43ª Divulga Escritor: Revista Literária da Lusofonia

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DIVULGA ESCRITOR DIVULGA ESCRITOR PARTICIPAÇÃO ESPECIAL COM A ESCRITORA MARILIA CAIRO

O SONHO DE LAVÍNIA

E

la perguntou de súbito: quem é o pai do bebê que vi na fotografia? Ele respondeu no início eu não tinha certeza…mas depois descobri que é meu filho mesmo. É meu filho mesmo. Ela parou. Sentiu por um momento como se o tempo e o espaço estivessem confusos, desfocados. Ele, parece que não sentia empatia pela confusão dela, pelo seu desespero. A expressão dele era divertida, até. Era como se ela tivesse levado muito tempo para constatar o óbvio. Mas em seu entendimento não era assim. Para ela, viviam um amor, eles tinham uma conexão profunda e rara. Ela fazia planos para o futuro, idealizava como seriam as suas vidas em diversas etapas. E, apesar dos problemas que enfrentavam, por nenhum momento ela pensou que não era verdadeiro, que a história na verdade era outra. Os seus pensamentos começaram a importunar: Como é possível? Onde eu havia estado todo esse tempo, que não percebi nada do que acontecia? Será que eu já havia enxergado, mas me neguei a aceitar? Ela não sabia. E aquilo a deixava incrédula e confusa, duvidando de si mesma. Olhou para ele com uma expressão de raiva e mágoa, como que pedindo uma explicação. Mas ele não se importou, seguiu o caminho normalmente. Então o rancor explodiu em seu peito e ela protestou com lágrimas nos olhos: “o que você fez?” Ele se incomodou, não gostou de ela o estar irritando e criando uma cena, passou a trata-la com desdém. E o que ela deduzia da sua atitude era que, pois bem, ele não estava preocupado. Parecia que ele havia conseguido usufruir até onde pôde o que tinham, e, que agora, já não importava mais.

Agora ostentava no semblante uma espécie de riso cínico, e era como se ela pudesse adivinhar os seus pensamentos: “você fez com que eu agisse assim”. Ela insistiu, o segurou cobrando uma explicação, ele a desprendeu do seu braço e a empurrou. A bolsa dela tombou no asfalto e alguns de seus pertences se espalharam. A bolsinha de maquiagem, os remédios para alergia, o bloquinho de notas, as faturas a pagar. Sentiu pena de si mesma. Sentiu-se pequena e ridícula, com suas ideias de uma vida esplendorosa no futuro e suas playlists de Pink Floyd e Beatles. Como havia chegado àquele momento em sua vida? Olhou num relance para instantes da sua existência, como que pelo retrovisor de um carro em movimento, e soube que não havia se tornada a pessoa que um dia havia ardentemente desejado. Ela renunciou à seus sonhos. Ela apostou um preço alto. E perdeu. Como a esperada explicação dele não viera, assim como não viera um conforto ou agrado qualquer, pensou por um momento que o problema podia ser mesmo dela, da sua inabilidade de se relacionar. Ela estava pondo tudo a perder, mais uma vez. Tinham viajado para passar o feriado prolongado numa cidadezinha do interior de Minas, que costumavam visitar, e tudo deveria transcorrer bem. Ela deveria relevar certos problemas corriqueiros, se quisesse ser feliz. Afinal, por muito tempo o seu casamento havia sido assim. Renúncias e desculpas. Não obstante, por algum motivo, agora parecia diferente, como se ela houvesse despertado momentaneamente de um poderoso devaneio. Surgira uma pequena epifania, uma estreita janela em sua alma pela qual ela pudesse

www.divulgaescritor.com | abril | 2020

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