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RETRATOS da avenida
ASSIM, COMO UMA EXPLICAÇÃO
Nos anos de Seiscentos, nas costas do Brasil, uma espécie de peixe, muito, muito pequeno (que, ao que parece, abundava, também, na Avenida) irritou o Padre António Vieira. Podemos constatar essa irritação no seu “Sermão de Santo António aos peixes”:
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“ ( …) V
Descendo ao particular, direi, agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa; no mesmo dia que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que, sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar? Se com uma linha de coser e um alfinete torcido vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte por que não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores, e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. (…)”
Não tanto agora, mas noutros tempos da Avenida, Deus andaria muito distraído de si e de cuidar “abater e humilhar”
Alberto Branquinho
os roncadores, porque não era isso que constatávamos. Talvez a razão estivesse no facto de, nos tempos de Seiscentos, menos gente roncasse do que a que, então, roncava por estas costas. Os tempos mudaram, mas deixaram as suas marcas.
Ch Das Cinco
Olá, meninas, boa tarde! Há um espacinho para mim?
Ó D. Graciete… Com certeza.
Uma das presentes foi-se afastando, de modo a conseguir espaço. O empregado aproximou-se com uma cadeira. Quando estava já sentada, perguntou-lhe: — A Srª. D. Graciete também vai tomar chá?
Sim, sr. Lopes. Que é que as minhas amiguinhas estão a mordiscar?
Um bolo especial. Receita da Milú. Na semana passada deu a receita à gerente e pediu para o fazerem.
Mas não suficiente. Ontem tive que lhe explicar… quase tudo.
Faz anos, minha querida?
Não, credo!
(Gargalhadas.)
Pois. Ninguém gosta de fazer anos. Não é?
Ora…
Vá, D. Graciete. Prove, então, um bocadinho. Todas as presentes ficaram suspensas do movimento do garfinho movimentando-se para o bolo. Depois, transportando já um pedacinho de bolo, o garfo caminhou lentamente desde a mesa
Alberto Branquinho
até à boca, levemente entreaberta. Os lábios apresentaram-no à cavidade bocal e começou um discreto mastigar, mal perceptível, acompanhado por discretos (e não visíveis) movimentos da língua. A mão que transportara o pedaço de bolo ficou suspensa no ar, segurando o garfinho, ainda com uns restinhos de bolo. Os olhos da degustadora pestanejaram suavemente, depois olharam a dona da receita. Todas estavam expectantes.
Ai que delícia!
A tensão diminuiu imediatamente e houve respirações de alívio.
Eu também gostei muito e até perdi a cabeça. Já repeti duas vezes.
Ai Miluzinha, que delícia! A receita é mesmo sua ou copiou-a de alguma revista?
Não… É minha! Fui experimentando pouco a pouco e acho que está nas doses certas.
Muito bom, sim senhora. e tirou mais um pedacinho para o pratinho, depois de beber um golinho de chá. Enquanto a recém-chegada comia o segundo pedaço de bolo a mesa ficou em silêncio. Interrompeu-o ela:
Então, minhas amiguinhas, de que falavam? Continuem a vossa conversa. Ou estavam a falar mal de mim?
Ó Graciete! Que ideia!
Não estavam, não, Filomena?
Claro que não. Estávamos a falar das obras que a Maria do Céu fez em casa. A Clotilde estava a dizer que eles já voltaram para casa e, até, já foi visitá-la.
Bem, eu não fui visitá-la. A D. Maria do Céu é que me convidou.
E então?
A casa de jantar e a sala de estar nem parecem as mesmas. Estão muito bonitas. E a cozinha! A cozinha nem parece que é uma cozinha. Está tudo “encastrado”. Olhando, assim, à primeira vista, nem se consegue perceber onde está o frigorífico, o fogão…
Também me convidou já para ir lá a casa. disse a D. Fátinha.
Ora! Estão a ver. Todas iremos ser convidadas. Uma a uma.
Até já deve ter feito a escala dos convites. Está a fazer um “road-show” da casa renovada.
Credo, Graciete!
Ou está a fazer promoção de vendas do empreiteiro. E dos fornecedores. Depois, recebe a comissão.
Graciete, já chega!
Também já foste convidada?
Não, mas não me importo de ir ver. E, até, gostava de fazer umas alterações assim na cozinha.
Vê lá se, em vez de “encastrarem” não te vão ”encanastrar” tudo.
Bem. É melhor falarmos de outra coisa. Têm ido ao cinema?
Não, não tenho ido.
Eu também não vou há muito tempo.
Pois, há televisão…
Instalou-se um notório mal-estar e, uma a uma, foram fazendo despedidas. Ficaram só Filomena e Graciete. Em silêncio. Pouco depois:
Não consigo entender de onde vem essa tua embirração com a Maria do Céu.
Embirração?! Eu?
Filomena fez sinal ao empregado para trazer a conta.
Alberto Branquinho
Acho que vocês as duas são muito parecidas. E não podem estar as duas no mesmo poleiro.
Psicóloga de… pechisbeque.
Filomena colocou o pagamento no pratinho em cima da mesa. Imperatriz de bairro… é o que tu és.
Não estou para te aturar. — e começou a recolher as suas coisas para sair.
Filomena antecipou-se e caminhou para a porta.
Filomena, chega aqui, por favor.
Que queres?
Chega aqui.
Aproximou-se. Graciete encostou-lhe a boca ao ouvido:
Podes ir já contar tudo à tua amiga Maria do Céu.
Adeus. Cuida de ti…