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PERCURSOS DE VIDA… 317 Preview

Três sustentáculos interessantes em que o antigo regime se apoiava e apelativos para quem, interessando-se pelo tema, os queira aprofundar.

Bem, de certa forma, pese embora a pobreza em que o povo vivia, que levava à emigração ‘a salto’ como se chamava, sobretudo para França e a nível interno para os grandes centros populacionais do país, vivia-se um clima de paz (há quem diga que de paz podre), de acalmia e de respeito.

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Salazar, honra lhe seja feita, conseguiu habilmente que Portugal não entrasse na segunda grande guerra mundial (1939 -- 1945) e com isso poupando, porventura, milhares de vidas, sendo o nosso País um refúgio e um ponto de passagem para muitos estrangeiros, sobretudo judeus, que fugidos da guerra aqui se acolhiam e por aqui ficavam (poucos) ou aguardavam oportunidade de saírem, sobretudo para os Estados Unidos da América.

Antes da subida de Salazar ao poder no ano de 1928, e segundo me contava meu Avô Agostinho, havia governos que duravam dias e revoluções e bombas e greves eram a toda a hora. A escassez de géneros e as filas para abastecimento de bens alimentares de primeira necessidade faziam parte do quotidiano dos portugueses. Era a regra que se vivia diariamente.

Daí meu Avô Agostinho ser um indefetível de Salazar que se emocionava ao ouvir os seus discursos e ter um profundo sentimento nacionalista.

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Salazar, mais do que aclamado era idolatrado pelo povo em geral. O seu grande erro foi ter-se perpetuado no poder ao longo de quarenta anos (1928--1968).

O Presidente da República era, à altura, Óscar Fragoso Carmona, Marechal do Exército, uma figura meramente decorativa.

Nesse ano de 1943 se estreou, também, um dos filmes da minha vida que não me canso de rever: «Casablanca», protagonizado por Humprey Bogart e Ingrid Bergmann, realizado por Michael Curtiz e ganhando dois Óscares, um para o ‘Melhor Filme’ e, outro, para ‘Melhor Realizador’.

Nasci na pequena e pacata vila de Borba, onde tudo e nada acontecia, na Rua António Joaquim da Guerra, nº 29, conhecida como Rua da Fontinha por nessa mesma rua e, sensivelmente, a meio se encontrar um poço que fazia parte das brincadeiras de infância e cuja descida ao fundo sem ajuda era, em regra, como que um ritual de passagem da infância para a adolescência, como que iniciação para afirmação e aceitação por parte de qualquer gaiato que se prezasse e na rua morasse. Foi naquela residência de meus Pais na Rua da Fontinha que o parto de minha Mãe teve lugar, sendo acompanhado e assistido por uma das duas parteiras que havia na vila, como era uso da época, uma vez que não existia qualquer local apropriado, muito menos uma maternidade, onde as parturientes pudessem ir dar à luz. Residiam, também, na Rua António Joaquim da Guerra, meus Avós maternos, Laura e António, no nº 40 e meus Preview

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Pais, mais tarde, deixando o nº 29, foram morar no nº 44 dessa mesma rua. Foram meus Padrinhos de baptismo meu avô paterno (Agostinho Rodrigues Cadete) e meu avô materno (António Fernandes Florindo). Daí, como era usual na época, ter tomado os nomes próprios dos meus avós -- Agostinho

António -- e os respectivos apelidos -- Florindo Cadete. Questionada minha Mãe da razão de no registo de nascimento não ter Madrinha, recordo-me de me dizer que a seu pedido, provavelmente ao Padre como era uso na época, tinha sido Nossa Senhora da Conceição. Era costume naquela zona do Alentejo em atenção ao facto de Nossa Senhora da Conceição ter sido coroada pelo Rei D. João IV Rainha de Portugal, encontrando-se 20 a Imagem com a coroa real na Igreja que se encontra no interior do castelo de Vila Viçosa, atribuir-lhe a qualidade informal de madrinha, cerimónia que ao que me foi dito consistia na intermediação do Padre, que com uma mão tocava no manto da Santa e com a outra na cabeça do bebé baptizando. Durante a minha infância não se falava muito na segunda grande guerra mundial que havia destruído grande parte da Europa, talvez por Portugal não ter entrado no conflito. Falava-se, isso sim, na guerra civil que anos atrás havia ocorrido em Espanha, provavelmente por a vila que me viu nascer se situar relativamente perto da fronteira. Comentavam-se, então e ainda, os terríveis bombardeamentos à região de Badajoz que aí se ouviam e dos Preview

refugiados que com muita dificuldade se acolhiam do lado de cá da fronteira, bem como em toda a região raiana. Curiosamente, revejo na RTP Memória «A Raia dos

Medos», uma série em episódios da autoria de Moita

Flores que já havia passado há uns tempos. Uma excelente retrospectiva da guerra civil de Espanha, que se desenrola no Alentejo, junto à fronteira com Espanha, entre Campo

Maior, Elvas e Barrancos, com actores de primeira água, alguns já desaparecidos, e com um desempenho notável do melhor que tenho visto e conheço. Nasci no Alto Alentejo, no distrito de Évora, na vila de

Borba, na freguesia de S. Bartolomeu, terra bonita onde passei a minha infância e aí vivendo em permanência até aos meus doze anos de idade. Era a vila de Borba uma terra rica, pois, na verdade, 21 tinha tudo para o ser: para além de haver boas pessoas e pessoas menos boas (como por toda a parte, afinal), tinha mármore, azeite e vinho em abundância. Mas em Borba, à época, as pessoas viviam mal com excepção de umas quantas famílias, poucas. Havia muita pobreza. Pobreza, diga-se, que revestia duas formas: a pobreza explícita à vista de todos e em muitos casos pobreza extrema; e, a pobreza envergonhada, dissimulada, escondida, porventura, não menos difícil de suportar. Na década de quarenta, cinquenta, do século passado na região do Alentejo onde nasci, os pobres, que eram a maioria esmagadora, viviam do trabalho no campo: na monda, arrancando da terra as ervas daninhas que danificavam as sementeiras nas terras de cultura; na ceifa, época Preview

do ano em que se fazia a colheita dos cereais, se segavam as espigas, mormente do trigo; nas vindimas, colhendo as uvas e fazendo o transporte para as adegas para as transformarem em vinho; ou, na apanha da azeitona com vista, sobretudo, à produção do azeite mas também destinada ao consumo doméstico. Aquelas quatro atividades eram duras e tormentosas devido ao esforça físico que exigiam e, também, à intempérie que tinham de suportar. A monda e a apanha de azeitona faziam-se sob chuva e frio intenso; a ceifa, debaixo de calor abrasador, inclemente; e, as vindimas sob a dureza do clima também mas, outrossim, da rapidez da apanha da uva que não se compadecia com delongas sob pena de a produção e a qualidade do produto final – o vinho – ficarem comprometidos. 22 Depois, havia o mármore, a maravilhosa pedra branca e rosa, o famoso ouro branco como era chamado, extraído de forma artesanal com equipamentos à época bastante rudimentares e à força braçal, arrancado de enormes crateras abertas na terra, as chamadas pedreiras, que ocupavam muitos trabalhadores com trabalho mais regular, menos precário, mas que, não raro, ceifava vidas humanas a troco de magros salários. Uma das atividades que ocupavam, sazonalmente, muitos trabalhadores eram as vindimas. Era bonito de ver no final do verão a azáfama e o frenesim dos trabalhadores com carros de bestas atulhados de uvas com destino às muitas adegas de pequenos produtores que na terra existiam e aí fazendo, artesanalmente, o afamado vinho de Borba, com incidência no branco. Preview

Na verdade, à época, em Borba não se ligava muito ao vinho tinto. A primazia era dada ao vinho branco, de tal sorte, que ainda hoje em Borba a tradição, arreigada, se impõe. Quando um residente convida alguém para beber um copo de vinho lhe pergunta: «vai um branquinho?». Havia depois, os comerciantes com loja aberta de mercearia polivalente na maioria de pequena dimensão e onde se vendia de tudo, os artesãos sapateiros, os latoeiros, as tabernas que na vila proliferavam… As principais lojas de comércio eram na vila de Borba a do ‘Joaquim do Coxo’, a do ‘João da Havaneza’, a do

‘Chico Lapão’ e a do ‘Machado’. Nos artesãos sapateiros pontuava o ‘Zé Barroso’, um verdadeiro Mestre, onde na sua loja os operários sentados em bancos baixos à volta de uma grande sala, confeciona23 vam por encomenda e à medida, desde sapatos e botas, até todo o tipo de conserto de calcantes. Mas, atenção, o Zé Barroso era uma pessoa muito interessante que cultivava o convívio e a conversa e um autêntico figurão. Certa vez, chamado a depor como testemunha no Tribunal de Vila Viçosa, perante o Juiz que ao pretender a identificação lhe perguntou o nome completo, disse chamar-se José Manuel Letras Barroso, acrescentando o Juiz: «e sapateiro de profissão». O Zé Barroso interrompeu de imediato o Juiz, esclarecendo: Saiba Vossa Excelência Senhor Doutor Juiz que não sou sapateiro mas industrial de calçado. Havia um latoeiro, o ‘Pirica’, um verdadeiro artista na moldagem da chamada folha de flandres, fabricando Preview

objectos e reparando outros. Barbeiros mais conhecidos e que tinham os seus estabelecimentos em plena praça, havia dois. Um dos barbeiros era o ‘Mestre Crispim’, analfabeto e com desgosto grande, que não escondia, de não saber ler nem escrever. Pela confessada frustração que sentia, na sua barbearia além do ofício que praticava com os seus ajudantes, o

Mestre Crispim vendia livros infantis destinados à gaiatada que ele via e revia já que ler não sabia. Outro dos barbeiros era o (António Inácio) Mouquinho, conhecido pela alcunha de ‘Salsinha’ que, contrariamente ao Mestre Crispim, tinha uma boa prosa, dotes oratórios e alguma cultura, e daí que em algumas cerimónias públicas 24 fosse o orador de serviço. Outra figura muito interessante e incontornável da vila era o Senhor Urbino (de Jesus Catarino), de que falarei à frente e que além de electricista exímio, era o aferidor credenciado pelo Município de Borba que certificava os pesos e medidas usados no comércio e tinha a sua loja/oficina na Rua António Joaquim da Guerra, vulgo Rua da Fontinha. E tinha, também, o Senhor Urbino competência conferida pela Câmara Municipal para examinar os candidatos a ciclistas que, para o efeito, se submetiam a um exame sumário, prático, onde montados no velocípede teriam entre outras ‘habilidades’, obrigatoriamente, de descrever um oito, para conseguir a aprovação e a obtenção do almejado ‘cartão de ciclista’. Preview

Não conseguindo à primeira tentativa, tinha o Senhor

Urbino a paciência e a generosidade de deixar o candidato a ciclista encartado ir fazendo tentativas até conseguir. E não deixarei de salientar e recordar o famoso e fabuloso presépio que todos os anos por alturas do Natal o

Senhor Urbino montava e expunha na sua loja, tendo a paciência e a sabedoria de ir movimentando as peças que integravam o presépio de acordo, supostamente, com os ensinamentos bíblicos à medida que o dia de Natal e que ia até ao dia de Reis se aproximavam. Também na Rua da Fontinha havia a Farmácia do

Senhor Guerra Semedo. O Senhor Guerra Semedo era uma figura muito respeitada na terra, que se deslocava, semanalmente, de comboio a Lisboa comprar medicamentos para a sua Farmácia. 25 Achava muita graça quando entrava na farmácia, ver o Senhor Semedo de bata branca vestida no laboratório que ficava na sala em frente, parecendo autêntico laboratório de alquimista, com fumaradas saídas de provetas e de frascos, manipulando medicamentos que ele próprio fabricava. Como só havia naquela altura um Médico na terra, o distinto, abnegado e generoso Doutor Verão, para males menores recorria-se com frequência ao Senhor Semedo que, sendo pessoa muito delicada, atenciosa e sábia, nunca deixava o paciente que a ele recorria de mãos a abanar. Ou seja, o Senhor Semedo tinha produtos de sua própria fabricação. Por exemplo, se o paciente se apresentava com uma ferida, uma borbulhagem, um furúnculo, Preview

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