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Preâmbulo de Benjamin Fondane

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Apresentação

Apresentação

preâmbulo de benjamin fondane

É preciso que a solução destes problemas se encontre numa vida e não num livro. Um drama ou um poema é uma resposta aproximativa e oblíqua.

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Emerson

Jean-Arthur Rimbaud nasceu em Charleville, a 20 de Outubro de 1854, numa excelente família burguesa, católica. Uma mãe das Ardenas avarenta, autoritária e fria, sem nenhuma imaginação; um pai da Borgonha, oficial de carreira (guarnição militar na Argélia, a campanha da Itália, da Crimeia) com um carácter volúvel e extravagante, mau marido, pai inexistente, grande devorador de estradas; nada de particular, que pudesse fazer-nos prever o génio de Jean-Arthur.

Faz os seus estudos no colégio de Charleville, e mostra desde logo uma inteligência fortemente aplicada; é um espantoso aluno; faz a alegria e o incómodo dos seus professores: «Tem toda a inteligência que quisermos reconhecer-lhe, mas vai acabar mal», dizia o director. É no colégio que ele encontra Izambard, jovem professor afectuoso e simpático que se debruçou sobre o estranho aluno, lhe transmitiu as suas ideias liberais e proporcionou livros proibidos, recebendo em troca poemas e cartas. É também a ele que Rimbaud, por volta de 1870, envia a famosa carta chamada Do Vidente.

Retrato aos doze anos por Paterne Berrichon

É nesta época, em plena guerra franco-alemã, em plena Comuna, que se situa o primeiro plano de evasão de Rimbaud, a sua primeira fuga. Embarcou rumo a Paris, não conseguiu pagar o bilhete do comboio, foi preso e regressou não isento de desgosto à casa materna. Nada nos prova, como foi mais tarde afirmado, que tenha tomado parte num qualquer dos motins que sublevaram, mais ou menos nessa data, os subúrbios de Paris. Dezassete anos: deixa de escrever versos inspirados em Banville, Gautier e Hugo; está invadido por uma abundância, uma fonte de visões, uma desmesurada ambição, um repúdio universal; acabou-se a criança bem comportada do primeiro prémio do colégio.

Escandaliza os habitantes de Charleville com a forma de se apresentar desordenada, as maneiras, os insultos; escreve: «Que Deus vá à merda» nas paredes das igrejas; está para outra coisa amadurecido.

Retrato de Rimbaud por Jean-Louis Forain

1870-1871: é recebido em Paris por Verlaine e Banville, a quem tinha enviado versos desde o fundo da sua província; acompanha Verlaine até Londres, depois até Bruxelas; em Paris desagrada a todos com as suas formas de falar e ainda mais com as suas formas de se calar, provocatórias. É a época das drogas, do absinto, da sua iniciação sexual; as relações Verlaine-Rimbaud foram objecto de muitos comentários, maledicências e defesas de causa que bastam para não se fazer sobre elas silêncio. Mais tarde, Paterne Berrichon quis a todo o preço demonstrar a absoluta pureza de Arthur; Marcel Coulon fez exactamente o contrário: argumentou a sua culpa. Apesar de os costumes pessoais de Verlaine serem suficientemente conhecidos e Rimbaud parecer isento de suspeitas, quanto mais não fosse por se levar em conta a sua idade, a opinião geral acusava-o de ser o corruptor do poeta de Hombres. Foi Rimbaud

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quem pôs Verlaine «fora dos trilhos»? Teve, de qualquer forma, um grande papel no mal-entendido que nasceu entre Verlaine, desde há pouco casado, e a sua mulher, e no divórcio que a seguir aconteceu. Também foi ele quem mais depressa se fartou de tudo isto e decidiu romper uma amizade que moralmente, ainda mais do que fisicamente, se tinha tornado nauseabunda. Aconteceu em Bruxelas, onde Verlaine perseguiu Rimbaud com o seu revólver e o seu ciúme; onde atirou e feriu ao de leve o seu amigo; onde foi levado para o posto da polícia, e a seguir se limpou com os dois anos de prisão que lhe permitiram escrever Sagesse mas não o fizeram mais sensato.

Ter-se-á de ver nisto uma intervenção directa de Rimbaud, uma deliberada intromissão nos problemas íntimos de Verlaine, ou simplesmente a influência do seu espírito dado a extremos, a influência saturniana, um «reflexo» do ódio que Rimbaud votava nesse momento à família, à sociedade, o seu gosto pela liberdade livre, a sua moral ligada à vagabundagem?

Através do álcool, da droga, da inversão, da fé, Verlaine mais não fazia do que procurar uma satisfação dos sentidos; até a sua mística era carnal. Em Rimbaud, pelo contrário, há um apetite espiritual, uma ambição poética, e ainda por cima «o lugar e a fórmula»: foi pela repulsa de ver as suas ideias a serem vividas por Verlaine, que procurou romper essa amizade impossível, que acabou por pensar nele como um «porco» e, finalmente, dominado pelas suas ideias religiosas, um «Loiola».

Depois do incidente-Verlaine, Rimbaud escreveu Uma Época no Inferno, a sua única obra impressa por decisão própria, mostrando nela o espírito dos seus poemas anteriores, a sua teoria do Vidente, e afirmando ao mundo o seu voto de

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silêncio: «Mais nenhumas palavras!» No entanto, mal a pequena brochura foi impressa sentiu o ridículo, o absurdo que era comunicar ao mundo uma crise que apenas a si, contas feitas, interessava; queimou os exemplares de autor em seu poder, pensando que o resto, depositado nas instalações do editor não pago, nunca veria a luz do dia.

Fez longas viagens, percorreu o mundo a pé, tentou levar a cabo a ascensão dos Alpes, tentou a sua sorte em Viena, na Itália, em Estocolmo, na Holanda, em Chipre, tentou ter os mais variados, os mais estranhos ofícios: intérprete em espectáculos de circo, pedreiro, empreiteiro de construções, professor; fez-se recrutar no exército colonial holandês com destino a Java e pouco depois desertou; regressou à França mas acabou por se instalar em Adém, depois em Harare como ambicioso comerciante, ávido explorador de tráficos no desconhecido. Enviou de lá caravanas até à Abissínia, importou armas da Europa e ele próprio traçou com a sua caminhada novas estradas.

De dia trabalha, dando o corpo ao manifesto, e passa as noites a estudar os múltiplos idiomas africanos: o que irá fazer com essas belas línguas ingénuas, quase todas aprendidas com o suor do rosto? Dando crédito a algumas testemunhas, os indígenas tomavam-no por um santo e veneravam-no; dando crédito a outras, para aprender o linguajar daquelas terras Rimbaud procurava dicionários vivos: de todo um harém de mulheres que ele guardava na sua casa. Mas no processo de Rimbaud terá de ser regra desconfiarmos das testemunhas, e não podemos em nenhum momento afastar-nos dela. Seja como for, deixou uma impressão mais do que honrosa neste país de inferno; e poucos europeus podem dizer o mesmo.

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Chega a vez da fortuna. Neste clima atroz, cansativo, extenuante, que Rimbaud compara numa carta ao que há de mais parecido com o inferno clássico, viveu a sua vida com angústias materiais, tédio e agitação. «Nunca hei-de trabalhar», tinha ele escrito; trabalha agora furiosamente.

No final de tudo isto, não é a felicidade que ele espera conquistar mas o ouro, o repouso, enfim! Deixa de escrever. Contas, cartas, uma memória que envia à Sociedade de Geografia de Paris e nada mais. Um estilo seco, despojado, avarento, sem a menor imagem, sem levantar o menor voo; correcção e limpeza; só se não compreendermos nada de Rimbaud, podemos pensar que este estilo brota de si com naturalidade e a poesia abandonou por completo o poeta; não passa de mais uma prova de que Rimbaud não mudou de opinião e tem, como nunca, horror à poesia; de que ele cumpre a sua promessa; esta prosa, para quem souber lê-la transpira vontade e teimosia.

Um dia, uma dor lancinante não lhe larga o joelho direito. Rimbaud não é homem para se deixar abater com facilidade; resiste, monta a cavalo e entrega-se a uma grande volta no deserto. Mas o destino interior que o persegue não o larga; choca contra uma árvore, cai doente, vê-se forçado a «fechar a loja» e voltar a Marselha para o examinarem. Uma vez lá, tem de abdicar da sua perna; mas não faz mal; encomendará uma perna artificial. Não é abandonado pela esperança de regressar a Harare. Até se diz que projecta casar-se com uma pobre rapariga, se possível órfã, e que a levará com ele, para lá.

Durante este tempo, a sua irmã Isabelle trata dele, incita-o à conversão; durante este tempo a gangrena cancerosa espalha-se,

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sobe desde o coto amputado até à anca e alcança o ventre. O padre apareceu, chamado por Isabelle. Rimbaud confessa-se sem grande convicção, se acreditarmos no testemunho da sua irmã, infinitamente suspeito por causa de todas as suas piedosas mentiras. Mas resigna-se dolorosamente à morte. «Vou para debaixo da terra», diz-lhe ele, «e vais tu andar ao sol.»

Ao que parece, neste momento Isabelle ignora a actividade literária do seu irmão; estamos em 1891. No entanto, as Iluminações já andavam pelas livrarias desde 1886. Rimbaud nunca irá tocar-lhe neste assunto. Quando soube em Harare que era amado na França e passava por um chefe de escola, teve uma grande fúria. Não podiam esquecê-lo, deixá-lo em paz?

A 10 de Novembro de 1891 morre no hospital De la Concepcion, em Marselha.

Nesta vida habitualmente vista como «aventureira», esqueçamo-nos das «aventuras», sejam elas quais forem. Nem o drama com Verlaine, nem as suas inúmeras viagens, nem a sua morte, libertam o essencial de Rimbaud. Do aventureiro só conserva a sede, o desespero, a vontade de não deixar as coisas correrem, de nunca se resignar, de não morrer. Resta a sua vida interior, da qual nos será entregue um quase-nada para além do rasto de uma crise que decidiu a sua vida futura. Todas as hipóteses foram encaradas, desde a do «trapaceiro com êxito» de François Coppée, ele próprio um imbecil «com êxito», até à de Remy de Gourmont a quem por uma vez a perspicácia falhou. «É provável», escreveu ele, «que ao desprezar o que não é brutal prazer, a aventura selvagem, a vida violenta, este poeta entre todos singular tenha renunciado de boa vontade à poesia.» De boa vontade, sim e não; como troca de brutais prazeres,

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não. Está outra coisa em jogo na vida deste homem que nunca procurou o prazer, nunca a felicidade «com um dente que é suave na morte», que teve a ambição de encontrar «o lugar e a fórmula», que viveu no Inferno sem amor, sem alegria, sem consolação, sozinho, sempre sozinho, à espera de possuir, quer «a verdade numa alma e num corpo», quer uma conta num banco — não, um punhado de ouro na sua bolsa.

Foi-lhe concedida essa verdade? Encontrou o que procurava? A sua vida foi um mal-entendido? Uma linha precisa? Teria sido um vidente, como hoje vários afirmam? Um «gandulo», um «insuportável gandulo», um «estroina», como pensava De Gourmont? Um «místico em estado selvagem», como declara Claudel?

Na sua curta passagem através da poesia do século XX (aos vinte anos deixou de vez «a mão que escreve»), Rimbaud foi outra coisa além de um cometa e mais do que um «assinalável transeunte». O seu génio, como se tivesse pressa de se soltar, sobrevoa a idade, o tempo, a falta de experiência e — amadurecido não sei à luz de que sol de além-túmulo — explode e derrama-se. O que espanta na sua obra não são tanto as virtudes do escritor, ainda assim fulgurantes, mas a espessura da página, a densidade do vivido, as riquezas do subsolo. O poeta desdobra-se, pluraliza-se; faz sobre todas as coisas «o salto do animal feroz». Estou por uma vez perfeitamente de acordo com a sua irmã Isabelle, ao descobrir sob a multiplicidade das personagens dos seus poemas o único rosto do Jean-Arthur e do escritor: ele tanto é o «brick» do «Promontoire» como «o turista ingénuo» do «Soir historique»; ele é «Hélène»; ele é «Hortense»… É ao mesmo tempo o «cidadão» e a «metrópole que se crê moderna»

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do «Ville». No «Ouvriers», «Henrika» e «eu» são duas partes da sua personalidade. O mesmo acontece com «um homem e uma mulher magníficos» de «Royauté»; o mesmo com «uma neve» e um «Ser de beleza e grande estatura» de «Being beauteous»; o mesmo com a «alvorada» e «a criança» de «Aube», etc. O jovem Casal só é ele. Os «conquistadores do mundo» e o «casal jovem isolado na arca» do «Mouvement» são ele, só ele. Os «estranhos muito sólidos» de «Parade» são apenas um: «ele».

Apesar de um longo movimento incerto, a influência da obra de Rimbaud tinha outrora actuado sobre Verlaine, e através deste sobre a escola simbolista. No entanto, esta influência ainda não passava de pele; com a insurreição do Dadá e da doutrina surrealista é que Rimbaud entrou seriamente na arena. Foi resolvido imprimir, triturar, exprimir a sua obra até aos derradeiros redutos.

Mas o verdadeiro prestígio de Rimbaud chega de outro lado, que não o dos seus «ilustres textos»; se pôs o seu génio no poema, jogou a sua eternidade na vida. Para poder «perseverar no seu ser», teve de quebrar a sua obra e o poeta que em si havia. A solução de certos problemas, dizia Emerson, só pode ser obtida com a resposta oblíqua de um livro, seja ele qual for; e não é para isto excessiva toda uma vida de homem.

Nota: Em 1898, Benjamin Fondane nasceu na Roménia. Chegou a Paris em 1923, com uma profunda descrença em tudo o que pudesse chamar-se Beleza. A poesia parecia-lhe uma mentira, e só alguma verdade encontrava em Baudelaire e Rimbaud. Sobre cada um deles escreveu um livro, e o que trata de Rimbaud com o curioso título Rimbaud le Voyou (ou seja, num português aproximado, Rimbaud o Gandulo).

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Victor Segalen

Tzara e Voronca fizeram-no descobrir o Surrealismo, que ele enfrentou de sobrolho carregado e profundamente avesso ao automatismo como fonte de inspiração. Em 1933 Rimbaud le Voyou, que dava a conhecer uma interpretação «subversiva» do poeta, que atirava por terra a esforçada interpretação católica de Claudel, mas também a dos surrealistas, foi recusado pela editora Gallimard. Teve, no entanto, a compreensão das edições Denoël et Steele. Durante a Segunda Guerra Mundial foi-lhe descoberto o defeito de ter ascendência judaica. Conheceu Auschwitz e depois Birkenau, onde morreu em 1944, nu e asfixiado numa câmara de gás.

A.F.

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