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Introdução
INTRODUÇÃO
Segundo Cassirer, «a moral de Rousseau não é uma ética do sentimento, mas a forma mais radical da ética pura da lei que 13 foi elaborada antes de Kant»1. Rousseau desconfiava do ideal da «bela alma» (die schöne Seele) proclamada pelos moralistas do século XVIII . O único princípio capaz de fundar filosoficamente a moral era a liberdade da vontade . Rousseau, por seu lado, procurou um tal princípio, não no sentimento mas na sublimidade da vontade . Esta era a opinião de Kant que, segundo Herder, encontrou em Emílio um tratado moral sobre a autonomia da vontade: «No mesmo espírito com que tinha examinado Leibniz, Wolff, Baumgarten, Crusius, Hume, escreve Herder a propósito de Kant, a partir de 1760, estudava os escritos de Rousseau que acabavam de aparecer, o seu Emílio e a sua Heloísa, […] obras que admirava e às quais voltava sem cessar para encontrar uma clara compreensão da natureza e do valor do homem»2 . Segundo Kant, Rousseau inaugura uma nova era na história do pensamento humano, que é «uma bela descoberta do nosso 1 cassirer, E ., Le problème Jean-Jacques Rousseau, trad . M . B . Launay . Paris, Fayard, 1990, pp . 81-82 . 2 Herder, J ., Briefe zur Beförderung der Humanität, 79 .ª Carta, in Werke, ed . Suphan, XVII, p . 404 . Preview
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A Ordem Moral em Rousseau
tempo»3, totalmente desconhecida dos Antigos e dos Modernos até então . O homem não deve procurar a verdadeira lei da sua existência e da sua conduta nem abaixo nem acima dele: ele deve determiná-la a partir de si próprio e agir segundo as decisões da sua liberdade . Ele estará bem no seu lugar, porque será exactamente o que deve ser . Tal significa que a liberdade e a contingência são inseparáveis e que o poder (puissance) humano, ordenado à vontade, sai do campo da natureza e liga-se à história da contingência . O princípio da absoluta liberdade é eleito como o fundamento de toda a acção humana . 14 A vontade é um poder desnaturalizado e posto como o fundamento da liberdade . A livre iniciativa do poder é a de querer e, quando quer, deve agir segundo a sua vontade . O homem deve querer guiar o abismo insondável do seu poder (potentia) . O dispositivo da lei ou do fim moral adquire o seu sentido e a sua função na criação do sujeito orientado para a acção humana . A arqueologia da subjectividade não é somente gnoseológica: ela é, em primeiro lugar, prática . Com Descartes, o sujeito do conhecimento é posto como o vértice da condição humana, mas a partir de Rousseau o sujeito é produzido na esfera da praxis, tendo o Eu como centro de imputação da acção voluntária . Rousseau e Kant colocam a dimensão moral no centro da religião . A moralidade e não a natureza, a consciência e não o conhecimento da ordem objectiva das coisas podem dar-nos acesso a Deus . O verdadeiro milagre, que é ponto capital para Rousseau, é o da liberdade humana e da consciência moral como prova efectiva 3 Kant, I ., Kants Werke . Berlin, Bruno Cassirer Verlag, 1912-1923, t . II, p . 326 [Ak I, p . 551] . Preview
Manuel João Matos
desta liberdade . A única verdadeira teologia que um e outro podem admitir e reconhecer é uma teologia ética . Concluindo a sua Profissão de fé, o Vigário declara: «mantende a vossa alma em estado de desejar sempre que haja Deus . […] Pensai que os verdadeiros deveres da religião são independentes da instituição dos homens; que um coração justo é o verdadeiro templo da Divindade, que não há de modo nenhum religião que dispense os deveres da moral, que não os há verdadeiramente essenciais senão esses; que o culto interior é o primeiro destes deveres, e que sem fé nenhuma virtude existe»4 . Rousseau inaugura o princípio da liberdade como a essência da 15 subjectividade humana . A ordem ética é a suprema realização da liberdade que se define como a possibilidade do homem ultrapassar a esfera do determinismo, de inflectir os acontecimentos e os acidentes da vida e de recusar os constrangimentos exteriores; pelo combate às paixões que, do interior, se manifestam como os mais poderosos inimigos . A liberdade moral é a faculdade de suspender o consentimento do espírito ao desejo e às paixões. A definição de Rousseau revela-se exemplar: a sua formulação da liberdade é ao mesmo tempo a prova da sua efectividade . A liberdade é o começo na ordem da causalidade e o fundamento da responsabilidade . A primeira obrigação do pensamento e, portanto, a sua própria essência é a de ser moralmente recto . O pensamento pertence à liberdade e não pode realizar-se senão pela suserania da liberdade . Rousseau proclamou a tese da autonomia e elevou-a ao cume do pensamento no século XVIII. Kant afirmou que Rousseau, na Profissão de fé do Vigário saboiano, tinha sido o primeiro filó4 rousseau, J .-J ., Émile, IV, O. C., IV, pp . 631-632 . Preview
A Ordem Moral em Rousseau
sofo que mediu, em toda a sua extensão filosófica, o problema da liberdade . A liberdade é a condição de possibilidade de uma justa prática do pensamento e da vida e criadora do sentimento da existência como pessoa . A liberdade, no seu fundo, é uma vontade de liberdade e, como tal, é a fonte de uma felicidade incomparável; com efeito, a rectidão moral é, em primeiro lugar, uma vontade de rectidão e só o facto de o homem pôr a questão da liberdade enuncia a sua realidade . Emílio constitui a tentativa de pensar a genealogia integral de um homem livre, do homem em toda a verdade da sua natureza . Esta genealogia da ordem de um sujeito finito, que é livre, implica um con16 ceito de ordem que é incognoscível pela intuição, mas é um dogma da vontade prática do sujeito que aspira à imortalidade: a ordem moral do mundo é a articulação da finitude humana e a da finalidade do destino humano, e tem um valor absolutamente supremo . A liberdade não é um signo de «imperfeição», como em Montesquieu, na tradição de Hobbes e Locke, dos utilitaristas e dos empiristas em geral, que representam o modelo da «liberdade negativa» e a posição filosófica comum do seu tempo. Pelo contrário, a moral rousseauista é, antes de Kant, a mais pura moral do dever, enraizando-se nas «profundidades da natureza humana»: «Eu devo fazer sempre o que devo, porque o devo, mas não por nenhuma esperança de sucesso»5 . Para Rousseau, a liberdade é a essência da condição humana, e não é o signo de uma imperfeição, mas a incarnação perfeita da autonomia . Se o homem é livre, tem um princípio activo que reside na faculdade de julgar e, como tal, está 5 rousseau, J-J ., Textes des Cartes à Jouer (10 . [V .º]), in Les Rêveries du promeneur solitaire, edição apresentada e anotada por Michèle Crogiez . Paris, Librairie Générale Française, 2001, p . 205 . Preview
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animado de uma substância imaterial; se tem uma substância imaterial, a alma é imortal; se a alma é imortal, a providência é justificada – eis a tríade fundamental da Profissão de fé .
Enfim, o mote desta obra é a afirmação de Cassirer de que Rousseau foi, a par de Kant, «o ético absoluto que o século XVIII produziu»6 . Foi necessário escrever esta obra para mostrar como é bem fundada tal afirmação.
17 6 cassirer, E ., A Questão Jean-Jaques Rousseau, tradução E . J . Paschoal . São Paulo, Editora UNESP, 1989, p . 69 . Preview