11 minute read

10. Fim do mundo, reiniciar

PREÂMBULO

1.

Advertisement

Como qualquer outra arte, a poesia produz uma interrupção no curso do tempo, e essa intempestividade é experimentada de forma libertária tanto por quem a escreve quanto por quem a lê. Mesmo se a relação entre escrita e leitura reflecte necessariamente o contexto do seu acontecer, a poesia cria linhas de distensão temporal, dando-nos a possibilidade de experimentar um discurso essencialmente livre. O tempo da poesia é da ordem do intervalo, do hiato, e também da estratificação, da sobreposição. Nessa medida, toda a poesia, pelo simples facto de o ser, resiste ao curso dos dias, às formas de vida em função das quais nos encontramos e desencontramos, nós e as nossas circunstâncias. Paradoxalmente, é na inactualidade que reside a mais eficaz condição de actualidade e actuação da poesia: entre uma dimensão futurizante e a busca de uma resposta para as interpelações que herdamos do passado, sempre traduzida em incompletude, desejo, possibilidade, expectativa. O verso teve, desde sempre, relação com a memorização, e portanto com a preservação do passado; porém, a volta da charrua, que a palavra verso etimologicamente evoca, é bem a imagem de uma repetição que possibilita a diferença, a mudança, a busca. A total liberdade que a poesia procura no plano da emoção estética, mesmo em relação ao verso, mesmo em

relação a ela própria, talvez explique melhor do que qualquer outra razão a persistência da poesia. Ao libertar a experiência subjectiva das identidades socialmente construídas, a poesia permite que estas sejam interpeladas a partir da mais radical singularidade. É nessa medida que o descentramento enunciativo de um poema não minimiza a sua força expressiva nem lhe põe em causa a autenticidade, antes promove a descoberta do eu e do outro na multiplicidade que os caracteriza. A singularidade da enunciação lírica é sempre dialógica, e aqui reside outra das dimensões da experiência libertária proporcionada pela poesia.

Este livro procura apreender a experiência temporal expansiva gerada pelo discurso poético enquanto forma de resistência, e acompanha alguns processos de inquirição do tempo em que vivemos, dos ritmos com que vivemos. Essa inquirição envolve uma atenção exacerbada ao vocabulário, aos modos de dizer. E passa, de maneira não necessariamente explícita, pela inquirição metadiscursiva e pela experimentação do discurso. Somos as palavras que dizemos, mas também somos a recusa de muitas outras, que não iremos proferir nunca. Palavras que instituem papéis sociais injustos, regulações e normas discutíveis, palavras que tantas vezes espartilham a imaginação e a possibilidade de outros mundos. Como se não houvesse alternativa.

A maior parte dos textos que deram origem a este livro foram escritos antes da pandemia que transformou drasticamente a nossa maneira de viver. Foram escritos ao longo de uma década em que a crise climática e o desequilíbrio ecológico se agravaram notoriamente, bem como a aceleração dos ritmos da vida, um extractivismo cada vez mais desmesurado, a concentração da riqueza. E, subitamente, o que alguns antecipavam como um incontornável perigo aconteceu: um vírus com grande capacidade de propagação multiplica-se, transforma-se, e conti-

nua a alastrar impiedosamente neste mundo globalizado. Milhões de mortos, centenas de milhões de infectados, vários tipos de comunicações suspensas, fronteiras fechadas, o imperativo do distanciamento físico, a ocultação dos rostos pelas máscaras. Distâncias e confinamentos de todo o género vieram perturbar-nos a vida nos mais pequenos gestos. Passámos a viver isolados, a marcar encontros em ambientes digitais que nos parecem tremendamente insípidos, mesmo se em grande parte lhes devemos o pouco contacto que nos foi possível manter nas fases mais críticas. A vida parece suspensa, como se, entre o passado e o futuro, habitássemos um hiato, um intervalo que ninguém sabe ao certo quando e como vai terminar. Neste mundo ferido de estranha irrealidade, o discurso da poesia mantém-se tremendamente real, denso. Percebemos que a suspensão gerada pelo tempo da poesia nada tem a ver com estas formas de parálise porque releva de outro tipo de suspensão, feita de possibilidade e expectativa criadora. E de memória, também. Pela sua natureza libertária, a poesia não pactua com o esquecimento dos erros e das sujeições do passado. É deles que nos preserva quando nos faculta uma outra experiência do tempo, mais introspectiva e menos maquínica, ou quando ouve e experimenta o que alguns, antes de nós, sonharam como possível. Quando valoriza e exemplifica a dúvida, a possibilidade e a expectativa, a poesia preserva-nos do pior, ainda que não lhe caiba mostrar-nos um caminho a seguir.

2.

Alguma crítica literária contemporânea tem vindo a articular a defesa da autonomia da arte, tão cara aos modernistas nas primeiras

décadas do século XX, com o exercício de uma arrogância (social, política, cultural) que teria culminado no isolamento da poesia ou, pior ainda, numa certa irrelevância do texto poético. Como interpretar esse diagnóstico? E como entender as relações entre poesia e crítica neste contexto? Num estudo sugestivamente intitulado Da Soberba da Poesia: Distinção, Elitismo, Democracia (2012), o poeta e ensaísta brasileiro Marcos Siscar propôs algumas respostas. Em consonância com o título, a capa do livro em questão reproduz um fragmento de uma gravura de Pieter Brueghel, intitulada Superbia (1556-1557), no qual sobressaem dois símbolos, o espelho e o pavão. Lembra Siscar que representam o amor-próprio e a auto-suficiência. Tomando como pretexto a recepção polémica da obra «Urubus», de Nuno Ramos, na 29.ª Bienal de São Paulo (2010), bem como os argumentos então usados pelo artista em resposta à acusação de maltratar animais protegidos pela lei ao manter cativas três destas aves necrófagas no espaço de exposição, Marcos Siscar subscreve a «defesa da soberba e do arbítrio da arte» então exercida por Nuno Ramos. E resume: «creio que é possível reconhecer, na soberba, um dos aspectos estruturantes do conflito moderno entre poesia e sociedade» (2012: 25). Para o poeta brasileiro, soberba «é o nome moral do sublime estético; ou, de modo mais preliminar, uma atitude histórica relacionada ao sublime» (idem: 28). E, em seu entender, seria possível observar na poesia moderna um movimento marcado pela verticalidade, já que, como Siscar argumentará, uma poética da elevação nunca exclui a tensão contrapontística com o «afundamento» (cf. 2012: 62). A este outro sentido da verticalidade corresponderia o que o poeta chama com alguma ironia a «soberba do naufrágio»; e haveria, portanto, que considerar o movimento do sublime nos dois sentidos. Diz-nos Marcos Siscar a propósito da elevação:

A altura não nos garante exactamente um patamar panorâmico sobre o qual teríamos a prerrogativa (estética) do sentido da totalidade; ela está sempre na iminência do chão, porque é dele, e em relação a ele que se distingue, e vice-versa: o chão não pode ser descrito como fundo, como concretude elementar, sem um movimento que pressupõe a frequentação da altura. (Idem: 65)

Nesta linha de pensamento, a «experiência moderna do discurso poético» erguer-se-ia sempre sobre o seu próprio vazio, tentando esclarecê-lo a partir desse mesmo movimento de distanciação e desfasamento (cf. ibid.). Ou seja, onde a democracia pressupõe a horizontalidade, a generalização, a partilha, a poesia seguiria a lógica do sublime longiniano, distinguindo-se e elevando-se, mas «afundando-se» também. Na sua argumentação, Marcos Siscar avalia positivamente o posicionamento estético de cariz autonómico que muitos autores têm colocado na origem de uma menor relevância da literatura, particularmente da poesia; no entanto, retoma essa perspectiva com a enorme vantagem, a meu ver, de pôr em evidência a existência de um sentido político para a «soberba», a arrogância. No ensaio que dedica a problematizar a soberba da poesia, Marcos Siscar não anda longe das posições de Charles Altieri, que, ao definir o conceito de autonomia, tantas vezes invocado pela arte moderna, defendia peremptoriamente que as condições de auto-regulação dos trabalhos artísticos ou poéticos — tão criticadas quando esses mesmos trabalhos são acusados de afastamento relativamente à realidade social — também permitem esclarecer os poderes que a arte disponibiliza no plano cultural (Altieri 1993: 112). Distanciando-se das críticas que o pós-modernismo dirigiu às poéticas autonómicas, revisitando o entendimento

kantiano da arte como «finalidade sem fim» e mostrando que autores como Oscar Wilde, W. B. Yeats, Ezra Pound e Wallace Stevens exploraram a energia formal para nela alicerçarem uma ética individual, Altieri defendia, nos finais do século XX (e portanto muito contra a corrente então dominante), que a ênfase dada por uma obra artística às relações internas podia corresponder a uma afirmação de responsabilidade ética:

(…) a ênfase de uma obra nas suas próprias relações internas transforma-se num modo de ela se responsabilizar pelo quadro de valores que projecta. Consequentemente, um trabalho desse tipo disponibiliza modos exemplares de a sociedade forjar atitudes fundamentais para os ideais de identidade moral e de juízo moral defendidos pela cultura. (Idem: 114)

Mais recentemente, Charles Altieri retomou a defesa do Modernismo, rebatendo ponto por ponto a leitura que dele é feita por quantos o acusaram de arrogância e escapismo, e de ter subestimado as condições sociais e históricas da arte. Altieri consagra no termo autonomia «um princípio pelo qual os artistas reclamam o direito a redefinir todos os elementos da sua herança equilibrando as energias e tensões que são exemplificadas no mútuo envolvimento entre autoria, audiência, obra e mundo» (Altieri 2009: 2). Desta forma, reitera que a autonomia nunca deveria ser entendida como processo de evasão ou sintoma de indiferença ao valor social e político da obra. Marcos Siscar aproxima-se deste tipo de perspectiva quando afirma que «[d]espregar o pé da realidade é uma condição para que nos coloquemos dentro dela mais decisiva e paradoxalmente» (Siscar 2010: 66): «não

16

há democracia sem o exercício da soberania, isto é, sem autonomia daquele que não depende senão de si mesmo para fazer as suas escolhas, ao rés do chão (…)» ; do mesmo modo, não haveria democracia «sem soberba, sem o voo que permite vislumbrar os vazios que dão dramaticidade à decisão — à possibilidade da decisão e à capacidade de decidir» (ibid.).

Com efeito, o que esperamos da poesia é da ordem da interrupção, da criação de negatividade, do intervalo, da singularidade. Poderemos ver aqui um movimento no sentido da «distinção» e da soberba, mas, paradoxalmente, também esperamos de tal interrupção que ela confirme a vitalidade do tecido social pela possibilidade de se gerarem tensões e rompimentos na mesmidade à qual a divulgação da literatura e da arte, embora desejável, não poderá escapar. Reencontramos, assim, a tradição da poesia moderna de reivindicar uma função para a ausência de função — e de construir o papel da poesia através da ideia de resistência ao senso comum pela inquirição auto-reflexiva e pela experimentação discursiva. Mas importa ter em conta que a experimentação não tem forçosamente que coincidir com as ideias de experimentalismo construídas entre o Modernismo e as neovanguardas de meados do século XX. Hoje, a experimentação passa, e muito, pela criação de formas discursivas que não exploram a opacidade da forma e antes procuram apurar registos de hibridização entre lirismo e autobiografia, por exemplo, ou trabalham o cruzamento da palavra escrita com o som e/ou a imagem no plano das relações intermediais. Estes e outros caminhos recentes, muitas vezes articulados com a arte da performance, sendo distintos, não deixam, todavia, de se colocar no eixo da verticalidade, agindo contra a massificação.

1. DEVAGAR, A POESIA

O aumento excessivo de produção leva ao enfarte da alma. Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço

1.

Há cem anos, os poetas modernistas e vanguardistas defendiam energicamente a velocidade na (e da) poesia, em sintonia com a aceleração da vida nas grandes metrópoles devido aos crescentes melhoramentos nas comunicações e transportes. São bem conhecidas as injunções futuristas sobre o novo tipo de beleza anunciado por Marinetti em 1909, «a beleza da velocidade», corporizado, por exemplo, no automóvel de corrida.1 Nas pinturas dinâmicas de Carrá e Boccioni, os grandes protagonistas são o movimento, a rapidez; e a euforia da velocidade também era bem visível em poemas como «Manucure», de Mário de Sá-Carneiro, e «Ode Triunfal», de Álvaro de Campos, ou mesmo na aceleração febril de «Ode Marítima». Já antes,

1 «Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre adornado de grossos tubos como serpentes de fôlego explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia» (Marinetti in Teles 1983: 91).

em 1912, Fernando Pessoa lamentava, em «A Nova Poesia Portuguesa», que a nossa poesia não evidenciasse ainda um «pensar e sentir por imagens» (Pessoa 2000: 47), característica de que deveriam decorrer dois efeitos associáveis à velocidade, ou melhor, à vertigem da velocidade: a rapidez e o deslumbramento. «A este máximo grau de objectividade não subiu ainda a nova poesia portuguesa: prova-o ao ouvido o seu movimento geralmente lento, quando a imaginação imprime sempre ao verso uma rapidez inignorável», observava o jovem Pessoa (idem: 47). Portanto, urgia rever o papel da imaginação e produzir uma poesia capaz de atingir uma rapidez fulgurante e até então desconhecida.

Cerca de dez anos mais tarde, em 1921, Jean Epstein faria afirmações muito semelhantes, no ensaio A Poesia de Hoje — Um novo estado de inteligência [La poésie d’aujourd’hui — Un nouvel état d’intelligence]. Tal como Pessoa — ou pelo menos este Pessoa —, Epstein valorizava a rapidez discursiva, particularmente a que podia ser conseguida através da metáfora: «Uma poesia inteligente exige a metáfora», defende (Epstein 1921: 133).2 E algumas páginas adiante definirá o poema por este critério: «O poema: uma cavalgada de metáforas empinadas» (idem: 176) — como os cavalos das pinturas de Carrá, precisamente. Num raciocínio no mínimo inesperado, Epstein chega mesmo a defender a superioridade do cinema francês relativamente ao italiano, porquanto este último seria lento e enervante para a inteligência francesa, que considera muito mais veloz: «Os filmes rápidos levam-nos a pensar rapidamente. Uma forma de educação talvez», resume (idem: 174). E o mesmo se aplicaria à poesia, exi-

2 Não havendo indicações em contrário, as traduções são da minha responsabilidade.

This article is from: