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Rosa Maria Santos
FRANCISCA, A AVÓ QUE VIA NO ESCURO
Ahistória passa-se numa pequena aldeia, na periferia da cidade de Braga e desenrola-se numa humilde casa de chão térreo, paredes caiadas de branco, com uma única janela virada para a estrada principal, mesmo ao lado da porta de saída para a rua.
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Na parte traseira tinha a cozinha e uma pequena porta que dava para o terraço e quintal, aonde se podiam encontrar algumas árvores de fruto, um pequeno jardim e uma horta bem cuidada.
Ao longe, ouvia-se já o repicar o sino da Igreja que, de hora a hora, indicava a toda a aldeia o tempo que lentamente passava.
Na casinha, vivia uma família constituída por sete pessoas: os pais, quatro lindas filhas e a avó, a matriarca, de nome Francisca, senhora de meia idade, que perdera a visão havia anos duma forma estranha, sem qualquer motivo aparente.
Naqueles invernos frios e chuvosos, as crianças ficavam em casa, impedidas de poderem brincar no quintal. Fazia frio e os progenitores tinham receio que viessem adoecer. Se isso acontecesse, seria um problema, os tempos eram difíceis e as dificuldades eram imensas.
Maria, então com cinco anos, olhava a destreza da avó, a sair do quarto e dirigir-se ligeiramente para a cozinha, como se fosse ainda jovem e cheia de genica.
Ali, numa rotina diária, perto do meio dia, ia para junto da lareira e ali se sentava num tosco banquinho de madeira, para se aquecer e preparar a sua parca merenda de todos os dias. Levava a mão ao bolso da sua escura saia rodada, tirava um punhado de batatas, novas e pequenas, e colocava-as sobre as brasas.
- Abençoadas – pensava – são elas que vão dando algum alento à nossa vida.
Ali, junto do braseiro, ouvia o crepitar das brasas que ia atiçando com o abanador de palha já negro pelo calor, para que elas se mantivessem vivas. As batatas, em contacto com o calor, bem depressa se mostravam assadas, apetitosas, convidando a que ainda quentinhas fossem saboreadas. Então, retirava-os para o lado, dava-lhes um pequeno murro, e ei- -las, prontas a serem ingeridas. Descascava-as mesmo ali e ia-as comendo uma a uma.
Que belo pitéu! Maria era a sua companheira neste ritual, com quem partilhava aquilo que para si era uma saborosa iguaria.
A mente da menina não parava de se questionar. Como podia a avó, que era cega, fazer tudo aquilo tão descontraidamente? Saber onde encontrar as batatas, acender a lareira, assá-las, retirá-las do fogo… e como as descascava com destreza, até as olhava com cuidado, como se tivesse uma visão normal. Um dia, ganhou coragem e perguntou-lhe: - Como consegues fazer tudo isto, avó? - É a necessidade, Maria, a necessidade permite-nos ir onde às vezes não parece ser possível.
Cada amanhecer, Francisca cumpria esse ritual. Saía do minúsculo quarto em terra batida e atravessava a casa. Uma vez ou outra tateava com as mãos a velha parede caiada, com a cor já negra pelo tempo. Naquele dia, Maria, logo que a viu sair do quarto, correu em sua direção e perguntou:
- Queres ajuda, avó? Vem, eu levo-te à cozinha – disse, estendendo a mão.
A avó sorriu e respondeu com voz suave e doce: - Obrigada, querida netinha, já estou habituada! - Mas, avozinha, podes cair! Para ti é sempre noite, nem a candeia te vale, avó.
A doce velhinha virou-se para a neta, como se estivesse a vê-la, e disse:
- Vou contar-te um segredo. Maria sorriu. Será que ia ser hoje que iria perceber como a avó conseguia ver no escuro? Ela bem que tentava, por vezes, discretamente, calcorrear a casa com os olhos fechados. Mas não conseguia. Logo, se esbarrava contra tudo o que encontrava pela frente. Só podia ser isso, a avó tinha um segredo que a ninguém revelava.
- Segredo? Conta, sim, conta-me, avó. - Mas antes, vais prometer-me que não o contas a ninguém!
- Prometo, sim, não irei contá-lo nem à minha gatinha tão querida. Conta, avó.
Lançou um largo olhar ao redor e disse baixinho: - Podes falar, não há ninguém por aqui. Logo, a avó se baixou e estendeu as suas mãos para ele: - Vês estas mãos? - Sim, avó, vejo, sim. - Pois é, elas são os meus olhos. - Mas como, avozinha? Como podem elas ser os teus olhos? Elas não veem! Deixa-me olhá-las, deixas?
Logo, a avó Francisca colocou as suas mãos ao nível do olhar de Maria. Esta segurou-as com carinho e tateou os seus dedos.
- Que belas, avó, como são lindas as tuas mãos! - Sabes, netinha, não preciso ter olhos nas mãos. Olha- -as bem, parecem em tudo iguais às tuas.
Agora, Maria virava-as, de um lado, do outro. Depois, exclamou:
- É isso, avó, as tuas mãos parecem mesmo iguais às minhas. Não têm olhos. São elas que te ajudam a caminhar sem cair?
E, num gesto repentino, ergue as mãos da avó e beija-as com carinho.
- As tuas mãos são as mais lindas mãos que já vi, avó. Quem me dera entender como, quase por magia, se transformaram nos teus olhos. Estão tão gastas pelo tempo! Gastas porque todos os dias as arrastas pelas paredes para te segurares, para não caíres, para que vejas… sim, elas são os teus olhos. Segura as minhas tão pequeninas mãos, eu levo-te, vem, avó!
E lá foram atravessando a humilde casa. Com carinho, Francisca delicadamente largou as mãos da netinha, afaga o seu rosto e diz:
- És um anjo, Maria, o anjo que conduz a minha vida. O teu rosto é tão delicado, tão belo! Vais tornar-te numa linda mulher, tenho a certeza. Vá, senta-te aqui ao meu lado. Quero ensinar-te uma coisa.
- Sim, avozinha, conta. - Quando perdemos o sentido das cores que vivem em nós, as nossas mãos começam a ouvir, os ouvidos a entender melhor tudo o que se passa ao redor. São eles que nos ajudam a sentir aquilo a que antes não dávamos atenção. É isso, sim, passamos a ver, só que de uma forma diferente.
- Sabes, avozinha, és a mais encantadora de todos os seres. Conta, avó, conta a história! - Conto sim. Era uma vez…