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SE CONFINADO UM ESPECTADOR O cinema como metamorfose da experiência interior
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SE CONFINADO UM ESPECTADOR O cinema como metamorfose da experiência interior
D O C U M E N TA
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Esta publicação é financiada por fundos nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/04019/2020
© JOSÉ BOGALHEIRO, 2022 © SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B 1150-258 LISBOA 1.ª EDIÇÃO, MAIO DE 2022 ISBN 978-989-568-025-2 NA CAPA: FOTOGRAMA DE IL GATTOPARDO [O LEOPARDO], 1963, DE LUCHINO VISCONTI REVISÃO: LUÍS GUERRA DEPÓSITO LEGAL 500165/22 IMPRESSO NA ACD PRINT RUA MARQUESA D’ALORNA, 12-A (BONS DIAS) 2620-271 RAMADA PORTUGAL
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Índice
Nota introdutória ......................................................... 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.
À espera de A Voz Humana de Pedro Almodóvar .......... À escuta da voz que ensaia uma declaração de amor .... À procura do futuro interior numa viagem a Itália ... Três passos numa floresta de alegorias ...................... Círculos à volta de uma flor da Primavera ................ E com isto afiguro na lembrança a nova terra ............... Pudera eu saber o gosto verdadeiro das cerejas.............. Tentados pelo vento que arrasta as nuvens ................... Um lugar para escutar a própria voz............................
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Adenda ........................................................................ 111
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Os fotogramas reproduzidos no corpo do texto pertencem aos filmes analisados — aqui indicados por ordem de capítulos —, tendo sido obtidos exclusivamente para este fim. 1. Pedro Almodóvar. The Human Voice (A Voz Humana). [2020]. Cartaz oficial. 2. Jean-Luc Godard. Vivre sa vie (Viver a Sua Vida). [1962], DVD 1.37:1. GCTHV, 2004. Robert Bresson. Pickpocket (O Carteirista). [1959], DVD 1.37:1. Leopardo Filmes, 2021. 3. Ingmar Bergman. Såsom i en spegel (Em Busca da Verdade). [1961], DVD 1.37:1. Leopardo Filmes, 2014. 4. Roberto Rosselini. Paisà (Libertação). [1946], DVD 1.37:1. Leopardo Filmes, 2015. 5. André Malraux. Sierra de Teruel. [1939], DVD 1.37:1. Filmoteca Española, rtve.es, s.d. 6. Luchino Visconti. Il Gattopardo (O Leopardo). [1963], DVD 2.21:1. Medusa Home Entertainment, 2003. 7. Alfred Hitchcock. Under Capricorn (Sob o Signo de Capricórnio). [1949], DVD 1.37:1. Kino Lorber, 2018. 8. Michelangelo Antonioni. Il Mistero de Oberwald (O Mistério de Oberwald). [1980], DVD 1.85:1. Manga Films, 2006. 9. Pedro Almodóvar. The Human Voice (A Voz Humana). [2020], DVD 1.85:1. Pathé Films, 2021. Roberto Rossellini. L’Amore (O Amor). [1948], DVD 1.37:1. Suevia Films, 2007. Ted Kotcheff. The Human Voice. [1966], DVD 1.33:1. Kultur Video, 2002. Edoardo Ponti. Voce Umana. [2014], DVD 2.35:1. Rizzoli, 2014. Jacques Demy. Le Bel Indifférent. [1958], DVD. Arte Vidéo, 2008.
Nota introdutória
Os textos que agora se reúnem em livro foram originalmente publicados, com periodicidade mensal, a partir de Novembro de 2020, no site de cinefilia À Pala de Walsh, sob a forma de crónicas a que, numa variação tomada de empréstimo em Italo Calvino, foi dado o título genérico de «Se Confinado Um Espectador». Nos mesmos foram-se constituindo umas tantas propostas de reflexão, hipóteses em aberto, investigações subterrâneas sobre formas de vida cinematográfica que a condição de espectador em tempo de pandemia convocou, formuladas que foram no encalço de uma ideia de «cinema como metamorfose da experiência interior». Se é verdade que durante o confinamento o recurso à ficção e, mais genericamente, à cultura pôde demonstrar até que ponto há uma tão grande dependência da ficção e teria mesmo tornado mais fácil explicar porque é que a cultura é absolutamente necessária para todos, tal não impediu que, ao mesmo tempo, se produzisse uma bem visível retracção dos consumidores na frequentação de salas e, por parte das grandes distribuidoras, um efectivo bloqueio à estreia e circulação de novos filmes. Num momento em que tudo parecia indicar que tínhamos pela frente tempos de grandes provações em que todo um mundo e uma forma de viver se afundavam irremediavelmente, em vez de recorrer a Nota introdutória
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prognósticos de agoiro para invalidar as possibilidades de sobrevivência do cinema, tudo foi jogado no investimento do espectador e na afirmação de que a modalidade de experiência interior subjacente ao dispositivo cinematográfico representará, talvez, a «metamorfose» moderna que no século XX confiou ao cinema o «terreno da nossa humanidade» comum, imenso e precioso. Suplementarmente, a edição em livro, para além de correcções impostas pela revisão, poderá contribuir para se compreender melhor as razões da preferência dada a momentos metamórficos que fazem (sobre)viver filmes imperfeitos, pouco vistos ou marcados pelo inacabamento, e como assim se pode ganhar espectadores para revê-los com mais apreço. Não quero deixar de expressar o meu agradecimento aos editores do À Pala de Walsh, em particular ao Carlos Natálio, pelo convite que me levou a escrever, em total liberdade, os textos que em primeira mão publicaram, bem como à editora Documenta que, com generoso acolhimento, permitiu a concretização desta edição. O apoio financeiro à publicação concedido pela FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito das actividades desenvolvidas pelo CIAC — Centro de Investigação em Artes e Comunicação do Pólo IPL — Instituto Politécnico de Lisboa, que permitiu às investigações subterrâneas que referi ganharem esta nova forma, também não pode deixar de ser agradecido. Por conta de um possível remate, a que em dado momento se aludiu, mas que as crónicas não tiveram e dado o facto de, mais por razões de circunstância do que quaisquer outras, em vez de dez crónicas previstas terem sido apenas nove, acrescento uma anotação breve. Há na produção cinematográfica uma operação cujo êxito merece ser examinado. 10
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Para a realização da dobragem das vozes de uma cena, nos estúdios de pós-produção, à moda antiga, recorria-se habitualmente ao uso de «pescadinhas» da banda de imagem cuja passagem em contínuo (loop) num projector servia para que o actor/intérprete da dobragem, face a face com a imagem projectada, em sucessivas tentativas de encarnação da personagem, conseguisse dar-lhe voz: uma voz que fosse, mais do que sincronizada, emocionalmente afinada. O que se exigia de uma tal acção performativa parece só poder ser atingido através da repetição que, em cada lance, ensaiando o balanço justo, se joga inteiramente no resgate da voz humana perscrutada em movimentos e articulações incertas de imagens ― fantasmas ― que aspiram a ganhar vida ou, por assim dizer, a ser animadas. Se confinado um espectador pode, na sua ocupação (criativa) do tempo, aspirar a mais? Haverá, porventura, quem lhe assinale que, tendo pretendido comparar-se a um viajante, cedo o espectador se desinteressara de saber o fim das histórias, esquivando-se inclusivamente a considerar a alternativa segundo a qual «o sentido último para que remetem todos os contos tem duas faces: a continuidade da vida ou a inevitabilidade da morte», perante o que, tendo também examinado de perto as múltiplas réplicas relativamente aos motivos de apego à leitura, aduzidos por cada um dos leitores em que o viajante de Italo Calvino se transformara, quanto a si, o espectador, sentindo-se inclinado a anuir a que, no que respeita à razão que lhe assiste, estaria a imagem que vinha da infância, mas sendo o que dela se lembra demasiado pouco para voltar a encontrá-la, perseverara em repor «sem parcimónia na lareira / a lenha», entregue à ocupação de ver nesse ecrã o que continua em brasa e iluminado no cinema. Sem querer adiantar mais, à imagem cabe a última palavra. Nota introdutória
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1. À espera de A Voz Humana de Pedro Almodóvar
A propósito do seu último filme, The Human Voice (A Voz Humana, 2020), cuja estreia comercial nas salas portuguesas se anuncia para breve1, Pedro Almodóvar fez por diversas vezes afirmações que, «nas presentes circunstâncias», são um interessante motivo para pensar o cinema e para avaliar os seus efeitos e o seu lugar na vida de um espectador. De entre as várias declarações públicas do realizador, feitas inicialmente por ocasião da participação do filme no Festival de Veneza, onde foi apresentado na secção «Fora de Concurso», e reiteradas depois numa entrevista para o Festival de Cinema de Nova Iorque e, mais recentemente, retomadas aquando da estreia do filme2 em salas de cinema em Espanha, começaria por destacar a seguinte reflexão: O confinamento fez-nos ver a casa como um lugar de reclusão. Um lugar a partir do qual podemos trabalhar, podemos fazer compras, pode1
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A data anunciada para estreia do filme foi 3 de Dezembro de 2020: «“A Voz Humana”: curta-metragem de Almodóvar com Tilda Swinton vai estrear nos cinemas portugueses», https://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/a-voz-humana-curta-metragem-de-almodovar-com-tilda-swinton-vai-estrear-nos-cinemas-portugueses, 3 de Novembro de 2020. Pedro Almodóvar, Entrevista a Pedro Almodóvar por David Noriega e Clara Morales, elDiario.es, 19 de Outubro de 2020, https://www.eldiario.es/cultura/pedro-almodo var-utilizar-pandemia-atacar-gobierno-peor-posible-democracia_128_6304973.html.
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mos encontrar o amor da nossa vida, podemos encomendar comida; podemos fazer absolutamente tudo, mas de modo sedentário. Isso a mim parece-me perigoso. Aliás, as empresas já descobriram que os trabalhadores podem trabalhar em sua casa e que isso fica mais barato. Por isso, eu contraporia a esta situação de reclusão (apesar de no caso da covid se tratar de uma reclusão obrigada, mas dado que não me agrada que a situação se perpetue), eu contraporia a tudo isto o cinema. O cinema é absolutamente o oposto disto. Ir ao cinema é lançar-se numa aventura. É preciso vestir-se, é preciso pensar que imagem se quer dar aos outros; além disso é preciso ir à rua, dar de caras com a vida lá fora, é preciso escolher um filme e, depois, é necessário partilhar, num espaço escuro, na companhia de um monte de desconhecidos como acontece cada vez mais, dizia, partilhar emoções, passar por algo que os gregos chamavam catarse, aterrorizar-se, chorar, emocionar-se entre os outros. Creio que isso é uma experiência essencial a nível humano.3
Nas crónicas que publicou4 no jornal digital elDiario.es nos primeiros tempos do confinamento e que a revista Sight & Sound (British Filme Institute) reproduziu em inglês, com um desfasamento de uma semana, como o seu «diário de confinamento» em quatro partes, Pedro Almodóvar dá testemunho, depois de um primeiro momento de recusa, da vida que leva «como um selvagem, ao ritmo marcado pela luz das 3 4
Jasmila Zbanic, Biennale Cinema 2020 — The Human Voice / Quo vadis, Aida? (Red Carpet) (BiennaleChannel, 2020). Pedro Almodóvar, «El largo viaje hacia la noche»; «Warren Beatty, Madonna y yo»; «Recomendaciones»; «¡Viva la tristeza!», elDiario.es, 30 de Março, 1, 6 e 11 de Abril de 2020, https://www.eldiario.es/autores/pedro-almodovar/.
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janelas», mas em que nunca faltou a leitura e os DVD. Na ocupação dos seus dias tem lugar de destaque a «programação de cinema, telejornais e cultura» servindo quer para uso próprio quer de «recomendações» para os outros, enquanto a sua laboriosa memória evoca momentos profundamente marcados pelo afecto, e justifica também a oportunidade para convocar revelações indiscretas. Para o realizador, entregue a tarefas de espectador-leitor, a escrita torna-se «uma forma de fuga em frente» e um exercício de «muita confiança no cinema». Se é verdade que durante o confinamento o recurso à ficção e, mais genericamente, à cultura pôde demonstrar até que ponto há uma tão grande dependência da ficção e teria mesmo tornado mais fácil explicar porque é que a cultura é absolutamente necessária para todos, tal não impediu que, ao mesmo tempo, se produzisse uma bem visível retracção dos consumidores e, por parte das grandes distribuidoras, um efectivo bloqueio à estreia e circulação de novos filmes; aliás, de semana para semana, multiplicam-se as notícias cada vez mais inquietantes sobre o encerramento de salas de cinema5. Ainda assim, num momento em que tudo parece indicar que temos pela frente tempos de grandes provações em que todo um mundo e uma forma de viver se afundam irremediavelmente, ao contrário dos que usam prognósticos de agoiro para invalidar as possibilidades de sobrevivência do cinema, irei recorrer a Roberto Calasso para afirmar que uma situação-limite contém preciosas indicações sobre aquilo de que não devemos de todo largar mão em tempos difí5
Rodrigo Nogueira, «O cinema em sala numa das suas horas mais negras», Público, 17 de Outubro de 2020, https://www.publico.pt/2020/10/17/culturaipsilon/noticia/ cinema-sala-horas-negras-1935667.
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ceis. Foi numa conferência feita em Moscovo em 2001, sobre a arte da edição livreira, que Roberto Calasso, director editorial da prestigiada casa de edição Adelphi, evocou essa situação-limite protagonizada pela Livraria dos Escritores: Um exemplo que chega da Rússia. Em plena Revolução de Outubro, […] quando as tipografias foram fechadas por tempo indeterminado e a inflação fazia disparar os preços de hora a hora, um grupo de escritores […] pensou lançar-se no projecto aparentemente insano de abrir uma Livraria dos Escritores que continuasse a permitir que os livros, e sobretudo certos livros, circulassem. […]. Aquilo que Osorguin e os seus amigos gostariam de ter criado era uma pequena editora. Mas as circunstâncias impossibilitavam-no. Então usaram a Livraria dos Escritores como uma espécie de duplo de uma editora. Já não era um lugar onde se produziam novos livros, mas onde se tentava acomodar e fazer circular livros de toda a espécie […]. Era importante manter vivos certos gestos: continuar a manusear aqueles objectos rectangulares de papel, folheá-los, encomendá-los, falar sobre eles, lê-los nos intervalos entre tarefas, em suma, continuar a partilhá-los. Era importante estabelecer e manter uma ordem, uma forma: reduzida à sua definição mínima e essencial, é esta precisamente a arte da edição. E assim foi praticada em Moscovo entre 1918 e 1922, na Livraria dos Escritores.6
Na tentativa de gizar uma possível correspondência em que, atravessando o cinema uma situação extrema, o exemplo da Livraria dos Escri6
Roberto Calasso, «L’editoria come genere litterario», em L’Impronta dell’editore, vol. 64, Piccola Biblioteca Adelphi (Milano: Adelphi Edizioni, 2013).
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com realização do filho Edoardo Ponti, reservaram para a cenografia uma função diversiva, ao transformar o quarto numa casa burguesa ou então numa mansão senhorial napolitana. Por sua vez, a versão que Pedro Almodóvar nos oferece com The Human Voice (A Voz Humana, 2020), interpretada por Tilda Swinton, radica na sua vontade expressa de «saltar para o outro lado do décor e mostrar a matéria do artifício». As razões que motivaram a sua retoma foram explicadas em diversas intervenções sobre o filme: «Esse texto de Cocteau sempre me fascinou, tanto que aparece também no meu filme La ley del deseo (A Lei do Desejo, 1987), numa cena muito breve, e em Mujeres al borde de un ataque de nervios (Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, 1988). Esse telefonema que nunca chega e essa mulher só, Um lugar para escutar a própria voz
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acompanhada pelo cão também abandonado, formam uma situação dramática que sempre me interessou». De igual modo, foi por si bem sublinhada a distância que pretendeu introduzir: Tive de me apropriar do texto como Rossellini já havia feito com Anna Magnani como intérprete, mas queria fazê-lo de uma forma diferente, quase oposta, em total liberdade em relação a Cocteau. Em suma, queria reescrever o texto como se fosse um duelo. De outro modo não reconhecia esta mulher como contemporânea, necessariamente mais dona de si mesma. No original há uma excessiva submissão da mulher
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abandonada, submissão essa que eu quis converter num acto de vingança. Desde o início imaginei o filme como acabou por ser feito, uma narrativa muito afastada do realismo e do naturalismo. O único real que serve de referência ao espectador é a voz.4
A prática do transplante de um motivo menor num filme para florescer e se desenvolver numa obra posterior é algo bem conhecido e ainda mais bem executado por Pedro Almodóvar, por exemplo, em Hable con ella (Fala com Ela, 2002) e a sua aplicação em A Voz Humana dependeria de seguir a hipótese de ao camarim de teatro suceder o set da representação cinematográfica, pois sabemos também, pela boca do próprio realizador, que o camarim de teatro, em que as mulheres mentem e se confessam se converteu em «sancta sanctorum do universo feminino». Na origem dessa correspondência estaria o pátio da infância. Espaço vital, em que as mulheres fingiam e mentiam, ocultando e desviando o curso da vida do controlo machista dos homens. Lugar do primeiro espectáculo encenado e visto nos pátios de 4
Almodóvar, Entrevista a Pedro Almodóvar por David Noriega e Clara Morales.
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la Mancha, cujo significado tem para Almodóvar a seguinte expressão e alcance: «três ou quatro mulheres falando significam, para mim, a origem da vida, mas também a origem da ficção e da narração»5. Contudo, acertado que fosse o lugar da fala, a maior distância em relação a Cocteau/Rossellini derivaria, talvez, da introdução ab initio no set pela mão da protagonista, provindo explicitamente do exterior, de dois objectos destinados a fazer sangue e pegar fogo: o machado e o jerricã. Segundo Roland Barthes, «existe uma cenografia da espera, que eu organizo», mas há uma determinação que é como «um encantamento: recebi ordem de não me mexer»6 que a heroína de Almodóvar teima em contrariar, e subverte. 5 6
Cf. José Bogalheiro, Empatia e Alteridade: A Figuração Cinematográfica como Jogo (Lisboa: Documenta, 2014), 441-442. Roland Barthes, Fragmentos de Um Discurso Amoroso, trad. Isabel Pascoal, Obras de Roland Barthes – 1, [1977] (Lisboa: Edições 70, 2006), 131-132.
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Adenda
Na crónica do mês Março («Círculos à volta de uma flor da Primavera»), muito embora eu não tivesse uma resposta para a pergunta deixada por Anna Magnani, sobre quem pudesse ser o homem da sua recordação do parque de Nova Iorque, ficou, contudo, por dizer aquilo que se confinado um espectador acabaria por ter como certeza, indemonstrável e anacrónica, mas justa: nos seus arabescos, sem parar, o que conduzia o patinador ao alvorecer era Morning Circles de Bernardo Sassetti1.
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Bernardo Sassetti, Morning Circles (Timbuktu Solo Sessions, #10), mp4 (Música composta e executada por Bernardo Sassetti para «Uma Coisa em Forma de Assim», coreografia de Olga Roriz. Inédito (2011). Versão originalmente partilhada na página oficial do Facebook do autor, 2011), https://www.youtube.com/watch?v=rWKDx99rYRc&list= RDrWKDx99rYRc&start_radio=1.
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