NOSTRADAMUS
Alberto Savinio NOSTRADAMUS
tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
Nas últimas linhas deste texto, Savinio deita um olhar à Estrela Vespertina que as cortinas rendadas de um hotel não conseguem apagar. Uma memória dos poemas de Safo diz-lhe que a principal função da Héspero é pôr as coisas no seu devido lugar: leva «o vinho aos lábios, a ovelha ao redil, o menino à sua mãe». Mas quando Savinio pede para ela dizer que lugar lhe destina a sabedoria astral, só ouve uma palavra estranha que não consegue reter. A estrela desfazia-se da incómoda pergunta pronunciando as sílabas de um indefinível lugar, o único que convinha a um homem de intermitências, alternâncias e volubilidade; com saltos que lhe davam uma permanência pouco previsível entre as suas diversas vocações. Savinio tinha sido, ao sabor de vozes interiores determinadas por um caprichoso mecanismo, escritor, encenador teatral, pintor e músico.
Na Sicília, antigo berço da sua família, tinha havido um barão Evaristo de Chirico, seu pai, que descia dos pergaminhos da nobreza para construir linhas férreas quilómetro a quilómetro sofridas e que o distraíam dos problemas familiares; tinha havido uma baronesa Gemma Cervetto, a sua mãe — guardiã de dois filhos com palavras e cornadas a fazerem jus às hastes do «veado» que pairava como um fantasma no seu sobrenome.
Os comboios do barão davam uma grande mobilidade a esta família. A baronesa Gemma, que passava de terra em terra arrastada
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pelas oportunidades ferroviárias do seu marido, tinha concebido dois filhos sabe-se lá onde, mas dera-os à luz na Grécia; Giorgio, o mais velho, em 1888 e nessa Vólos que se abre às larguezas do mar chamado «da Tessália»; Andrea, o mais novo, três anos depois em Atenas.
Foi também em Atenas que Andrea de Chirico… (Este jovem praticante de várias artes, esclareçamo-lo desde já, resolveu abdicar do sobrenome que o ligava a uma grande família siciliana, usado pelo seu irmão pintor — que era nos quadros Giorgio de Chirico; e como tinha uma grande admiração por Albert Savine, notável tradutor de Oscar Wilde, Rudyard Kipling, Conan Doyle e Stevenson, não se deu a grandes trabalhos para inventar um nome artístico; dar-se-ia a conhecer, pura e simplesmente, com um italianizado Alberto Savinio.)
Em Atenas o futuro Savinio — muito jovem, ainda não escritor, ainda não pintor — começou por se dedicar à música. Estudou piano e composição; e estes anos de conservatório em Atenas, e mais tarde os de um convívio com o compositor, pianista e maestro Max Reger, fizeram dele o tocador de piano que a mão irónica de Apollinaire tomou como alvo na «Via Anedótica» da revista Mercure de France, informando-nos de que a sua forma enérgica de dedilhar deixava partidos, sem qualquer contemplação, «os mais robustos teclados». Mas este mesmo Apollinaire será mais específico num texto de Les Soirées de Paris: «Não conseguiremos deixar em silêncio a forma como Monsieur Savinio interpreta as suas obras no piano. Executando-as com uma perícia e uma força incomparáveis, este jovem compositor que abomina os casacos põe-se de pé, em mangas de
camisa à frente do seu instrumento, e é um singular espectáculo ver a que extremos chega o seu debate, como dá berros, parte os pedais, faz vertiginosos molinetes, como dá murros no tumulto das suas paixões, do seu desespero, das suas alegrias à solta… Depois de cada trecho enxugar-se-ia o sangue que tirava às teclas a sua pureza.»
Talvez haja nisto um malicioso exagero; mas, se for este o caso, poderá salvar-se com menos ironia a sua produção como compositor.
Quando o barão Chirico morreu, Savinio compôs e dedicou-lhe uma Missa de Requiem que não o desilustra nesta área dos seus talentos; a sua ópera Carmela foi elogiada por Tito Ricordi; o compositor de música para ballets teve em Nova Iorque a estreia do seu Perseo (1924), e no muito fértil ano seguinte as estreias em Roma de Due amori nella notte e La morte di Niobe, e em Veneza a de Batalla delle stagioni.
Mas tentemos fazer de tudo isto um relato mais cronológico. A baronesa, viúva desde 1905, continuou a dominar os seus filhos com mão severa e decidida a inquestionáveis valores. Giorgio e Andrea foram adolescentes de luvas, polainas e chapéus de feltro à inglesa, pormenores que a senhora Gemma tinha por essenciais à imagem pública dos filhos de um barão. Mas forças mais poderosas deixaram-na tempos depois diminuída na sua actuação. Porque em 1911 os irmãos Chirico sentiram de perto, e de uma forma menos dominável, as seduções de Paris.
Os futuristas italianos tinham conquistado muitos intelectuais parisienses. O próprio Marinetti lá tinha aparecido, a convencer com persuasão directa o que podia ser menos eficaz com a sedução escrita. Apollinaire, um nome então ligado à mais audaciosa das
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vanguardas artísticas, escreveu o seu próprio Manifesto Futurista. E se nos primeiros tempos os Chirico não obtiveram dele um assinalável reconhecimento, em 1914, depois da primeira exposição de Giorgio de Chirico no Salão dos Independentes, com quadros que o deixaram estupefacto, houve uma possível aproximação. A convivência com Apollinaire e os nomes sonantes que viviam fascinados pela sua irresistível personalidade (Picasso, Cendrars, Picabia, Cocteau, Max Jacob), deram aos irmãos Chirico uma apreciável força como pintores: Giorgio a impressionar muito com aquelas solidões nunca antes vistas na pintura, com arcadas clássicas povoadas por mulheres-manequins de uma melancolia que as tornava mais belas, com sugestões ferroviárias (a memória do papá Evaristo) onde eram sentidas viagens que ninguém fazia, prefigurava de pessoalíssima forma o futuro Surrealismo de Breton; Savinio, também ele um notável pintor, era menos apreciado por não poder separar-se de uma avaliação paralela em que se via confrontado com a espantosa obra do seu irmão.
Em 1915, a Primeira Guerra Mundial esmoreceu as alegrias artísticas de Paris; os irmãos Chirico devolveram-se à Itália e foram incorporados num regimento de infantaria em Ferrara. E em 1917, com a guerra ainda por terminar, Savinio voltou à Grécia onde tinha nascido para traduzir francês e grego em Tessalónica, onde um exército de nações aliadas e com soldados de muitos países sofria os inconvenientes linguísticos de uma autêntica Babel.
A paz de 1918 instalou-o durante cinco anos em Milão. E depois de Milão desceu até Roma, onde teve a dupla sorte de escrever uma peça de teatro — O Capitão Ulisses — não só representada
pela Sociedade do Teatro de Arte, mas encenada por Luigi Pirandello. Ora, um incontável número de casos diz-nos que os bastidores teatrais, a intimidade dos camarins, são lugares de privilégio para a batalha dos amores. Maria Morino, da companhia de teatro Eleonora Duse, não teve dificuldade em fazer dele um homem casado e a convencê-lo de que era sobretudo um pintor.
Pintor? Os pintores viviam em Paris. Em 1927 e em Paris, Savinio seria (sobretudo) um pintor; vivia com a sua Maria, bem perto do seu irmão casado com a bailarina russa Raissa Gurevich. E como a baronesa-mãe, instalada na rua De la Croix-Nivert, não conseguia perder de vista os dois casais, Cocteau dedicou-lhe esta ironia: «Vigiava os seus filhos do alto de uma Acrópole, sentada com um vestido decotado numa cadeira de salão de baile e a empunhar um ramo de rosas.» Mas seis anos depois este Savinio volúvel, a quem a Estrela Vespertina não conseguiria dar uma compreensível resposta, sentiu com grande certeza interior que o seu destino lhe apontava o jornalismo e a literatura; sentiu que podia em qualquer terra pintar mas que a sua língua forte, a que usaria nos seus escritos, era o italiano. Savinio regressou portanto a Roma; mas à Roma de uma Itália que tinha como primeiro ministro Mussolini.
Os jornais Print e Omnibus, as revistas Colonne e Broletto começaram a mostrá-lo com aquela voz que iria, anos depois, apaixonar Breton e os fiéis do seu Surrealismo. Mas a Itália política de Mussolini, essa, começou a senti-lo como um suspeito de anti-fascismo. Os seus escritos, longe de agradarem ao regime, fizeram-no correr perigos e forçaram-no a procurar um esconderijo pouco pressentível pela polícia do ditador. Só depois da Segunda Guerra
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Mundial, com o perigo fascista afastado, Savinio voltou a ser lido sem receios e sem censura prévia, como crítico cultural do Corriere della Sera.
Na literatura ficou como autor de Hermaphrodito (1918), a estreia do ficcionista que chegaria a ter vinte e três títulos publicados, entre os quais Achille innamorato (1938), Casa «La vita» (1943) e Tutta la vita (1945); com uma obra literária póstuma que lhe acrescentaria mais dezasseis títulos, entre os quais Maupassant e “l’altro” (1975), Vita dei fantasmi (1962) e Il sogno meccanico (1981).
O crítico de cinema Nino Frank, amigo de Savinio, tradutor de Savinio (autor da designação film noir para os filmes policiais americanos, o que ajudou Blaise Cendrars a obter a documentação para a «biografia» de Jean Galmot que veio a chamar-se Rhum),
escreveu:
«Quando o conheci em Paris, por volta de 1926, Savinio tinha uma cabeça pesada e sorridente, com um occipital jupiteriano, e por vezes inclinava-a para um lado quando olhava através dos óculos e do seu interlocutor para lonjuras habitadas por anjos ou deuses. Eram os únicos momentos em que ele suspendia com aérea doçura a sempiterna crítica ao mundo exterior — e para fazer isto tudo lhe servia… a sua mulher, os seus filhos, a criada ou o cão, mas também o papa ou Platão, Picasso ou Carlos Magno. Este sarcasmo era debitado com uma voz aguda […] através de argumentos monstruosos e surpreendentes, com uma forma voluntariamente escatológica.
«Voltei a vê-lo em Roma, em 1951, um ano antes de ele morrer.
E já era, adivinhava-se, uma presa da autodestruição. Tinha ao pé de
si a Maria sempre doce e infantil, e os seus filhos Angelica e Ruggero. […] As novas sombras negras de Savinio eram os padres, sobretudo porque Chirico tinha visitado o papa para lhe fazer o retrato. Os dois irmãos estavam de candeias às avessas — um a ficar rico à custa de estranhas palinódias, o outro a comer o pão que o diabo amassou, mas fiel à sua inspiração. Savinio sempre tinha alimentado razões de queixa contra o seu irmão mais velho; inventava-as ao longo do seu percurso, mas durante muito tempo tinha havido entre eles uma solidariedade absoluta. […] No entanto, em 1951 surgia outra coisa ligada à traição, de ali em diante total, que Chirico fazia a um passado que lhes tinha sido comum.»
O Giorgio de Chirico anterior a 1925, pintor com uma surpreendente pré-intuição do que seria plasticamente defendido e adoptado pelo futuro Movimento Surrealista (tenhamos a boa vontade de ignorar a desastrosa representação do mundo que a partir desse ano nos seus quadros lhe sucedeu), continua a mostrar-se em pintura como representação de uma necessidade do sonho onde a sucessão de colunas, espaços vazios e arcadas servem de cenário às estátuas dos seus manequins e constroem com eles uma bela e desumanizada solidão.
O Savinio-pintor tem hoje uma representação bastante visível em conceituados museus. Por vezes surpreende com um fantástico que é uma incómoda vocação de paródia, uma paródia a pedir que a tomem por demência, mas uma demência que não nos ilude quanto ao seu mecanismo de extrema lucidez. Por vezes leva-nos por viagens metafóricas extraídas ao mundo das lendas. E a tudo isto ele chamou «realismo metafísico».
Alberto Savinio
Quando André Breton publicou em 1940 a sua Antologia do Humor Negro, decidiu incluir entre quarenta e cinco seleccionados um único italiano, Alberto Savinio, com um excerto da Introdução a uma Vida de Mercúrio. E explicava: «Qualquer mito moderno ainda em formação apoia-se, na sua origem, em duas obras quase indiscerníveis no seu espírito, a de Alberto Savinio e a do seu irmão Giorgio de Chirico, obras que atingem o seu ponto culminante nas vésperas da guerra de 1914. Os recursos do visual e do auditivo são simultaneamente levados a contribuir para a criação de uma linguagem simbólica, concreta, universalmente inteligível pelo facto de pretender dar conta, no mais alto grau, da realidade específica da época (o artista a oferecer-se como vítima do seu tempo) e da interrogação metafísica, própria dessa época. (A relação dos objectos novos, de que ela foi obrigada a servir-se, com os objectos antigos, abandonados ou não, é das mais perturbantes porque exaspera o sentimento da fatalidade.) “Na época actual”, escreveu Savinio em 1914, “a via destinada a predominar caracteriza-se sobretudo pela sua forma austera e sombria, pela aparência rígida e bem materializada da sua metafísica… Longe daquelas idades onde a total abstracção reinava, a nossa época seria levada a fazer jorrar as próprias matérias (das coisas) com os seus completos elementos metafísicos. A ideia metafísica passaria do estado de abstracção ao dos sentidos. E assim se alcançaria a valorização total dos elementos que informam o tipo de homem pensante e sensível.”»
Este «programa», muito central na atitude pictórica e nalguns textos de Savinio, não deixa de mostrar-se com maior e menor discrição em tudo o que ele escreveu. Encontrá-lo-emos um tanto disfarçado
nesta bem-humorada e efervescente divagação sobre o mago Nostradamus, que num dia quente do ano de 1566 caiu no chão com um abafado ruído, semelhante ao da queda de um sapo. «Há, entre sapos e profetas, uma afinidade sonora», informa-nos a sabedoria protosurrealista do escritor Alberto Savinio.
Deste Alberto Savinio que em Roma, e sem o ruído de nenhuma queda, morreu no dia 5 de Maio de 1952.
Nostradamus, por Alberto Savinio (1938).
Estavam floridos, os campos da Provença. Se apurássemos o olhar e nos distraíssemos do presente, não era difícil vislumbrarmos Francesco Petrarca vestido com um amplo trajo vermelho e a testa coroada com louros capitolinos, quer a suspirar por Laura, quer a debruçar-se sobre os vestígios dourados da romanidade para decifrar o verbo dos Antigos.
Vínhamos de Paris e entrávamos directamente em Avignon. Um não maldoso mistral ia atrás de nuvens brancas, que nas cristas pontiagudas dos Alpilles rasgavam como ninfas em fuga as suas vestes.
Entrámos a buzinar em Saint-Rémy, que jaz no fundo do vale de Glanum vigiada por um arco do triunfo e um altíssimo mausoléu. Esta pequena cidade vangloria-se muito porque o poeta provençal Federico Mistral tinha morado a pouca distância dos seus muros, e por Charles Gounod, que tinha uma cabeça em forma de ovo da Páscoa e compôs uma melodia adocicada, sobreposta ao Prelúdio em Dó Maior do Cravo Bem Temperado, ter feito numa das suas casas a primeira audição de Mireille 1. Mas qual é o nome mais ilustre, e sobretudo mais «secreto», ligado à história destes muros, destes pavimentos, destes jardins?
1 A melodia adocicada sobreposta ao Prelúdio em Dó Maior de Bach é a sua conhecida Avé Maria. Mireille é uma ópera sua. (N. do T.)
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Renato Trintzius, o mestre em ocultismo que durante uma viagem através da França tinha feito o automóvel voar, ao ponto de eu desconfiar que ele, imitando Malagigi, conseguia dar ordens aos espíritos dos ares, travou o animal de aço no meio da praça lou Planat e, levantando do volante a mão enluvada, mostrou-me um palacete que exibia na fachada as rugas dos séculos e tinha na arquitrave do portal esta inscrição: Soli Deo1 .
— Entre nós — disse eu — chamamos Solideo a essa calote que os padres só tiram perante Deus.
Trintzius olhou para mim, sem me compreender, e por sua vez disse:
— Nesta casa nasceu Nostradamus.
Depois de uma tal declaração só me restava pôr-me de pé e fazer uma vénia.
1 Quer dizer em latim «Só a Deus», embora seja mais vulgar que tenha a palavra Gloria associada: Soli Deo Gloria, «Só à Glória de Deus». (N. do T.)
A Itália, que deu à França Mazzarino, o cardeal de Retz e até, dizem-no alguns, Luís XIV1, deu-lhe além disso o doutor Nossa Senhora que foi, como fabricante de marmeladas, o precursor da firma Cirio, como artista da cosmética o precursor de Elizabeth Arden e lia, além do mais, o futuro como tu, leitor, lês estas linhas.
Os antepassados de Michele Nostradamo tinham-se deslocado da Itália para a França porque os homens nas suas migrações, como se não quisessem perder a luz, acompanham o caminho do sol. A Provença tinha, pelo seu lado, a fama de terra hospitaleira para com os filhos de Israel, e só isto bastava como verdadeira razão para a sua transferência.
Os Hebreus são itinerantes e, como disse Apollinaire, ils s’agitent agréablement 2 .
A terra, com os seus frutos, é que trava os passos ansiosos do homem e diz-lhe: «Vai ser aqui a tua casa, a tua pátria, a tua nação.» Mas Ceres é inimiga de Israel. E não será revelador, por outro lado, que a alimentação em conserva determine um crescente
1 Como Luís XIII estava casado há muitos anos e não tinha filhos, quando Ana de Áustria engravidou correu o boato de que ele seria filho de uma aventura amorosa da rainha com um italiano. (N. do T.)
2 Agrada-lhes andar de um lado para o outro. (N. do T.)
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nomadismo nos Americanos do Norte? Sobre os concidadãos de Roosevelt pendem duas ameaças: uma é ficarem tintos com a cor dos filhos de Cam1, e a outra é hebraizarem-se.
Os Hebreus são pastores, mas não camponeses. Celso chama-lhes «os sem casa» ou, como alternativa, «os de cor que vivem em carros», ou ainda «os de cor que dormem sob tendas para garantir alimento aos seus rebanhos». Terá sido a ausência de ruralidade que os fez impopulares? A vida rural é elementar e inocente. É a vida exemplar. É a vida que todos devíamos ter. Por que razão abdicámos dela? O anti-semitismo não é uma consequência do cristianismo, como muitos crêem, mas autónomo e bem mais antigo do que ele. Desconfiamos dos que vivem de uma forma diferente da nossa. Ele faz o que eu não faço, conhece o que eu não conheço; é portanto meu juiz. Os Hebreus representam, de facto, a presença estranha, e chamavam-lhes na Idade Média «as testemunhas». Enquanto os camponeses labutavam com o arado, e os melancólicos e obtusos cavaleiros andavam carregados com ferros e caminhavam em direcção ao combate e à morte, eles, os «sem casa», ocupavam as cidades, praticavam o comércio, rodeavam-se de perfumes e de especiarias, acumulavam ouro e sobretudo penetravam os mistérios. No fundo, o anti-semitismo é o velho, o insanável conflito entre a física e a metafísica.
Mas Renato de Anjou não temia a metafísica2. No seu reino os Hebreus tinham licença para exercer a medicina, as artes, e até
1 O filho amaldiçoado de Noé. Cam quer dizer «escurecido». (N. do T.)
2 O Bom Rei Renato, figura central da chamada Guerra das Rosas. Foi duque de Anjou, conde de Provença, duque de Bar, duque de Lorena, rei de Nápoles, rei de Jerusalém, rei de Aragão. (N. do T.)
Mas nem todas as profecias de Nostradamus têm um tom funesto. Em 1561, o duque de Saboia pede a Nostradamus o horóscopo da criança de que a sua mulher está grávida, e o mágico prevê o nascimento de «um príncipe que vai chamar-se Carlos Emanuel e será o maior capitão do seu século.»
Os anos passam, e Nostradamus já não sai de Salon-en-Provence. Se reis ou príncipes quiserem interrogá-lo, têm de se conformar e fazerem eles a viagem até à Provença.
Em 17 de Outubro de 1564 um cortejo real chega à porta Saint-Lazare, e os cônsules, os assessores, os tesoureiros e os capitães vão muito pomposamente ter com Carlos IX, jovem e audaz no seu cavalo branco. Ele diz: «Vim falar com Nostradamus.»
Os anos passam e o tédio é cada vez mais voraz. A gota incha-lhe as pernas. Grandes bolsas de uma gordura amarela pendem-lhe por baixo dos olhos. Para escrever — porque precisa de escrever, como ele próprio disse:
Après la terrestre mienne extinction, Plus será mon escrit qu’à mon vivant 1
fará com que lhe liguem o cálamo à mão como Renoir, três séculos e meio mais tarde, quando pede que lhe liguem o pincel à mão contraída como a pata de um frango pendurado num prego.
1 «Depois da minha extinção terrestre / meus escritos serão mais do que foram enquanto fui vivo.» (N. do T.)
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O que descobrem os olhos do profeta quando a sua pança cheia de água descansa, pousada num banco muito prestável, e as suas pernas pendem moles como colossais salsichas? Nostradamus olha sempre para a frente, para o futuro. O seu olhar atravessa os anos, os séculos, os milénios; varre a grandes vassouradas o futuro… Em vão! Há sempre aquele tédio infinito, esteja ele onde estiver.
No meio deste pavoroso deserto, um minúsculo facto pessoal.
Nostradamus tinha escrito:
Parens plus proches, amis, frères du sang, Trouvé tout mort prez du lict et du banc 1 .
Na manhã do dia 1 de Julho de 1566 (o Verão é funesto às mais preciosas vidas) Nostradamus estava num banco, perto da cama. Alguém, amigo ou irmão de sangue, pousou a mão no seu ombro. Nostradamus curvou-se, como se o fizesse para ver melhor qualquer coisa que estava no chão, e depois caiu aos poucos com um abafado «plaf».
Há, entre sapos e profetas, uma afinidade sonora.
1 «Parentes mais chegados, amigos, irmãos de sangue, / Encontraram-no bem morto, perto do leito e do banco.» (N. do T.)
Quando Trintzius acabou de falar, reparei que a evocação da extraordinária faculdade de Nostradamus tinha revelado em mim uma não menos extraordinária, mas oposta à sua: a postfecia.
Nessa mesma noite chegámos a Montecarlo.
Montecarlo, como a Atlântida sob mil metros de água e peitos de faisões sob uma camada de molho espesso, dormia na sua atmosfera de gelatina e na perpétua transparência da encaracolada graça da arte-nova. Umas quantas famílias de La Turbie passeavam tranquilamente na massa heteróclita do mar cor de turquesa. De vez em quando o papá mergulhava o dedo naquela matéria densa, para sentir se ela ainda sabia a sal.
Fomos até ao hotel.
Nesta cidade fora de moda, até os hotéis mais caros têm um modesto aspecto de pensões familiares. Rendas amarelecidas escorriam como chuva nas vidraças da sala de jantar, licores inocentes e antiquados exibiam as suas cores de papagaio na imponência do aparador. As inglesas, divididas por pequenas mesas, tinham vestidos às flores como um canapé, e sob os sacos acolchoados que faziam de chapéus mostravam um tristíssimo e burlesco rosto que era, ao mesmo tempo, de anão de circo e de uma rígida hilaridade lunar. Alguns minutos antes, nos w.c. que
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davam para escarpadas e musculadas montanhas, eu tinha decifrado esta recomendação enigmática e bilingue: Please do not throw down flowers up w.c… Prière de ne pas jeter des fleurs dans le cabinet 1. A que idílios florais, a que amores de antologia estas virgens septuagenárias se dedicavam?
— Nostradamus — voltou a dizer Trintzius quando o chá foi servido — previu a Revolução Francesa e a prisão de Luís XVI em Varennes:
De nuict viendra par la forest de reines, Deux pars voultare herme la pierre blanche, Le moine noir en gris dedans Varennes
Esleu cap, cause tempeste, feu sang tranche 2 .
Ao pé de nós, um senhor corpulento e barbudo bebia água mineral e lia La Croix, órgão dos católicos da França.
— Previu Napoleão:
Un empereur naistra près d’Italie Qui à l’empire sera vendu bien cher
1 Tradução da frase francesa, mais correcta do que a inglesa: «Agradecemos que não se deitem flores na casa de banho» (aqui com o sentido pouco preciso de «sanita»). (N. do T.)
2 «De noite virá pela floresta de Reines, / Duas por caminhos ermos a pedra branca, / O monge negro vestido de cinzento dentro de Varennes / Para fazer acima de tudo tempestade, fogo, sangue, pedaços.» (N. do T.)
Dont avec quels gens il se rallie Qu’on trouvera moins prince que boucher 1 .
«Previu, por volta de 1968, uma guerra no Mediterrâneo. Previu a destruição de Paris em 1999, feita por um exército aéreo que chega do Extremo Oriente. Previu que a Itália e a Alemanha, e depois a Espanha e a França, serão expulsas da “seita bárbara”.
Previu Hidger, que meterá a Germânia na ordem. É um nunca acabar de predições.»
Trintzius pôs a sua cadeira mais perto da minha e disse em voz baixa:
— Porque Nostradamus não morreu. Deu ordem para o colocarem numa parede da igreja dos Irmãos Mínimos, de pé, com uma luz, papel, uma pena e um tinteiro. Ninguém deveria abrir esse sepulcro, mas em 1791 foi violado pelos sans-culottes 2 , e é provável que Nostradamus ande a dar voltas pelo mundo.
Que notícia desagradável estaria a ler o nosso vizinho no La Croix? Amarrotou com raiva o jornal, assentou os punhos na mesa e pôs-se custosamente de pé.
— Quem nos garante que ele não é o Nostradamus? — perguntou Trintzius num murmúrio.
1 «Um imperador nascerá perto da Itália / Que ao império será vendido bem caro / E pela gente com quem vai aliar-se / Menos príncipe encontraremos do que carniceiro.» (N. do T.)
2 Foi um grupo com bastante protagonismo durante a Revolução Francesa. Chamavam-lhes sans-culottes porque usavam calças largas até aos pés, e não os calções justos pelo joelho da gente mais rica, chamados culottes. Durante o período chamado Terror estiveram sempre associados às políticas mais radicais. (N. do T.)
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O irascível gotoso agarrava-se aos móveis, com pernas moles de borracha atravessou a sala e desapareceu no corredor escuro.
— Quem nos garante isso? — repetiu Trintzius.
A sombra ficava mais espessa. A Héspero brilhava através da renda murcha das vidraças.
Cada estrela tem a sua função particular. Diz Safo que a função da Héspero é pôr todas as coisas no seu lugar: o vinho nos lábios, a ovelha no redil, o menino na sua mãe.
Olhei intensamente para a estrela e perguntei:
— E eu?
A voz de uma pessoa invisível deu-me da sombra a resposta:
— No…
Seguiu-se uma palavra estranha, que ouvi pela primeira vez e a minha memória não reteve.
LIVROS SISTEMA SOLAR
Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo
O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain
No sentido da noite, Jean Genet
Com os loucos, Albert Londres
Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James
O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier
A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco
Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet
David Golder, Irene Nemirowsky
As lágrimas de Eros, Georges Bataille
As lojas de canela, Bruno Schulz
O mentiroso, Henry James
As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire
Amor de perdição, Camilo Castelo Branco
Judeus errantes, Joseph Roth
A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence
Porgy e Bess, DuBose Heyward
O aperto do parafuso, Henry James
Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach
Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville
Histórias da areia, Isabelle Eberhardt
O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna
Autobiografia, Thomas Bernhard
Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe
Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès
Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton
Dicionário filosófico, Voltaire
A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides
O raposo, D.H. Lawrence
Bom Crioulo, Adolfo Caminha
O meu corpo e eu, René Crevel
Manon Lescaut, Padre Prévost
O duelo, Joseph Conrad
A felicidade dos tristes, Luc Dietrich
Alberto Savinio
Inferno, August Strindberg
Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West
Freya das sete ilhas, Joseph Conrad
O nascimento da arte, Georges Bataille
Os ombros da marquesa, Émile Zola
O livro branco, Jean Cocteau
Verdes moradas, W.H. Hudson
A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné
Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès
Messalina, Alfred Jarry
O Capitão Veneno, Pedro Antonio de Alarcón
Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva
Visão invisível, Jean Cocteau
A liberdade ou o amor, Robert Desnos
A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence
O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle
Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg
Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad
O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono
O dicionário do diabo, Ambrose Bierce
A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco
O caso Kurílov, Irène Némirowsky
A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson
Nova Safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura
Gaspar da Noite — fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand
Rimbaud-Verlaine, o estranho casal
O rato da América, Jacques Lanzmann
As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel
Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones
Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James
O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo
sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest Renan
Derborence, Charles Ferdinand Ramuz
O farol de amor, Rachilde
Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière
A minha vida, Isadora Duncan
Rakhil, Isabelle Eberhardt
Fuga sem fim, Joseph Roth
O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans
Tufão, Joseph Conrad
Heliogábalo ou o anarquista coroado, Antonin Artaud
Van Gogh o suicidado da sociedade, Antonin Artaud
Eu, Antonin Artaud
A morte difícil, René Crevel
A lenda do santo bebedor seguido de O Leviatã, Joseph Roth
O Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules Verne
Orunoko ou o escravo real (uma história verídica), Aphra Behn
As Portas do Paraíso, Jerzy Andrzejewski
Tirano Banderas (novela de Terra Quente), Ramón del Valle-Inclán
Cáustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry
Balkis (A Lenda num Café), Gérard de Nerval
Diálogos das carmelitas, Georges Bernanos
O estranho animal do Vaccarès, Joseph d’Arbaud
Riso vermelho — fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid Andreiev
A morte da terra, J.-H. Rosny Aîné
Nossa Senhora dos Ratos, Rachilde
O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes
Entre a espada e a parede, Tristan Bernard
A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van Dongen
Os meus Oscar Wilde, André Gide
As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard Shaw
Meu irmão feminino — «Noites Florentinas», Marina Tsvietaieva
Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz
O filho de duas mães, Edith Wharton
A armadilha, Emmanuel Bove
Um jardim na margem do Orontes, Maurice Barrès
Erotika Biblion, Conde de Mirabeau
A minha amiga Nane, Paul-Jean Toulet
Paludes, André Gide
O bar dos dois caminhos, Gilbert de Voisins
Sol, D.H. Lawrence
Cagliostro, Vicente Huidobro
As magias do Ceilão, Francis de Croisset
Má sorte que ela fosse puta, John Ford
Chita — uma memória da Ilha do Fim, Lafcadio Hearn
A mulher 100 cabeças, Max Ernst
A dificuldade de ser, Jean Cocteau
O duplo Rimbaud (com um preâmbulo de Benjamin Fondane), Victor Segalen
A vida apaixonada da grande Catarina, Princesa Lucien Murat
Casa de incesto, Anaïs Nin
Morte de Judas seguido de O ponto de vista de Pôncio Pilatos, Paul Claudel
Os domingos de Jean Dézert seguido de contos, Jean de la Ville de Mirmont
Ser ou não ser – Três histórias, Honoré de Balzac
Babilónia, René Crevel
Alberto Savinio
O encontro (uma história incerta), Henri de Régnier
Carmilla, Sheridan Le Fanu
Mulheres na vida, Guy de Maupassant
O plantador de Malata, Joseph Conrad
A mandrágora, Jean Lorrain
A biografia de Vénus, deusa do amor, Francis de Miomandre Viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud
O nevoeiro de 26 de Outubro e outras lições de abismo, Maurice Renard
Salomé, Salomés…, Gustave Flaubert, Oscar Wilde, Guillaume Apollinaire e ainda Mário de Sá-Carneiro, Eugénio de Castro, Fernando Pessoa
Battling Malone, Pugilista, Louis Hémon
Kyra Kyralina, Panait Istrati
Codine, Panait Istrati
Carmen seguido de Lokis, Prosper Mérimée
Jésus-La-Caille, Francis Carco
Don Juan da Inglaterra ou o sonho de Lord Byron, Guillaume Apollinaire
O concílio de amor – Uma tragédia celeste, Oskar Panizza
Coração das trevas, Joseph Conrad Moscardino, Enrico Pea
Do Andrógino – Teoria plástica, Joséphin Péladan
Além, J.-K. Huysmans
Urika ou A jovem negra, Madame de Duras
Cartas portuguesas, Guilleragues
TÍTULO ORIGINAL: NOSTRADAMO
© SISTEMA SOLAR, CRL
RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2024
CAPA: ALBERTO SAVINIO, LE RÊVE DU POÉTE , 1929
REVISÃO: DIOGO FERREIRA
1.ª EDIÇÃO: NOVEMBRO DE 2024
ISBN: 978-989-568-150-1
DEPÓSITO LEGAL: 539502/24
IMPRESSÃO E ACABAMENTO: EUROPRESS