Antigos Mestres - Thomas Bernhard

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ANTIGOS MESTRES

Thomas Bernhard no Hotel Tivoli, Sintra, 1987. Fotografia de Peter Fabjan.

Thomas Bernhard ANTIGOS MESTRES

comédia

tradução e prefácio

José A. Palma Caetano

Título do original: Alte Meister. Komödie

© Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1986

All rights reserved by and controlled through Suhrkamp Verlag Berlin

© Sistema Solar Crl | chancela Documenta

Rua Passos Manuel 67 B, 1150-258 Lisboa

Tradução © Herdeiros de José A. Palma Caetano

ISBN 978-989-568-000-9

1.ª edição, Março de 2024

Capa sobre xilogravura de Ilda David’, 2024

Revisão: Helena Roldão

Depósito legal: 529035/24 Impressão e acabamento: Europress

Rua João Saraiva 10 A, 1700-249 Lisboa

Prefácio

A imagem de Thomas Bernhard, sobretudo na Áustria, mas também no estrangeiro, é caracterizada pela mesma ambivalência que em vários aspectos da sua obra já muitas vezes tem sido detectada. Desde que os seus livros começaram a despertar a atenção, tanto os críticos literários como o público em geral se dividiram entre o aplauso e a rejeição, a admiração e a repulsa. E mais ainda se dividiram os políticos e os meios oficiais austríacos, sendo notória uma clivagem entre os círculos conservadores e os mais progressistas, figurando entre estes os intelectuais, geralmente alinhados com a esquerda política, conquanto Bernhard nunca tenha sido, politicamente, nem de direita nem de esquerda, verberando na sua obra e nas suas exteriorizações todos os que na política militavam, fossem eles cristãos-democratas, socialistas ou comunistas. Mas a sua crítica violenta ao Governo, às instituições e aos políticos austríacos, bem como as suas palavras arrebatadas e mordazes contra o catolicismo e o nacional-socialismo que, na sua opinião, continuavam a dominar na Áustria e tornavam o Estado austríaco revoltante e abjecto granjearam-lhe a animosidade e a contestação de todos aqueles que, pela posição que ocupavam ou pelas suas convicções nacionalistas ou religiosas, se sentiam atingidos e não compreendiam ou simplesmente desprezavam a estética literária do autor.

É certo que após a sua morte, em 1989, a aceitação de Thomas Bernhard e o reconhecimento do valor da sua obra aumentaram na Áustria, mas ainda hoje há quem o considere, em determinados círculos, o «difamador da pátria». E no estrangeiro ainda a sua imagem é também

influenciada, em muitos casos, por essa atitude — mal compreendida — violentamente antiaustríaca, anticatólica e antinazi. Mas naturalmente nos meios literários e entre todos os verdadeiros conhecedores da literatura, Bernhard é considerado hoje uma das figuras mais relevantes da literatura de língua alemã na segunda metade do século XX. Ainda há relativamente pouco tempo o famoso crítico alemão Marcel Reich-Ranicki dizia, num livro constituído por entrevistas sobre vários autores, o seguinte: «Se me perguntassem quais foram os três maiores talentos da literatura alemã, no domínio da prosa, depois de 1945 — não me refiro naturalmente aos da antiga geração, como Thomas Mann ou outros, mas aos da literatura mais recente —, eu indicaria decerto três nomes: Wolfgang Koeppen, Günter Grass, Thomas Bernhard. São as três mais fortes energias épicas na nova prosa alemã. Considero, portanto, Thomas Bernhard um dos verdadeiramente grandes.» (Marcel Reich-Ranicki: Lauter schwierige Patienten. Gespräche mit Peter Voß über Schriftsteller des 20. Jahrhunderts. Berlim, Munique, 2002, pp. 276 s.)

Mas será necessário dizer que, para se compreender e avaliar devidamente a obra de Thomas Bernhard — e Reich-Ranicki não deixa de o salientar também —, é preciso conhecer a sua biografia, as condições do seu nascimento, os problemas da sua infância, os traumatismos que esta lhe deixou, a doença que ainda na juventude o afectou e o marcou para toda a vida, todo o conjunto de circunstâncias que, no período trágico da Segunda Guerra Mundial e nos anos difíceis que se lhe seguiram, moldaram o espírito, o carácter e a sensibilidade do jovem que, maltratado pela existência mas cheio de ambição, acabou por encontrar na literatura a única forma de fugir ao desespero e de conseguir sobreviver. A revolta, o azedume, a acusação, a denúncia sem contemplações de tudo o que, na sociedade de que se sentia mártir, lhe causava aversão e repugnância surgem assim na sua obra de certo modo como uma consequência lógica desse sofrimento acumulado.

A mácula de filho ilegítimo sentia-se ainda na primeira metade do século XX como uma espécie de anátema e a vergonha perseguia as famílias em que tal acontecia. Daí que Herta Bernhard, ao saber que estava grávida e vendo-se abandonada pelo homem com quem tivera uma aventura — ou que, segundo algumas opiniões, a violentara —, um carpinteiro de Henndorf, na região de Salzburgo, de nome

Alois Zuckerstätter, foi para a Holanda trabalhar como criada e aí, na cidade de Heerlen, a 9 de Fevereiro de 1931, deu à luz o filho que não desejava e que, como tal, sempre tratou de certo modo como um empecilho. Alguns meses depois, perante a dificuldade de ter consigo a criança por causa do trabalho, Herta Bernhard levou o pequeno Thomas para casa dos avós, que habitavam então em Viena. Em 1935, estes deixaram, porém, a capital e foram viver para Seekirchen, perto de Henndorf, a povoação já atrás referida da região de Salzburgo, levando consigo o neto. Terá sido esse período em que viveu com os avós maternos o mais feliz da infância de Thomas Bernhard, para o qual o avô, Johannes Freumbichler, foi uma das figuras tutelares, sem dúvida aquela que mais o influenciou e verdadeiramente lhe apontou o caminho que ele viria a seguir na vida.

Johannes Freumbichler era escritor, um escritor de carácter regionalista, que se dedicou inteiramente à literatura, tudo sacrificando a essa paixão — mesmo a própria família, que tinha de trabalhar também para ele e para lhe garantir a sobrevivência —, mas nunca conseguiu o êxito ambicionado, embora tenha gozado da protecção do famoso dramaturgo alemão Carl Zuckmayer e tenha chegado mesmo a receber o Prémio Nacional Austríaco de Literatura. Foi Freumbichler que iniciou o neto na literatura e na filosofia, augurando-lhe uma carreira em que ele nunca conseguira triunfar na medida desejada. Thomas Bernhard sempre teve pelo avô materno uma enorme veneração e decerto o tomou como modelo quando enveredou pelo caminho das letras.

Depois de regressar da Holanda, Herta Bernhard casou com um cabeleireiro, Emil Fabjan, que arranjou trabalho na Baviera, para onde o casal foi viver em fins de 1937, levando consigo o pequeno Thomas. A partir daí a vida do futuro escritor torna-se um inferno, o inferno da infância, a que em Antigos Mestres largamente se refere. A relação com a mãe é muito difícil e a escola, de que muda várias vezes, torna-se para ele um martírio. É o período nazi com o sistema hitleriano, que ele não suporta. Em 1943 entra para um internato nacional-socialista em Salzburgo e assiste ao horrível bombardeamento da cidade, que descreve de uma maneira impressionante na sua obra autobiográfica sobre a infância. Volta então para junto da família na Alemanha, mas, após o termo da guerra, regressa a Salzburgo e vai frequentar o mesmo internato, transformado agora num estabelecimento de ensino católico. Segundo, porém, ele próprio descreve, tudo permanecera na mesma, o sistema é idêntico, o rigor e a disciplina são iguais, só mudaram as pessoas e os símbolos: o director, que era antes um nazi, é agora um padre e onde estava antes um retrato de Hitler está agora um crucifixo. Esta experiência deixou-lhe marcas profundas e ajuda a compreender as suas objurgatórias contra o catolicismo e o nacional-socialismo.

Também muito importante para a futura carreira de Thomas Bernhard foi o facto de em Salzburgo ter tido lições de música, primeiro de violino e depois de estética musical e canto. Bernhard possuía uma excelente voz de barítono e, a partir de certa altura, terá pensado realmente em enveredar pelo caminho da arte como cantor lírico. Nesse propósito o apoiava sobretudo o avô, que ambicionava para o neto um futuro de grande artista.

Tudo, porém, se transformou na sua vida quando, em 1947, abandonou os estudos, aparentemente por não suportar mais o internato e possivelmente também por razões familiares e dificuldades financeiras, e foi trabalhar para um estabelecimento comercial num dos

bairros mais pobres e mais mal-afamados de Salzburgo. Esta decisão é algo difícil de entender e nela parece revelar-se já o carácter rebelde, voluntarioso e independente do jovem, que mais tarde marcou de forma tão profunda e original a sua obra de escritor.

Pouco mais de um ano durou esse trabalho árduo e pesado no armazém de géneros alimentícios. Uma constipação mal curada deu origem depois a uma pleurisia, que acabou por evoluir para uma tuberculose. Os dois anos que se seguem são verdadeiramente trágicos para Thomas Bernhard. Passa esses dois anos — até Janeiro de 1951 — internado em hospitais e sanatórios para tuberculosos e chega a ser levado para o quarto dos moribundos, quando os médicos o consideram absolutamente perdido. Mas o jovem, por um enorme esforço da vontade, como ele próprio diz, consegue resistir e terá sido decerto um dos poucos, se não o único, a sair desse quarto com vida. Em 11 de Fevereiro de 1949 morre o avô, internado no mesmo hospital em que ele próprio se encontrava. E no ano seguinte morre-lhe a mãe, quando finalmente criara com ela uma relação de afectividade que nunca antes existira. À sua volta tudo parece ruir e a existência afigura-se-lhe como algo que não faz nenhum sentido.

Um único acontecimento se prefigura positivo para o futuro escritor durante esse período desolado. Quando se encontrava internado no sanatório de Grafenhof, Thomas Bernhard trava conhecimento com uma senhora 35 anos mais velha que ele, Hedwig Stavianicek, que o irá acompanhar e apoiar sob diversas formas até morrer, em 1984. Esta senhora, a quem Bernhard chamou a «pessoa da minha vida» (mein Lebensmensch, uma expressão construída pelo escritor, talvez também para evitar qualquer confusão com companheira e com outro tipo de relacionamento), pôs à sua disposição a residência que tinha em Viena e introduziu-o na vida cultural da capital austríaca. Além disso, acompanhou-o sobretudo nas primeiras viagens ao estrangeiro e

tê-lo-á ajudado também financeiramente, em especial nos primeiros tempos. Hedwig Stavianicek faleceu com 89 anos e até ao fim Thomas Bernhard dela se ocupou também com grande desvelo. A obra Antigos Mestres é considerada uma homenagem póstuma do escritor àquela que lhe dedicou mais de trinta anos da sua vida, apoiando-o e ajudando-o com todos os meios de que dispunha. A morte da mulher de Reger constitui um acontecimento relevante da obra em questão e com ela se simboliza a morte de Hedwig Stavianicek. É natural que no sentir de Reger se projecte também algo do sentir do próprio autor.

Há, assim, na vida de Thomas Bernhard, duas figuras tutelares a que o escritor muito ficou a dever e que sobressaem de forma nítida na galeria dos seus familiares e amigos: o avô Freumbichler e Hedwig Stavianicek. São estas duas figuras as «pessoas da sua vida», os seus Lebensmenschen. As referências que lhes faz na sua obra literária constituem um evidente testemunho de reconhecimento e veneração.

Quanto ao pai, nunca Thomas Bernhard o conheceu e essa circunstância também para ele constituiu um evidente traumatismo. Alois Zuckerstätter, com receio das consequências que poderia ter o seu episódio com Herta Bernhard, acabou por fugir para a Alemanha após ter mudado várias vezes de residência na Áustria, viveu em Berlim e aí se suicidou em 1940. Recusou-se sempre a reconhecer o filho, mas a paternidade veio a ser provada na sequência de um processo judicial. Levava por último uma vida de alcoólico, mas casara e deixou uma filha, portanto uma meia-irmã do escritor, da qual este, porém, nunca teve conhecimento. Toda esta problemática relacionada com o pai constitui, sem dúvida, um dos factores psicológicos que mais afectaram Thomas Bernhard e está intimamente ligada à questão das origens, ao tema da infância e à procura do eu e da própria identidade na sua obra literária. Daqui resultou efectivamente todo um complexo temático que nessa obra assume um carácter determinante.

É na poesia, a que Bernhard principalmente se dedica no início da sua carreira literária, que a procura do pai se evidencia de forma mais aguda, figurando aí a par da procura de Deus. «A procura do pai, bem como a interrogação sobre Deus tornam-se temas centrais da lírica de Bernhard.» (Bernhard Judex: Wild wächst die Blume meines Zorns… Der Vater-Sohn-Problematik bei Thomas Bernhard. Frankfurt am Main, 1997, p. 69). Mais tarde, porém, a procura do pai vai inserir-se num conjunto de factores psicológicos, a que Bernhard Judex chama o «complexo das origens», enquanto a procura de Deus — pungente, por exemplo, nos «Nove salmos» de Na Terra e no Inferno — se dilui na visão concreta e real da vida e do mundo e na repugnância que este lhe inspira. A procura do pai associa-se então à procura das origens e da própria identidade: «A interrogação sobre as origens pode-se fixar, para os protagonistas de Bernhard, essencialmente na figura do pai, remetendo deste modo para a própria problemática de Bernhard sobre a identidade e as origens, a qual está intimamente ligada ao pai. A procura do eu e a procura do pai dificilmente se podem separar uma da outra e convergem na interrogação sobre as origens e sobre as raízes da identidade.» (Idem, ibidem, p. 124).

Sem podermos ir mais longe na análise, extremamente complexa, de toda a problemática relacionada com as origens, a infância, a doença e todas as suas influências na psicologia do escritor, bem como do seu papel dominante em toda a obra, não queremos deixar de chamar a atenção para a sua expressão em Antigos Mestres, lembrando apenas as referências à infância tanto de Atzbacher como de Reger, que este classifica de «inferno» e de «buraco tenebroso», do qual só com a morte dos pais se pode sair. De notar também o papel do pai, que por completo se apaga e se deixa subjugar, e o da mãe, que tudo domina, torturando os filhos com a sua tirania, o que conduz implicitamente à morte da filha. De natureza semelhante são também os pais do narrador no romance

Extinção. No que se refere à doença, em Antigos Mestres tanto Reger como Atzbacher foram, como Bernhard, doentes pulmonares e Atzbacher declara mesmo sofrer também de problemas respiratórios.

Os traumatismos tanto psíquicos como físicos que afectaram Thomas Bernhard na infância e na juventude e lhe deixaram marcas profundas para toda a vida, influenciando decisivamente toda a sua obra, já foram objecto de análises mais ou menos profundas e são referidos pelos críticos como dados adquiridos de importância insofismável. Reich-Ranicki diz, por exemplo, no livro já mencionado: «No seu caso é, em primeiro lugar, extremamente importante a grave doença e as suas consequências em toda a sua constituição física. E, em segundo lugar, acresce que Thomas Bernhard é um filho ilegítimo — este facto é sempre subestimado. Hoje isso não teria qualquer problema, mas nessa altura tinha com certeza.» (Marcel Reich-Ranicki: ibidem, p. 279). E, para além do facto de ser filho ilegítimo, há ainda toda a problemática relativa ao pai, que atrás referimos, e o relacionamento com a mãe, que o tratava sem qualquer carinho e frequentemente o humilhava, à semelhança do que igualmente lhe aconteceu no internato nacional-socialista para crianças rebeldes e difíceis de educar em Saalfeld, na região alemã da Turíngia, para onde foi mandado em 1942. Com base na descrição feita pelo próprio Bernhard nas suas obras autobiográficas Die Kälte e Ein Kind, escreve Hans Höller na sua monografia do escritor: «Desse período ficou gravada na memória do autor uma imagem terrível, que permite reconhecer a ferida causada pelo procedimento estatal: a criança, da qual se descobrira que urinava na cama, no lavadouro da casa de correcção lá em baixo, onde só havia ainda as caves, a seu lado uma outra vítima, à qual se enrolava na cabeça o lençol sujo de fezes, enquanto a ela lhe aplicavam um pó branco nas coxas em ferida junto dos testículos. E a criança tinha de ser particularmente vulnerável nesta fraqueza recamada de vergonha,

porque ela já tinha sido também tornada pública pela mãe, quando tinha pendurado o lençol molhado de urina, como uma bandeira, na varanda da casa situada no centro da vila de Traunstein. Um entrelaçamento subtil de terror familiar e estatal, ainda por cima quando a mãe utilizava o Estado, que, em vez do pai consanguíneo, pagava um subsídio para o filho ilegítimo, como substituto do pai para a humilhação do filho. Com as palavras “para tu veres o que vales”, mandava ela o “ inútil”, que não “vale nada” e é “culpado de tudo”, à Câmara Municipal, a receber o subsídio estatal que lhe era concedido.» (Hans Höller: Thomas Bernhard. Reinbek bei Hamburg, 1993, pp. 19 s.).

Um episódio significativo, só por si já bastante revelador, mas que constitui apenas um exemplo do que Thomas Bernhard terá sofrido com o Estado nacional-socialista e o facto de ser filho ilegítimo.

Todas estas feridas abertas no espírito e no corpo de Thomas Bernhard durante a infância e a juventude nunca mais sararam. Pelo contrário, foram-se agravando, especialmente o padecimento físico, e ajudam a compreender a sua atitude literária, mas decerto não a justificam por completo. Há naturalmente outros factores que terão de ser também objecto de análise, para que a imagem do escritor se projecte na sua verdadeira dimensão e com cores mais autênticas, não apenas a preto-e-branco. É evidente que às influências exteriores terá de se juntar também todo o conjunto de impulsos interiores, isto é, o carácter, a maneira de ser, a sensibilidade de Bernhard. E sobre este campo extremamente vasto, complexo e difícil não poderemos deixar aqui senão algumas breves ideias e sugestões.

Um dos pontos mais polémicos, se não mesmo o mais polémico, da obra de Thomas Bernhard é o que se refere às suas diatribes contra a Áustria ou, mais propriamente, contra o Estado austríaco e também contra o povo austríaco seu contemporâneo. E dizemos contemporâneo, porque é a contemporaneidade que na Áustria lhe repugna e que o repele, já

que Bernhard se insere naturalmente na cultura austríaca e dela não pode prescindir. Mas de maneira nenhuma se consegue identificar com a actualidade e o passado recente, com o nacional-socialismo e o catolicismo hipócrita que por toda a parte detecta. Viaja com frequência para os países do Sul da Europa, para Itália, Espanha e Portugal, por razões de saúde, por causa da doença pulmonar, que depois lhe afecta também o coração, mas regressa sempre à Áustria, de que intimamente necessita. Esta relação tem sido designada como uma relação de «amor-ódio», que deste modo se insere na ambivalência já atrás referida e que caracteriza não só a obra, mas também os sentimentos de Bernhard. O sentimento de «amor-ódio» não surge, porém, só depois das desconsiderações e ofensas que, no seu entender, lhe fizeram na Áustria, em consequência de opiniões expressas na sua obra literária. Ele está presente nessa obra desde o início, o que significa que tem raízes mais fundas. Provém de uma reacção emocional a tudo o que logo na infância afectou a sua extrema sensibilidade, o seu egocentrismo, o empolamento do eu e uma noção de ética e de estética que lhe terá sido inspirada sobretudo pelo avô. Tudo isto associado a uma natureza rebelde, a uma grande ambição de conquistar um lugar de relevo (o que o avô, igualmente ambicioso, nunca conseguira) — nas já citadas poesias de Na Terra e no Inferno as palavras fama e glória (al. Ruhm) surgem com frequência — e à sua estética do exagero, que terá de ser também devidamente explicitada. Para não alongar demasiado esta exposição, que tem apenas por fim ajudar a compreender melhor a obra que aqui se apresenta, vamos citar unicamente algumas passagens de Antigos Mestres que poderão documentar de alguma forma as opiniões anteriormente expressas. No que se refere à Áustria, o musicólogo Reger exprime bem essa dicotomia do amor-ódio: «Um país tão bonito, disse Reger, e um pântano moral tão profundo, disse ele, um país tão bonito e uma sociedade tão repassadamente brutal e infame e autodestruidora.» (p. 185). E noutro

momento: «Você não pode imaginar como eu gosto do nosso país, disse Reger, mas detesto profundamente este Estado actual; não quero, de futuro, ter nada que ver com este Estado, que tão asqueroso é, um dia e outro dia.» (p. 212).

Mas, vistas bem as coisas, não é apenas na Áustria que tudo é odioso: «Este mundo e a humanidade atingiram hoje um grau de estupidez que uma pessoa como eu já não se pode permitir, disse ele, num mundo destes já não pode viver uma pessoa assim, com uma humanidade destas já não pode coexistir uma pessoa como eu, disse Reger.» (p. 152). E pouco depois: «Tudo hoje é cheio de vileza e cheio de maldade, mentira e traição, disse Reger, nunca a humanidade foi tão despudorada e pérfida como hoje.» (p. 153). Daí que seja levado a concluir: «Nós dizemos que não há nenhum país mais falso e mais hipócrita e mais perverso que este país, mas quando saímos deste país ou só olhamos para o que se passa lá fora, vemos que fora do nosso país são também só a maldade e a hipocrisia e a mentira e a baixeza que comandam tudo. Nós temos o Governo mais asqueroso que se pode imaginar, o mais hipócrita, mais perverso, mais vil e simultaneamente o mais estúpido, dizemos nós, e naturalmente o que pensamos está certo e dizemo-lo também a todo o momento, disse Reger, mas quando olhamos para o que se passa fora deste país vil e hipócrita e perverso e falso e estúpido, vemos que os outros países são igualmente falsos e hipócritas e, em suma, igualmente vis, disse Reger.» (p. 153 s.). Só que, acrescenta Reger, «esses outros países pouco nos interessam, […] só o nosso país é que nos interessa alguma coisa» (p. 154).

O protagonista de Antigos Mestres introduz aqui um elemento que de certo modo atenua ou relativiza o que afirma da Áustria. O que há de odioso nos Austríacos é afinal comum a toda a humanidade, encontra-se em todos os países, embora logo venha a restrição de que é só o nosso país que nos interessa e não os outros.

A humanidade é horrível, reconhece Reger, mas as pessoas interessam-no, embora as deteste. É a observação do indivíduo que o atrai, mas a sociedade não a suporta. Como a do amor-ódio, a ambivalência daquilo que atrai e simultaneamente repele: «… eu sou por assim dizer um fanático das pessoas, disse ele, naturalmente não um fanático da humanidade, mas um fanático dos homens. Foram sempre só os homens que me interessaram, disse ele, porque por natureza me repeliam, não houve nada que mais intensamente me atraísse que os homens, mas ao mesmo tempo nada que mais profundamente me repelisse que os homens. Detesto os homens, mas eles são ao mesmo tempo o único objectivo da minha vida.» (p. 87). E as pessoas não são necessárias apenas como objecto de observação, mas também porque a solidão é insuportável e só entre as pessoas é possível sobreviver: «Odiamos as pessoas e queremos, no entanto, estar com elas, porque só com as pessoas e no meio delas temos possibilidade de continuar a viver e não ficar doidos.» (p. 201 s.).

O mundo é horrível, a humanidade é horrível e quem pensa em tudo isso tem naturalmente de ser infeliz. E Reger é, «por natureza», uma pessoa infeliz, mas a sua consciência de, como ele diz, «artista crítico» tornou-o feliz: «Com esta consciência eu sou feliz. E assim sou feliz há mais de trinta anos, disse ele, conquanto, por natureza, eu seja uma pessoa infeliz. A pessoa que pensa é, por natureza, uma pessoa infeliz, disse ele ontem. Mas mesmo essa pessoa infeliz pode ser feliz, disse ele, de cada vez sempre, no verdadeiro sentido da palavra e do conceito, por passatempo.» (p. 91).

Reger refugiou-se na arte, que procurou por assim dizer como uma tábua de salvação: «Eu entrei na arte para fugir da vida, como também poderia dizer, disse ele. Evadi-me para a arte, disse ele. Aguardei o momento mais favorável e aproveitei esse momento e evadi-me do mundo para a arte, para a música, disse ele.» (p. 140 s.). Também neste

caso, porém, a ambivalência é notória: «A arte é a forma suprema e a mais repugnante ao mesmo tempo, disse ele. Mas temos de procurar convencer-nos de que existe a arte num nível elevado e num nível supremo, disse ele, porque senão sucumbimos ao desespero.» (p. 73). A arte, segundo Reger, não é perfeita, em todas as obras de arte, seja qual for essa arte, mesmo nos «chamados Antigos Mestres», há pelo menos um erro grave, toda a arte tem por móbil o interesse económico e é para o artista uma forma de sobrevivência em vez da procura de um ideal estético e, no entanto, é nessa arte que, em última análise, Reger se refugia para poder sobreviver. Segundo Alfred Pfabigan, uma «solução surpreendente» para o dilema do homem que oscila entre a «loucura apolínea» e o desejo de tornar a vida digna de ser vivida (cf. Alfred Pfabigan: Thomas Bernhard. Ein österreichisches Weltexperiment. Viena, 1999, p. 386).

Seja como for, porém, os juízos de Reger sobre a arte são demolidores. Ele pratica primeiro uma «estética negativa», retirando, num primeiro passo, toda a legitimidade à «religião da arte», para, num segundo passo, construir uma estética a partir da obra (cf. idem, ibidem, p. 396). Trata-se, portanto, de uma retórica do autor e os juízos expressos não se podem tomar como juízos deste sobre a arte. Um crítico austríaco disse recentemente, numa conferência sobre Thomas Bernhard e a obra Antigos Mestres, mais ou menos o seguinte, que nos parece bastante pertinente (citamos de memória e não por palavras textuais): «Um escritor não escreve juízos. Os juízos escritos por um escritor são literatura. Não se deve considerar, portanto, esta obra como um juízo sobre a arte, mas como uma obra de arte feita de juízos, que são apenas retórica e estética.» Assim se devem entender, por exemplo, as críticas a Stifter e Bruckner, a ridicularização de Heidegger, as opiniões sobre Mahler ou sobre a Arte Nova, etc. E do mesmo modo as diatribes não só contra a Áustria, mas também contra o Estado em geral, contra os

professores, os pais, os guias dos museus, etc., etc. O próprio Reger fala na necessidade de transformar todas as obras de arte em caricatura, para que as possamos suportar. E a caricatura é uma forma de exagero, que constitui um aspecto essencial da estética de Thomas Bernhard. Com efeito, o próprio Bernhard utiliza a expressão «artista do exagero» (Übertreibungskünstler) no romance Extinção e assim realmente o podemos classificar. O que o escritor pretende, sejam quais forem as razões que a isso o terão movido, não é retratar a realidade, mas sim caricaturá-la, não é produzir um retrato, mas sim uma caricatura. Wendelin Schmidt-Dengler estudou esta faceta da obra de Bernhard numa obra constituída por um conjunto de ensaios justamente com o título Der Übertreibungskünstler, onde a certa altura escreve: «Os textos de Bernhard não pretendem transmitir uma “realidade aparente”, para citar Robert Musil. E Bernhard acentuou também a artificialidade das suas criações. Não se trata, portanto — para utilizar a distinção aristotélica —, de “mimesis”, mas sim de “poiesis”. Não se deve entender artificialidade como algo de depreciativo em relação a naturalidade, mas sim como uma concentração consciente no processo de criação. Assim se adquire também para a leitura do texto uma perspectiva diferente da que traria a tentativa de associar esse texto ao quadro sociocultural de uma Áustria em que a acção se localiza.» (Wendelin Schmidt-Dengler:

Der Übertreibungskünstler. Studien zu Thomas Bernhard. Viena, 1986, p. 31). E o mesmo autor opina ainda que Thomas Bernhard «não descreve Viena, não escreve nenhuma narrativa sobre a Áustria, mas modela frases» (idem, ibidem, p. 34).

Seja qual for, porém, a abordagem que fizermos da obra de Thomas Bernhard, temos de ter sempre em conta numerosos factores, desde os incidentes da sua biografia até à sua personalidade e às suas concepções estéticas, para podermos interpretar essa obra de uma forma equilibrada e justa, sem desvirtuar a imagem do autor.

Um aspecto fundamental da estética de Bernhard, a que precisamos de dedicar ainda alguma atenção, é a sua linguagem, o seu estilo, que é profundamente original e o distingue de todos os outros autores de língua alemã, colocando-o na primeira linha da modernidade literária. O já citado crítico alemão Reich-Ranicki declarou a propósito: «Ele foi um dos grandes mestres da linguagem, de um idioma excepcionalmente sugestivo. A sua prosa é monótona, cheia de repetições. Mas essa monotonia é inesquecível.» (Marcel Reich-Ranicki: ibidem, p. 280). E noutro ponto da mesma entrevista: «Bernhard é um autor já reconhecido não só na Alemanha, mas também em vários outros países. Mas essa prosa não é traduzível, pois — o que é notável — ela não se afasta muito da poesia.» ( Idem, ibidem, p. 292).

Na verdade, se não podemos dizer propriamente que essa prosa não é traduzível, como faz Reich-Ranicki — e aqui não queremos entrar na discussão dos conceitos de «traduzibilidade» e «intraduzibilidade» —, temos de dizer ao menos que a sua tradução não é fácil e põe numerosos problemas, tanto no referente às repetições, que muitas vezes têm no alemão uma expressão diferente daquela que se lhes pode dar na língua-alvo, neste caso no português, devido à diferente estrutura das duas línguas no domínio sintáctico, como no que diz respeito às possibilidades semânticas, tanto mais que Bernhard cria muitas formas compostas, que no português não são possíveis. Cremos, no entanto, que, se o estilo na língua de partida é original e inovador, o tradutor, como criador que também é, será forçado igualmente a inovar, além do mais para obedecer ao princípio, que é o nosso, de que uma tradução se deve aproximar o mais possível do original, sem naturalmente deixar de constituir um texto que literariamente, isto é, quanto ao seu valor literário, se aproxime também o mais possível desse original. Um desiderato particularmente difícil no caso de um autor como Thomas Bernhard. Uma nota ainda sobre a tradução: queremos esclarecer que

deixámos deliberadamente toda a disposição do texto como no alemão, inclusive, por exemplo, os itálicos e os títulos de obras citadas.

No que se refere à linguagem, é ainda de salientar a influência nela exercida pela música, não só no aspecto melódico, no ritmo das palavras e da frase, mas também na própria estrutura do discurso. Com efeito, essa estrutura assemelha-se, como, por exemplo, em O Sobrinho de Wittgenstein, mas aqui de uma forma mais complexa, devido à maior dimensão da obra, à de uma peça musical, em particular de um andamento sinfónico. Temos igualmente aqui uma introdução, em que o narrador, Atzbacher, expõe a razão por que se encontra no sábado de manhã no Museu de História de Arte, depois o desenvolvimento dos temas, que se renovam, repetem e entrelaçam, numa sequência sempre clara e harmónica, até ao final, em que o resumo temático é constituído pelas últimas declarações de Reger nessa manhã de sábado, com a conclusão inesperada da ida de Reger e Atzbacher ao Burgtheater, para verem a comédia de Kleist A Bilha Quebrada. «A representação foi horrorosa» é a consequência lógica de todo o discurso do texto e ao mesmo tempo o «forte» ou «fortíssimo» da conclusão musical.

As repetições das palavras e frases podem-se entender, portanto, também como um elemento preponderante dessa estrutura musical. As frases, geralmente com determinadas palavras ou expressões fulcrais, repetem-se com inúmeras variações, giram como que em círculo ou em espiral, culminando numa forma que sintetiza a ideia. Há assim repetidos ecos do mesmo pensamento ou do mesmo motivo, que o vão modelando e tornando cada vez mais impressivo o seu efeito, de modo a fazer ressaltar o seu conteúdo semântico. Claro que para o leitor desprevenido as repetições podem ser inicialmente um elemento perturbador, pela falta de habituação a esse modelo estilístico, que dá origem também a uma sensação de monotonia, mas, quando o leitor a esse modelo se habitua, torna-se notória a sua enorme fluência e a monotonia

como que deixa de se sentir. Trata-se de qualquer modo de uma forma estética original e cuidadosamente elaborada, em que as repetições e variações se processam de acordo com uma lógica interior, que se verifica igualmente na transição de um tema para outro, fluindo todo o texto numa sequência perfeita, que lhe transmite coerência e unidade.

Para uma melhor compreensão desta obra, será necessário atentar também na sua construção. Antigos Mestres é uma narrativa com uma acção muito reduzida ou quase sem acção. Há um narrador, Atzbacher, que de si próprio pouco fala e reproduz sobretudo as palavras do musicólogo Reger, a personagem principal, e de Irrsigler, um vigilante do Museu de História de Arte. São, portanto, três homens, que se dispõem numa nítida hierarquia: Reger, o erudito e mestre, Atzbacher, seu admirador e discípulo, e Irrsigler, homem simples do Burgenland (uma das nove regiões federadas da Áustria), moldado e instruído por Reger, do qual se tornou «porta-voz». A mulher de Reger, apesar da sua importância na obra, é apenas referida, mas não tem papel activo, não tem voz na narrativa. Trata-se, aliás, de uma das poucas figuras femininas — lembramos, além desta, a de Maria, em Extinção, na qual se pode reconhecer a poetisa austríaca Ingeborg Bachmann — apresentadas por Thomas Bernhard de forma positiva, isto é, como mulheres inteligentes, compreensivas e abertas aos valores do espírito.

Para além do narrador, há ainda em Antigos Mestres «alguém» que fala e que podemos imaginar ser a pessoa que procedeu à publicação do manuscrito deixado por Atzbacher. Esse «alguém», no entanto, apenas se faz ouvir no princípio e no fim da narrativa por meio da expressão «escreve Atzbacher». Processo idêntico utiliza Bernhard também no romance Extinção. É importante ainda notar a perspectiva do narrador, tanto no que se refere ao tempo como ao lugar. Embora a narrativa tenha sido escrita posteriormente, como indicam os tempos do pretérito usados pelo narrador, este situa-se num momento referencial

da narração, nomeadamente o sábado de manhã, e num lugar também de referência, o Museu de História de Arte. Os dois dias que constituem o núcleo central ou de referência dos acontecimentos narrados são esse sábado e a sexta-feira antecedente, em que Reger e Atzbacher se haviam também encontrado no museu. Esses dois dias são marcados pelos advérbios hoje e ontem, respectivamente. Outros acontecimentos referidos não têm em geral localização precisa no tempo e é por vezes o lugar que serve de referência como, por exemplo, «assim disse Reger no Ambassador» ou «assim disse Reger então na casa da Singerstrasse». Saliente-se ainda que a localização referencial no Museu de História de Arte nem sempre, no original alemão, é bem definida pelos verbos. Em português marcámo-la devidamente, nos casos em que isso se tornava necessário, com o verbo vir, para indicar que o narrador ou a pessoa que fala se encontra nesse momento no Museu de História de Arte.

Por último, ainda o problema da classificação desta narrativa. Em subtítulo, Thomas Bernhard chama-lhe Comédia. Será afinal a comédia da vida? Ou não será esta antes uma tragédia? Já no fim da obra, Bernhard fornece-nos talvez uma pista para reflexão: «Tanto que nós pensamos e que falamos e julgamos que somos competentes e na verdade não somos, essa é a comédia, e quando perguntamos, como é que vai ser agora? é a tragédia, meu caro Atzbacher.» (p. 212 s.).

ANTIGOS MESTRES comédia

A punição corresponde à culpa: ser privado de todo o prazer de viver, ser levado ao mais elevado grau de tédio da vida.

kierkegaard

Embora o meu encontro com Reger no Museu de História de Arte só estivesse marcado para as onze e meia, às dez e meia já eu lá estava, para, como havia já muito tempo pretendia fazer, o poder observar uma vez tranquilamente de um ângulo tão ideal quanto possível, escreve Atzbacher. Como ele tem de manhã o seu lugar na chamada Sala Bordone em frente do Homem de Barba Branca de Tintoretto, no banco forrado de veludo, em que ele ontem, depois de me explicar a chamada Sonata da Tempestade, continuou a sua exposição sobre a arte da fuga, desde antes de Bach até depois de Schumann, como ele especifica, mas com uma disposição para falar apenas e cada vez mais de Mozart e não de Bach, tive eu de tomar posição na chamada Sala Sebastiano; tive, portanto, contra o meu gosto, de me conformar com a vista de Ticiano para poder observar Reger diante do Homem de Barba Branca de Tintoretto, e de o fazer de pé, o que não constituiu qualquer inconveniente, pois prefiro estar de pé a sentar-me, sobretudo ao observar alguém, e eu durante toda a minha vida sempre tenho observado melhor em pé do que sentado, e dado que eu, olhando da Sala Sebastiano para a Sala Bordone e aplicando a vista da maneira mais intensa, conseguia ver, com efeito, sem sequer ser prejudicado pelo espaldar do banco, todo o perfil de Reger, que ontem, com certeza gravemente afectado pela brusca depressão atmosférica ocorrida na noite anterior, ficou durante todo o tempo com o chapéu preto na cabeça, como conseguia ver, portanto, todo o lado esquerdo de Reger virado para mim, o

meu propósito de examinar uma vez Reger com toda a tranquilidade foi bem-sucedido. Como Reger (de sobretudo), apoiado na bengala que tinha apertada entre os joelhos, estava, segundo me pareceu, inteiramente concentrado na contemplação do Homem de Barba Branca, não tinha de ter qualquer receio de ser descoberto por Reger enquanto o observava. O empregado da sala, de seu nome Irrsigler (Jenö!), com o qual Reger tem uma relação especial devido a um conhecimento de mais de trinta anos e com o qual eu próprio tenho mantido até hoje um excelente contacto (também durante já mais de vinte anos), percebeu, através de um sinal que lhe fiz com a mão, que eu queria uma vez observar Reger com toda a tranquilidade e, todas as vezes que Irrsigler aparecia com a regularidade de um mecanismo de relógio, fazia como se eu ali não estivesse, do mesmo modo que fazia também como se Reger ali não estivesse quando ele, Irrsigler, no desempenho das suas funções, examinava com o seu ar habitual, desagradável para todos os que não o conheciam, os visitantes do museu que, incompreensivelmente nesse sábado em que a entrada era grátis, não eram em grande número. Irrsigler tem o olhar incómodo que os vigilantes dos museus usam para intimidar os visitantes dotados, como se sabe, de todas as espécies de má-criação; a sua maneira de aparecer subitamente e sem fazer o mínimo ruído à porta de qualquer sala, a fim de proceder à sua inspecção, é de facto antipática para quem não o conheça; com o seu uniforme cinzento mal talhado, mas concebido sem dúvida para a eternidade, o qual, seguro por grandes botões pretos, pende do seu corpo magro como de um cabide, e com o seu boné feito do mesmo pano cinzento faz lembrar mais os guardas das nossas penitenciárias que um guardião de obras de arte ao serviço do Estado. Desde que o conheço, Irrsigler apresenta sempre a mesma palidez, embora não esteja doente, e Reger classifica-o há já várias

décadas como um morto do Estado que há trinta e cinco anos faz serviço no Museu de História de Arte. Reger, que frequenta o Museu de História de Arte há mais de trinta e seis anos, conhece Irrsigler desde o primeiro dia da sua entrada ao serviço e tem com ele uma relação inteiramente cordial. Bastou apenas meter-lhe um dia na mão uma pequena quantia para garantir para sempre a reserva do banco na Sala Bordone, disse uma vez Reger há já vários anos. Reger estabeleceu com Irrsigler uma relação que para ambos se tornou um hábito há mais de trinta anos. Se Reger deseja estar sozinho na contemplação do Homem de Barba Branca de Tintoretto, Irrsigler fecha simplesmente a Sala Bordone para os visitantes, colocando-se muito simplesmente à entrada e não deixando passar ninguém. Reger só precisa de fazer um sinal com a mão e Irrsigler fecha imediatamente a Sala Bordone, sem ter mesmo receio de impelir para fora da Sala Bordone os visitantes que na Sala Bordone se encontrem, porque Reger assim o deseja. Irrsigler aprendeu o ofício de marceneiro em Bruck an der Leitha, mas abandonou a marcenaria ainda antes da entrega da carta de oficial, no intuito de entrar para a polícia. A polícia, no entanto, rejeitou Irrsigler por debilidade física. Um seu tio, irmão da mãe, que era vigilante no Museu de História de Arte já desde o ano de mil novecentos e vinte e quatro, arranjou-lhe então o lugar no Museu de História de Arte, o mais mal pago, mas mais seguro, como Irrsigler diz. Para a polícia também Irrsigler só tinha querido ir porque, com a profissão de polícia, o problema do vestuário lhe parecia resolvido. Durante toda a vida enfiar o mesmo fato e não ter sequer de pagar esse fato vitalício, porque o Estado o coloca à disposição, parecera-lhe uma coisa ideal, e assim tinha pensado também o tio que o levara para o Museu de História de Arte e, no que se referia a esse ideal, não havia também diferença nenhuma entre estar na polícia ou no Museu de História de Arte, sendo certo,

no entanto, que a polícia paga mais, o Museu de História de Arte menos, mas o serviço no Museu de História de Arte também, em contrapartida, não se podia comparar com o serviço de polícia, ele, Irrsigler, não podia conceber um serviço de maior responsabilidade, mas ao mesmo tempo mais leve que no Museu de História de Arte. No dizer de Irrsigler, o serviço na polícia é todos os dias muito perigoso, o serviço no Museu de História de Arte não. Quanto à monotonia na sua profissão, não havia razão para se preocupar, porque ele gostava dessa monotonia. Durante o dia andava uns quarenta a cinquenta quilómetros, o que, para a sua saúde, era melhor que, por exemplo, o serviço na polícia, onde a principal ocupação consiste em estar sentado, durante toda a vida, numa cadeira dura de qualquer repartição. Ele preferia vigiar visitantes de um museu a pessoas normais, porque os visitantes do museu são ainda assim pessoas de mais alta categoria, que têm sensibilidade artística. Ele próprio adquirira com o tempo uma tal sensibilidade e a qualquer momento estaria em condições de fazer de guia numa visita ao Museu de História de Arte ou pelo menos à galeria de pintura, diz ele, mas não tem necessidade nenhuma disso. As pessoas não apreendem nada do que se lhes diz, diz ele. Há muitas décadas que os guias do museu dizem sempre a mesma coisa e naturalmente muito disparate, como diz o senhor Reger, diz-me Irrsigler. Os historiadores de arte despejam sobre os visitantes apenas o seu palavreado, diz Irrsigler, que com o tempo assimilou literalmente muitas, se não todas as frases de Reger. Irrsigler é o porta-voz de Reger, quase tudo o que Irrsigler diz foi dito por Reger, há mais de trinta anos que Irrsigler diz o que Reger tinha dito. Quando presto atenção, oiço Reger falar pela boca de Irrsigler. Quando escutamos os guias, o que ouvimos sempre é só o palavreado sobre a arte que nos bole com os nervos, o palavreado insuportável dos historiadores de arte, diz Irrsigler, porque Reger assim o diz tantas

vezes. Todos estes quadros são admiráveis, mas não há um único que seja perfeito, diz Irrsigler, reproduzindo Reger. As pessoas só vão ao museu, porque lhes foi dito que uma pessoa culta tem de lá ir, não por interesse, as pessoas não têm nenhum interesse pela arte, pelo menos noventa e nove por cento da humanidade não tem o mínimo interesse pela arte, diz Irrsigler, reproduzindo literalmente Reger. Ele, Irrsigler, tinha tido uma infância difícil, uma mãe cancerosa que morreu apenas com quarenta e seis anos, um pai infiel, bêbado durante toda a vida. E Bruck an der Leitha é também uma terra feia, como a maior parte das povoações do Burgenland. Quem pode sai do Burgenland, diz Irrsigler, mas a maioria das pessoas não pode, está condenada a Burgenland perpétuo, o que é pelo menos tão horroroso como a prisão perpétua em Stein an der Donau. Os «Burgenländer» são prisioneiros, diz Irrsigler, a sua terra é uma prisão. Eles próprios se procuram convencer de que é muito bonita a sua terra natal, mas na realidade o Burgenland é monótono e feio. No Inverno os «Burgenländer» ficam enterrados em neve e no Verão são comidos pelos mosquitos. E na Primavera e no Outono os «Burgenländer» andam só a chafurdar na sua própria imundície. Não há em toda a Europa uma região mais pobre e mais suja, diz Irrsigler. Os Vienenses procuram sempre convencer os «Burgenländer» de que o Burgenland é uma região bonita, porque os Vienenses estão apaixonados pela imundície e pela estupidez do Burgenland, já que consideram romântica essa imundície e essa estupidez, porque são perversos na sua maneira de ser vienense. O Burgenland também não produziu nada além do senhor Haydn, como diz o senhor Reger, no dizer de Irrsigler. Sou natural do Burgenland e isso significa que sou natural da penitenciária da Áustria. Ou do manicómio da Áustria, assim diz Irrsigler. Os «Burgenländer» vão a Viena como à igreja, disse ele. O maior desejo do «Burgenländer» é entrar para a polícia

de Viena, disse ele há alguns dias, eu não o consegui porque era muito fraco, por debilidade física. Mas ainda assim sou vigilante no Museu de História de Arte e do mesmo modo funcionário público. À tarde, depois das seis horas, disse ele, não encerro criminosos, mas sim obras de arte, encerro o Rubens e o Belloto. Na sua família todos tinham invejado o tio, que logo a seguir à Primeira Guerra Mundial entrara ao serviço do Museu de História de Arte. Quando de anos a anos alguma vez o visitavam no Museu de História de Arte, nos sábados ou domingos em que a entrada era grátis, seguiam-no sempre com o maior acanhamento pelas salas onde estavam os grandes mestres e admiravam sem cessar o seu uniforme. Naturalmente o tio em breve tinha chegado a vigilante-chefe e passado a usar a pequena estrela de latão no virado do uniforme, segundo disse Irrsigler. De tanto apreço e admiração que sentiam quando ele os guiava pelas salas, nunca tinham entendido nada do que ele lhes dizia. Também não faria sentido explicar-lhes o Veronese, disse Irrsigler há uns dias. Os filhos da minha irmã olhavam com admiração os meus sapatos macios, disse Irrsigler, a minha irmã ficou parada diante do Reni, precisamente o mais «kitschig» de todos os pintores aqui expostos. Reger detesta Reni, por conseguinte também Irrsigler detesta Reni. Irrsigler alcançou já uma grande mestria na assimilação das frases de Reger e pronuncia-as já de uma forma quase perfeita no tom característico de Reger, penso eu. A minha irmã visita-me a mim e não ao museu, disse Irrsigler. A minha irmã não se interessa absolutamente nada por arte. Mas os filhos admiram-se com tudo o que vêem, quando eu os conduzo através das salas. Ficam parados diante do Velázquez e já daí não querem sair, disse Irrsigler. O senhor Reger convidou-me uma vez e à minha família para ir ao Prater, disse Irrsigler, o senhor Reger, com a sua generosidade, num domingo à tarde. Quando a sua mulher ainda

era viva, disse Irrsigler. Eu ali estava em pé e observava Reger, que continuava absorto, como se costuma dizer, na contemplação do Homem de Barba Branca de Tintoretto, e via ao mesmo tempo Irrsigler, que nem sequer estava na Sala Bordone, quando ele me relatava algo da história da sua vida, isto é, as imagens com Irrsigler da semana anterior e ao mesmo tempo com Reger, que continuava sentado no banco de veludo e naturalmente ainda não tinha dado por mim. Irrsigler disse que já em criança o seu maior desejo tinha sido entrar para a polícia de Viena, ser agente da polícia. Nunca tivera outra aspiração com vista ao exercício de uma actividade profissional. Quando, na Rossauerkaserne, tinha então vinte e três anos, lhe atestaram debilidade física, foi realmente para ele um mundo que ruiu. Mas, nesse estado de extrema perplexidade, o tio arranjou-lhe então o lugar de vigilante no Museu de História de Arte. Viera para Viena apenas com uma pequena mala de mão já muito usada e fora para casa do tio, que lhe tinha dado alojamento durante quatro semanas, após o que ele, Irrsigler, se tinha mudado para um quarto subalugado na Mölkerbastei. Doze anos ficara a morar nesse quarto. Nos primeiros anos não tinha visto nada de Viena, logo de manhã cedo, por volta das sete horas, ia para o Museu de História de Arte e à noite, depois das seis, voltava para casa, o seu almoço tinha consistido, durante todos esses anos, somente num pão com chouriço ou com queijo, que comia com um copo de água da torneira num pequeno compartimento por detrás do vestiário para o público. Os «Burgenländer» são as pessoas menos exigentes, eu próprio trabalhei com «Burgenländer», na minha juventude, em várias obras da construção civil e morei com «Burgenländer» em barracas dessas obras e sei como os «Burgenländer» são pouco exigentes, só precisam do que é absolutamente necessário e poupam realmente no fim do mês oitenta por cento do seu salário ou ainda

mais. Enquanto eu ia olhando para Reger e de facto o observava detidamente, como nunca antes o havia observado, via Irrsigler comigo, havia uma semana, na Sala Battoni, e escutava o que ele me dizia. O marido de uma das suas bisavós era natural do Tirol, daí o nome Irrsigler. Tivera duas irmãs, a mais nova tinha, nos anos sessenta, emigrado para a América com um cabeleireiro de Mattersburg e lá morrera de saudades da terra natal, com trinta e cinco anos. Tinha três irmãos, todos viviam hoje no Burgenland e trabalhavam como serventes na construção civil. Dois deles tinham, como ele, vindo para Viena, a fim de entrarem para o serviço da polícia, mas não tinham sido admitidos. E para o serviço no museu era absolutamente necessária uma certa inteligência. Com Reger tinha ele aprendido muito. Havia pessoas que diziam que Reger era maluco, pois só um maluco era capaz de, durante décadas, ir de dois em dois dias, menos segunda-feira, para a galeria de pintura do Museu de História de Arte, mas ele não acreditava, o senhor Reger é um homem culto e inteligente, afirmou Irrsigler. Sim, tinha eu dito a Irrsigler, o senhor Reger não é só um homem culto e inteligente, mas também um homem famoso, pelo menos estudou música em Leipzig e Viena e escreveu críticas musicais para o Times e escreve ainda hoje para o Times, disse eu. Não é um escrevente vulgar, um palrador, é um musicólogo no verdadeiro sentido da palavra e da forma mais séria uma grande personalidade. Reger não se pode comparar com todos esses palradores das páginas musicais, que aqui desdobram dia a dia nos jornais diários o seu palavreado sujo. Reger é efectivamente um filósofo, disse eu a Irrsigler, um filósofo em toda a clareza deste conceito. Há mais de trinta anos que Reger escreve as suas críticas para o Times, esses pequenos trabalhos filosófico-musicais, que um dia serão com certeza reunidos e publicados em livro. Esta permanência no Museu de História de Arte é, sem dúvida,

Livros de Thomas Bernhard na Documenta

Antigos Mestres Derrubar Árvores

A publicar em breve

Extinção

O Sobrinho de Wittgenstein O Fazedor de Teatro Casa da Cal

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