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Marília Cairo
O SONHO DE LAVÍNIA
Ela perguntou de súbito: quem é o pai do bebê que vi na fotografia? Ele respondeu no início eu não tinha certeza…mas depois descobri que é meu filho mesmo. É meu filho mesmo. Ela parou. Sentiu por um momento como se o tempo e o espaço estivessem confusos, desfocados. Ele, parece que não sentia empatia pela confusão dela, pelo seu desespero. A expressão dele era divertida, até. Era como se ela tivesse levado muito tempo para constatar o óbvio. Mas em seu entendimento não era assim. Para ela, viviam um amor, eles tinham uma conexão profunda e rara. Ela fazia planos para o futuro, idealizava como seriam as suas vidas em diversas etapas. E, apesar dos problemas que enfrentavam, por nenhum momento ela pensou que não era verdadeiro, que a história na verdade era outra.
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Os seus pensamentos começaram a importunar: Como é possível? Onde eu havia estado todo esse tempo, que não percebi nada do que acontecia? Será que eu já havia enxergado, mas me neguei a aceitar? Ela não sabia. E aquilo a deixava incrédula e confusa, duvidando de si mesma. Olhou para ele com uma expressão de raiva e mágoa, como que pedindo uma explicação. Mas ele não se importou, seguiu o caminho normalmente. Então o rancor explodiu em seu peito e ela protestou com lágrimas nos olhos: “o que você fez?” Ele se incomodou, não gostou de ela o estar irritando e criando uma cena, passou a trata-la com desdém. E o que ela deduzia da sua atitude era que, pois bem, ele não estava preocupado. Parecia que ele havia conseguido usufruir até onde pôde o que tinham, e, que agora, já não importava mais. Agora ostentava no semblante uma espécie de riso cínico, e era como se ela pudesse adivinhar os seus pensamentos: “você fez com que eu agisse assim”. Ela insistiu, o segurou cobrando uma explicação, ele a desprendeu do seu braço e a empurrou. A bolsa dela tombou no asfalto e alguns de seus pertences se espalharam. A bolsinha de maquiagem, os remédios para alergia, o bloquinho de notas, as faturas a pagar. Sentiu pena de si mesma. Sentiu-se pequena e ridícula, com suas ideias de uma vida esplendorosa no futuro e suas playlists de Pink Floyd e Beatles. Como havia chegado àquele momento em sua vida? Olhou num relance para instantes da sua existência, como que pelo retrovisor de um carro em movimento, e soube que não havia se tornada a pessoa que um dia havia ardentemente desejado. Ela renunciou à seus sonhos. Ela apostou um preço alto. E perdeu.
Como a esperada explicação dele não viera, assim como não viera um conforto ou agrado qualquer, pensou por um momento que o problema podia ser mesmo dela, da sua inabilidade de se relacionar. Ela estava pondo tudo a perder, mais uma vez. Tinham viajado para passar o feriado prolongado numa cidadezinha do interior de Minas, que costumavam visitar, e tudo deveria transcorrer bem. Ela deveria relevar certos problemas corriqueiros, se quisesse ser feliz. Afinal, por muito tempo o seu casamento havia sido assim. Renúncias e desculpas.
Não obstante, por algum motivo, agora parecia diferente, como se ela houvesse despertado momentaneamente de um poderoso devaneio. Surgira uma pequena epifania, uma estreita janela em sua alma pela qual ela pudesse
finalmente saltar e fugir. Era como se ela o estivesse enxergando pela primeira vez. Perscrutava a pessoa com a qual havia se casado, mas ela estava ali? Realmente existira um dia? Agora parecia claro que os abusos emocionais eram frequentes e que ela relevava, na expectativa de que tudo melhoraria. Mas o ciclo nunca teria fim, ela finalmente entendeu. Se ele era tão bom como muitos diziam, por que, afinal, ela se sentia tão mal?
Atordoada com suas emoções, ela recolheu apressadamente os objetos do chão, recolocando-os na bolsa, virou-se e saiu descendo a rua sozinha, à passos largos. A calçada era enladeirada, com buracos no asfalto e poças de água da chuva. Crianças pequenas brincavam na rua, descalças. O lugar era simples e não muito movimentado. Ela pensou que precisava ir para casa, e então lembrou da sua mãe, e no que ela diria quando lhe contasse. Achou até que ela iria minimizar a situação mais uma vez, como sempre fazia. E lhe daria algum conselho para manter o casamento. Ela nunca entendera a sua mãe nesse aspecto. Nunca entendera os seus motivos. Ela, sempre fiel e se esforçando. Ele, sempre com crises de humor e mudanças de planos. Sofria mas no fim se rendia; casamento é sacrifício, diziam muitos. E assim ela seguia com concessões dilacerantes e infinitas. Sentiu uma pontada de ressentimento, e pensar nisso aumentou a sua sensação de solidão. Até passou novamente pelos seus pensamentos: “Será que estou vendo com clareza? Estou exagerando?” E outra voz interna parecia responder: “Está evidente que ele não se importa!”. Ela tentava manter o foco e agir racionalmente, e rápido.
À essa altura ela já havia deixado a sua mala encostada no portão de aço de um ponto comercial, à alguns metros atrás. Se voltou para buscar e viu que ele a olhava com uma fisionomia irônica, como se já soubesse que ela vacilaria da decisão de ir embora. Seu relacionamento com ele, sobretudo nos últimos dois anos, quando ter conseguindo conquista-la já não era mais uma novidade, foi minando a sua autoestima, a deixando insegura. Já estava se tornando extenuante. Ela queria ele. Mas também queria a si mesma. Visceralmente. Muitas vezes tinha até saudade de si mesma. De quem já fora um dia. Olhava fotos da garota de anos atrás e por vezes achava que era outra pessoa. Ela tinha um sentimento de insatisfação que aumentava cada vez mais. Uma sensação de que estava negligenciando-se de alguma forma, de que precisava mudar, retomar o comando da sua própria vida. Mas, se em principio ela sabia exatamente o que fazer, agir era muito mais doloroso. Ela não conseguia sair do lugar, era como se estivesse com a alma anestesiada. O medo de ficar sozinha. De estar percebendo as situações de forma equivocada. Do julgamento dos outros. Ela não sabia ao certo, não conseguia depreender a complexidade dos seus sentimentos. Era um paradoxo inexorável e delirante do qual nunca conseguira se desvencilhar. Via-se dando voltas no mesmo lugar, perdida, inconformada. Queria romper com o padrão negativo, de sofrimento, de sentir que não estava no controle, como se algo ou alguém estivesse. Mas quem? O que era? O que estava acontecendo? Ela se questionava.
Vacilando entre ficar e ir embora, ela o ignorou e continuou seguindo até a mala. Arrastou uma delas num gesto brusco e desceu a rua novamente. Ele havia iniciado uma conversa com um conhecido que passava. Os dois riam, falavam alto, gesticulavam, pareciam animados. Num ímpeto de perplexidade, ela virou para ele e o olhou com uma expressão ao mesmo tempo vazia e decidida. Ele devolveu com ar debochado, como que sugerindo que ela estivesse comportando-se como alguém totalmente desacreditado. Você precisa progredir, você precisa amadurecer, era o que ele sempre dizia. A mesma história se repetia irremediavelmente, enquanto ela sucumbia em silêncio. Ela sentiu então uma necessidade enorme de ser acolhida, de voltar para o lugar no qual a reconheceriam, a acariciariam, fosse esse lugar qual fosse. Onde era? Onde era o seu lugar? Para onde ela deveria ir para que lhe dissessem que não, que ela não era inadequada, que ela foi sincera, que ela sangrou violentamente de tanto se doar?? Queria voltar para o seu lugar, como se tivesse se distanciado muito dele, e por muito tempo. Mas não sabia como poderia voltar, e nem onde era esse lugar.
Sobre o autor
Marília Cairo é natural de Porto Seguro/ Bahia, mas mudou-se com sua família para Salvador ainda com meses de vida. Se formou em Produção Cultural em 2009 e em Jornalismo em 2014, pela Universidade Federal da Bahia. Mãe e profissional, atualmente também publica textos no Blogueiras Feministas. O universo das palavras é o seu lugar de paz e transformação. Escrever é uma maneira de reviver os acontecimentos, de brindar à vida, de ver por outro ângulo, de expurgar o que ficou acumulado das experiências vividas. Uma aventura...