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TERTÚLIAS
Estávamos em meados dos anos 60 do século XX.
Do lado poente da Avenida, mais ou menos a meio da sua extensão, havia, em ruas próximas, dois ou três restaurantes onde se comia bem e barato. Um deles era a “Adega dos Trinta”. Aí e no “Reservado” que nela havia, funcionava uma tertúlia (literária e não só) que, com o decorrer do tempo, passou a ser conhecida por “A coisa nova”.
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Todas as noites das quintas-feiras se acomodavam no Reservado, para jantar, entre oito a dezasseis pessoas. Mas, por vezes eram dezoito e, até, vinte. Quanto maior era o número, maior era o número daqueles que desempenhavam o papel de público, jantando e bebendo as palavras dos intervenientes e o vinho da casa.
A seguir à chegada das primeiras sobremesas para aqueles que, nesse dia, tinham sido os primeiros abancar, um dos presentes tomava a palavra. No início teria que falar bem alto para se sobrepor às variadas conversas que decorriam pelas mesas e que demoravam a calar-se.
Eram membros permanentes da tertúlia quatro ou cinco poetas (dois deles considerados maiores pelos críticos literários e, também, seus amigos), um ensaísta, dois artistas plásticos, dois Preview
Alberto Branquinho
ou três actores desempregados, um pequeno editor e, também, autor e um aspirante a cineasta (já com duas curtas metragens), que dizia procurar alguém com obra publicada que o motivasse a “voltar às lides”. Por vezes estavam alguns cantores, principalmente um, sempre preocupado em encontrar letristas para o seu repertório.
Quase encostados aos pratos ou junto aos copos abundavam maços de tabaco Marlboro, Winston, Lucky Srike e isqueiros dourados que eram objecto de cobiça e atenção de alguns dos presentes.
Havia noites em que o débito literário ou qualquer espécie de comunicação artística era quase impossível, porque os berros dos que assistiam ao jogo de futebol desse dia, na sala de jantar, entravam pelo “Reservado”. Nem a porta bem fechada evitava a intromissão dos barulhos desportivos exteriores, provando ser maior o interesse pelo desporto televisionado do que pelas intervenções confinadas àquele espaço reservado às artes. Procuravam, então, fazer as suas intervenções nos espaços de silêncio entre um golo e outro golo ou o remate falhado à baliza adversária.
Um dos poetas (nunca os dois mais reconhecidos) abria, quase sempre, a sessão, ao mesmo tempo que ia deglutindo pequenas quantidades de mousse de chocolate ou de tarte de amêndoa ou bebericando o café.
Antes da leitura de cada poema, costumava dar uma explicação sobre como fora “o processo criativo” do mesmo e explicava as várias alterações que sofrera. Estava tão concentrado a explicar a gestação do poema que não se dava conta do enfado que causava nos presentes. À leitura que se seguia acrescentava mais ou menos ênfase e era acompanhada dos gestos que entendia adequados. Acabada a leitura, todos os presentes aplaudiam. Ou quase todos, embora muitos se limitassem a aproximar, quatro ou cinco vezes e com enfado, as pontas dos dedos da mão direita da palma da mão esquerda.
Aguardava-se, então, cerca de um minuto para que pudesse ser feita alguma apreciação ou comentário. Os olhos percorriam a mesa, tentando adivinhar quem falaria a seguir.
O cineasta aproveitava, muitas vezes, estes momentos de espera para ler uma passagem do guião da próxima “curta” em que estava a trabalhar. Terminada a leitura, interrompia quem aplaudisse e dizia:
Não se deve aplaudir a leitura de um texto que é somente um rascunho de uma “obra cinematográfica em processo criativo” e que:
Muito agradecia se algum dos presentes conhecesse alguém das suas relações que fosse pessoa versada na matéria ou tema que pretendia abordar, o contactasse para o seu telefone cujo número dizia e repetia três ou quatro vezes olhando em volta, aguardando que tomassem a devida nota.
Por vezes, antes ou depois do cineasta, um artista plástico anunciava que as suas obras mais recentes ou uma retrospectiva que estava em exposição no espaço que indicava. A comunicação era acompanhada da distribuição de um folheto pelos presentes, com pedido de divulgação.
Falavam, ainda, alguns dos presentes, lendo poemas ou excertos de textos. Quando parecia que ninguém quereria falar ou, pelo menos, falar nos momentos mais imediatos, havia conversas em grupos, deslocando-se de uma mesa para outra. As conversas eram interrompidas com pedido de ouvirem mais uma intervenção ou porque dois ou três dos presentes elevavam a voz num
Alberto Branquinho
desacordo de posições. Ao sentirem-se observados de forma crítica ou acintosa, baixavam o tom de voz ou acabava a discussão.
O convívio continuava pela noite dentro, com uma ou outra interrupção, até que um dos empregados abria a porta e, elevando a voz: — Algum dos senhores quer mais alguma coisa porque vamos fechar?
Havia sempre o pedido de mais uns cafés, uns bagacitos e a noite parecia acabar, mas alguns continuavam a discussão ou a conversa até altas horas, em plena rua.
Esta tertúlia teve uma vida de mais que cinco anos. Aí nasceram amizades, inimizades ou antagonismos, sentimentos que necessitavam da presença de outros para se alimentarem e continuarem vivos.
Por vezes havia um convidado, facto que introduzia novidade no convívio, embora nem sempre fosse um elemento catalisador.
Os convidados eram, muitas vezes apresentados no início do jantar sem que tivesse havido anúncio prévio. Ou porque o apresentador assim o desejara ou porque resultara de um encontro ou circunstâncias casuais acontecidas depois do último jantar.
E foi assim que, inesperadamente, surgiu na tertúlia um conhecido poeta brasileiro, levado pela mão de um dos poetas menores. Foi um sucesso! Não só pelo inesperado, pela figura em si mesma, mas, principalmente, pela comunicabilidade do convidado que prendeu a atenção dos presentes durante toda a noite, dizendo graças, citando nomes e dizendo textos de memória.
Um semanário de letras publicou no seu número seguinte, na primeira página, com chamada para uma página interior, uma fotografia do poeta brasileiro acompanhado do poeta menor que o convidara para a tertúlia, com a seguinte legenda: “O grande poeta brasileiro F… foi apresentado na tertúlia “A coisa nova” pelo patrono da tertúlia, o poeta português B…”.
Consequência: no encontro seguinte estiveram ausentes não só os dois “poetas” maiores como todos os outros e, ainda, os artistas plásticos; nunca mais compareceram.
O número de presenças na tertúlia passou a ser tão diminuto que, num dos jantares seguintes, o patrão negou o acesso ao Reservado, passando a destiná-lo a outros clientes mais ocupados e preocupados com actividades relacionadas com a sua agremiação de futebol.
E assim acabou mais uma tertúlia nas proximidades da Avenida.