4 minute read

OS FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT

capítulo i OS FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT

19 As duas edições da Crítica da razão pura (1781/1787) deixam em aberto a questão da existência da liberdade transcendental e, portanto, a da razão prática. O Prefácio da Crítica da razão prática, no seu começo e por meio de uma questão sobre o título da obra, define a sua finalidade que é estabelecer que há uma razão pura prática: «O seu objecto é somente o de estabelecer que existe uma razão pura prática e é com este objectivo que critica todo o poder prático da razão»8 . O Prefácio da Crítica da razão prática está dividido em duas partes. A primeira parte (§1 a §6) afirma a realidade objectiva do conceito de liberdade do ponto de vista prático enquanto a razão teórica não tinha senão estabelecido a possibilidade. Tal mostra a superioridade da segunda Crítica em relação à primeira e esclarece «o enigma da crítica»: acordar ao uso prático das categorias o que tinha sido recusado no seu uso teórico. Mas se os dois usos da razão são distinguidos, é da mesma razão que se trata, considerada nas duas grandes tarefas indispensáveis: o conhecimento e o agir. Kant afirma a identidade da vontade, ou seja, da própria razão prática, com a lei moral, necessária e universal, presente na consciência comum de cada homem. 8 KANT, I., KpV, AK V, 3. Preview

Advertisement

Manuel João Matos

Na segunda parte (§7 a §17), Kant prevê as objecções que surgem de uma compreensão falaciosa do seu sistema. Ele responde àquelas que já lhe foram apresentadas depois da publicação da Fundamentação da metafísica dos costumes e defende-se de ter querido inventar uma teoria nova, relembrando o seu desejo de ser compreendido pelos seus leitores: a seu respeito, estabelece a diferença entre os amigos da verdade que caminharão com ele na procura da verdade e aqueles que, seguros do seu sistema, desdenham da sua filosofia. O Prefácio da segunda Crítica termina pela evocação do empirismo na sua forma absoluta que, se fosse verdadeiro, arruinaria a empresa crítica. 20 O Prefácio à Crítica da razão prática começa por uma questão que Kant põe a si próprio, mas que supõe que lhe possa ser dirigida por um leitor sensível ao paralelismo entre a primeira e a segunda Crítica. Os leitores esperavam ver o termo «pura» no título da sua obra: Crítica da razão pura prática em vez de Crítica da razão prática. A resposta de Kant permite-lhe definir de imediato o seu desígnio: estabelecer a realidade da razão pura prática. Para tal, Kant fará uma Crítica da razão prática na sua totalidade, que lhe permite distinguir uma razão pura prática, ou seja, a priori, universal e necessária e uma razão prática simplesmente empírica. O que Kant põe como premissa é que «enquanto razão pura, ela é efectivamente prática, prova a sua realidade e aquela dos seus conceitos e nenhuma argúcia pode contestar a possibilidade de ser prática»9 . Há uma notável mudança da primeira para a segunda Crítica que, no §3, Kant vai explicitar de uma maneira que é o ensinamento principal do Prefácio. O conceito de liberdade, que é a pedra de toque de toda a filosofia crítica, é aqui promovido a um papel fundamental no interior do sistema kantiano: «O conceito de liberdade enquanto a 9 KANT, I., KpV, AK V, 3. Preview

O princípio da Autonomia na Ética de Kant

realidade é provada por uma lei apodítica da razão prática, forma o fecho da abóbada de todo o edifício do sistema da razão pura, compreendendo aí a da razão especulativa»10 . Kant utiliza uma imagem arquitectural afirmando a realidade (Realität) de um conceito que, até então, não era senão problemático. Kant insiste sobretudo no papel da ideia de liberdade que assegura a unidade do todo, isto é, da razão pura nos seus dois usos teórico e prático. A liberdade surge como o «fecho da abóbada» que permite às duas partes do edifício manterem-se em conjunto sob a égide da razão prática. A ideia de liberdade cria esta unidade e a sua realidade prova-se pela lei da razão prática cuja 21 necessidade é certa e indubitável. Todavia, a lei moral é a priori universal e necessária e imediatamente acessível à consciência comum bem como à minha existência, como afirma Kant na Anotação 7 do capítulo primeiro «Dos princípios da razão pura prática», pois repousa num «facto da razão» (ein Faktum der Vernunft)11. Assim, a lei moral mostra, de uma maneira incontestável, a realidade da liberdade, mas as outras ideias como a de Deus e da imortalidade da alma que, no plano teórico, tiveram um estatuto problemático, pelo seu laço com o conceito de liberdade adquirem com e por ele consistência e realidade possível. Kant precisa que se trata da sua possibilidade, mas no plano prático opera-se uma mudança de estatuto, de problemática a possível, bem como a mudança de estatuto da ideia transcendental da liberdade, de possível a real, que é revelada pela lei moral. O ensinamento do §4 da Crítica da razão prática é o de que temos o saber (wissen) da lei moral em nós e o da possibilidade da liberdade que é a condição da primeira. Ora, não há aqui um círculo que Kant evoca 10 KANT, I., KpV, AK V, 3. 11 KANT, I., KpV, AK V, 31. Preview

This article is from: