Ação de formação15 sessão 1 filme

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Ação de Formação Graça Lobo Isa Catarina Mateus

Por dentro do Filme Sessão 1 | Filme História Trágica com Final Feliz, Regina Pessoa. 2005 (7:26’’)

2015-2016


História Trágica com Final Feliz, Regina Pessoa. 2005

18 Anos

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Título Por dentro do filme Subtítulo Ação de formação Número Sessão 1 / Filme Autoria Graça Lobo Isa Catarina Mateus Edição Data da última revisão Outubro 2015

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História Trágica com Final Feliz, Regina Pessoa. 2005

18 Anos

Conteúdo Ficha Técnica .......................................................................... 4 Sinopse ................................................................................. 4 Prémios (50) ........................................................................... 4 Narração ................................................................................ 5 Argumento ............................................................................. 6 A autora ............................................................................... 13 Entrevistas ............................................................................ 14 Filmografia ............................................................................ 14 Intertextualidades ................................................................... 14

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Objetivos 1. Conhecer o formato da curta-metragem (e a sua linguagem própria) 2. Conhecer jovens realizadores portugueses 3. Combater ideias feitas sobre o cinema português 4. Conhecer aspetos técnico-narrativos do cinema de animação

Conteúdos 1. Narrativa - Ação - Personagens 2. Condicionalismos da curta-duração 3. Argumento original 4. Figurações do medo 5. Utilização do negro como cor expressiva 6. Adequação da banda sonora ao ambiente do filme 7. Técnicas e tipos de animação – gravura 8. Conhecer uma autora de animação. DSRAL, Gabinete de Gestão Pedagógica | Graça Lobo


História Trágica com Final Feliz, Regina Pessoa. 2005

18 Anos

Ficha Técnica Título: História Trágica Com Final Feliz Realização: Regina Pessoa Produção: Ciclope - Folimage - ONF - Arte France Argumento, Grafismo e Cenários: Regina Pessoa Animação: Regina Pessoa, Sylvie Leonard, Laurent Repiton Música e criação sonora: Normand Roger em colaboração com Denis Chartrand Montagem: Hervé Guichard Formato: 35 mm, p/b Origem: Portugal/Canadá Ano: 2005 Duração: 7’46’’ Género: Animação

Sinopse Há pessoas que são diferentes. E tudo o que desejam é serem iguais aos outros, misturarem-se deliciosamente na multidão. Há quem passe o resto da vida lutando para conseguir isso, negando ou tentando abafar essa diferença. Outros assumem-na e dessa forma elevam-se, conseguindo assim um lugar... no coração.

Prémios

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(50)

Prémio Especial do Júri – Cinanima 2005, Portugal Prémio Melhor Filme Português – Cinanima 2005, Portugal Prémio da Crítica – Cinanima 2005, Portugal Prémio RTP/Onda Curta (Radio e Televisão Portuguesa) – Cinanima 2005, Portugal Prémio Melhor Animação – Granada 2006, Espanha Prémio Melhor Animação – Cinema – Caminhos do Cinema Português 2006, Portugal Prémio Especial do Júri – Anifest 2006 Trebon, República Checa 1º Prémio à Qualidade – CNC’ 2006, França Grande Prémio – SICAF 2006 – Coreia do Sul 1º Prémio - Festival de Curtas-Metragens do Hospital Júlio de Matos’06 - Portugal Grande Prémio - Annecy’06 - França Prémio TPS Cinéculte pour un Court Métrage - Annecy’06 – França Prémio Best Session – Melbourne’06 – Austrália Nomeação para o Cartoon d’Or’06 – Forum Cartoon Pau – Europa Menção Especial– Montecatini’06 – Itália 2º Prémio Especial do Júri: Design – Animamundi’06 - Brasil 2º Prémio Especial do Júri: Banda Sonora - Animamundi’06 – Brasil Prémio do Público – Silhouettes’06 - França Mention du Jury – Silhouettes’06 - França Mention du Jury Junior – Silhouettes’06 – França Special International Jury Prize – Hiroshima’06 – Japão Tatu de Prata – Jornada da Bahia’06 – Brasil DSRAL, Gabinete de Gestão Pedagógica | Graça Lobo


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Prémio do Público – Ovarvídeo’06 – Portugal Grande Prémio (exaequo) – Mecal’06 – Espanha 3º Prémio – AniMadrid’06 – Espanha Prémio Especial – CICDAF’06 - China Menção Honrosa : Artes – Columbus’06 - USA Melhor Animação – Interfilm Berlin’06 - Alemanha Menção Especial – L’Alternativa’06 - Espanha Prémio Especial para a Animação - Siena'2006 - Itália Menção Especial do Júri – Animated Dreams’06 - Estónia Menção Especial - Curta Cinema'06 - Brasil Menção Honrosa do Júri - 10º Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira'06 – Portugal Prémio SACD – Espace projets, Annecy’2001, França Prémio ARTE – Espace projets, Annecy’2001, França Prémio CST – Espace projets, Annecy’2001, França Coup de Coeur du Jury - Festival du Film Court Francophone Vaulx en Velin 2007 - França Nomeação para os 27º Genie Awards - Canadá Tricky Women Award 2007 (exaequo) - Tricky Women Festival - Viena - Áustria Grande Prémio do Júri - South by Southwest'2007 - USA Menção Honrosa - Nashville’07 - EUA Melhor Realização – Covilhã´07 - Portugal Lutin para o Melhor Filme de Animação – Les Lutins du Court Métrage’07 - França Melhor Curta Metragem - Toronto International Portuguese Film Festival'07 - Canadá Prémio do Público - Platform International Animation Festival 2007 - Oregon - USA Diploma FIPRESCI - 4th European Animated Film Festival BALKANIMA 2007 - Sérvia Melhor Banda Sonora Silver Elephant - The Golden Elephant Film Festival 2007 - India Menção Honrosa - Etudia&Anima 2007 - International Film festival Krakow 2007 - Polónia Prémio Inovação 2007 - no âmbito do Prémio Nacional Manuel Pinto de Azevedo Jr - Portugal Prémio Animação - FIKE 2007 - Festival Internacional Curtas Metragens de Évora – Portugal

Narração Era uma vez uma menina cujo coração batia mais rápido que o das outras pessoas. Isso incomodava toda a gente... Por causa do barulho… O coração batia tão alto!... Ela tentava explicar: “É um coração de pássaro... Eu estou no corpo errado!... Daí o coração bater tão rápido... Eu sou um pássaro..." “Que é que ela disse?... é tolinha... não deve durar muito…” Então, ela fugia... Ela só queria desaparecer… deixar-se levar pelo vento... Finalmente, a chuva acalmava-a, então ela voltava p’ra casa e continuava a viver, apesar de tudo. Pouco a pouco as pessoas foram-se habituando ao barulho do coração… Acabaram mesmo por esquecê-la… Ninguém se apercebeu do que se passava... DSRAL, Gabinete de Gestão Pedagógica | Graça Lobo

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E isso era bom para ela… Também ela se habituava… Começou mesmo a gostar do seu corpo… E sentia-se cada vez mais leve… Ninguém reparou como sorria, de olhos postos no céu. E depois… um dia… As pessoas já não sabiam se era alguém que morria, ou alguém que nascia... Mas uma coisa era certa… ninguém se importaria de partir assim…

Argumento Exterior dia, ambiente campestre. Ecrã branco. Genérico de abertura. Sobre o branco começa a distinguir-se uma leve textura. Câmara afasta-se e vemos um pássaro e depois outros, que pairam num céu levemente nublado. O movimento de câmara continua a afastar-se, vêem-se copas de árvores vistas de baixo. A câmara gira e baixa até enquadrar uma paisagem campestre. O movimento de câmara para. Na linha do horizonte um pequeno ponto aproxima-se, acompanhado por um som grave cadenciado, como que uma batida, crescente: TUM tum, TUM tum... é a personagem principal, uma menina, que chega de bicicleta, pedalando energicamente na direcção da câmara. Os seus olhos levantam-se para o céu e percebe-se um esboço de um sorriso triste no seu rosto. Narração em voz off: Era uma vez uma menina cujo coração batia mais rápido que o das outras pessoas. A menina continua a pedalar na direcção da câmara e esta como que entra pelo seu peito dentro, penetrando-o até ao coração, que vemos bater desalmadamente, em sincronia com o ritmo cadenciado que continuamos a ouvir. Plano aproximado da roda da bicicleta que gira a toda a velocidade. Câmara subjectiva sobre a paisagem, que se desenrola diante da bicicleta. Aproximamo-nos de uma pequena cidade. As pessoas voltam-se para observar a menina à medida que ela entra na vila. Exterior dia, ambiente de bairro. Grande plano da cara da menina. O pequeno sorriso que víramos antes desapareceu da sua cara para dar lugar a uma expressão aflita. Ao mesmo tempo, as pessoas voltam-se na sua direcção, com expressões de desagrado. Movimento de câmara desde as expressões das pessoas quando a menina passa, girando para o ponto para onde a menina seguiu com a sua bicicleta. Plano americano sobre a menina que chega a casa. Visivelmente perturbada, atira com a bicicleta contra a parede e empurra a porta de casa, entrando a correr. Interior dia, casa da menina. DSRAL, Gabinete de Gestão Pedagógica | Graça Lobo

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A câmara acompanha-a e sobe, mostrando a sua trajectória em picado. A menina empurra a porta do quarto sempre a correr e fecha-nos a porta na cara (câmara), deixando-nos no negro. Interior noite, quarto da menina. Do negro a câmara afasta-se e vemos o quarto. Pela janela vemos que anoiteceu. Plano aproximado da menina. A sua expressão é de desânimo. Debruça-se sobre o seu próprio peito, tateando a zona do coração, e cobre o rosto com as mãos, em desespero. Plano de detalhe de um móvel do quarto. Os objectos pousados sobre ele estremecem ao ritmo do ruído cadenciado que escutamos desde o início do filme, que é o barulho do coração: TUM tum, TUM tum... De novo a menina, encolhida e aninhada em cima da cama, desesperada. Num movimento rápido pega nas pontas dos lençóis e esconde-se sob os cobertores, como que para abafar o ruído do seu coração e para se isolar do mundo ao mesmo tempo. Narrador Isso provocava-lhe uma grande angústia à qual não sabia como escapar, pois além do seu sofrimento o coração fazia muito barulho e incomodava as pessoas... 7

Plano sobre a janela do quarto, através da qual vemos a silhueta das casas da vila, na noite. Na silhueta ilumina-se uma janela. Interior noite, quarto de um vizinho Um vizinho estremunhado, que acordou com o barulho do coração, tenta escapar ao ruído, pressionando uma almofada sobre os ouvidos. Interior noite, quarto da menina Através da janela do quarto da menina, vemos novamente a silhueta das casas da vila, onde as janelas se vão iluminando, uma a uma. Interior noite, quarto de outros vizinhos Um casal de vizinhos idosos tapa os ouvidos com as mãos, aturdidos com o barulho. Interior noite, quarto da menina Uma vez mais, através da janela, vemos a silhueta das casas da vila na noite, onde cada vez mais janelas se vão iluminando. Plano geral do quarto da menina, distorcido como que por uma grande angular, onde a vemos a contorcerse torcida de desespero na cama. Interior noite, quarto do primeiro vizinho O vizinho, em pijama, ajoelha-se na cama e abre a janela, enfurecido.

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Exterior noite, quarto do primeiro vizinho O vizinho, despenteado e visivelmente contrariado, assoma à janela, proferindo protestos, vociferando e acenando. Exterior noite, meio da rua Os cães das vizinhanças juntam-se na rua em frente à casa a menina e, excitados com o barulho do coração e com todo aquele reboliço, ladram e uivam furiosamente na direcção da sua janela. Exterior noite, outras janelas. Mais vizinhos aparecem nas suas janelas e varandas, incomodados e apreensivos, murmurando entre si, na direcção da janela da menina. Exterior noite, rua. Há um burburinho geral. As pessoas continuam toda a noite nas janelas e varandas, acompanhado pelos latidos interruptos dos cães e pelo barulho do coração. Exterior dia, rua. Entretanto, no mesmo plano, o dia amanhece. Os cães continuam a ladrar. As pessoas deixam finalmente as suas casas e dirigem-se para a casa da menina. Interior dia, casa da menina Ouve-se bater à porta. Uma sombra, seguida de uma mão, abre a porta. Do outro lado, na rua, estão todos os vizinhos irados e olheirentos, depois de uma noite em claro, precedidos pelos cães enraivecidos. 8

Exterior dia, rua A menina sai de casa, ela também visivelmente cansada e abatida e com uma voz tímida e um ar grave e sério tenta explicar às pessoas a razão do seu problema, gesticulando veementemente ao mesmo tempo. Menina É que na verdade eu sou um pássaro, só que estou no corpo errado. Daí o meu coração bater muito rápido, é um coração de pássaro...

A raiva das pessoas cede lugar à incredulidade e depois à compaixão. Trocam olhares entre si, abanam a cabeça e murmuram ao ouvido uns dos outros: Pessoas Coitada, é tolinha!... Vai morrer, não dura muito tempo... A menina que vemos ao fundo, apercebe-se que não é compreendida, baixa a cabeça, corre para a sua bicicleta e desata a pedalar a toda a velocidade. Um movimento de câmara mostra-nos a sua trajectória e vemo-la sair da aldeia, na direcção dos campos. Exterior dia, ambiente campestre A sua expressão é de tristeza e desespero, enquanto pedala energicamente. DSRAL, Gabinete de Gestão Pedagógica | Graça Lobo


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Começa a levantar-se vento, revolvendo-lhe os cabelos em todas as direcções. A câmara sobe de um grande plano da sua cara para o céu que escurece com nuvens que se adensam. Desatam a cair grossas gotas de chuva e relâmpagos rasgam o céu. Os sons dos trovões confundem-se com o barulho do coração. Narrador Então ela deixava-os e fugia Para que as suas lágrimas se confundissem Com as gotas de chuva E também para que as pessoas Não sentissem ainda mais raiva se descobrissem que A origem da chuva era a sua tristeza A menina continua a pedalar contra o vento, fustigado pela chuva. Vemo-la sair de campo deixando para trás de si a tempestade. A câmara sobe e vemos o céu cerrado nuvens e de chuva. A chuva abranda e, a pouco e pouco, as nuvens tornam-se mais leves, mais raras, e o céu começa a aparecer limpo, claro e lavado. Um pássaro cruza o céu. Exterior dia, janela do quarto da menina O seu olhar segue o pássaro, enquanto come um biscoito. Sorri e desfaz um pedaço do biscoito em migalhas. Estende a mão no parapeito e aguarda, sempre com o olhar posto no céu, ansiosa e curiosa. O pássaro entra em campo e pousa no parapeito. Depois, a pouco e pouco, vai-se aproximando da sua mão. Toma coragem, pica algumas migalhas e afasta-se. Aproxima-se novamente, ganha confiança e começa a comer as migalhas da sua mão permitindo até que ela o acaricie. Quando as migalhas acabam, o pássaro chilreia, mas não foge, como se pedisse mais. Grande plano da cara da menina que sorri, satisfeita. Interior dia, quarto da menina. Pega no pássaro com ambas as mãos e solta-o no ar, para que vá, para que voe. O pássaro sai pela janela e a câmara segue-o, num ponto de vista aéreo sobre a rua. Exterior dia, rua. Na rua vemos as pessoas na sua lida normal, marcando as suas actividades com os sons que produzem: A senhora que caminha na rua, marcando os seus passos com o som dos tacões: TOC toc; TOC toc... O merceeiro que faz as contas na sua máquina registadora: PLIM plim, PLIM plim... O varredor das ruas: VASP vasp, VASP vasp... Os meninos que jogam à bola: TAM tam, TAM tam... A velhinha que passa com seu carrinho de compras com rodas: NHIC nhic, NHIC nhic, arrastando o seu cachorro pela trela. Quando o cão passa pela bicicleta da menina encostada à parede, faz chichi contra ela.

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O curioso era que todos os movimentos das pessoas, todos os seus gestos, todas as suas actividades, aconteciam, sem que elas se apercebessem, ao ritmo do barulho do coração da menina, certo como um relógio: TUM tum, TUM tum... Sem se aperceberem, incorporaram o barulho do coração nas suas vidas. Narrador Mas, como ela insistia em continuar a viver, As pessoas foram-se desinteressando, Habituando-se ao barulho que o coração fazia Acabando por desprezá-la E depois por esquece-la. Vemos novamente um plano geral picado sobre a rua. Lentamente, começa a escurecer. A câmara desce e vemos as pessoas começarem a largar as suas actividades ritmadas e recolhem às suas casas. Exterior noite, rua Anoitece e vemos as casas em silhueta, com as janelas iluminadas. Algumas luzes vão-se apagando. Interior noite, quarto dos vizinhos idosos Na semi obscuridade do quarto, o casal dorme tranquilamente, ressonando ao ritmo do coração da menina.

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Exterior noite, rua Na silhueta das casas da vila, uma a uma, cada vez mais luzes se apagam. Interior noite, quarto do outro vizinho Também este vizinho dorme sem problemas. Exterior noite, rua Os cães dormem na rua. O ambiente é calmo. O coração ressoa surdamente sobre a vila como que assegurando que a vida segue o seu ritmo normal no seu rumo natural. Todas as casas estão mergulhadas na mais completa escuridão. Interior noite, quarto da menina Ela dorme. Subitamente, o seu corpo estremece por baixo dos cobertores, acordando-a. Ela não se assusta com isso. Olha por cima do ombro para as costas, sorri e volta a adormecer. Narrador Por isso ninguém se apercebeu Das transformações que o seu corpo sofria Com o passar do tempo. DSRAL, Gabinete de Gestão Pedagógica | Graça Lobo


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Passagem do tempo. O tempo passa. Anoitece, amanhece, a luz obriga as sombras a percorrerem o mesmo percurso todos os dias. Interior dia, quarto da menina. Vemo-la sair da cama e seguimos os seus passos. Entra no quarto de banho e corre a cortina. Interior dia, quarto de banho. Abre a torneira, toma um duche. Sorri enquanto se lava e deixa a água correr pelas costas. Fecha a torneira, pega numa toalha e enrola-se nela. Sai do quarto de banho vem para o quarto. A câmara acompanha-a. Na mão traz um pente. Interior dia, quarto da menina. Pára em frente à janela e penteia os cabelos, ainda molhados. O seu olhar é atraído para o céu. Nos vidros da janela vemos reflectido um bando de pássaros que voam. Exterior dia, céu O céu, com leves nuvens apenas, é atravessado por esse bando de pássaros em formação, provavelmente migratórios que iniciam a sua viagem.

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Interior dia, quarto da menina. Distinguimos a menina de costas em contra luz, quieta, que observa pela janela o exterior. Exterior dia, Vila Plano geral de grande angular sobre a rua. Vemos as pessoas nas suas actividades ritmadas. No céu, o bando de pássaros afasta-se. Distingue-se a pequenina silhueta da menina na sua janela. Sobre a Vila paira o barulho do coração, como uma aura. Tudo parece perfeito. Interior dia, quarto da menina. A silhueta da menina continua em frente à janela. Deixa cair a toalha onde se enrolara depois do banho. Abre a janela com um movimento enérgico e continua a olhar o exterior. Exterior dia, rua. As pessoas no exterior continuam as suas actividades de todos os dias, ritmadas pelo coração: Os meninos que jogam à bola: TAM tam, TAM tam... O merceeiro que faz as contas. No mostrador na sua maquina registadora desfilam algarismos: 4... PLIM plim, 3... PLIM plim, 2... PLIM plim, 1... PLIM plim Interior dia, quarto da menina. DSRAL, Gabinete de Gestão Pedagógica | Graça Lobo


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Nesse preciso momento, subitamente como se tratasse de uma explosão, vemos abrirem-se duas asas nas costas da silhueta da menina. É nesse instante que deixamos de ouvir o barulho do coração e ficamos mergulhados num silêncio profundo. Exterior dia, Rua No instante que deixa de se ouvir o barulho do coração, toda a rua rebenta num caos: PLIM...PLOP!, saltam as teclas da caixa registadora do merceeiro! O mostrador marca zero... CRASH!, a bola dos meninos sai disparada sem controle e parte o vidro da montra! CRAC!, o salto da senhora dos tacões quebra-se e por pouco que não parte uma perna! VLUM!, o saco das compras rolante da velhota e toda a espécie de géneros rebola pela calçada... TRAZ!, quebra-se a vassoura do varredor!... As catástrofes sucedem-se umas às outras como uma cascata. Algo que sustentava o tempo deixou de existir. Interior dia, quarto da menina. A menina trepa para o parapeito da janela, faz uma pequena pausa e salta. Vemos as suas pernas que vão desaparecendo pela parte superior da janela. Depois, mais nada. Apenas o silêncio, a janela aberta, vazia donde podemos ver o céu limpo e claro. Exterior dia, Rua Na rua, pessoas estão ainda aturdidas e não se aperceberam do que se passa. O Varredor baixa-se para apanhar a vassoura partida do chão.

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Ao fazer isso apercebe-se de uma estranha sombra em movimento, projectada no solo. Olha para cima para ver a origem da sombra e os seus olhos e boca abrem-se de pasmo. A câmara começa a afastar-se e todos os habitantes da aldeia olham os céus, completamente assombrados. Ouve-se um sussurro geral de espanto e a surpresa é evidente no seu olhar. A câmara continua a afastar-se e vemos as pessoas cada vez mais pequeninas. Sobre elas projecta-se aquela estranha sombra. Agora já é toda a aldeia que se vê pequenina e as pessoas são apenas pequenos pontos A câmara continua a subir cada vez mais, começam a aparecer nuvens e a imagem da pequena vila torna-se indefinida como um sonho distante, de contornos cada vez mais difusos até deixar de se ver. A claridade aumenta à medida que continuamos a subir e as imagens tornam-se cada vez mais diáfanas. Por fim fica apenas o ecrã branco luminoso. Genérico de fim Exterior dia, rua Durante o genérico voltamos à pequena vila. Em frente da sua mercearia o merceeiro olha à sua volta como que à procura de alguma coisa. Por fim suspira e encolhe os ombros. Genérico Exterior dia, rua. O varredor tenta na sua tarefa, encontrar o ritmo dos movimentos de outrora. Sem sucesso, desiste, desanimado.

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Genérico Interior noite, quarto da senhora dos tacões. A senhora acende a luz. O silêncio é completo. Desgrenhada e desanimada olha a câmara, engole alguns comprimidos, bebe água e deita-se de novo, tentando em vão dormir. Genérico Exterior noite, rua Um cão dorme enroscado na rua. Subitamente abre os olhos e levanta uma orelha. Solta um pequeno latido de entusiasmo e espera de focinho no ar. Mas a resposta de volta é apenas o silêncio. Desanimado baixa as orelhas e volta a deitar-se. Fim

Sobre esta curta-metragem e sobre a sua obra diz a autora

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‘Vivi no campo, numa aldeia perto de Coimbra até aos 17 anos. O meu universo era rural. Não tínhamos televisão, o que na altura era uma grande maçada, mas hoje, refletindo bem, acho que me salvou. Nos tempos livres pensávamos, líamos e ouvíamos os mais velhos contarem histórias. E desenhávamos também. Um tio meu encorajava-nos, desenhando nas paredes de cal e nas portas da casa da minha avó, com carvão da fogueira. O facto de desenharmos assim, pelas paredes, ainda por cima encorajados por um adulto, davanos uma sensação de liberdade e de grande disponibilidade também, porque se, por um lado não tínhamos papel nem lápis, arranjávamos sempre umas paredes ou portas. Talvez isso esteja no meu inconsciente porque mais tarde vim a fazer filmes riscados em diferentes suportes!“ “Bastante tempo antes de se pensar fazer um filme, surgiu apenas uma frase, que inspirou uma imagem. Depois, apareceu outra frase que trouxe outra imagem. E, como quando se puxa um fio, cada imagem sugeria uma nova frase e vice-versa. Ao fim de algum tempo, sem que ninguém desse conta, estava ali uma história que pediu um filme. O filme fez-se.” “As histórias que gosto contar são sempre simples, acerca de pessoas que conheci. Umas ainda vivem, outras já morreram. Tiveram vidas anónimas ou ignoradas, passaram despercebidas por este mundo e rapidamente foram esquecidas. Interessam-me os mistérios, os pequenos dramas e a poesia que se escondem nas suas vidas aparentemente banais. São elas os meus heróis e as minhas referências.

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As ideias deste filme surgiram num trabalho de gravura e serigrafia, enquanto estava a estudar nas Belas Artes, cada frase inspirava uma gravura e cada imagem sugeria uma nova frase e assim foram surgindo novos desafias técnicos e estéticos. Um longo processo de produção se seguiu. Seguimos uma menina e descobrimos que ela não é igual às outras pessoas, é “diferente”. O traço que a faz diferir não só incomoda a comunidade a que pertence, como se traduz por um profundo sofrimento individual. A comunidade e a menina reagem à diferença, a primeira manifestando a sua intolerância, a segunda isolando-se. Com o tempo, a comunidade acaba por habituar-se insensivelmente à presença da diferença, distanciandoa, mas ao mesmo tempo integrando-a na voragem do seu quotidiano. Porém as diferenças existem, persistem e são irredutíveis. Certas vezes possuem razão de ser e correspondem a estados temporários de trânsito para outros estados de existência, certas vezes são fatais... Seja como for, devem ser assumidas por quem as vive para a levarem a um melhor conhecimento de si própria e a uma mais intensa consciência do mundo. Um dia partirá e deixará a comunidade, que compreenderá, demasiado tarde, que o tal ser estranho que sempre mantivera à distância, tinha acabado por fazer misteriosamente parte da sua vida...’

Com este filme Regina Pessoa obteve mais de 50 Prémios, incluindo O Grande Prémio do Festival de Annecy, em 2006 – Festival considerado o mais importante da Europa. È por isso o mais premiado filme do Cinema Português. Uma pequena pérola que bem merece este reconhecimento Mundial

Entrevistas

Filmografia 14

4:45

1996 | Ciclo Vicioso (23’’)

4:23

1998 | Estrelas de Natal (40’’)

2:58

1999 | A noite 2001 | Odisseia nas Imagens (25’’) 2005 | História trágica com final feliz (7:26) 2012 | Kali, o pequeno vampiro (falado em inglês e com legendas em francês

Intertextualidades O gabinete do Dr. Caligari, Robert Wiene. Alemanha, 1920 (78’)

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A Puberdade, Edvard Munch. 1894

Ver Vincent, Tim Burton. Estados Unidos, 1982 (6’) Piotr Dumala, Kafka. Polónia, 1992 (16’) The Sandman, Paul Berry. Reino Unido, 1991 (9:15)

Ler O Homem da areia, Ernst Hoffmann. 1815

Poema à Mãe Mas tu esqueceste muita coisa; esqueceste que as minhas pernas cresceram, que todo o meu corpo cresceu, e até o meu coração ficou enorme, mãe! No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe Tudo porque já não sou o retrato adormecido no fundo dos teus olhos. Tudo porque tu ignoras que há leitos onde o frio não se demora e noites rumorosas de águas matinais. Por isso, às vezes, as palavras que te digo são duras, mãe, e o nosso amor é infeliz. Tudo porque perdi as rosas brancas que apertava junto ao coração no retrato da moldura. Se soubesses como ainda amo as rosas, talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Olha — queres ouvir-me? — às vezes ainda sou o menino que adormeceu nos teus olhos; ainda aperto contra o coração rosas tão brancas como as que tens na moldura; ainda oiço a tua voz: Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal... Mas — tu sabes — a noite é enorme, e todo o meu corpo cresceu. Eu saí da moldura, dei às aves os meus olhos a beber, Não me esqueci de nada, mãe. Guardo a tua voz dentro de mim. E deixo-te as rosas. Boa noite. Eu vou com as aves. Eugénio de Andrade, in ‘Os Amantes Sem Dinheiro’ DSRAL, Gabinete de Gestão Pedagógica | Graça Lobo

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Histรณria Trรกgica com Final Feliz, Regina Pessoa. 2005

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Bom Trabalho!

Bom Cinema! DSRAL, Gabinete de Gestรฃo Pedagรณgica | Graรงa Lobo


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