinho da região de Baden, que tem no Breisgau uma das suas zonas vitivinícolas mais importantes. O Breisgau é a zona em que se situa a cidade de Friburgo.

caçador-mor regional — Em alemão «Landesjägermeister», que era uma espécie de director regional da Associação de Caçadores. Preferimos, no entanto, a designação que usámos no texto.

chefe de distrito — Tradução portuguesa da designação alemã «Gauleiter», chefe de uma secção regional («Gau») do partido nacional-socialista (NSDAP).

da Boémia — Ao referir-se às poesias de Maria, o narrador menciona «sobretudo a chamada da Boémia» («besonders das sogenannte böhmische»). É evidente a alusão à poesia de Ingeborg Bachmann Böhmen liegt am Meer (A Boémia fica junto do mar), o que só confirma a identificação de Maria com aquela poetisa austríaca.

«dirndl» — O «Dirndlkleid» clássico, ou simplesmente «Dirndl», é um traje regional da Áustria e da Baviera, constituído por um vestido sem mangas, uma blusa e um avental, com formas que vão das mais elegantes, para circunstâncias especiais, até às mais simples, para o dia-a-dia.

«edel» — Esta palavra alemã significa em português «nobre», «digno», «elevado», «precioso». O acento recai no primeiro e, que é fechado e longo. Como em vários outros casos, o narrador põe aqui um acento divertido e

mesmo cómico na pronúncia de Spadolini, que, no entanto, sublinha também, não deixa de ter um encanto especial.

«Ehrlichkeit» — Em português «honestidade», «probidade», «sinceridade». O narrador diverte-se aqui com a confusão feita por Spadolini na pronúncia de «Herrlichkeit» (q.v.), que soa como «Ehrlichkeit».

«Eisschießen» — Jogo praticado no gelo, característico das regiões alpinas, semelhante ao «curling». Cada jogador tem um «Eisstock», que consiste num disco de madeira de forma cónica com um aro de ferro e um cabo recurvado, e lança-o pelo gelo em direcção a um alvo, constituído por um cubo de madeira, de modo que ele se aproxime o mais possível desse alvo e empurre também os «Eisstöcke» dos adversários que estejam mais próximos desse mesmo alvo.

«essen» — O verbo alemão mais vulgarmente usado no sentido do português «comer» (v. «speisen»).

«Gemütlichkeit» — Conceito alemão que não tem uma correspondência em português. Nalguns casos poderemos traduzir por «jovialidade», mas a «Gemütlichkeit», no sentido que aqui se exprime, é muito mais do que isso. É uma atmosfera agradável e descontraída, de certo modo familiar, alegre, que dispõe bem e produz uma sensação de bem-estar e despreocupação. É famosa a «Gemütlichkeit» vienense. Preferimos, portanto, conservar no texto a palavra alemã.

Gendarmaria — A «Gendarmerie» é a polícia das zonas rurais, em certa medida correspondente à GNR em Portugal. Mas achámos melhor a designação de Gendarmaria, que também existe em português, embora com um sentido diferente.

«Herrlichkeit» — Significa em português «magnificência», «esplendor», «glória». Spadolini não consegue pronunciar o h aspirado da palavra alemã, visto esse tipo de h não existir em italiano (nem em português, pelo que os luso-falantes têm a mesma dificuldade), e pronuncia o e que se segue ao h fechado e longo e não, como acontece na pronúncia da língua alemã, aberto e breve. Daí o facto de, na boca de Spadolini, a palavra soar como «Ehrlichkeit» (q.v.).

«Hofrat» — Título honorífico que existe desde o século XVI e continua ainda hoje a ser conferido na Áustria a altos funcionários do Estado. Poder-se-ia traduzir por «conselheiro áulico ou da corte», mas esta designação já não faz qualquer sentido nos nossos dias.

Igreja (sair da) — Na Áustria, uma pessoa que declare oficialmente ter a religião católica é considerada membro da Igreja e tem de pagar para ela um imposto. Pode, no entanto, sair da Igreja, isto é, renunciar a todos os seus direitos e deveres para com a Igreja católica (incluindo o imposto), mediante uma declaração escrita e um processo promovido pela administração da comunidade religiosa.

internista (médico) — Em alemão, um «Internist» é um especialista de doenças internas. Em português não é tão corrente a designação de «internista» ou «médico internista» nesse sentido, mas cremos que já existe e preferimos usá-la, em vez de «médico de doenças internas».

Kameradschaftsbund — A tradução literal seria «associação de camaradagem». Corresponde ao que em português se chama a «Liga dos Combatentes».

«loden» — Designámos simplesmente por «loden», expressão geralmente conhecida em Portugal, o que no original se chama «Hubertusmantel», uma espécie de sobretudo de «loden» verde, cortado a direito e fechado em cima, que constitui uma peça de vestuário tipicamente austríaca. O «loden» é, na verdade, um tecido de lã feltrado, típico da Áustria.

Maloggia — O passo de Maloggia (forma italiana — em alemão «Malojapass») é um passo alpino que fica no cantão suíço de Graubünden, entre Oberengadin e Bergell. A povoação com o mesmo nome, situada perto dessa passagem de uma vertente dos montes para a outra, é uma estância de repouso e de desportos de Inverno, onde se encontra a sepultura do pintor G. Segantini. Daí a referência no texto a este pintor.

matrimónio — No texto alemão joga-se com as palavras «Hochzeit» e «Vermählung», que significam ambas casamento ou matrimónio. «Hochzeit» é, porém, a forma de uso mais corrente, particularmente no sentido de bodas ou núpcias. «Vermählung» é mais usada na linguagem escrita para designar o enlace matrimonial. Assim, para manter este jogo com os sinó-

nimos, decidimos traduzir «Hochzeit» por «casamento» e «Vermählung» por «matrimónio». Cremos que o efeito obtido é semelhante.

Nathan — Trata-se da peça de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) Nathan der Weise.

Ordem do Sangue — Em alemão «Blutorden». Tratava-se de uma condecoração nacional-socialista, instituída por Hitler em 1934, sobretudo para distinguir pessoas que tinham participado no «putsch» hitleriano de Novembro de 1923.

Priel — Nome de dois montes da Alta Áustria. Há o Pequeno Priel, com 2134 m de altitude, e o Grande Priel, com 2514 m, que é o monte mais alto da cadeia de montanhas chamada Totes Gebirge.

SA — Abreviatura de Sturmabteilung, que era, com a SS, a formação política de combate do partido nacional-socialista (NSDAP). Nos anos de 1933 e 1934 constituiu o principal instrumento revolucionário do partido e tornou-se a arma mais violenta do terror nazi. A seguir perdeu, no entanto, importância política e passou a dedicar-se sobretudo à instrução pré-militar.

salada de alface-de-cordeiro — Em alemão «Vogerlsalat», nome também da planta de que se faz a salada, que na Áustria se encontra por toda a parte, mas é desconhecida em Portugal. Entre deixar esse nome no original ou traduzi-lo pela designação que nos pareceu mais adequada (deparámos com várias nas obras de consulta), optámos pela segunda hipótese, conscientes embora de que o leitor português não conhecerá decerto uma tal salada. Mas Gambetti, diz o narrador, também não compreendeu a designação alemã, provavelmente porque também em Itália a planta não existe, e ele teve de lha explicar.

Salteadores — Trata-se da peça de Schiller Die Räuber.

SS — Abreviatura de Schutz-Staffel, uma unidade paramilitar do partido nacional-socialista (NSDAP). Começou por ser uma guarda pessoal de Hitler, mas tornou-se mais tarde, sob a direcção de Himmler, uma unidade militar de elite (Waffen-SS). Os oficiais da SS de que no texto se fala

tinham a graduação de Obersturmbannführer, que não tem qualquer correspondência em português, pelo que preferimos unicamente a designação de «oficiais da SS».

«Schrebergarten» — Um pequeno jardim com uma casa muito simples, geralmente só para fins-de-semana ou férias. Estes jardins, muito típicos da Áustria e da Alemanha, existem na periferia das grandes cidades agrupados em colónias e com associações próprias. Os seus proprietários, chamados os «Schrebergärtner», são geralmente pessoas da classe trabalhadora ou da pequena-burguesia. A designação destes jardins provém do nome do seu fundador, o médico alemão Daniel Gottlob Moritz Schreber (1808-1861).

«Selche» — A designação «Selche» ou «Selch» só é usada na Áustria e na Baviera e é uma forma típica do falar vienense. Deriva provavelmente do latim sal, que servia até ao advento dos frigoríficos para conservar as carnes. Existe também o verbo «selchen» («defumar»).

Siebenkäs — Trata-se de um romance do escritor alemão Jean Paul (1763-1825). O nome completo desta obra é Blumen-, Frucht- und Dornenstücke oder Ehestand, Tod und Hochzeit des Armenadvokaten F. St. Siebenkäs im Reichsmarktflecken Kuhschnappel.

«soupierten» — Pretérito do verbo «soupieren», derivado do francês «souper» e que, portanto, significa «cear». Hoje muito pouco usado, era forma especialmente da linguagem da nobreza e da alta burguesia do tempo do Império, à semelhança de «speisen» (q.v.).

«speisen» — Tal como «essen», este verbo significa «comer». Mas é menos empregado na linguagem corrente e, quando usado na oralidade, tem muitas vezes um cunho de pretensiosismo ou afectação, por se associar à fala da antiga nobreza ou da alta burguesia dos tempos do Império.

«trulli» — Palavra italiana, plural de «trullo», que designa uma casa redonda de pedra, só com um compartimento e uma falsa abóbada em forma de cúpula. Sem janelas nem chaminé, a luz natural entra só pela porta. Este tipo de casas encontra-se especialmente na Apúlia.

«unberechenbar» — Esta palavra significa, segundo o dicionário, «volúvel», «inconstante», «insondável». Preferimos traduzi-la aqui por «imprevisível». Deixámos, contudo, também a forma alemã «unberechenbar», porque ela serve ao narrador para, como em vários outros casos, se divertir com a pronúncia alemã do italiano Spadolini.

«unglückselig» — Trata-se de mais uma especificidade da linguagem de Thomas Bernhard. A palavra pode traduzir-se simplesmente por «infeliz», «desgraçado» ou «que produz infelicidade», «calamitoso». Na sua formação entram o substantivo «Unglück» («infelicidade», «desgraça») e o adjectivo «selig» («feliz», «bem-aventurado»). A sua união parece não fazer sentido, mas a verdade é que «selig» entra na composição de várias outras palavras e perdeu assim nesses casos o seu significado original. Faz sentido, sim, na formação do antónimo de «unglückselig», nomeadamente «glückselig» («bem-aventurado», «muito feliz»), no fundo uma tautologia, pois «selig» junta-se aqui ao substantivo «Glück» («felicidade», «ventura», «sorte») e produz algo como «que goza da ventura da felicidade, de ser feliz». O que, porém, não sabemos é como é que, no texto de Bernhard, o narrador explicou a Gambetti a ideia de «unglückselig».

Urfaust — Designação dada à versão primitiva do Fausto de Goethe, que continha apenas algumas cenas da primeira parte da obra, a que só anos mais tarde o autor deu a forma definitiva.

«walkjanker» — Casaco típico austríaco com um talhe muito simples, usado especialmente na região alpina. «Walk» é um tecido de malha de lã feltrada.

Wolfsegg — O local da narrativa, tanto o palácio e as suas dependências como a povoação com o mesmo nome. O verdadeiro Wolfsegg fica na Alta Áustria, na região montanhosa de Hausruck, e atraiu as atenções de Thomas Bernhard quando este era ainda apenas jornalista. Num artigo escrito em 1953 diz ele, referindo-se a Wolfsegg, que «o seu nome lembra os lobos que outrora aqui viveram» («Wolf» = lobo). Em Extinção, ao começar a descrição de todo o complexo, que considera «uma fortaleza», Murau, o narrador, menciona não só o edifício principal («Hauptgebäude»), mas também todas as suas dependências, cujos nomes tivemos nalguns casos de adaptar no português, especialmente de acordo com a sua função. Assim, para a «Orangerie», que é, como no próprio texto se disse, uma estufa de

laranjeiras, criámos a forma orangeria, que é mais concisa e nos parece mais sugestiva e mais eufónica. Um pouco diferentes do alemão são as designações pavilhão de caça («Jägerhaus») e casa do jardim («Gärtnerhaus»), considerando principalmente as funções desses edifícios. Para a «Meierei», a construção destinada a tudo o que se referia à agricultura, incluindo as alfaias e os gados, impunha-se naturalmente em português a designação de abegoaria. E, no caso da «Kindervilla», não encontrámos melhor solução que chamar-lhe, numa tradução praticamente literal, a vila das crianças. Um último esclarecimento: ao entrar no edifício principal, o visitante encontra-se num vasto recinto, que é descrito em pormenor pelo narrador. A esse recinto se chama em alemão «Vorhaus», uma espécie de «entrada» ou «casa de entrada», que preferimos traduzir por átrio.

Zur Klause — «Klause» é uma parte muito estreita de um vale, uma garganta ou desfiladeiro. Daí o nome da hospedaria Zur Klause, significando que fica situada junto dessa garganta.

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