Brincreto

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BRINCRETO:

LABORATORIO DE BRINCANCIA URBANA Brincadeira, Subversão e Cidade

2 0 1 7 . 2 | P U C. R i o | Tr a b a l h o d e c o n c l u s ã o d e c u r s o Departamento de Arquitetura e Urbanismo Aluna: Sofia Olival Orientadora: Maíra Martins


O APANHADOR DE DESPERDICIOS Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios. Manoel de Barros


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SUMARIO 1 2 3

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Apresentação

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Da prancheta pras ruas

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Dimensão do corpo

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Redescobrindo o Playground

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Cidadelas

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Brincantes

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Linha do tempo

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Adventure Playground

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Brincreto

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Conclusões

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Referências Bibliográficas

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AGRADECIMENTOS Dedico esse trabalho: À todos os brincantes que iluminam a cidade. À minha mãe, minha maior inspiração, por lembrar (à todos) todos os dias que brincar é coisa séria. À Be, melhor pessoa, pela sabedoria e amor que transborda por todos os cantos. Ao meu pai, arquiteto (de coração) pelo entuasismo e visão e por acolher minhas escolhas sempre. À Claudia, mãe postiça, por topar todas as minhas ideias mais malucas e fazer tudo isso acontecer junto comigo. A vóvis e ao boina pelo amor que acalma. À Lu, pela energia infinita que atravessa o oceano. À Keka, minha guru para tudo e todas as horas. À Maíra pelo incentivo e orientação sempre. A(o)s meus e minhas parceirxs de faculdade, por serem minha família carioca. À mussika, pelos diazões incontáveis. À Laninha por aguentar minhas bagunças e cuidar muito bem de mim. À todos xs funcionárixs do Pró-saber por sempre me receber com um sorriso no rosto e me deixar muito à vontade. E um agradecimento especial aos brincantes do brincreto, co-autores desse trabalho, por confiar em mim e alegrar minhas manhãs.


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APRESENTACAO

O BRINCRETO: Laboratório de superfícies brincantes é um trabalho de pesquisa desenvolvido a partir de encontros semanais com 14 crianças de 7 a 13 anos residentes em Paraisópolis, favela localizada na Zona Sul de São Paulo. Nos encontramos durante todo o segundo semestre de 2017, com o intuito de explorar o papel da brincadeira no bem-estar do ambiente urbano. Este projeto surgiu de um questionamento pessoal acerca da minha formação como arquiteta urbanista e uma extensa pesquisa sobre - e tendo como método - a experiência empírica como dispositivo de investigação do território. Na busca por embasamento metodológico tomei conhecimento, nas palavras da arquiteta e antropóloga Alessia de Biase, da postura antropológica que iria guiar minhas ações como “arquiteta enquanto mediadora, decodificadora e tradutora”, e do empirismo impertinente que essa postura evoca: “Para o laboratório a empiria é necessária, tem que antes de se sentar, correr um pouco pela cidade, suar um pouco, e o impertinente é o lado indisciplinado, você pode fazer empiria, trabalho de campo, sem seguir as regras mais rígidas de fazer o trabalho de campo” (BIASE, 2012, p. 18) A investigação teórica interdisciplinar e a prática despretensiosa do espaço me guiaram durante todo o processo e me conectaram a diversas linhas de ação e pensamento acerca da experimentação urbana. Linhas que podiam e pediam para serem desenroladas e decifradas uma a uma, minuciosamente, mas que pareciam não ter fim. Na tentativa de sintetizar todas essas leituras e experiências, e na surpresa de querer falar sobre tudo sem mudar de parágrafo, entendi que todas essas linhas eram uma só e que no âmbito dos espaços públicos, está tudo interligado pela multiplicidade de linguagens que os formam e mais ainda, os condicionam. Dividi minha pesquisa em 4 momentos, que apesar de não apresentarem um começo e um fim neles próprios e se infiltrarem um nos outros, foram aparecendo aos poucos durante o ano e costurando meu trabalho até agora. Um trabalho de campo traz em sua concepção a aura do encontro com o outro, evidenciado pela própria antropologia. Diz respeito a aventurar-se em mundos diversos dos nossos, a predispor-se ao contato com o desconhecido. Uma postura investigativa que exige o desprendimento para as constantes mudanças de rotas e reformulação de hipóteses. Tudo a depender das condicionantes que o próprio campo pode colocar. (SAURA, 2013, p. 3)


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DA PRANCHETA PARA AS RUAS

O produto final deste trabalho é um manifesto. Um manifesto pelos acessos aos espaços livres de brincadeira da cidade que pode ser utilizado por todos os brincantes urbanos ou como base para outras propostas que acreditam na ocupação da cidade pelos seus usuários. Neste caderno conto a minha experiência como pesquisadora observadora-participante de universos familiares porém diferentes do meu. A mudança de posicionamento da prancheta para as ruas me levou a formular e executar esses encontros com as crianças, que se traduzem aqui em formato de reflexão, manifesto e questionamento: Como reivindicar e planejar espaços que convidam à expressão de diferentes linguagens da cidade? A cidade é feita de estruturas e regras limitantes, que quando enxergadas como possibilidades a transformam em um grande plyground, um campo infinito de experimentação pro corpo e pra mente.

Desde o primeiro momento em que comecei a pensar de que forma gostaria de finalizar minha graduação, só sabia uma coisa: queria ir pra rua. Não sabia como, nem onde, mas sempre soube o quê, e este quê vinha de uma vontade de complementar minha formação. O querer passar por diferentes processos de compreensão e vivência do território, algo que na minha concepção, nunca foi dado seu devido crédito, foi aumentando cada vez mais ao longo dos meus estudos. Durante toda a minha formação acadêmica, o meu processo projetual sempre seguiu um caminho parecido. Iniciando a partir uma questão previamente colocada pelas professoras e professores, também entendida como tema ou programa, passando por uma análise de referências (normalmente internacionais) por meio de dados coletados em livros e internet, seguida de uma ou duas visitas ao terreno e seu entorno, também previamente escolhido, partindo então para o “projetar”, momento em que se reflete sobre tudo o que foi estudado e analisado e se sugere uma solução. Claramente, a falta de complexidade no processo relatado acima é só uma forma de representar uma certa angústia da minha parte em relação à falta de tempo e incentivo dado a vivência no território, que como arquitetos urbanistas, temos o poder de transformar com um risco de caneta. Portanto, o meu trabalho partiu de uma vontade de tentar reverter o processo ao qual estou habituada, removendo a questão do início do processo e jogando-a para mais adiante. De problemática, virou resultado. E o diagnóstico territorial que antes partia de uma questão colocada, foi ferramenta para se chegar a uma questão. A forma que encontrei então para unir a certeza de querer ir pra rua com a angústia de não ter aprendido muito bem como ir pra rua, foi ir pra rua e entender o porque isso me pareceu sempre tão importante. A partir de um mapa do google e muita pesquisa em guias, facebook, eventos, entre outras formas de busca de espaços de entretenimento da cidade, criei um mapa próprio, sinalizando lugares públicos de interesse que tinham alguma relação com cultura, cidade e pessoas e fui caminhar pela região que possuía a maior concentração de “alfinetes” desse mapa. Acreditava que dessa forma poderia conhecer pessoas interessadas na questão do direito à cidade e criar uma rede de apoio que me ajudaria a entender (https://www.google.com/maps/d/viewer?hl=pt-BR&mid=1zju_xOlwxx3taZXtthitDJoT-F8&ll=-21.342 essa minha vontade de ir pra rua. 665171794046%2C-46.66471649999997&z=5)


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Caminhando para chegar a esses lugares logo me dei conta de que não queria entrar, minha vontade era continuar caminhando, muitas coisas na rua me chamavam a atenção. Percebi que queria me aprofundar nas ações espontâneas que ocorrem no espaço urbano, nas dinâmicas naturais de encontros, trocas e conflitos e, principalmente, na relação corpo-espaço, a forma como os usuários, ocupantes, atores e moradores interagem, percebem e se apropriam do espaço material da cidade. Nesse momento passei a prestar muito atenção nas pessoas e compreendi uma citação de Michel Agier no livro Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos, quando propõe a reformulação da questão O que é a cidade? para O que faz a cidade?, sugerindo que o estudioso sobre o espaço urbano deve compreender a cidade do ponto de vista dos citadinos, por “sobre os ombros” deles, deslocando assim o olhar da cidade para as pessoas que a vivem, sentem e experienciam. Segundo Agier, o ponto de vista do antropólogo sobre a cidade é “um conjunto de conhecimentos, sempre em desenvolvimento e transformação”, no qual ele dá o nome de cidade bis, “ou seja, a cidade produzida pelo antropólogo a partir do ponto de vista das práticas, relações e representações dos citadinos que ele próprio observa diretamente e em situação”. (AGIER, 2011: p.32) Essa concepção de antropologia urbana, foi utilizada em conjunto com a apresentada pelo livro Quando a rua vira casa: A apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro, que discute os processo de transformação das estruturas físicas do Rio de Janeiro a partir do relato etnográfico de dois bairros da cidade. Para construí-lo, o grupo de pesquisadores defende a necessidade de ir além da materialidade dos espaços e dos processos que nele se desenvolvem, buscando a dimensão simbólica que podem apresentar. Eles compreendem que, além de dois tipos principais de espaços nas cidade - o construído, fechado e, em maior ou menor grau, privatizado; e o aberto e de uso coletivo -, exista ainda um espaço “entre” estes dois pólos, que “serve para armar as representações do urbano, se estabelecem relações de apropriação diferencial”. (SANTOS, 1985: p. 24) A etnografia de um lugar seria equivalente a etnografia do que se passa nesse lugar e a rua, como microcosmos real de espaços e relações, se constitui pela forma como é utilizada, assim como a existência do espaço é o uso que permite. (SANTOS). A cidade é complexa e para entendê-la precisamos explodi-la e partir pros fragmentos. Os significados que um determinado suporte material (esquina, calçada, quintal, rua) pode assumir, resultam da sua conjugação com uma atividade e mudam de acordo com ela. Assim como a cidade, a grade curricular da faculdade de arquitetura e urbanismo também é muito complexa, e até agora ainda não conseguiu se encaixar como ciências exatas ou humanas porque oscila constantemente entre o mundo da prática e dos números e do pensamento, técnico e filosófico, estético, social... Não pretendo discutir aqui o ensino acadêmico e sim afirmar a arquitetura como uma atividade que lida com um organismo em transformação contínua, constituído por diversas camadas materiais e imateriais e que deve, portanto, sempre

buscar uma aproximação com outras disciplinas. Deve também compreender um contexto territorial, de forma a propor “obras” abertas, que permitam a ocupação e apropriação natural e espontânea dos usuários. “Pode um arquiteto virar antropólogo?”, pergunta Carlos Nelson Ferreira dos Santos ao falar de suas ações nos campos da Antropologia e do Urbanismo. “Quem quiser se aventurar por esses labirintos vai contar com poucos fios condutores. As Ariadnes são ainda escassas.” (SANTOS, 1980: p.40) O processo e o labirinto são saudáveis e essenciais para a dinâmica urbana. A arquiteta Paola Berenstein Jacques faz uma crítica pertinente quando diz que “a arquitetura e, sobretudo o urbanismo são antilabirínticos; existem para evitar o labirinto, a desordem e o caos espacial.”. O planejamento urbano surge, portanto, para controlar o crescimento de labirintos nas cidades já existentes e para evitar a criação de outros labirintos urbanos, propondo, em seu lugar, novas cidades racionalmente planejadas, a partir de planos e projetos prévios. “Os arquitetos-urbanistas tradicionais lutam contra esse movimento preexistente, com a finalidade de estabelecer uma pretensa ordem formalista na cidade.” (JACQUES, 2007, p.91-92) Se não nos desvencilharmos dessa exclusividade do saber-fazer técnico, e continuarmos promovendo, a partir de um conhecimento prévio e determinado, indicações superiores e iluminadas quanto aos melhores caminhos para a construção ou apropriação dos espaços, estaremos sempre projetando para ninguém. Os usuários, como reais habitantes, revertem os significados dos espaços que lhe são impostos, incorpora e cria ordens próprias que ultrapassam as ordem simplistas e abstratas dos planejadores. Como pensar a arquitetura se traduz no fazer arquitetura?, como entender o que vem de dentro e como achar um caminho para realizar um trabalho real, consistente, que tenha não só qualidade, mas profundidade. Uma arquitetura que não reflita o ego do arquiteto e sim seu entorno, as pessoas que o utilizam, quem a vive, quem a sente. Cidade, pessoas, planejamento, estrutura, materiais, sensações, circulação, convivência, projetos, soluções, vazios, cheios, representação, diagramas. Esses conceitos, tão repletos de significados, permearam todo a minha formação e me fizeram olhar pra cidade de outra forma. Por meio deste trabalho, pretendo mergulhar a fundo neles por outros caminhos, para além da sala de aula. De forma a entrar em contato com um dos mundos não contemplados na minha formação acadêmica, fui caminhar.


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DIMENSAO DO CORPO

Quando caminhamos na rua, ação aqui considerada como o ato de se movimentar na cidade independente da forma (a pé, de skate, de cadeira de rodas, pulando, correndo), nos colocamos numa posição de altura e proximidade ideais para o encontro, seja com pessoas, cheiros, sons, vistas e sabores em uma paisagem que muda lentamente. Estar na rua transforma os espaços construídos, os vazios construídos e os construídos vazios em espaços preenchidos de vida e significado. Pelas palavras da jornalista caminhante, Rebecca Solnit, o caminhar nos permite estar em nosso corpo e no mundo sem nos ocuparmos de um e outro. Caminhar envolve todos os sentidos e é por meio dele que conhecemos nossa cidade e outros cidadãos e realmente a habitamos, e não uma parte dela, pequena e privatizada. (SOLNIT, 2016) Como complemento a experiência de fato, me apoiei em leituras acerca do caminhar como prática pensante, política, cultural e artística. Walkscapes - o caminhar como prática estética do arquiteto Francesco Careri e A história do caminhar da jornalista citada acima me ajudaram muito a compreender esta ação como uma prática fundamental na construção das civilizações. De acordo com Careri (2013), a história das origens da humanidade está intrinsecamente ligada à história do caminhar. Partindo do mito de Caim e Abel, explica a primitiva separação da humanidade em nômades e sedentários e de seus respectivos modos de habitar a terra e assim conceber o espaço. Os filhos de Adão e Eva encarnam as duas almas em que se dividiu, desde o princípio, a estirpe humana: Caim, a alma sedentária, que tinha por vocação a agricultura, sendo presenteado com a propriedade de toda a terra e Abel, a alma nômade, dedicado ao pastoreio, e proprietário de todos os seres viventes. As condições às quais cada irmão se encontrava, reforçada pelas raízes etimológicas de seus nomes, apresenta dois tipos de viver e ocupar o espaço e tempo, sendo Caim o "Homo Faber, o homem que trabalha e que sujeita a natureza para construir materialmente um novo universo artificial, ao passo que Abel, realizando um trabalho menos fadigoso e mais divertido, poderia ser considerado o Homo Ludens, o homem que brinca e que constrói um efêmero sistema de relações entre a natureza e a vida. (...) Enquanto a maior parte do tempo de Caim é dedicada ao trabalho, e por isso é inteiramente um tempo útil-produtivo, Abel tem uma grande quantidade de tempo livre para dedicar à especulação intelectual, à exploração da terra, à aventura e ao jogo; é o tempo não utilitarista por excelência.". (CARERI, 2013: p. 36) Esse mito, olhado sob uma perspectiva "arquitetônica" revela o nascimento da arquitetura da paisagem como originária da atividade do caminhar e da atribuição de valores simbólicos e estéticos ao território. Após uma briga por invasão de território, desconsiderando-se o fato que que todos os seres necessitam de terra para viver e se mover, Caim acusou e matou seu irmão, sendo condenado à condição de eterno vagabundo. O nomadismo de Abel transformou-se de condição privilegiada em punição divina.


R ED ES C OB R INDO O PL A YGROU ND

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CURSO INTENSIVO DE EXPERIÊNCIA EM PARKOUR - JUNHO DE 2017 De acordo com essa interpretação, é às incessantes caminhadas dos primeiros seres humanos que habitaram a terra que se deve o início da lenta e complexa operação de apropriação e mapeamento do território. As cidades surgiram então da necessidade de um contínuo intercâmbio de produtos entre agricultores e pastores, e das trocas religiosas e culturais que esses encontros intercontinentais acarretavam e até hoje as cidades contém no seu interior espaços nômades (vazios) e sedentários (cheios). Aos dois modos de habitar a Terra correspondem duas modalidades de conceber a própria arquitetura: uma arquitetura entendida como construção física do espaço e da forma contra uma arquitetura entendida como percepção e construção simbólica do espaço. "A presença física do homem num espaço não mapeado - e o variar das percepções que daí ele recebe ao atravessá-lo - é uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço, e consequentemente, o espaço em si, transformando-o em lugar" (CARERI, 2012. p. 51) Ao longo da construção da civilização diversos movimentos artísticos compartilharam o gosto pela investigação urbana, pela sensibilidade às transformações contemporâneas enquanto sintomas característicos de uma sociedade em mutação. Em todas as épocas, o caminhar tem produzido arquitetura e paisagem, e essa prática, quase esquecida pelos arquitetos, têm sido reabilitada por cidadãos capazes de ver aquilo que não há, para fazer brotar algo. A internacional situacionista foi um movimento revolucionário anti-capitalista, formada em uma conferência na itália em 1957, que convidava todos a perder-se na cidade. Para o grupo, a cidade é um jogo a ser utilizado para o próprio contentamento, um espaço pra ser vivido coletivamente, e onde experimentar comportamentos alternativos, perder o tempo útil para transformá-lo em tempo lúdico-construtivo. "A errância construída produz novos territórios a ser explorados, novos espaços a ser habitados, novas rotas a ser percorridas. O andar sem rumo levará à construção consciente e coletiva de uma nova cultura." (CARERI, 2013: p. 97) Estar na rua “á deriva” me aproximou de pessoas que usam o espaço urbano e seus elementos materiais para se divertir, se exercitar, trabalhar, descansar, encontrar, reivindicar, protestar. Pessoas que constroem os espaços simbolicamente com seus corpos em cima das construções físicas da cidade. Essas movimentações iam amolecendo a dureza do concreto perante os meus olhos e me fazendo enxergar outras formas de uso de elementos e materiais diferente dos oficiais.

Um dia sentei na praça Roosevelt, no centro de São Paulo. Qualquer pessoa que não conhece a praça e visse só o projeto, acharia uma grande falha arquitetônica. É uma grande superfície de concreto em vários níveis conectados por escadas e rampas. É a antítese da noção do que uma praça deve ser: arborizada, cheia de atrações, parquinhos e quadras. Mas ao contrário do que todos devem pensar, está sempre lotada por um público muito diversificado. Nesse dia tinha um grupo de praticantes de parkour desafiando a praça. Eles corriam, pulavam os muros, andavam pelos corrimões, davam cambalhotas. Eram só seus corpos e a cidade, mais nada. Os muros deixaram de ser muros que separavam quando eram escalados por eles, e os corrimões deixaram de ser suporte para escada e viraram pontes. Quando cheguei em casa, comecei a pesquisar mais sobre o esporte, e tomei conhecimento de um curso de experiência em parkour. O vídeo do curso dizia assim: “Redescobrindo o Playground tem a proposta de resgatar a forma como a gente enxergava e interagia com o ambiente quando era criança, através de uma perspectiva do Parkour. Quando a gente não via a diferença em o que era feito pra subir e não era feito pra subir, o que podia pular e o que não podia pular. A gente simplesmente brincava e se movimentava pelo espaço. Aqui a gente tenta dar um novo significado para muros e corrimões, em que eles deixam de ser estruturas que limitam e dividam e passam a ser novas possibilidade de movimentação. E uma vez que tudo é possibilidade a cidade se torna um playground.” Me inscrevi na hora. Aqui apresento algumas reflexões e questionamentos que tive durante o curso.


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A primeira atividade foi uma sequência de propostas de movimentação em uma escada. Fomos desafiados a ir do lugar que a gente estava (embaixo) até lá em cima, mas de formas completamente diferentes, de forma a esgotar as possibilidades em cima de um mesmo suporte que podia ser qualquer outra coisa. 1) Da forma mais eficiente 2) Da forma menos eficiente 3) Fazendo o mínimo de barulho 4) Fazendo o máximo de barulho 5) De costas 6) Chão lava: Sem encostar no chão (Só no corrimão) 7) Com o mínimo de passos 8) Com 1 apoio 9) Com 3 apoios 10) Com 4 apoios 11) Sem enxergar (Com um amigo do lado que não podia encostar, mas podia guiar) 12) Sem enxergar + chão lava 13) De forma não linear

CAMINHOS ALTERNATIVOS

No primeiro dia fui embora com aquilo reverberando no corpo e com uma vontade de continuar fazendo. Uma descoberta de que posso fazer caminhos alternativos. Um convite pra questionar, pra olhar de outro ângulo, pra ir aonde não fui chamada. Não preciso seguir pelos caminhos preestabelecidos, que a cidade, a sociedade e o conforto nos ditam. Não preciso mais seguir pela calçada ou pela rua, acompanhar o sentido do corrimão, seguir pelo corredor de muros ao nosso lado. Posso subir aquele muro alto no caminho pra casa e observar a cidade de um novo ângulo ou brincar de escalar árvores. E uma vez que eu tentei, percebi que nem é tão difícil assim. Estavamos explorando, na prática, como a forma com que nos movemos e interagimos com o ambiente é diretamente influenciada pelo meio social em que estamos inseridos. Se movimentar não é uma questão de ser bom ou ruim mas de ter a cabeça aberta pra enfrentar os desafios propostos e olhar pros obstáculos de uma outra forma. Em vez de dar voltas e seguir caminhos podemos fazer do jeito que a gente quer. Temos essa visão quando somos crianças, mas ao longo da vida vamos nos distanciando dela por vários motivos.

Essas atividades já fizeram o nosso corpo se soltar e perceber diversas movimentações que ele é capaz de fazer. Entender que existe uma socialização dos movimentos que faz com que a gente ande pela rua e suba a escada de tal ou tal maneira.

CAMINHADA ZUMBI - sair do padrão é uma questão de "QUANDO", não "SE".


Quanto de nossa movimentação é construída socialmente?

LIMITES:

“Me senti muito a vontade pra errar e perguntar o tempo todo: Qual o meu limite? Diversas coisas eu nunca tinha feito e quando eu entendi que era só fazer eu fui lá e fiz.” - André

TODO LUGAR E PRO CORPO:

Não existe lugares próprios pro corpo. Todo lugar é pro corpo. O primeiro dia de workshop foi num lugar que não sugere corpo. Mas na verdade sugere, o corpo está em todo lugar e existe um território “Nunca tinha subido um muro tão alto e se permitir vasto de movimentação em lugares que ir meio ridicula e tentar subir e conseguir ou não, foi não são específico pra movimentação.” incrível.” - Marília Marília Quebra de paradigmas: Por que não? Por que o muro não pode ser? Por que a escada não pode ser um jeito de eu me mover? “O Parkour é livre. Não há regras. Não há a maneira correta ou errada de fazer. Há só a maneira que é melhor ou pior pro teu corpo.” - Rafael

CORPO PADRAO:

“Não existe um corpo padrão. Todo corpo vai fazer o movimento que aquele corpo pode fazer. Todo corpo tem um movimento.“ - Marília A gente foi desafiado a transpor obstáculos, dentro das nossas possibilidade físicas. Parkour não pede um corpo padrão, ou um movimento padrão. Sem pressa, cada um descobre seus caminhos únicos através de seus corpos, também, únicos. PERGUNTA PRO ESPACO: Os ambientes mais interessantes são aqueles que nos fazem perguntas complexas. Uma grande parte do processo de pesquisa, descobrimento e criação é podada ao entregar respostas prontas para quem busca informação. Espaços vazios estimulam a imaginação e são lugares de todo mundo. No segundo dia fomos no Largo da Batata, outra praça bem central e acessível da cidade inteiramente de concreto, que também agrega um público bem diverso. Rodas de samba, de rima, instalações de arte, camelôs, skatistas, feirantes. A ideia era trabalhar o desconforto. Se movimentar de formas "ridículas" em lugares cheios de gente. O Parkour é praticado em lugares públicos e então para praticar precisávamos perder a vergonha de se movimentar fora do padrão e errar. Primeiro os professores ficaram passando várias atividades pra gente fazer como pedir para alguém na rua a ajudar a fazer uma parada de mão, atravessar a faixa de pedestres como um sapo e assim vai, depois fomos desafiados a ficar treinando durante uns dez minutos, sozinhos, alguma movimentação que a gente não tava acostumado a fazer. Ver todo mundo se movimentando meio maluco, deu muito vontade e me deixou muito a vontade pra fazer também.


Esse fim de semana fora do padrão me intrigou muito e me instigou a olhar pra cidade e enxergar os elementos que fazem parte dela e mais ainda a entender que quem a cidade é quem faz a cidade. Quanto mais subvertemos os espaços, mais adaptamos o nosso olhar e dos outros pras mudanças, convidamos a todos pra olhar de novo.

COL E TIVO ME IO FIO PREMIAÇÃO

MISS

CALÇADA

Uma das organizadoras do Sampapé é a Nara, que também faz parte do Coletivo Meio Fio. Elas são um grupo multidisciplinar de intervenção urbana que trabalha para acolher pessoas e preencher espaços. através do crochê. Seus encontros acontecem em espaços públicos e utilizam técnicas tradicionais e lentas, como forma de resistência ao tempo acelerado da cidade.

DIMENSAO DO CORPO: O parkour exige muito da gente porque além

do esforço físico, demanda subversão. Os muros não foram feitos para serem escalados, nem os corrimãos para serem ultrapassados. Nenhuma dessas estruturas têm partes onduladas para posicionarmos nossos dedos ou almofadas ao redor para deixar o salto mais confortável. Demanda ressignificar o espaço urbano, transformando muros, antes limitantes, em opções de movimento. Os planejamentos dos espaços públicos devem considerar a dimensão do corpo, dos diversos corpos que compõem e habitram a cidade.

Durante a semana do caminhar, em agosto de 2017, o Sampapé organizou um concurso para premiar a melhor calçada de São Paulo, por meio de registros dos cidadãos e votações nas redes sociais. A Miss Calçada, na esquina da Avenida São João com a Avenida Duque de Caxias é mantida por um morador de rua e foi premiada com uma intervenção lúdica realizada pelo Coletivo Meio Fio.


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ENCONTROS DE ESCALADA URBANA EM AGOSTO E SETEMBRO DE 2017

CORPO SUBVERSIVO

Depois desse dia comecei a escalar a cidade. Escalei porta, grade, janela, muro. Cada vez mais estava conhecendo a cidade com o meu corpo, feminino e subversivo e a cada escalada me sentia mais forte e resistente as barreiras da sociedade.

O Cidadelas é um coletivo que eu conheci pela Marília, uma das participantes do curso de Parkour e meu primeiro contato com elas foi no 14º Encontro das Minas no Boulder. Minas no Boulder é um outro coletivo de mulheres escaladoras que têm como principais objetivos fortalecer a escalada feminina, acolher iniciantes e apresentar o esporte para a comunidade como um todo. O Cidadelas surgiu daí com o intuito de trazer esses encontros para a cidade, adequando fachadas para essa prática. O Edifício Zé Maria Nogueira, no Bixiga, foi o primeiro prédio escolhido para se tornar escalável. Elas construíram vias nesse prédio e chamaram a comunidade para participar desse evento. Nesse dia eu escalei um prédio pela primeira vez e foi transformador. Não só eu como várias mulheres, crianças e alguns idosos. "Somos um coletivo de mulheres que têm por desejo fortalecer a pessoa que se entende como mulher através da escalada. Para nós a escalada desenvolve a força física e mental, aumentando a confiança que temos nas nossas competências e habilidades. Queremos transformar espaços urbanos em ambientes escaláveis onde podemos desenvolver nossos potenciais e evoluir. Pense numa empena cega. O que tantas vezes parece ser uma falha de sistema. Um soluço, um buraco branco. Agora pense que pode ser uma aventura. Um novo estilo de vida, um escape da rotina, um exercício físico e mental." Manifesto do Coletivo Cidadelas.

Grafite da artista Camila Locks no evento, que tive o prazer de conhecer e que depois começou a fazer parte da equipe do Brincreto, trazendo técnicas de Macramê e crochê pras crianças.


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É difícil imaginar uma sociedade civil viável sem a livre associação e o conhecimento do terreno que acompanham o caminhar. Apesar disso, a presença e manifestação das pessoas no espaço público está sendo cada vez mais dificultado por diversos fatores, materiais e imateriais. A estética das cidades está baseada em conceitos de produtividade, consumo e segurança de uma classe dominante que considera beleza um aspecto meramente visual e não de agradabilidade e expulsa aqueles que não se encaixam nessa lógica. A distância entre o público e privado está crescendo e os tomadores de decisão estão pensando em espaços racionais que moldam a conduta de seus usuários de forma a estabelecer a ordem. Regras e códigos, visíveis ou invisíveis ditam como devemos agir e interagir nos espaços. O conceito de liberdade é proporcional a sensação de segurança e esta é qualificada pela quantidade de aparatos hostis que se encontram no caminho entre o ambiente público e o privado. Andar pela cidade já não é uma perspectiva atraente para quem não está preparado para se esquivar e correr. A urbe e os automóveis são, em vários aspectos, antitéticos, pois uma cidade de motoristas não passa de um subúrbio disfuncional de pessoas que se movem entre um ambiente interno privado e outro. Os carros estimulam a difusão e privatização do espaço na medida em que shopping centers substituem ruas comerciais, os edifícios públicos tornam-se ilhas num mar de asfalto, o planejamento urbano se reduz à engenharia de tráfego e as pessoas interagem com muito menos liberdade e frequência. As possibilidades democráticas e libertadoras de pessoas reunidas em público não existem em lugares onde elas não têm um espaço próprio para se juntarem. A nova arquitetura e o novo urbanismo da segregação refletem o desejo de viver num mundo de predestinação, e não de acaso, de privar o mundo de suas possibilidades imprevisíveis e substituí-las pelas liberdade de escolha na praça do mercado. (SOLNIT, 2016: p.31)

Todas as fotos foram acessadas na página do facebook do Coletivo.

Nas minhas caminhadas passei por situações que qualquer pedestre, mesmo que de curta duração se identificaria. Caminhar por São Paulo significa enfrentar muitos medos. Medo da cidade, medo do espaço público, medo de infringir as regras, medo de apropriar-se do espaço, medo de ultrapassar barreiras muitas vezes inexistentes, medo de ficar, medo de atravessar e medo de outros cidadãos, ainda mais sendo mulher. Quando os espaços públicos são eliminados, em última instância o público também é: o indivíduo deixa de ser um cidadão capaz de vivenciar e agir em comunhão com outros cidadãos. A cidadania se baseia na noção de se ter algo em


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comum com desconhecidos e o espaço público é o espaço que dividimos com desconhecidos, a zona livre de segregação. Por isso, estar na rua conserva o espaço público e a viabilidade do espaço público. Foucalt traz o conceito de Heterotopia como um espaço que desfaz a ordem usual a que ele é submetido. Seu significado se contrapõe a ideia de utopia - um lugar ideal que não tem localização atual e permanece não realizado, imaginado. Como a utopia, a heterotopia vai contra uma ordem espacial convencional, mas ao contrário dela, se refere a espaços reais e revela o potencial de espaços do dia-a-dia de serem desorientados por meio de táticas de uso. A heterotopia, “outro lugar” ou “lugar outro” contrapõe-se ao “lugar-comum”. Lugar de diferenciação, da diferença, do outro, no qual o comum se reconhece. O estranho no qual se reconhece o familiar. Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias.” (FOUCAULT, 2001, p. 415) Essa prática cotidiana do espaço reinterpreta ou simplesmente ignora seus usos e significados oficiais e nos permite olhar de novo para lugares que já não permitimos mais a mente reparar. Nenhuma cidade é igual pra ninguém. A cidade é feita de extratos que vão além do que nossos olhos podem enxergar. Para além das construções, é constituída por leis de ocupação decididas por pessoas específicas e pela forma como os habitantes as respeitam ou as transgridem de acordo com suas vontades e necessidades. E foi essa cidade, moldada e usada pelos habitantes, que resistem, não aceitam o que lhes é oferecido e subvertem o que foi pensado para controlá-los, ainda que inconscientemente, ou que reagem a falta de algo que lhes é direito, que eu procurei observar durante o percurso do meu trabalho. Essas diferentes linguagens da cidade que corrompem a ordem espacial

por meio de modos inventivos de usar o espaço e instigam os cidadãos a pensar em novas lógicas espaciais, fazendo com o espaço público apareça. O que escapa a essas regras de ordenamento, o faz através das brechas encontradas nos próprios dispositivos de controle. São essas brechas que tornam as minhas caminhadas cotidianas aventuras à medida que procura criatividade em locais inesperados. É preciso brincar, construir aventuras, e assim, meios lúdicos de reapropriação e de vinculação com o território. A cultura de determinada civilização se dá pelo povo, na rua. Cada ato reflete e reinventa a cultura na qual se dá e o ato de uma pessoa pode ser convite à imaginação de uma outra. Estar em contato com esses diferentes movimentos de utilização da cidade foram moldando minha forma de enxergar os espaços e seus elementos.


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BRINCANTES

Explorei o universo do esporte, das artes, da dança. Me envolvi com parkeiros (praticantes do parkour), escaladoras de prédios, artistas de mural, crocheteiras, e dançantes, todas praticantes e brincantes da rua, que vivem e ressignificam por meio do seu corpo, dos seus movimentos. Essas manifestações mudam nossa percepção da cidade e alegram os espaços e encontros, e transformam o espaço urbano em brinquedo. A observação do corpo livre amoleceu elementos que eu enxergava como barreiras no meu dia a dia, pela possibilidade de ser brincado. Desses encontros, comecei a ver pulo, equilíbrio e escalada, telas e palcos em todo canto na cidade. Como falou o Rafael, mediador do curso de parkour: “O parkour dá um novo significado para muros e corrimões, em que eles deixam de ser estruturas que limitam e dividam e passam a ser novas possibilidade de movimentação. E uma vez que tudo é possibilidade a cidade se torna um playground.” Brincando com a cidade, esses brincantes abstraem as formas dos objetos atribuindo-lhes novas funções e significados, subvertendo a lógica espacial funcionalista e mostrando outras cidades possíveis através de inúmeras possibilidades de construí-la e reconstruí-la. A brincadeira é uma forma de aprofundar vínculos e intimidade com o território, sendo assim uma atividade do espaço urbano assim como o comércio, o trabalho, o social. Quando um grupo de dança se esparrama pela praça, ou quando a criança senta pra brincar em um lugar, ou quando ultrapassamos um muro escalando-o, o espaço é nosso. Uma cidade onde se pode estar e brincar, é uma cidade para todos. Brincar é sair deliberadamente das regras e inventar códigos próprios, libertar a atividade criativa das pressões socioculturais, projetar ações estéticas e revolucionárias que ajam contra o controle social. Brincar é ressignificar, criar mundos próprios, libertar-se, colocar-se em outro lugar, em outro tempo, teatralizar, virar ao contrário, fazer sempre de novo, não ser útil, ser incerto. Está na brincadeira a origem de nossos hábitos. E ninguém melhor de brincar do que as crianças. “Executores oficiais” da brincadeira são sempre criadoras e participantes nesses espaços-brinquedos e foram suas “traquinagens” que me mais me chamaram a atenção porque envolvem um pouco de tudo (arte, movimento, dança) sem pretensão, sem profissionalismo. Montei uma linha do tempo sobre a presença da criança no espaço para compreender como esse brincar se deu através do tempo e que caminho está seguindo, de que forma ele se manifesta e o que representa essa presença numa relação de transformação mútua de pessoa com espaço. O brincar não está associado a nenhum momento histórico específico, ele sempre existiu porque faz parte da construção do ser humano, mas sempre esteve condicionado por fatores externos, e decidido por pessoas que já não brincam

Francesco Tonucci. http://www.cac.es/en/web/frato/galeria-de-imagenes.html. Acessado em 10.12.2017


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mais. Por dependerem do aval de responsáveis para frequentar ou não um lugar, as crianças sempre estiveram sujeitas a aceitar as mudanças impostas pela sociedade, seja por fatores religiosos, guerras, revoluções, planejamentos urbanos, sem poder de escolha sobre sua educação e local de brincar. A criança é a primeira a ser afetada pelo modelo de cidade violenta e segregada, já que a sua exclusão, a inviabilidade da sua participação ativa na cidade acontece em diversos graus, nas diferentes camadas sociais e econômicas da cidade. “’Aqui outrora brincaram menino...’ A cidade multiplica-se, a casa cede lugar ao edifício, o edifício vira constelação dos escritórios, o menino fica sendo excedente incômodo… Onde está o menino, para onde foi o menino? É assim que morrem as cidade.” (ANDRADE, 1966: p.982) A criança no Brasil de hoje, transita por espaços específicos de brincar, por parquinhos que são reflexo da insegurança e que não suportam a potência imaginativa daqueles que estão ali, ou escolas onde o brincar é tolerado desde que declaradamente voltado a fins pedagógicos. Cada vez mais o brincar ao ar livre está sendo substituído pelo brincar em espaços interiores cobertos e fechados, e as ruas como local de sociabilidade e estar passam a desempenhar a função de uma ponte de ligação entre um espaço fechado e outro, fazendo com que as crianças percam a noção desse espaço público de encontros, trocas e diversidade.

Matéria na revista Proteste sobre como tornar um playground idealmente seguro.

A infância é hoje diretamente influenciada por um crescente medo da cidade e uma subsequente aversão ao risco e o enorme tempo que passamos em frente à telas parece induzir, adultos e crianças, ao mero consumo e ao entretenimento vazio. Como consequência direta, as brincadeiras se restringem, o movimento e criatividade se limitam, nós nos desconectamos uns dos outros e de nós mesmos, tendo como consequência última a falta de aptidão física e a pouca ou nenhuma exploração do universo social; é como se faltasse cidade na criança. Curiosa e reciprocamente, a ausência dos pequenos nos espaços urbanos reflete negativamente na própria cidade; além de seu grande potencial de ressignificação de espaços, elas também são importantes indicadores da qualidade urbana na medida em que sua presença demanda segurança e acessibilidade. Fernanda Regaldo traz uma reflexão interessante sobre a percepção da infância pela cidade: “O pesquisador italiano Francesco Tonucci propõe uma imagem para elaborarmos a relação atual das crianças com o ambiente urbano. Estaríamos vivendo uma fábula às avessas: se até há pouco tempo havia um papel desempenhado no imaginário infantil pelo bosque – por excelência, o lugar obscuro, indecifrável e impenetrável, em que se escondiam coisas e seres terríveis –, esse papel passa a ser desempenhado pela própria cidade, que costumava ser território aberto, dominável e mapeável.” (REGALDO, 2015) Pensar em uma cidade para as crianças não é pensar em um cidade infantil, pequena, e sim uma cidade onde as crianças sejam contempladas no direito de ir e vir, como qualquer outro cidadão. A sociedade entende o conceito de infância como oposta a fase adulta, como se todas as crianças fossem irracionais, imaturas, incompetentes e dependentes, inocentes com necessidade de proteção e de correção, até atingirem a fase adulta e deixarem de ser tudo isso de uma hora para outra. As crianças são mais resilientes, responsáveis, capazes e criativas do que damos crédito, e nós, adultos, cada vez mais, programamos, controlamos e direcionamos suas vidas. Uma vez que a brincadeira é a linguagem por meio da qual a criança se constrói e se relaciona com o mundo a sua volta, os espaços destinados a elas devem possibilitar experiências reais e desafiadoras de criação, construção e exploração. Partindo de uma crescente convicção de que a brincadeira é uma das infinitas possibilidades de disputa na cidade, de que fortalecer espaços para os brincantes, fortalece a comunidade e de uma vontade de brincar para transformar a cidade, decidi me encontrar agora com as crianças e pensar de que forma poderia colaborar para trazer pra rua esses pequenos agentes transformadores, numa cidade que não convida.


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L IN HA

DO

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BRINCANDO E HABITANDO O ESPAÇO Pesquisa sobre o lugar da infância na história da humanidade. Esse trabalho foi parte da minha pesquisa e foi feito com colagem e apresentado em forma de vídeo.

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sec xviii. revolução industrial


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1930. rua dos carros

1939. 2ÂŞ guerra mundial


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1948. adventure playgrounds


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sec xxi. internet


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ADVENTURE R

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O Adventure Playground foi criado na Dinamarca, , após a segunda guerra mundial, pelo arquiteto Carl Theodor Sørensen, como um espaço para se reconstruir a democracia a partir do caos. A vontade surgiu da observação da brincadeira livre das crianças nas ruínas da guerra e nos canteiros de obras. Era um crítica explícita ao playgroung convencial com balanço, caixa de areia e escorregador. A ideia era juntar uma grande variedade de materiais em um espaço e prover ferramentas para que as crianças construíssem, demolissem, criassem e destruíssem como quisessem. O playground teria um monitor cuja função era cuidar das ferramentas e garantir a variedade de materiais. Existem playgrounds de aventura em todo o mundo, e muitos mais projetos que não são chamados Adventure Playgrounds, mas que compartilham grande parte de sua ambição e espírito. No coração de todos esses projetos, há uma idéia compartilhada sobre confiar nas crianças e dar-lhes o espaço, o tempo, o apoio e os recursos de que necessitam para prosseguir com a sua brincadeira. Há também um compromisso profundo com o valor do brincar, tanto como um processo de desenvolvimento quanto uma atividade de valor em si mesmo.

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Durante uma visita a Inglaterra me deparei, em diferentes bairros de Londres, com espaços lotados de crianças de diferentes idades e gêneros. Esses espaços lembravam parquinhos, mas todos tinham algumas particularidades que começaram a me chamar a atenção. Pareciam não estar prontos, com pedaços de madeira, ferramentas, pneus e materiais não estruturados espalhados pelo espaço. Todos passavam uma sensação diferente dos parquinhos que eu conhecia, as estruturas altas e labirínticas remetiam a desafio, um quê de risco, e aventura. Descobri então os chamados adventures playgrounds e passei a procurá-los pela cidade e visitá-los. Era muito fácil perceber a intimidade que as as crianças que brincavam tinham com o lugar. Como vim a descobrir depois, são elas as responsáveis pelas tomadas de decisão e construção do playground.

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GRANDE SÃO PAULO

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APROXIMAÇÃO DENTRO DA CIDADE DE SÃO PAULO


BAIRRO DO MORUMBI


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PARAISÓPOLIS

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APROXIMAÇÃO EM PARAISÓPOLIS

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TERRENO DO BRINCRETO


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BRINCRETO

Sempre tive proximidade com crianças e frequento uma ONG de educação em Paraisópolis há 10 anos, acompanhando minha mãe, que é uma das educadoras. Quando decidi transformar essa familiaridade e encantamento em trabalho de faculdade, comecei a fazer das minhas visitas, momentos de observação e pesquisa de como as crianças ocupavam o espaço, dentro e fora da escola. Paraisópolis é uma favela na zona sul de São Paulo, que está prestes a completar 100 anos de existência, com população estimada em 43 (IBGE, 2010), 55 (SEHAB, 2011) e 100 mil habitantes (União de moradores e comércio de Paraisópolis), o que a torna a segunda maior favela do município, e a oitava maior do país. A partir dessa última estimativa, Paraisópolis tem quantidade de moradores superior ou equivalente à maior parte dos municípios do Estado de São Paulo, além da densidade que chega a 490hab/ha. A favela está encravada no meio de um dos bairros mais valorizados de São Paulo e também o mais segregado em relação a apropriação do espaço urbano. Morumbi é o cartão postal da São Paulo como cidade dos muros, repleta de fortalezas que negam o espaço público e intimidam qualquer pedestre. Esse grande contraste entre a comunidade e seu entorno acaba os distanciando, e Paraisópolis se encontra como uma cidade isolada. Todas as crianças que frequentam a ong moram, estudam e realizam todas as suas atividades no bairro, e em sua maioria, tem muitos familiares que também são moradores. Isso gera um dinamismo físico e urbano, que faz com que estudar Paraisópolis seja como estudar uma cidade, com potencialidades, problemáticas e conflitos semelhantes. A alta densidade, combinada a deficiência de espaços livres e a multiplicidade de serviços, pessoas e várias gerações de moradores, contribuem para que seja uma pesquisa interessante em relação aos espaços da criança no contexto urbano. Pode-se dizer também que já é um assentamento informal consolidado, no que se diz respeito às técnicas de construção e ao caráter permanente do bairro, que carrega muitas histórias em relação ao seu espaço físico e social. Por conta da minha pesquisa e também de um curso sobre desenvolvimento urbano sustentável, ministrado na comunidade, que propunha o mapeamento do bairro, me deixei perder em suas vielas e ladeiras e acabei me encontrando no espaço mais subversivo e cheio de vida que já tinha habitado. Na favela, as heterotopias acontecem por necessidade, pelo fato de que “alguém tem que fazer”, e deixando de lado a falta de saneamento básico, a umidade das vielas, o trânsito maluco e o barulho ensurdecedor do baile aos finais de semana, a sua dinâmica é aquela que a gente aprende na faculdade como o ideal do planejamento urbano, já apresentado por Jane Jacobs (2011): bairros densos, com multiplicidade de usos, sons, cheiros e desenhos, comércio no térreo, fachadas ativas, pessoas na rua, autoconstrução, deslocamento a pé, senso de comunidade e muita vida pública. A ideia de labirinto, entendido como percurso e relacionado à experiência do espaço urbano, faz relação direta com a favela, espaço urbano espontâneo, que difere profundamente do espaço urbano planificado dos arquitetos urbanistas.


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Como é Paraisópolis? - Atividade de colagem com as crianças

A possibilidade de um espaço-movimento (...), está ligado à existência de espaços que estão em movimento, em transformações contínuas, em eternos deslocamentos, em suma, espaços em fuga. O espaço-movimento não seia mais ligado somente ao próprio espaço físico, mas, sobretudo, ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo, o que é da ordem do vivido e, simultaneamente ao movimento do próprio espaço em transformação, o que é da ordem do vivo. Diante disso só podemos considerar a favela um espaço-movimento. (JACQUES, 2001) O espaço-movimento é diretamente ligado a seus atores, que são tanto aqueles que percorrem esses espaços quanto aqueles que os constroem e os transformam continuamente. No caso das favelas, os dois atores podem estar reunidos em um só: o morador, que geralmente também é o construtor do seu próprio espaço e as crianças também estão incluídas nisso. “A própria idéia do espaço-movimento impõe a noção de ação, ou melhor, de participação.” (JACQUES, 2001). A ONG em questão tem o objetivo de proporcionar às crianças do bairro um espaço onde possam ler, brincar e fazer parte de outras atividades no contraturno da escola. As crianças de Paraisópolis tem uma sede de movimento e de novidade estampada na cara. São pessoas criadas em um ambiente livre mas que não tem seu espaço por causa da famosa frase: “Rua não é lugar de criança”. Apesar de existir a impressão de que as crianças moradoras de comunidades brincam muito mais na rua do que as da cidade dita “formal”, essa atividade não é muito frequente na região, tanto pela presença do tráfico, quanto pela falta de espaço, que tem que ser dividido com carros, motos, entulhos e muitas pessoas, mas mesmo assim elas estão muito presentes na rua, convivendo, caminhando, ou sentadas na frente de suas casas. A grande fila de espera para colocar os filhos na ONG, representa uma necessidade dos pais por abrigo e segurança fora de casa e também a deficiência desses espaços no bairro.

Comecei então meu projeto no Pró-Saber, propondo a reorganização dos espaços de recreação a partir de diversos materiais como caixas, madeiras, pneus e elásticos e observando a reação das crianças perante as novas possibilidades de movimentação. Para convidar as crianças pro grupo, me encontrei com todas as crianças do projeto Ler e Brincar do Pró-Saber no momento da leitura (todos os dias eles lêem uma história na biblioteca antes de ir embora). Pedi licença para atrasar um pouco a leitura dos últimos capítulos do BGA e li pra eles o livro Um Pequeno Tratado para Meninos Quietos da Cidade, da escritora Selma Maria. Um livro de poesias encantador que olha para elementos da paisagem urbana, aproveitando os pequenos vãos deixados pela concretude da cidade para oferecer-lhes novos e inusitados sentidos. Depois disso contei um pouquinho da minha história. Contei que estava estudando arquitetura e urbanismo, uma profissão que ajuda a planejar os espaços da cidade. Expliquei para eles que apesar da gente estudar pra isso, não são só os arquitetos os responsáveis pelo projeto e construção dos espaços e que antes de projetar qualquer coisa a gente tinha que fazer uma investigação do lugar. Contei que minha missão era planejar espaços para brincar e que eu estava procurando parceiros detetives para me ajudar nessa missão de encontrar as brincadeiras ocultas em Paraisópolis. “Acho que as crianças tem um poder especial que descobrir brinquedos invisíveis”

PROCURAM-SE DETETIVES MISSAO : D ESVEND AR A S BRINCAD EIRAS O CUL T A S DE PARAISOPOLIS

Ilustrações: Nina Anderson


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As diversas mudanças de cenário para um local já conhecido é uma novidade muito libertadora para as crianças, porque desbloqueia o espaço de sua função única e se torna um espaço do possível, que pode ser o que quer que eles desejam. Não precisou de muito tempo para perceber como as crianças se encantam perante novos desafios e da possibilidade de completá-los com total autonomia. A partir dos registros dessas atividades, observei no corpo da criança um corpo livre para se movimentar, sem restrições sociais. Um corpo em evolução e constante aprendizagem que vê o espaço como extensão dele mesmo e que quer sempre testar os limites e ultrapassar as barreiras, simplesmente por diversão. Aproveitei as férias de julho para ter mais tempo com as elas lá dentro do Pró-Saber, que antes se limitava a uma hora por dia, e planejei uma semana com um grupo de 20 crianças. z Essa semana seria um momento de aproximação minha com o grupo e de compreensão de como eles enxergam a sua presença na cidade. Dividi a semana nos elementos: Casa, Corpo, Sentidos e Rua e, propus atividades em forma de arte, construção e movimento, que instigassem ações que fazem parte do habitar a cidade: olhar, criar, sentir, encontrar e se expressar. Tentei estimulá-los a verem, viverem e brincarem a cidade deles, mesmo que dentro da escola. Foi uma semana de muito aprendizado sobre como fazer parte do universo da criança sem influenciar diretamente suas ações. Pode ser muito frustrante propor atividades que não são bem vindas, não prendem a atenção, ouvir críticas sinceras sobre seu planejamento e ver crianças infelizes com o que está acontecendo por sua causa. Propor atividades para crianças é como projetar espaços para a cidade. Independente do que planejamos, são as pessoas envolvidas que vão fazer acontecer. Requer humildade para deixar que isso aconteça, para não se frustrar com a mudança de rumo e não liderar os outros a partir de nossos pré conceitos e convicções. Também pude começar a observar o que elas buscavam em mim, como adulta que confiava nas suas capacidades, e disposta a proporcionar e colaborar com suas vontades. Depois de ganhar confiança das crianças e vice-versa, e de introduzir meus objetivos para o grupo, achei que estava na hora de sair dos muros da escola. Meus caminhos se cruzaram com os caminhos de um coletivo de arquitetos e pesquisadores que está atuando em Paraisópolis há alguns anos, que conheci em um curso de protagonismo social e desenvolvimento urbano sustentável, oferecido por eles para os jovens do bairro. O escritório ganhou posse de um terreno para construir um centro comunitário, comercial e residencial e para engajar a comunidade no projeto, eles construíram um abrigo temporário que pode ser usado para qualquer fim pelos moradores e onde acontecem debates e palestras sobre planejamento urbano. Eles toparam prontamente que minhas atividades passassem a acontecer naquele terreno e desde então, me encontro com as crianças no Espaço Pipa, um grande terreno onde funciona um estacionamento e algumas atividades propostas pela comunidade como luaus, espetáculos de dança, entre outros.

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Montagens feitas a partir das fotos das crianças durante as atividades de percurso e de fotos de Paraisópolis retiradas do Google Street View.


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BEM VINDXS AO BRINCRETO: U M

G R A N D E

LABORATORIO

PRESENTE

N A C I D A D E I N T E I R A QUE

SO

PODE

D E S C O B E R T O CORPOS

MAIS

SER

P E L O S ATENTOS

NAS BRECHAS DE SAO PAULO


ESTE CATALOGO E RECOMENDADO PARA QUEM VE UMA CIDADE E ENXERGA OUTRA.

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OS BRINCANTES

Esses são os cientistas, inventores, construtores, artesãos. Os brincantes que experimentaram, adicionaram, tiraram, criaram, testaram todas as brincadeiras do Brincreto


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OS MATERIAIS

O CORPO


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O Brincreto - Laboratório de superfícies brincantes, surgiu como mais um momento da minha pesquisa. Veio do convite às crianças a penetrar aInda mais no universo da cidade e suas possibilidades. Os encontros nos fundos do Espaço Pipa começaram em Setembro de 2017 e vem acontecendo desde então. Duas vezes por semana, nos encontramos no Pró-Saber às 9:00 e vamos caminhando até o terreno, onde ficamos até às 11:00. O espaço é privado, mas representa bastante o espaço público urbano. Um local cheio de carros, com câmeras de segurança, muros e árvores para subir. No nosso primeiro dia no terreno não tínhamos nada programado, instiguei os detetives a desvendar as brincadeiras ocultas. Uma corda velha jogada no chão foi suficiente. O início do projeto se caracterizou pelo processo de empoderamento das crianças e apropriação do espaço e tempo livres que lhes era dado. Logo nos primeiros encontros, fomos alertados pelo segurança de que não podíamos correr perto dos carros, pegar frutas das árvores do dono ou jogar bola. Ouvia as reclamações e repassava para as crianças sem dar muita importância, só para que elas estivessem cientes da situação. Elas também não davam muita atenção, já estão acostumadas com esse tipo de restrição no espaço público e da importância dada às coisas dos adultos. Mesmo assim, ainda ficavam um pouco perdidos com a noção de liberdade. “Sofia, o que que a gente vai fazer hoje?”, “Sofia, pode fazer isso?, “Sofia, pode pegar aquilo?”, eram frases recorrentes que me traziam uma certa aflição, minha vontade era que eles transformassem aquele espaço sozinhos e entendia que qualquer proposta vinda de mim poderia influenciá-los com uma visão de cidade que era minha. Essa aflição foi se dissipando à medida que entendi que a conquista de um espaço completamente vazio, por pessoas que são constantemente proibidas de exercer sua liberdade, requer tempo e repertório.


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O convite para participar era muito necessário e encontrar formas de convidá-los e mostrá-los possibilidades passou a ser minha missão. Para começar a se apropriar daquele espaço, resgatei com eles as atividades que fizemos na escola, quando discutimos os espaços da casa e da cidade e as construímos, e começamos a discutir o que era uma oficina e o que precisávamos fazer para aquele espaço se tornar uma. “Primeiro precisa limpar. Depois precisa de mesa, cadeira, estante, lousa e ferramentas. Precisa de água para limpar e um lugar separado pra gente comer. Precisa ser bem linda. Precisa ser coberta para não chover dentro. Precisa de uniforme e luva. Precisa de regras. Precisa de experimentos.” A partir dessas vontades, começamos a construir o laboratório. Saímos na rua com nosso carrinho de mão para buscar materiais e eu levei ferramentas, ou, na medida do possível, construía com eles as próprias ferramentas, como uma serra e um martelo a partir canos de pvc e cola quente. 78

REGRAS DO ESPACO

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1) Sapato fechado 2) Roupa que pode sujar 3) Ajudar na arrumação antes de ir embora 4) Sem frescura 5) Sem briga 6) Trabalho em grupo 7) Se divertir muito 8) Não encostar nos carros 9) Deixar tudo organizado 10) Ficar no nosso espaço


CINTO DE UTILIDADES

BORDADO DE PREGO

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Resolvemos dar um nome para aquele terreno. “- Mas o que é isso aqui?” Falei que era um espaço para brincar na cidade e com a cidade. “- Mas isso não é cidade!.” E eu: “É sim! Tem chão, muro, carros, árvores, concreto, tijolo. Tem tudo que as ruas têm e está dentro da cidade.” “- Então que tal Brincadeiras no concreto? - Brincamuro? - Brincrua? - Brincacreto? - BRINCRETO!!”


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No primeiro dia, já tinha criança trepando no abacateiro: - Pode subir? Os impulsos vieram rápido, assim como os seguidos pedidos de permissão. Eles vão subindo sem parar. Os galhos tortos e fortes convidam a se mexer de vários jeitos, por cima, por baixo, com o pé, com a mão, com o corpo todo. Mas a altura é grande, exige concentração para prever os movimentos e fazer passadas de galho bem dadas. O objetivo final pode ser ir o mais alto possível ou achar um galho que encaixe o corpo para ver a vista de cima. Fico com frio na barriga de vê-los subindo tão alto. Imagina se alguma coisa acontece? Vai ser tudo minha culpa, os pais vão me matar. Aos poucos eles me mostram que sabem muito bem o que estão fazendo, me passam confiança. Nesses momentos de desafios, as crianças tomam decisões, avaliam, fazem estratégias, escutam o próprio corpo para então decidir se vão se arriscar ou não. Percebo que a cada encontro, há um desafio que eles mesmo se lançam. É muito interessante perceber como eles necessitam destes riscos e buscam sempre por eles. Como se cada galho que se sobe fosse uma vitória corporal. Até onde o meu corpo pode chegar? Qual é o limite do meu corpo? É um processo longo de pesquisa e autoconhecimento corporal. Posso ir até aqui, ou posso ir mais um pouco? Minha braço alcança aqui, ou será que eu tento chegar com a perna? Ou melhor eu ficar aqui mesmo? Eu sentia que abraçando essa autonomia eu passava uma sensação de responsabilidade perante o espaço e eles próprios.

O ABACATEIRO

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- Além de boa de subir, a árvore é a estrutura mais forte do mundo! -Dá pra fazer um balanço!! Precisa de uma corda, um pneu e só. Para que o balanço ficasse perfeito, sem ficar muito próximo da árvore era preciso jogar a corda bem longe do galho que iria sustentar o pneu. A primeira tentativa foi de jogar a corda por cima do galho, mas a distância ainda não era suficiente. O Marciel, que estava em cima da árvore tomou a liderança e pediu pra eu achar alguma coisa comprida. Achei um pedaço de cano de pvc e passei pra ele. Ele amarrou na corda e tentou alcançar mais longe, ainda não era suficiente. Ele então jogou o cano por cima do galho e ele caiu do outro lado. Pra pegar precisei de uma escada, mas alcancei e trouxe ele para baixo. Fizemos uma amarração no pneu que aprendemos num livro de nós e o balanço estava pronto.

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BALANCO


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Depois de algumas semanas e muito uso o balanço caiu porque a corda foi se desgastando e rasgou. Percebemos que a corda tinha que ser mais forte. Para prender dessa vez já tinha surgido outra ideia de amarrar a corda numa pedra e jogar ela por cima do galho. Deu certo na primeira tentativa. Pelos seguranças do estacionamento, eu fiquei sabendo (em forma de bronca) que as crianças estavam passando lá no meio do dia ou no fim de semana com outros amigos para brincar no balanço. Expressei um pedido de desculpas pelas ”invasões” fora do horário combinado, mas por dentro estava pulando de felicidade. O balanço com certeza é a brincadeira mais cobiçada e está sempre ocupado. Pra balançar sozinho, com uma pessoa empurrando, com várias pessoas em roda, girando, parado, como for...

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Em muitos momentos as crianças se desafiaram, exploraram seus limites e correram riscos. Além do prazer e satisfação que observei neste tipo de brincadeira, também acredito ser uma parte importante de seu desenvolvimento, pois lhe dá oportunidade de tomar decisões independentes, pensar em todas as partes de seu corpo, balancear o risco e a recompensa, e aprender a assumir a responsabilidade por suas ações. Eles também cuidavam uns dos outros, negociaram situações complicadas comigo e compartilharam o que aprenderam por meio de tentativa e erro. Esses tipos de oportunidades são cada vez mais raros na vida de muitas crianças. Compreendi durante o processo que meu lugar ali era estar junto e apoiar na criação desse espaço no qual eles podem brincar. Colaborar no sentido de sempre estender suas ideias. Ouvir, propor, pesquisar, mostrar, questionar. Entender cada uma das crianças e como mediar uma boa convivência para todos.

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GUERRINHA DE MAXIXE

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PONTE SOBRE A LAVA

O Ulisses me chamou: - Sofia, corre aqui! Rápido!. Na frente dele tinha, colado ao muro que dá pra rua, uma viga desgastada e quebrada, que ligava o nível que a gente estava a uma laje do outro lado há uns 2 metros. - Você acha que isso me aguenta?, ele perguntou - O que você acha?. Ele pisou na viga e estava molenga. - Acho que não. Então tá bom. Iniciar com um ”Não vai dar certo” ou ”Não pode fazer isso ou aquilo”, por conta de meus medos e referências restringe seus movimentos e limita sua criatividade. É um exercício constante enquanto educador e pode ser bem desafiador.

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As crianças vão construindo seus espaços no mundo e se construindo como pessoa por meio da brincadeira. A construção de um espaço deles reflete muito questões da cidadania como construção coletiva do espaço comum.


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As meninas me parecem mais travadas com seus corpos, mas tenho a sensação que não seja por falta de vontade e sim por convicções externas. Passam mais tempo fazendo coisas menos desafiadoras e quando o fazem, acontece de uma forma menos entregue e com mais restrições. - Não sei fazer isso!. Há um medo de se machucar e de se expor. Fico imaginando as meninas, desde criança, sendo incentivadas a ficar em casa, cuidar dos irmãos, se arrumar, gerando hábitos ou falta de hábitos. O corpo feminino transgressor é mil vezes mais chamativo. Por ser considerado meramente corpo, carne, desejo; e por estar onde não se deve. Observando as crianças mais novas de 4 a 7 anos do Pró Saber, percebi que há uma maior liberdade de errar e de se movimentar do que as meninas mais velhas que participam do Brincreto. Os meninos sempre querem se aventurar mais e não tem vergonha de fazer movimentos fora do padrão. Eles são considerados mais fortes e ágeis sempre então adquirem mais confiança. Quero deixar todos muito à vontade pra errar, comigo e entre o grupo, principalmente as meninas. Eu sinto essa barreira junto com elas. Fui fazendo isso por meio do meu próprio corpo, me colocando em posições diferentes, mais frágeis ou mais fortes, às vezes aparentemente ridículas, caindo, me sujando. Movimentos que eu já não fazia mais. Muitas vezes as meninas querem ajudar a carregar os materiais e logo ouve de um menino: - Você não aguenta isso, deixa que eu faço. Nessas horas eu interfiro e tento gerar um questionamento. - Quem disse que ela não aguenta, ela nunca tentou, como você sabe? Deixa ela tentar!

ARGILA DA TERRA

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ASAS DE PAPELAO

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TRENO DE PAPELAO

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FREESBIE DE CALOTA

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Brincar é completar todo o ciclo criativo, do querer ao fazer. Nesse dia eles queriam construir uma parede de escalada com os pneus, como uma que a gente tinha visto em uma foto na internet. - Precisamos de pneu e corda. - Tem pneu lá no borracheiro! Você podia pegar Sofia! - Pede lá uai! - É muito longe! - É nada Chico! - Bora, bora!

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ESCADA DE PNEU

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CARIMBO DE TEXTURA

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GRAFITANDO

As crianças têm personalidades, qualidades e vontades muito diferentes. Enquanto uma adora pular, a outra prefere desenhar, um gosta de cantar, o outro de conversar. Ao longo do tempo fui conhecendo cada criança e percebi que para propor qualquer atividade, tinha que contemplar várias possibilidades de ação nela mesma. Dentro de várias opções as crianças acabavam se interessando por uma atividade que não estava habituada a fazer. Percebi que a construção coletiva de qualquer espaço traz em sua concepção a articulação de diversas disciplinas, saberes e experiências. Ninguém sabe fazer tudo e é do encontro das diferentes habilidades que as transformações podem nascer. As pessoas têm memórias, referências, histórias diferentes e se aproximar das técnicas utilizadas por cada um amplia nosso leque de possibilidades de ação.

A valorização da cultura mão na massa me guiou durante todo o processo. Uma das minhas missões ali era a luta 125 contra a falência da ação e da imaginação e a comprovação de que o nosso corpo era suficiente para cumprir qualquer tarefa e suprir qualquer desejo. Para aprimorar essa ideia e mostrar para eles pessoas que estavam usando seus corpos como ferramentas para deixar as cidades mais bonitas, eu convidei alguns amigos para irem no Brincreto e compartilharem seus conhecimento, mostrando um pouco do seu processo criativo.


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PERSPECTIVA

O Yan é grafiteiro e mostrou para as crianças alguns jeitos de compor uma imagem, plano, fundo, cor. Eles decidiram que o desenho do mural coletivo seria o lado rico e o lado pobre da cidade divididos por um muro no meio. Cada um fez um desenho individual do que imaginava e depois juntaram tudo em um grande desenho.

QUADRICULA

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Depois ele passou algumas técnicas de desenho em muro. Com um tijolo, explicou algumas ideias de dimensões, e mostrou como desenhar em perspectiva, com ponto de fuga, usando um prego e um fio de barbante (já que teriam muitas casinhas desenhadas) e para passar um desenho pequeno para o muro, em outra escala.


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PESQUISA

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HORTA VERTICAL

MACRAME

Outra grande colaboradora dos saberes foi a Camila, também artista de mural, mas no lugar da tinta, usa crochê. Ela ensinou para a gente vários pontos de Macramê e também várias formas de usar esses pontos. Entre várias opções, as crianças escolheram fazer a horta vertical e a rede.

Contei pra ela como algumas crianças muitas vezes não compravam as propostas que eu dava e que o jeito era pensar em várias funções separadas. Pensando nisso, imaginamos um forma de propor a atividade da horta vertical: pegar terra, preparar a terra, cortar as garrafas pets, plantar as mudas, fazer o macramê, enfeitar o suporte, regar as plantas. No final, todo mundo participou!

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- Ué, esse nó ai a Camila não ensinou. - Ah sim, eu vi um vídeo na internet quando eu cheguei em casa, depois do dia que ela veio aqui. Tem vááááários tipos de nó, até já fiz um vaso bonitão lá em casa.

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O que eram para ser vasos viraram portajabuticaba. A árvore tava cheinha! Na hora que eles estavam em cima do carro para subir na Jaboticabeira, o segurança chegou e falou que não podia pegar fruta das árvores. - Pergunta para o dono para você ver. Ele não dá nem duas jabuticabinhas para ninguém! Mas gente, árvore tem dono?


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PEQUENAS INVENCOES

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DAMA DE SOMBRA

CATAPULTA

Cada descoberta vai revelando os espaços e expande minhas expectativas para este lugar. Tanta coisa além do que eu imaginei pode acontecer ali. Meu foco era o muro mas e se nao for só isso? No meio do matagal, as crianças encontraram: Bicicleta, berimbau, guarda chuva, pá de construçao, carrinho de mão, tijolo, madeira, corda, parte de andaime, cano de pvc, porcelanato, calota de pneu, garrafa pet.

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STENCIL

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Entrevista da Giovanna, 8 anos com a Duda, 12 anos, no dia 03/11/2017. Giovanna: Você gosta de ficar aqui no Brincreto? Duda: Gosto G: Por quê? D: Porque a gente se diverte e é muito legal. G: Daria pra fazer essas coisas que a gente faz aqui na rua? D: Não, porque na rua a gente não tem espaço pra fazer. G: Por que não tem espaço? D: Porque não. G: Porque não não é resposta. D: Porque a rua não é nossa, a gente tem que ter um espaço que é nosso. G: Algumas coisas daqui daria pra fazer no muro da rua? D: Daria pra pintar os muros, desenhar umas coisas. G: E balanço nas árvores, teria como fazer? D: Não, porque a árvore não é nossa. Só se a árvore fosse nossa. G: A árvore é de quem? D: A árvore é das pessoas que plantam. G: Mas e se a gente plantasse as árvores, daria pra fazer né? D: Dai sim. Entrevista da Giovanna, 8 anos com a Bianca, 8 anos, no dia 03/11/2017. G: O que você gosta de fazer aqui no Brincreto? B: Tudo! G: Tudo o quê? B: Fazer novas criações G: Teria como fazer essas criações na rua? B: Algumas. Tipo a horta de garrafa.

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Entrevista da Giovanna, 8 anos com o Edson, 12 anos, no dia 03/11/2017. G: Você gosta de vir aqui? E: Muito! G: Por que? E: Porque é legal, é da hora e dá pra fazer um monte de coisa. G: Tipo o que? E: Cabana, pintura, umas construções da hora. G: Você queria que tivesse em outros lugares? E: Sim. Entrevista da Giovanna, 8 anos com a Emily, 13 anos, no dia 03/11/2017. G: Você gosta de vir aqui? E: Sim G: Por que você gosta de vir aqui? E: Porque tem várias coisas que nós mesmos cria, tipo a horta, o balanço e o barraco dos meninos. G: Você acha que daria pra fazer essas coisas na rua? E: Algumas coisas. G: Por que algumas sim e outras não? E: Porque na rua os carros passam e aqui é um estacionamento mas eles deixam o nosso espaço e na rua não. G: E na rua não tem espaço? E: Na rua tem espaço, tem muro mas é perigoso. Entrevista da Sofia, 24 anos com o Marciel, 13 anos, e o Ulisses, 10 anos no dia 03/11/2017. S: O que você falaria pra convencer alguém de não tirar a gente daqui? M: Eu falaria que aqui a gente faz várias coisas. Se tirarem a

gente daqui, a gente fez tudo em vão. U: Se eu soubesse que iam tirar a gente daqui, não teria feito nada. S: Por quê a gente fez tudo isso? U: Para criar um lugar melhor pra gente ficar e brincar. M: Porque na rua não tem como fazer. S: Que que tem de diferente daqui pra rua? M: Aqui não passa carro, tem bastante espaço. S: Tá faltando espaço pra vocês brincarem? M: Aham.

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REFLEXOES

Mais do que um período de realização de um trabalho que fecha um processo de aprendizagem, esse período de um ano foi um mergulho intenso em reflexões que não se diferenciam entre pessoal e profissional, elas são sempre as mesmas, interligadas, reflexo uma das outras. A vivência com as crianças foi um convite para olhar para dentro, para desenvolver meu corpo a sentir, tocar, enxergar e se expressar de outra forma, para estar no espaço a partir de outras perspectivas. O que fizemos ali foi a produção de um espaço lúdico, a partir de uma construção não estabelecida para isso - uma heterotopia. Uma área construída e gerida coletivamente pelas crianças e por mim, com materiais diversos como cordas, pneus, madeira, tecidos, tábuas, canos, caixas e ferramentas disponíveis para eles criarem, bagunçarem, inventarem, sujarem, desmontarem, pularem, correrem, balançarem, fazerem arte e se aventurarem. As brincadeiras atravessam a cidade, desviam suas funções e as ordens preestabelecidas. Entre o “aqui pode” e o “aqui não pode”, ou o “isto pode” e o “aquilo não pode”, existem infinitas possibilidades e a criança está aí para descobri-las e desvendá-las. Durante esse período as crianças precisaram de quase nada para desviar. Fizeram uso dos “restos” para fazer brinquedo e brincadeira, me fazendo lembrar que nosso corpo é adequado para nos levarmos aonde quisermos ir. É a nossa ferramenta essencial e pode servir para estender qualquer ideia da nossa cabeça e materializar todas as nossas vontades. Entendi que brincar é completar todo o ciclo criativo, do querer ao fazer, de forma que manter as crianças em segurança era, também, permitir que elas tomassem decisões, avaliassem, respondessem e enfrentassem os riscos por conta própria. Aquele risco que faz parte da vida de todo mundo, em todo lugar, mas que não deixamos de viver por conta deles. Quando lidam com os riscos eles os conhecem e vão construindo os limites do seu corpo e eu, como responsável deles, ia reconstruindo meus medos. Eu sentia que abraçando sua autonomia eu passava uma sensação de responsabilidade deles perante o espaço e eles próprios. Passei o período inteiro achando que não estava sendo capaz de construir uma metodologia, até entender que ela estava sendo construída dentro de mim, pela minha forma de habitar, de caminhar e de observar. No começo, imaginei aquele espaço de várias formas e coloquei muito expectativa em cima dele. Essas expectativas foram se desmanchando e se transformaram em possibilidades inifinitas. Não ter expectativas prontas, retiradas de referências da internet me fizeram enxergar invenção em tudo a partir de quaisquer recursos disponíveis na hora. Me incentivaram buscar ideias em outras locais da cidade, com outros brincantes. Agora, já posso dizer que foi o descontrole de lidar com as situações, as decepções de não completar os projeti-


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nhos que tinha planejado, a bagunça instaurada no final dos encontros, meu principal aprendizado como pessoa e como profissional. O que no início era chateação, virou método de trabalho. Comecei a prestar atenção naquilo que acontecia e não no que deixava de acontecer. Comecei a tentar entender de que forma eu poderia colaborar para o que já estava acontecendo, ao invés de impor que algo específico acontecesse. Assim como as crianças, o cotidiano do espaço é incontrolável e não possui manual de utilização, mas no final o que fica é a alegria em seus rostos e o pedido para ir lá todos os dias. As barreiras construídas, sejam elas materiais como muros, pontes, prédios e carros ou imateriais, como as leis e regras, por mais imponentes, intranspassáveis e indestrutíveis que pareçam, estão sujeitas a ação humana para existirem como uma coisa ou outra, como limite ou possibilidade. As ações, mesmo efêmeras, transformam a paisagem urbana mais que um bloco de concreto, pois preenchem os espaços e seus elementos de significado. Não há necessidade de tanta coisa pra qualificar o espaço urbano, precisamos de espaço e acesso garantido a eles. A criação de espaços inacabados, para serem explorados, percorridos, torna possíveis diversas experiências, de acordo com a disponibilidade criativa das pessoas que nele entram. Um outro urbanismo, que se propõe participante, deve pensar práticas labirínticas da cidade. Deve criar espaços vazios, lugares propícios para que algo potencial aconteça. “(...)quando a cidade se fixa completamente, o mistério do labirinto vai progressivamente desaparecendo na monotonia dos traçados regulares.”(PAOLA, 2011). O Brincreto se relaciona a um movimento crescente de Adventures Playgrounds e Forest Schools que buscam a autonomia das crianças através da brincadeira, da exploração do meio natural e urbano como matéria prima e da participação ativa da criança no processo de aprendizagem. O brincar não-estruturado propõe uma construção coletiva dos espaços e entende a criança como produtora de conhecimento e cultura. Oferecer sempre o já imaginado, fechado para novas possibilidades, é deixar claro que não acreditamos no seu potencial criador e isso vale para todo mundo. Quando diante de possibilidades flexíveis e mutáveis, a criança revela gestos e formas de uma estrutura imaginária que dá base para o mais humano de si; ela mostra seus saberes e necessidades genuínas através da conversa com materiais que lhe permitem estar no protagonismo da ação. Os materiais utilzados durante esse semestre no Brincreto foram, em sua maioria, encontrados pelo terreno, e permitiram ampla flexibilidade de uso segundo as próprias necessidades e buscas das crianças, sem restringir suas ações. Um espaço livre, construído coletivamente, que abraça a autonomia e criatividade da criança, se torna um potente fortalecedor do senso de comunidade. O empoderamento e representatividade perante um espaço gera uma noção de perten-

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cimento e cuidado que tem um efeito multiplicador para além dos muros, na cidade. Uma infância ativa será a protagonista da participação da cidade, seja em questões políticas ou do simples ato criativo. Essas reflexões surgiram do meu encontro com um universo infantil mas podem ser transmitidas para qualquer grupo pertencente a cidade. Ver as crianças habitando e transformando aquele espaço, cada um com suas habilidades e movimentos diferentes me fez questionar ainda mais a centralização do papel do arquiteto na construção coletiva da cidade, e enxergar outras frentes de ação que podem transformar, adequar e qualificar a cidade aos usos do cotidiano. Ninguém sabe de tudo, nem deve saber. Na criação de redes, na articulação com outras disciplinas, saberes e experiências, ampliam-se as oportunidades para a nossa ação como profissional. Com a experiência do Brincreto, e com todos os movimentos com os quais me envolvi durante esse ano, percebi que existem muitos grupos e movimentos que não são contemplados na lógica funcionalista do planejamento urbano, mas que tem muito a dizer sobre novas possibilidades para elementos e dinâmicas existentes. Essa lógica na qual estamos inseridos, que prioriza os automóveis e a especulação imobiliária, reflete numa privatização do espaço público e restringe os espaços de ação dessas pessoas. “O paraíso não tem mobília. Não há necessidade de tanta coisa pra qualificar o espaço urbano.” A arquiteta e urbanista Beatriz Goulart surgiu na minha pesquisa, trazendo reflexões muito pertinente: “O convite está em ir além da questão técnica, do mínimo de qualidade e trazer junto a questão da transcendência, de uma cultura ancestral de brincantes. Pensar num espaço urbano como um lugar que nos possibilite transcender com imprevisibilidade e casualidade e não numa exclusivamente dentro de uma organização rigorosa. Os brincantes da cidade que estão atuando no campo da transcendência, paralelamente a burocracia precisam se encontrar com os tecnocratas que estão definindo projeto na prancheta, definindo medidas.” A brincadeira do corpo é uma das diversas possibilidades de disputa e resistência na cidade e deve ser levada em consideração no planejamento do espaço urbano coletivo. E planejar espaços para fins de lazer não se resume a construir campos de futebol, ciclovias, ou criar áreas verdes e sim intervir na escala do dia-a-dia, cultivando um meio urbano onde possamos estar e passear a qualquer hora. Os ambientes mais interessantes são aqueles que nos fazem perguntas complexas. A minha investigação se iniciou a partir de um interesse pessoal acerca da metodologia como processo projetual. A construção de uma metodologia para se chegar a uma questão foi a própria metodologia deste trabalho e também seu fim, não consistindo, portanto, na comprovação de um ponto e sim na compreensão da função e importância dessa investigação na prática arquitetônica. A construção do meu projeto de investigação, a leitura, o trabalho de campo e a observação me levaram a


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uma questão que pretendo levar na minha carreira como arquiteta e urbanista: Como reivindicar e planejar espaços que convidam à expressão de diferentes linguagens da cidade? Como pensar uma arquitetura que permita o movimento do brincar, que esteja preparada para receber esses outros usos criativos? Será que ela é planejável? Nada ali aconteceu porque eu tornei possível, eu só prestei atenção e me coloquei a disposição. Por meio da brincadeira, as crianças rearranjam o mundo, tornando-o menos amedrontadores e entediantes. Essa resistência sempre existiu e sempre vão existir. Os bricantes estão espalhados por aí, basta convidar. Este trabalho não é um manual de brincadeiras porque não exige instrução e não tem jeito certo de fazer. É um convite para olhar em volta e desvendar as brincadeiras possíveis no e com o espaço e acima de tudo, é um manifesto pelos acessos aos espaços livres de brincadeira da cidade. Com ele espero expandir a discussão para além dos muros da cidade, e informar a todos sobre o potencial criativo e transformador dos brincantes e da cidade.

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