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Ricardo Farias
Foto: Stacey Newman PARTICIPAÇÃO ESPECIAL COM
O ESCRITOR RICARDO FARIAS
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Poucas pessoas ficam atentas às incríveis coincidências que acontecem na nossa vida cotidiana. Eu passei por uma experiência dessas recentemente. Tudo começou no aeroporto da capital do Panamá, onde eu aguardava um voo para o Canadá. Sentado naquelas não muito confortáveis cadeiras de aeroportos, lendo um belo livro, tive minha atenção despertada por uma jovem, cujos trajes a tornavam “diferente”, bem diferente mesmo. Eram como cobertores, que lhe cobriam praticamente o corpo todo. Em sua cabeça, um chapéu, também diferente. No rosto, dois olhos azuis bem expressivos.
Na mesma hora vieram à minha mente os versos do poeta mineiro Emílio Moura, num pequeno poema chamado “Pastoral”:
Quando te encontrei, de que país estranho foi que imaginei mesmo que tu acabavas de regressar? Sei que era de um país remoto e que havia duas longas filas de plátanos junto de uma estrada. Sei que vinhas cantando.
Mas, de onde vinhas e por que vinhas, quando te encontrei?
Ela passeava de um lado para o outro, e, possivelmente, estava à espera de um voo também. Fiquei olhando-a por um tempo, e cheguei a uma primeira conclusão a seu respeito: ela deveria estar chegando da Terra do Nunca, devia ser uma das crianças perdidas que viviam com Peter Pan. Os trajes dela lembravam aqueles do filme da Disney.
Mas, de repente, ela sumiu da minha vista.
Voltei à leitura e quando ouvi a chamada de meu voo, me dirigi ao ponto de embarque.
Ao entrar no avião, surpresa: lá estava ela, na poltrona 26A.
O meu bilhete indicava uma poltrona perto, eu estaria na 28B.
Acomodei-me e nem me recordava mais dela, quando vi uma senhora discutindo com a moça, alegando que a poltrona 26A lhe pertencia. A comissária veio até elas e mostrou que a jovem havia se equivocado.
Vi que ela se levantou, pedindo desculpas, e, então, olhou para cima, conferiu a numeração... e veio sentar-se ao meu lado. A poltrona que haviam determinado para ela era a 28A. Levantei-me, para que ela pudesse entrar. A janela era dela, eu estava no meio da fileira 28, que tinha três lugares ao todo. Ela então, sentou-se, tirou o cobertor e eu vi que tinha um outro, desses que se veem muito nas descendentes dos povos originários do Peru ou da Bolívia. A ideia de que ela teria vindo da Terra do Nunca foi abandonada. Ao que tudo indicava, ela estaria vindo da América do Sul mesmo.
Fiquei imaginando os passeios que ela teria feito... Cuzco, Macchu Picchu... Tinha cara de quem ficaria horas sentada, meditando. Uma hippie “fora de época”, se é que seja possível ser hippie “fora de época”. Ser hippie é um estado de espírito!
Ela não disse uma palavra. O voo teve início, e seriam seis horas em que eu ficaria sentado ao lado dela. Mas não encetei conversa, porque ela ajeitou o travesseiro, recostou-se, fechou os olhos e dormiu. Aproveitei para continuar a ler...
Cerca de uma hora e meia depois, as comissárias iniciaram o serviço de bordo, que, lamentavelmente, era pago. Bebidas de graça, mas você quer comer algo, passageiro? Pague e comerá. Eu não tinha almoçado, então, paguei. Deram-me frutas, biscoitos e algumas fatias de queijo. O meu vizinho da 28C também pagou por alguma coisa. E vi que a jovem havia despertado, mas nada pedira. Quando chegou o carrinho de bebidas, ela pediu um suco de tomate. Pensei: será que este suco vai sustentá-la por mais quatro horas?
Olhei para ela e resolvi que dividiria meu portentoso lanche com aquela criatura. Havia algumas fatias de maçãs verdes, tirei uma e ofereci a ela. A princípio, ela me olhou meio desconfiada, mas aceitou. Deu um sorriso e agradeceu... em inglês.
Quem, por todos os deuses, seria a criatura que parecia saída de um desenho sobre a Terra do Nunca, mas vestia-se como uma camponesa sul-americana e falava em inglês? Ofereci mais maçãs, que ela também aceitou, sempre sorridente e sempre com um “thanks”. Ofereci também um pedaço de queijo que ela não recusou.
Pensei que poderíamos, finalmente, tentar conversar, mas qual! Ela abriu a mesinha da poltrona, ali acomodou o cobertor, deitou a cabeça, olhos fechados e parecia ter dormido de novo.
Fiquei olhando para ela e tentando imaginar que aventuras ela teria vivido, por quais países teria passado, e o que ela estaria fazendo ali, naquele avião, ao meu lado... E por que estaria indo para o Canadá? Lógico, como eu era tolo... Ela era canadense, fora passear na América do Sul, comprara aquelas roupas e agora regressava. Era isso, só podia ser isso.
Viagem repleta de áreas de instabilidade, avião balançando muito... E ela dormindo placidamente.
Só acordou quando avisaram que iniciariam o procedimento de descida. “Apertem os cintos, travem a mesinha e coloquem a poltrona na posição vertical.” E junto com o aviso, a comissária distribuiu aquele papel que precisa ser preenchido e entregue na imigração. Eu estava sem caneta, ela também, e o passageiro à minha direita... idem!
Ela conseguiu uma emprestada com um passageiro da fileira 29, e começou a preencher. E foi então, que descobri finalmente, quem era ela e o que fazia ali. Ela me perguntou o que deveria responder num determinado campo. Respondi que era a nacionalidade dela. E aí vi o nome: Franziska. Alemã. Mais mistério...
Mas aí foi possível falar um pouco. Ela me passou a caneta que havia conseguido, preenchi o meu papel, devolvi e perguntei se ela iria passear no Canadá. Então, ela disse que era artista, deu a entender que pintava quadros. E que não iria ficar no Canadá, tinha um voo em seguida para Frankfurt e, em seguida, outra conexão para Berlim. Fiquei pasmo. Sem saber de onde ela tinha saído, só contando as horas de voo do Panamá ao Canadá, do Canadá a Frankfurt e dali a Berlim, ela estaria fazendo um tour de quase 24 horas...
Avião no solo, portas abertas, ela saiu em disparada, pois sua conexão era quase imediata. Fiquei olhando-a até que ela desapareceu. E não a vi mais.
Franziska foi apenas a garota que se sentou ao meu lado no avião.
Este conto integra a coletânea “Decameron do Século XXI”, organizada por mim e publicada pela Editora Leia Livros.