
12 minute read
Apresentação
«Não és como os outros», dizia-lhe o olhar católico da sua mãe Marie-Ambroisine Segalen; mas o filho rebelde não era maleável à sua austeridade de mulher atenta a todos os desvios de um padrão muito firme e inquestionável, aquele que a determinava em todos os actos da vida.
Victor tinha nascido no ano 1878 em Brest. E o mais extraordinário, quase miraculoso — virá a escrever para falar de si em Essai sur Soi-Même — é que vivi ou sobrevivi. Sob o ponto de vista médico eu tinha um peso insuficiente; e a Ciência, envergonhada com a minha teimosia, veio a declarar-me bom para certas doenças pulmonares que nunca quiseram nada comigo — embora por muito tempo me fosse imposta a humilhação mais vergonhosa que um homem, dos seis aos dezasseis, pode enfrentar: estava proibido de «correr muito, como os outros»; proibido de sentir calor até suar, e mais ainda de sentir frio até gelar; os meus pais desde o desmame me ensinaram que eu «não era como os outros». Foi o primeiro e singular serviço que a minha mãe me prestou: «Não és como os outros», «não vais ser como os outros», palavras mágicas que proibiam, interditavam e também prometiam maravilhas. Comecei por protestar. Lutei. Acabei por aceitar. Mas só na adolescência vim a ser como os outros — e não isento do sinal de algumas feridas.
Advertisement
A mãe matriarca, com um muito preciso sentido do que era desejável perante o desastre físico do seu filho, decidiu que ele devia ser
20
Apresentação
músico: sentou-o ao piano, pôs-lhe o queixo a roçar madeiras de violino, esticou-lhe o braço até ao preconizado para um melhor som das cordas. Mas Victor tanto resmungou, que a sua mãe condescendeu em fazê-lo frequentar o curso que faria dele um farmacêutico. E o rebelde, com destino numa farmácia totalmente fora dos seus sonhos, teve de chegar mais longe na luta doméstica; teve de combater, de vencer pela desobediência até conseguir qualquer coisa que lhe prometesse distâncias: a Medicina; não a de um consultório dedicado a moléstias citadinas, mas a de um navio; navio de longos cursos que o levasse às grandes diferenças daquela provinciana Europa.
A medicina, mal tolerada por Segalen na École de Santé Navale de Bordéus, atirou-o para o refúgio das letras, embora não o dispensasse do mar. (E como é que ele poderia gostar do mar, se o seu céu astrológico lhe dava um excesso de seis planetas com imensas forças de terra?)
Segalen, médico de bordo só a suportar os oceanos com a esperança de surpresas em futuros portos, embarca no Durance em Outubro de 1902, pressentindo que vai ver de perto o que ainda resta de «Gauguin no seu último cenário». O capitão da fragata virá a descrevê-lo «com cabelo e sobrancelhas castanhos, testa alta, olhos escuros, nariz e boca de tamanho médio, rosto alongado, a medir um metro e sessenta e nove.» E a estes dados físicos, um certificado médico assinala uma acentuada miopia.
Em Agosto de 1903, o Durance e Segalen estão nas Marquesas, onde Gauguin tinha três meses antes morrido. Segalen consegue consultar o espólio do pintor e tomar muitas notas sobre aquele que espantava os habitantes da ilha por «pintar cavalos cor-de-rosa». E, no regresso desta investigação sobre Gauguin, permitir-lhe-á também o Durance uma significativa aproximação com recordações directas sobre o «segundo» Rimbaud.
Apresentação 21
Neste regresso, Batávia e Colombo antecederam uma escala em Djibuti, principal centro de «O Corno de África», onde Segalen permanecerá sete dias. Trazia consigo, invencível, a obsessão pelo caso-Rimbaud que o assombrava desde a adolescência; a que o tinha levado a decorar com memória de juventude O Barco Bêbado e a recitá-lo, com uma voz alta capaz de assustar quem o ouvisse nas áleas do jardim botânico de Brest; que o tinha feito intrigar-se com o poeta de génio, autor de surpreendentes versos escritos entre os dezasseis e os vinte anos de idade, e depois oculto no comerciante falhado dos vinte anos, prolongado até aos trinta e sete da pouca idade a que tinha chegado quando morreu. O Segalen já escritor até sonhava com um livro intitulado Os Fora-daLei, onde reuniria estudos sobre três homens de personalidade dupla: Gauguin, Rimbaud e Siddartha; projecto que nunca chegou a concretizar-se sob esta forma e ficou disperso por textos autónomos sobre Gauguin e Rimbaud, e cinco actos teatrais que dramatizaram o caso de Siddartha, o ser humano que se fez Buda.
22
Apresentação
Em Djibuti, o Café de la Paix era dirigido por um grego chamado Athanase Righaz. Tinha conhecido Rimbaud; e Constantin, um dos seus irmãos que dirigia o Café de France no outro lado da mesma rua, privara muito de perto com ele nos dias em que tinha sido seu assistente na agência da Casa Bardley em Harare; para além disto, Constantin até se encarregara de mandar construir a padiola que transportou Rimbaud desde Harare até ao porto de Zeitah, onde embarcou no navio que o fez regressar a Marselha.
No dia 14 de Janeiro de 1905, Segalen falou com Athanase1; e dois dias depois com Constantin, que pouco acrescentou ao já ouvido no Café de la Paix. Destas palavras também temos um registo do próprio Segalen:
Fica confirmado o Rimbaud muito sóbrio; sem nunca beber vinho; apenas café; o Rimbaud com uma altiva bazófia contra as insolações, com «o casaco aberto» e por vezes uma camisa árabe; o que negligenciava as habituais cortesias mas era franco, admirável para com os seus amigos e fiel a todos aqueles que o serviam (o seu criado Djama teve direito a uma pequena herança que M. Tinan expediu de Aden); o Rimbaud que também tinha maravilhosas qualidades como negociante mas se manteve sempre subalterno, com a excepção da infeliz tentativa com Labatut.2…; o Rimbaud completamente duplo porque nunca fez nenhuma referência aos seus escritos do passado, e na colónia só uns quantos puderam considerá-lo como escritor por redigir memórias coloniais.
1 O essencial desta conversa encontra-se reproduzido mais à frente, no texto «O Duplo Rimbaud» (p. 56) (N. do T.) 2 Rimbaud, no papel de comerciante de armas, resolveu vendê-las ao rei Menelik de Choa, empreendimento que foi um desastre. O seu fornecedor Labatut morreu, sem lhe fornecer armas já pagas, e Rimbaud teve com esta fracassada transacção um enorme prejuízo. (N. do T.)
Apresentação 23
— O Rimbaud era competente no comércio; tinha alma de negociante? — Não, embora fosse «extraordinário»… era um bom contabilista que não pensava muito nos negócios… devia ter na cabeça outras ideias, dificuldades com a sua família ou «qualquer outra coisa» contra o seu país. — Se não tinha muito um ar de negociante, que outra coisa parecia desejar? Não era tentado pelo dinheiro. — Era muito parcimonioso, muito resistente, mas nem mesmo grandes lucros o deixariam satisfeito. Fazia aquilo por ser uma vida que lhe agradava… — E como eram as suas relações com os indígenas? — Frequentava-os pouco… durante o primeiro ano nem sequer os frequentou. Fui eu (como é natural) quem lhe mostrou a necessidade de lidar com aquela gente, se quisesse tirar dali algum proveito. — E mulheres? — Teve ao princípio uma abissínia, mas não a conservou durante muito tempo. Nem com ela conseguiu entender-se. (Estamos longe do Rimbaud que comentava o Corão, que surge no prefácio de Berrichon1!) — Para resumirmos, foi sempre um subalterno; alguma vez deu provas de iniciativa comercial? (Resposta vaga. Mas abandono, cada vez mais, a ideia do Rimbaud explorador de génio, a não ser como protótipo de resistência ao calor!)
1 Paterne Berrichon, poeta, pintor e escultor, casado com a irmã de Rimbaud; além de uma Vie de J.-A. Rimbaud, escreveu um prefácio a Lettres de J.-A. Rimbaud. (N. do T.)
24
Apresentação
(Nenhuma prova, afinal, do faro de Rimbaud para negócios, das previsões de águia a respeito de Harare, da Abissínia!) (No que respeita a negócios encontro-lhe, além do mais, um capital defeito: ter falhado.)
De novo na França, em 30 de Outubro de 1905 Segalen teve um encontro com Isabelle Rimbaud e o seu marido Paterne Berrichon, momento também reportado numa nota:
Mais um interior «pobre» que me desagrada. Dufour, aliás Berrichon, está a ficar grisalho. Barba e fato de veludo muito «à escultor». Agora «pinta» e faz literatura, apesar de os médicos a proibirem (neurastenia, tumor cerebral…). Tem uma pintura honesta e tão pastosa como a sua palavra. Se no seu livro estrondeia, é por ser por si próprio agressivo. Às primeiras palavras, chama logo a sua mulher. A irmã de Rimbaud velha, de cara redonda, olhos claros, com o nariz e os lábios de todas as fiéis máscaras de Arthur, evoca-me intensamente o seu irmão. É lenta e intensa a falar. Acho-a inteligente, mais do que o seu marido. Julgo que sentiu plenamente o irmão e também acha (confirma-o) que todas as suas poesias são recordações da infância. Muitas estatuetas caseiras, diz-me Paterne, dão-lhe um vislumbre de Rimbaud; bibelots de família esclarecem os seus poemas. Isto confirma a minha tese: os seus versos foram para ele prodigiosos bibelots. Tenho aliás a grande alegria de confirmar uma a uma as minhas conclusões: Rimbaud foi até ao fim poeta, embora recusasse a sua produção poética; fê-lo ao ponto de temer a leitura de um só verso pertencente a outros. Era uma curiosa e intensa fobia, diz-me Isabelle Rimbaud. «Durante a sua última doença eu fazia-lhe leituras. E bastava aparecer um verso, um só, para me suplicar que saltasse por cima dele. Tinha horror à poesia.»
Apresentação 25
O seu atavismo: dentro de si a mãe orgulhosa, dura, áspera. E uma frase de Isabelle mostra-a também filha da mesma mulher: «O Arthur encarregou-me de mandar uma soma em dinheiro para os seus indígenas que lá estavam! Mas eles tinham morrido durante a epidemia de cólera de 92, e foram as suas famílias a herdá-lo. Soubesse o meu irmão disto e não teria, por certo, feito esse envio.» Passou-lhe pelo rosto uma nuvem de arrependimento.
Em 15 de Abril de 1906 surgiu na revista Mercure de France o seu texto «O Duplo Rimbaud». Em cada um de nós, dirá Segalen, e para cada uma das nossas formas de pensar, de querer e sentir, existe um irredutível e não utilizável covil que não podemos, com complacência ou à força, com ódio ou amor, entreabrir aos outros.» Estaremos perante um labirinto onde os leitores não encontram nenhuma saída? Segalen faz-nos crer que Rimbaud fala sempre de si próprio, com uma chave que só ele sabe utilizar; que os seus poemas são imaginadas memórias das coisas e dos dias da sua infância, e só ele os compreende na sua integralidade. Depois desta análise passa ao «segundo» Rimbaud, o de uma «curiosa e intensa fobia»; o que tem «horror à poesia», di-lo a sua irmã categóricae, por decisão, detentora de uma única e irrecusável verdade.
Com estas duas faces, Segalen confirma em Rimbaud um bovarysmo aceite pela definição que Jules de Gualtier lhe dá no seu livro Le Bovarysme. Madame Bovary, a heroína do romance de Flaubert, é para Gualtier o perfeito exemplo «do poder, concedido ao homem, de se conceber como outro que ele próprio não é». Segalen encontra em Rimbaud um transtorno de exemplar correspondência com esta singularidade; uma oposição entre o imaginá-
26
Apresentação
rio absoluto e o real; uma pobre realidade, para além do sensível e do inteligível, que surge apenas como seu baço reflexo.
A sua obsessão pelo poeta terá outras ocasiões para se manifestar. A 10 de Janeiro de 1905, alguns meses antes da publicação do seu texto, escreveu no que viria a ser o seu Journal des Îles: Incluído apertadamente em tudo isto, também me assombra a comemoração de Rimbaud! Nalguns documentos descobertos tento aqui imaginar o que poderia ter sido O Explorador. Porque deste poeta já outros falaram. Mas será alguma vez possível conciliar nele estes dois seres tão diferentes um do outro? Ou que estas duas faces do Paradoxal possam ambas depender de uma única personagem mais alta e até agora não reconhecida?
Três anos depois da publicação do seu texto, o registo do seu diário volta a ser dominado, durante uma escala em Aden, por Rimbaud: Aden ergueu à minha frente o espectro doloroso de um equívoco augúrio: Arthur Rimbaud. Ele viveu lá e sofreu angústias que o povo desconhece. Ergueu-se neste Aden ressequido e barrou a estrada, dizendo-lhe: «Vê as minhas dores, vê as minhas esperanças infinitamente decepcionadas; vê os meus esforços espantosamente inúteis, vê o meu lamentável fim: encontra nestas cavernas secas, onde um ar cavo ressoa, uma pequena parte dos ecos dos meus lamentos. Por sorte, esta vida é única e mais nenhuma há; nenhuma outra poderemos imaginar mais lamentável…» Terei de seguir em frente. E sigo. E respondo: Lutaste pelo Real. Fizeste-o corpo a corpo. Homem vão! Tinhas começado por despojar a mais esplêndida das armaduras. Poeta, renegavas-te! Gabavas-te de ter músculos e ossos. Mas o poeta que desprezavas voltava a conduzir-te; e por vingança e para tua perda, desconheceste-o.
Neste mesmo ano de 1909, também confessa numa carta a Hélène Hilpert que as poderosas sílabasde O Barco Bêbado desde há
Apresentação 27
vinte anos o assombram; e persiste na mesma obsessão quando faz uma «Homenagem a Saint-Pol-Roux»: Rimbaud, tão contraditório, não tinha sido mais do que um único homem, um poeta: o condutor de ritmos que procurava o luxo e a beleza da acção.
A China vai ter uma força que o distrairá um pouco de Rimbaud. Segalen será poeta de versos e prosas poéticas impregnados de um Oriente de estelas e subtilezas que traçam um esquivo caminho entre as realidades do seu quotidiano. Chega, nas vizinhanças da Cidade Proibida, a René Leys, o mais alto ponto da sua carreira literária, o romance de um conhecimento impossível, o livro que não houve, como pode ler-se nas suas primeiras linhas.
Em 1919 foi-lhe diagnosticada uma neurastenia aguda (muito provavelmente causada pelo seu afastamento do ópio); uma neurastenia que as diferenças da Argélia não abrandaram, que a bucólica placidez de Huelgoat não amainou. Segalen caiu inanimado numa floresta, interrompido por uma síncope no seu passeio matinal e com um exemplar do Hamlet na mão. Só quarenta e oito horas mais tarde o encontraram assim, bastante frio na sua morte romântica. Tem o túmulo em Huelgoat, mas desde 1934 o nome inscrito numa das paredes do Panteão de Paris, que o recorda com uma frase patriótica e cronologicamente inventiva: «Escritor morto pela França, durante a guerra de 1914-1918». Deixemos aqui uns versos de Stèles:
Estou sem desejo de regresso, sem saudades, sem pressa e sem fôlego. Não sufoco. Não solto gemidos. Reino com doçura e o meu palácio negro satisfaz-me. A morte é agradável, e nobre, e suave. A morte é muito habitável. Habito a morte, e isso agrada-me.
A.F.