Políticas educacionais

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Políticas Educacionais: Conceitos e Debates

Ângelo Ricardo de Souza Andréa Barbosa Gouveia Taís Moura Tavares (Organizadores)


Coleção Educação: Políticas e Debates Política educacional é um tema candente na realidade brasileira contemporâ. nea, seja no cotidiano da vida escolar em que as condições de organização da escola, de contratação de professores ou de acesso a uma vaga estão condicionadas por deci. sões da política; seja no contexto midiático em que temitS corno qualidade de ensino,

valorização dos professores, resultados das avaliações

d,lS

escoJas ou das tensões em

torno da escola, alimentam artigos de opinião, editoriais especializados ou ainda debates que reúnem especialistas de variadas formações; e, ainda podemos afirmar que é um tema Clmdente no debate academico propriamente dito, em que a análise da conjuntura educaciona! exige a compreensão das relações da política específica com o contexto mais amplo de coordenação da vida coletiva. Em outros termos, podemos afirmar que debatemos a política educacional de maneira muito intensa na sociedade brasileira, Porem será que utilizamos de fato os mesmos conceitos neste debate? O conceito de políticas educacionais ê polissêmico, como o são em geral os conceitos do campo das ciências humanas. Neste caso, uma singularidade que se impõe ao conceito ê seu uso no plural, já que não se trata de uma política, mas de diferentes e diversas políticas na área. No caso brasileiro, de um sistema educacional historicamente descentralizado, esta pluralidade tem ainda uma expressão que

é de colaboração (e muitas vezes concorrência) de políticas no mesmo território. Alem de podermos, portanto advogar que a analise é sempre de rnultiplas políticas, a própria ideia de política é neste caso polissêmica: política pode se referir à ação do Estado na organização da oferta de educação, mas também a ausência da ação do Estado pode conformar Uma poJitica de preterição de alguns grupos sociais. Assim, talvez seja mais prudente pensar política como espaço de relações de poder e, compreender que a dinâmica destas relações ê que conferem sentido ao que entendemos em cada mOmento histórico como direito à educação, dever do Estado na oferta de educação, possibilídades de permanência das crianças, jovens e adultos np sistema escolar. Para pensar a política em termos de relação de Poder é preciso identificar quais são os âmbitos de manifestação de tais relações, assim no contexto do debate da politica educacional, as relações de poder no interior da escola e no sistema de ensino são espaços de produção da política, mas não é só ai que se tomam decísões sobre a educação! O sistema educacional assenta-se num conjunto normativo e a produção desta norma se faz, num país republicano, no âmbito do sistema legislativo. Assim, as relações de poder Que conformam as forças e as decisões no âmbito do parlamento são também parte do debate da po){tica educacional. As normas produzidas no legislativo tem sido alvo de contestação judicial (lembremos da Lei do Piso Salarial Profissional Nacional do magistério que foi discutida recentemente no Supremo) seja por segmentos que não querem ou alegam não poder cumprir a lei, seja por segmentos que são prejudicamos pela ausência do cumprimento da lei, assim as relações de força


que se expressam no judiciário passam a compor o conceito de politica educ<lcional. Esta amplitude que envolve as "politicas educacionais" parece ser um bom motivo para a organização de uma coleção que tenha como foco "conceitos e debates" deste campo. Não parece possível dissolver a polissem ia dos termos, mas ao contrário ao explorar as múltiplas facetas do fenômeno social, podem-se construir mais porosidades entre o debate que se faz no chão da escola, no espaço público midiático e no espaço acadêmico de forma a quiçá contribuir para que democraticamente avancemos na compreensão coletiva do que temos produzido como direito a educação neste momento históríco da sociedade brasileira. Este e um convite aos autores e aos leitores, explicitemos nossos conceitos e vamos ao debate! Andrea Barbosa Gouveia

Diretora Científica: Andrea Barbosa Gouveia

Consultores: AmariJdo Pinheiro Magalhães - IFPR Ângela Mara de Barros Lara - UEM Angelo Ricardo de Souza - UFPR Cláudia Cristina Ferreira - UH Dalva Valente - UFPA Denise Ismênia Bossa Grassano Ortenzi - UEl Edcleia Aparecida Basso - UNESPAR-FECILCAM Elisa Bartolozz; - UFES Fernanda Coelho UberaJi - PUC-SP Gilda Araujo - UFES Gladys Barreyro. USP Juca Gil. UFRGS Magna Soares - UFRN Marcia Jacomini - USP Marcos Alexandre dos Santos Ferraz - UFGD Maria Antonieta Alba Celani. PUC-SP Maria Dilneia Fernandes Espindola. UFCG Marra Teresa (elada. USP-FFLCH Maria Vieira Silva - UFU Marisa Duarte - UFMG Nalu Farenzena - UFRGS Odair Luiz Nadin - UNESP Rosana Evangelista Cruz. UFPj Rosana Gemaque - UFPA Savana Diniz - UFMG


Sumário Sobre os autores 11

Por que estudar Políticas Educacionais? Referências Bibliográficas Capítulo I

15 21

Estado, Política e Sociabilidade • Marcos Ferraz

Capítulo 11

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Políticos Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização • Rose Meri Trojan

51

Capítulo 111

o Financiamento da Educação no Brasil e o Desafio da Superação das Desigualdades • Andréa Barbosa Gouveia

81

Capítulo IV Federalismo e Gestão dos Sistemas de Ensino no Brasil • Katherine Finn Zander • Tais Moura Tavares

105

Capítulo V Planos Educacionais: Entre a Prioridade e a Descrença • Juca Gil

133

Capítulo VI Política de Avaliação da Educação Brasileira: limites e Perspectivas • Maria Angélica Minhoto

163

Capítulo VII Profissionaisda Educação: Entre o Encaantarnento da Resistência Individual

e o Sofrimento do Trabalho

• Andréa do Rocia Caldas

189


Sobre os autores Andréa

Barbosa

Gouveia

é graduada em Pedagogia pela

Universidade Federal do Paranã, mestre e doutora em Educação pela USP e é professora da UFPR desde 1998. Ec professora do Programa de Pós Graduação em Educaçaa desde 2008, no qual atua desenvolvendo projetos de pesquisa que tratam de temas relacionados ao financiamento da educação, políticas educacionais e avaliação da educação. Contatos: andreabg@ufpr.br. Andréa

E

do Rocia Caldas

é doutora em Educaçào pela UFPR.

professora do Setor de Educação, atuando principalmente na for.

mação de pedagogos. Desenvolve pesquisa, no Núcleo de Políticas Educacionais da mesma universidade, com ênfase nos estudos sobre as políticas para os profissionais da educação. Contatos: andreacaldas2011@gmail.com.

Ângelo

Ricardo

de Souza

é doutor em Educação pelo Progra-

ma de Pós.Graduação em Educação: História, Politica, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é professor e pesquisador do Núcleo de Políticas, Gestão e Financiamento da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. É editor do Jornal de Políticas Educacionais. Contatos: angelo@ufpr.br.

é pedagogo e doutor em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), é professor Juca Gil

da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e colunista da Revista Nova Escola Gestão Escolar. Pesquisa sobre politicas educacionais. coordenando, no momento, uma investigação acerca da gestão e do financiamento da educação especial, a qual conta com recursos do CNPq. Participa também de uma pesquisa nacional sobre remuneração docente financiada pela 9


Por que estudar políticas educacionais? Política é o que faz o sujeito que deseja/aspira o poder (WEBER. 1970; 2004). Assim, quem opera na política, não atua por outra razão centrai senão que conquistar, ampliar ou, mais difícil e mesmo antes, manter o poder (BOURDIEU, 2004: MAQUIAVEL, 1996) Então, governar (o pais, a cidade ou a escola), que é umCl• ação política, implica em" b_usca.rJxj~[lte.[:5e.oc-po.der, pois._me:;;rno.para _cof'lt1nÜãr governando 8, assim continuar ~uan.do..D~_p_oJJtic_a, tal P9der é preciso. Esta - dominação, 'que para Weber é-uma torma especial de poder (legitimado/reconhecido), é conduzida com o intuito de primeiramente manter, para depois ampliar, o poder. A noção de política com a qual trabalhamos nesta obra caminha sob esta leitura da política. Logo, ª-ª.Qão dO~L~uleitos ql)'~L,!!uam n_~_condução dos aparelhos do Estado ou daqueles outros que os_eofrentam, deve ser _entendida a partir-do -d[ss~!l~o eot[ELele-.?...D.tllJta_pelq--po_der. Os fenômenos pr..QQr!.P.~-do _camp_o_das_ poliljc;Çl.? •.J~ducacionais,_e demais políticas sociais~Jodªyiª.l nem sef!lQ.U:U~l'PI~s.sam_os conflitos a eles sebja_centes [r'fECÜ & KLÜGE, 1999). A discussão sobre o direito à educa-ção, por exemplo, alcançou um ponto básico de consenso: todos têm direito ao acesso à educação escolar. Porém. a forma para tal acesso e os limites dele (se se trata de acesso físico vagas, ou, para além, substantivo: condições de aprendizagem) ainda são expressão da disputa entre mUitos grupos (intra e extra governo; entre classes e frações de classe sOClal; etc.). O projeto desse livro, assim, iniciou-se quando os organizadores avaliavam a falta d~ uma publicação que atualizasse. em uma única obra, os principais temas deste amplo campo de pesquisa e estudos das Politícas Educacionais e servisse de suporte na formação de novos quadros de pesquisadores e professores, mas fizesse tudo isso pautando a leitura da ação pública sobre a educação considerando as diversas faces das disputas pelo poder presentes neste campo. O interesse em discutir as politicas educacionais, assim, tem relação com a preocupação de debater aspectos atuais deste campo e oportunizar maiores e melhores condições de acompanhamento e avaliação da educação às administrações públicas, aos estudantes nas universidades e á sociedade civil. Esta discussão oportuniza e amplia as condições de se avaliar a ação, os produtos e os impactos das politicas educacionais e, especialmente, de se reconhecer que isto tudo tem uma intimidade destacável com a

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luta pelo poder. Este procedimento insere-se em um campo mais amplo, o da avaliação de políticas públicas, a qual demanda uma profunda análise da ação governamental em dada área e, para alem disso, as relações que se estabelecem entre a ação pública e as demandas sociais, pois, como mencionado, o Estado se relaciona/responde à pressão ou à ausência de pressão social. Nesse sentido, é necessário considerar que qualquer poli. tica pública não pode ser entendida como iniciativa isolada e unidirecionaJ do Estado. É preciso que "o prisma analítico das políticas públicas" permita "uma interrogação constante sobre a natureza evolutiva do Estado e das relações entre espaço público e privado" (MULLER e SUREL, 2002, P.17). Há muitas Possibilidades de análise dessa interação entre demanda social e ação governamental, o que permite dizer que "uma politica é, ao mesmo tempo, um constructo social e um constructo de pesquisa" (MULLER e SUREL, 2002, p.12). E isto significa que a tentativa de auxiliar na formação de investigado_ res que tratem dessa matéria, não pode tomar os produtos da política como simpres resultado da intenção do governante de plantão sobre os problemas que se lhe apresentam. A teoria não pode ser reduzida a apresentação de esqu_~D1as.~nalitico~. teó_r~cos.padronlzagos e üniformes, ou melhor, e por isto mesmo, padronizadores e uniformizadores da realidade, pois tais principias não sobrevivem aos mais simples testes empíricos. Senão, vejamos. No caso da educação, há uma construção social do problema educacional. Oliveira (2006) apresenta tal construção delineando um panorama da expansão do acesso ao ensino fundamental, desde sua origem como escola primária, até Sua quase universalização no fim do século XX e, com isso, problematiza as condições de qualidade em que essa expansão se deu. Considera que o resultado desse processo imprimiu novas demandas de acesso ao ensino médio e superior, além de tornar urgente a discussão sobre os resultados escolares alcançados pejo contingente gigantesco de alunos que compõe o sistema de ensino obrigatório no Brasil. Oliveira dialoga com os estudos de Spósito (1984; 1993) sobre o acesso à escola, estudos estes dedicados a reconstituir a pressão sociar por vagas na escola em São Paulo dos anos 1940 aos anos 1970. O que o Ira. balho de Spósito (1984) mostra é que a expansão da escola é conquistada pera população à revelia de um planejamento prévio do Estado. Mesmo que o debate entre os educadores, desde os anos 1920 indicasse a necessidade de universalização do acesso ao ensino elementar, isso não se efetivou até 1 os anos 1970 , quando a luta por escolas se articula a um conjunto mais 1 Autores como Romanelli (1996) e Ribeiro {1988) demonstram que a expansão do enSino de 1. grau no Brasil. se rmp6e como necessidade oficial no Brasa. nos anos 70. principalmente. articulado ao modelo de desenvolvimento económico do pais. Modelo este que sustentava o Investimento em educação como investimento em capital humano, Não estamos aqui desconsrderando que tal conte~lo Contribui para a ampliação da oferta, entretanto. tal ampliação não se fez numa sociedade alhei<l a questão educação,

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amplo de reivindicações de melhorias urbanas (KOWARICK, 1979) em São Paulo e em outros centros em expansão no país. A luta pela escola, via de regra~ r:narcad.ª-p_orJrê.~grandes dimensões, 'quenifo se manifestam, necessariamente, _de forma. su~siva:_~ conquista dto.base material para o funcio.namento.das .escolas.o.queJmplica ~utori~ªçªq dãj;2.eri~rà' de turmãi:espaça fi sico. (construção.ou_sessão.de.... .. espaço) e con(j)ç,?es de funciona.mento;.2).gestão.da escola.com.a.partici •. ,mlção dos pais, alunos e 9Lu.PQ!Lorg"nizado~-º--que.implica-par1icipaçãQ_ desses pais, por exemplo,. n..os Con!1eit1os_qe.. Ess;o!a~.nq~l'\s~ociaçõ~ .9JL -Pais 'é Mestres ou equivalentes; 3) discussão da atividade pedagógicapm: priamel}te dita. Dito de outro modo, pode-se pensar que a questão educa-'cional se coloca primeiro como ~stão de ace~s.9,_depois_como9uestã~ de gestão e finalmente como questão de qualidade> --. Há que se considerar, entretanto, que a construção social de tais novas demandas não é resultado de etapas evolutivas, ou seja, as demandas por gestão e qualidade não se colocam apenas quando a questão do acesso está resolvida. À medida que o acesso se expande, as questões da gestão e da qualidade se impõem tornando o quadro da politica educacional mais complexo. Todavia, o conceito e a consequente operação/ação do Estado . no que concerne á gestão e à qualidade (ou às condições para a qualidade), são também elementos em disputa. A qualidade na educação não é uma referência passivel de ser dimensionada em uma métrica atemporal e as condições para que seja conquistada tampouco são uniformes em qualquer tempo, espaço e dimensão. Ainda que a qualidade possa ser representada no crescimento e no aperfeiçoamento da aprendizagem, quão mais/melhor formado ou aperfeiçoado deve ser o estudante (ou o seu dominio de conhecimento e formação) é algo extremamente complexo e, por isto mesmo, em disputa na política educacional. A gestão, como ferramenta da politica', expõe nua e explicitamente as disputa' peléi poder na e.ducação. Não é incomum, como se fará ver em capitulos desta obra, governantes cambiarem modelos de gestão da educação e da escola na esperança e expectativa de ganharem a política. '-

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No campo da pesquisa em política educacional, tal complexidade se revela na necessidade de compreendermos melhor o que e como se constitui a agenda política (a pressão social), o que e como se institui a política propriamente dita (as decisões governamentais), a sua execução e os resultados desse processo, com vistas a se saber os desenhos e os movimentos da ação do Estado ante as demandas, mesmo as pouco reconhecidas, por educação. A área tem um esforço já consolidado na avaliação política das ações governamentais (FIGUEIREDO e FIGUEIREDO, 1986). São trabalhos que 2 "Para a vida cotidiana, dominação é primariamente administração" (Weber, 2004, p. 175).

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tomam as intenções proferidas frente aos determinantes mais gerais para demonstrar o quanto a política educacional pode estar respondendo lógica, meramente econômica ou administrativa, externas as demandas propriamente educativas. Nessa chave temos os trabalhos de Fonseca (1997, 2004) sobre os efeitos dos acordos de cooperação internacional na produção da política educacional brasileira; e trabalhos que avançando um pouco alem das intenções das políticas, consideram os desdobramentos na or. ganização dos sistemas educacionais subnacionais no Brasil. Entre estes últimos estão análises dos efeitos das reformas educacionais em estados e municipio (PERONI, 2003; ADRIÃO, 2006; GOUVEIA, 2009, TAVARES. 2009). Outra forma de avaliação e aquela em que se considera a avaliação da politica propriamente dita (FIGUEIREDO e FIGUEIREDO, 1986) o que implica em estabelecer relações entre o proposto, o executado e como se executou e que resultados são alcançados. Nessa outra chave, podem-se encontrar trabalhos (GONÇALVES e FRANÇA. 2009) que ao analisar os sistemas de educação básica demonstram a importância de variaveis como democracia e capacidade de financiamento dos estados brasileiros na determinação da qualidade ofertada por estes entes federados. Ou ainda, que analisam matriculas como indicador de acesso a escota (SOUZA e DAMASO, 2008) ou cotejam modelos de gestão escolar (SOUZA, 2008) presentes nos sistemas escolares do Brasil com os resultados estudantis, compreendendo aí gestão da escola como interveniente da qualidade. São trabalhos mais recentes, mas fecundos e dialogam com metodologias variadas. E, ainda, há estudos mais teóricos sobre as relações entre Estado, Política e Educação. São trabalhos que discutem concepções de Estado e Politica presentes na literatura ou na ação concreta da operação da política. Neste livro, procuramos apresentar-lhes textos que dialogam com todos esses campos e perspectivas. Como são textos que abordam questões diversas das políticas educacionais, o leitor encontra leituras mais conceituais, outras com uma macro abordagem do problema e ainda outras com uma avaliação de impactos da politica educacional. O primeiro texto situa uma leitura sobre o Estado e a Política, de maneira a ampliar a compreensão sobre as políticas educacionais. O capítulo assinado por Marcos Ferraz, "Estado, Política e Sociabilidade", toma a discussão sobre a publicização do privado e a privatização do público como eixo para analise da política, isto ê, para o conhecimento sobre as disputas históricas da sociedade brasileira no (não) atendimento às políticas sociais. Localizando que a ideia sobre o que é Estado moderno é algo tambem em disputa, o autor mostra que se o Estado não pode ser entendido apenas como um espaço de disputa de poder, de outro lado, a sua sinonimização a um aparelho gerencial não é suficiente para explicar a própria

a

política. 16


o

texto deste capitulo é concluído na forma de questões decorrentes da leitura da relação sobre a esfera do público e as necessidades do privado, uma vez que se há o reconhecimento, por exemplo, da educação como direito social por (quase) toda a sociedade brasileira, a sua consagração está distante de ocorrer. As distâncias entre os extremos dos direitos (privados) e dos deveres (públicos) de parte a parte (Sociedade e Estado) não parecem muito pequenas. No segundo capitulo, o leitor encontra uma discussão sobre a situação da educação na América Latina, após decorridas duas décadas da massificação industrial das reformas educacionais na região. O texto de Rose Meri Trojan, "Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização", é uma atualização importante que coloca em questão o quadro da educação latinoamericana 20 anos após o inicio das reformas educacionais na região. Dialogando constantemente com Juan Casassus (2001 l, que havia produzido um panorama equivalente, dez anos atrás, a autora mostra como há uma tendência predominante em curso na região que mantém a direção dada ás reformas educacionais articulando-as aos acordos firmados entre governos nacionais e as agências internacionais de fomento. No capitulo 111, temos o texto da professora Andréa Barbosa Gouveia, destinado a apresentar conceitualmente o financiamento da educação básica pública no Brasil. O financiamento é a principal peça de materialização da politica educacional. Não se pode reduzir a análise da politica á leitura dos investimentos educacionais, mas sem tal informação, torna-se muito difícil dimensionar a possível tradução da política como texto na política como efeitos (BALL, 2006). A autora sintetiza o quadro do financiamento da educação no Brasil, apresentando as regras que pautam o funcionamento do sistema. Demonstrando a existência e funcionamento dos recursos orçamentários vinculados, passando pela relação de tal vinculação com a manutenção e desenvolvimento do ensino, chegando aos problemas e virtudes da política de fundos criada em 1996 e efetivada em 1998 e, ainda, até á existência e organização da importante fonte complementar da contribuição do salário educação, o texto exibe todo o panorama do financiamento da educação básica pública brasileira. Temos, a seguir, dois textos sobre planejamento e gestão da educação. São textos importantes porque tratam daquilo que é a estrutura da politica, uma vez que a gestão é por onde a política educacional opera (SOUZA, 2007) e o planejamento é peça decisiva nesta operação. No capitulo IV, Tais Moura Tavares e Katherine Finn Zander desenvolvem no texto intitulado "Federalismo e gestão dos sistemas de ensino no Brasil" uma reflexão sobre a gestão da educação considerando as rela-

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ções entre as necessidades sociais por educação (direito à educação) e a realidade da organização poJitica em um pais definido pelo federalismo. A organização e condução da educação pública no Brasil não pode ser igual e atender a todos e a cada um nas suas necessidades educacionais, enquanto a desigualdade poJitica prõpria do federalismo nacional prevalecer. Isto ê, as autoras mostram que uma vez que a educação ê assumida/gestada localmente, seus resultados (porque, antes, suas condições de oferta e gestão) são extremamente desiguais. Logo, a federação, como desenhada especialmente na Constituição Federal de 1988, precisa ser reconhecida menos como democrática, ainda que ela reconheça os municípios como entes federados e, por isto, lhes inclua participativamente no cenário político nacional de maneira mais efetiva, e mais como comprometedora de avanços dos direitos sociais, considerando a real capacidade que os municípios, em sua maioria, têm para enfrentar e atender as demandas educaCionais da população. Já o artigo de Juca Gil nos traz uma reflexão sobre o planejamento educacional brasileiro. O texto "Planos educacionais: entre a prioridade e a descrença" traz uma leitura que evidencia a sanha nacional com essa constante busca pela captura do futuro por meio do planejamento educacional. O autor mostra como o planejado nem sempre se articula com a leitura mais qualificada acerca dos problemas educacionais mais evidentes. Isto mostra como o planejamento é mais do que uma peça técnica da organização e gestão da educação. Ora, antes mesmo vimos que a gestão é por onde a poHtica opera e o planejamento é peça central desta engrenagem, assim, e considerando as análises de Gil, resta evidente que o planejamento na e para a educação brasileira sempre foi um instrumento poderoso de se fazer a disputa no campo da poJitica. O texto conclui que o Brasil precisa ainda caminhar um longo percurso para transformar os planos educacionais gestados sob os interesses evidentes do governo em políticas de Estado. É certo que isto não é suficiente para ,se dispersar conflitos. Ao contrário, como políticas de Estado, os planos de educação podem se traduzir no consenso possivel de uma dada conjuntura ou época e, assim, possam servir de instrumental mais adequado para o enfrentamento dos problemas educacionais e para o controle da sociedade sobre a ação pública. O texto de Maria Angélica Minhoto, intitulado "PoJitica de Avaliação da Educação Brasileira' limites e perspectivas", trata dessa face da política que é, quiçá, a que mais tem se sobressaído na última década e meia. A autora parte do reconhecimento de que a avaliação na educação não pode, per si, explicar os produtos do trabalho escolar e educacional, desconsiderando o contexto social e suas interfaces com a cultura, economia, história; o perfil dos estudantes; as condições escolares; etc. O texto traz ao leitor uma didâtica apresentação sobre as principais


peças do sistema de avaliação da educação nacional e permite uma leitura critica acerca dos seus limites, como o alcance das metodologias utilizadas, a hierarquização de disciplinas avaliadas, a indução curricular que deriva do sistema, dentre outros. A avaliação, ao apresentar os seus produtos, expressa uma importante face do sistema educacional, mas esta face não pode ser confundida como a plenintude de resultados de todos os esforços de inúmeros professores e alunos (e extensivamente: diretores, pedagogos, trabaihadores não docentes; familias; dirigentes dos sistemas de ensino) no pais. Entre a necessidade de se conhecer e monitorar o andamento dos trabalhos nas escolas brasileiras e, de outro lado, de se indicar os rumos a serem perseguidos pela educação e pelos educadores (efeito esse que também decorre por conta do sistema de avaliação vigente), a política educacional precisa encontrar o termo adequado para ter informações o mais precisas possivel sobre os processos e os produtos do trabalho escolar e, ao mesmo tempo, auxiliar na construção de rumos mais democráticos para o futuro educacional. Por fim, o artigo que fecha este livro é denominado "Profissionais da educação: entre o encantamento da resistência individual e o sofrimento no trabalho" de autoria de Andréa do Rocio Caldas. O texto expõe a situação daqueles que se encontram no olho do furacão; os professores (PEREl GOMEl, 2001). Entre extremos de (sentimentos de) envolvimento e abandono, os trabalhadores docentes encontram-se inclinados e tensionados a atender as demandas que lhes são apresentadas pelos dirigentes dos sistemas de ensino e das escolas, pela midia e mesmo pelos alunos e/ou seus familiares e, por outro lado, não possuem as condições para fazer o que lhe cobram ou o que ele mesmo cobra de si com o grau de qualidade que o aluno e ele próprio merece. A autora mostra que a desistência ou a resistência dos docentes no enfrentamento dos dilemas e desafios educacionais são ambas forjadas por e forjadoras destes mesmos dilemas e desafios. Assim, mésmo contra a percepção mais evidente do significado dessas expressões, é necessário que a politica educacional também enxergue o oposto. Pois, os sentidos cãmbios na organização da profissão docente, frutos dos impactos das reformas educacionais, podem ter apresentado a esses profissionais razões para desistir e, com isto, o futuro da ação do professor e da escola são postos em cheque. A desistência não é expressão da face negativa do professor, expressão da fraqueza. Ao contrário, desistir pode ser a única opção de sanidade em dado momento, e a sua existência evidencia (ou deveria evidenciar) o quão em crise está o professor, a escola e o sistema de ensino. Na outra extremidade, a resistência nem sempre se traduz como a fortaleza que é sustentada pela consciência e pelos ideais educacionais que movem este ou aquele professor. Por vezes, pode ser expressão da vitória do con-

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formismo sobre ideais que já não existem mais. Esses textos todos nos convidam a estudar as políticas educacio~ nais, com o intuito de nos mostrar como são operadas as relações entre O Estado e a Sociedade na luta pelo reconhecimento da educação como direito, nos desafios da sua oferta e organização e nos conflitos decorrentes da busca por qualidade. C..QD.h..E!.ceLmelhoras políticas

educacionais

representa

conhecer

me-

lhor o pap~.! _doJ~ .~!..~_ç!Q.,~3.lLgisputas . pelo poder no seu interior. e para além -dele. Ao cQ.I)be.cermelhor o.Estado, é possivel conhecer melhor_.o..direito ~~~ ':!1~n~fe~tações positivadas e de luta peja consagração de_demandas sociais. Ao conhecer melhor o direito, pode-se mesmo conhecer meÚ,or"ã;ociedade e os dilemas que travamos cotidianamente com nossos pares (intra, entre e supra classes sociais) por aquilo que acreditamos ser

melhor para todos. Ao conhecer melhor a sociedade, podemos Indicar mais apropriadamente qual é o papel do Estado e o que dele esperamos no O

,

-

ó mas especialmente neste caso, em

atendimento ao que precisamos nao s , termos educacionais.

Ângelo Ricardo de Souza

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CapĂ­tulo I Estado, PolĂ­tica e Sociabil idade

Marcos Ferraz

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Quando se procura iniciar um debate sobre o conceito e o papei do Estado Moderno, o senso comum e, em alguns momentos, o pensamento acadêmico delimitam um campo semântico, e por que não dizer cognitivo, que destaca a reflexão sobre um lócus privilegiado de poder e uma função gerencial, reguladora ou politica de fixação dos parâmetros de igualdade, assim como das ações para melhor promovê-Ia. Não é de se estranhar, portanto, que o Estado seja o objeto por excelência da Ciência Politica, do Direito Administrativo e de áreas de conhecimento prático no exerci cio de politicas públicas, como a Educação, a Saúde, a Economia, o Serviço Social, entre outras. Entretanto, é sempre de maneira um tanto quanto tangencial, que o Estado se apresenta no interior do debate sociológico. Ou seja, raramente o Estado é central para o pensamento do sociólogo. Talvez, porque a Sociologia se ocupe de objetos aparentemente mais nobres como as relações sociais, a ação social, as estruturas sociais, a revolução social, a divisão do trabalho, a identidade coletiva, a estratificação social, entre tantos outros. Como uma produção fundamentalmente sociológica, este texto não tem a pretensão de romper com esta tradição disciplinar. Mas, ao tentar reunir em uma mesma reflexão, Estado, sociabilidade e poJitica, se esforçará por buscar um sentido sociológico de interconexão entre estes três fenômenos na experiência cultural e mesmo de classe dos indivíduos. Estado, neste contexto, de alguma forma ainda será um lócus privilegiado de poder. Também será uma instituição capaz de agir organizadamente - seja de forma administrativa ou po~ Iítica - sobre as desigualdades que cortam determinada sociedade. Mas fundamentalmente, será uma instituição capaz de intervir sobre ' a sociabilidade, ou porque não dizer, sobre a construção dos parâmetros de solidariedade entre os indivíduos. O debate que se propõe não se iniciará pelo Estado, mas pela 1 o verbo intervir não tem aqui um significado moral de ação autoritaria. no sentido de conlrapor Estado e individuo como !arlto gosta o pensamento liberal. Com este verbo busca-se élpenas a neutralidade de caracterizar um processo em que Estado e individuo não se op6em como pólos. mas constituem partes de um lodo e se relacionam sob influênCias reciprocas.

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Eltado, Política e Sociabilidade

sociabilidade e pela solidariedade que unem diferentes indivíduos em sociedade. Entende-se sociabilidade no rastro dos escritos de Simmei>oNão há sociedade sem interações entre individuos. No entanto, os padrões destas interações, em outras palavras, sua forma, podem se desprender dos conteúdos e interesses individuais que as motivaram. É a valorização, até mesmo lúdica, da forma das interações sociais, independente do seu conteúdo, que o autor denomina sociabilidade. Ou seja, a sociabilidade é a cristalização e a valorização de padrões de interação independente do sucesso que os mesmos possam proporcionar para a conquista de interesses individuais. Por outro lado, quando se fala sobre solidariedade3, não está em jogo nenhum sentimento ou caracteristica inata do ser humano. O conceito sociológico de solidariedade distancia-se de qualquer conceito religioso ou cristão que a associa a bondade humana, como características inerentes ao indivíduo. Não se trata de um atributo morai ou uma virtude dos seres humanos. Solidariedade tem o sentido

de um complexo sistema de direitos e deveres que unem homens e mulheres de modo durável, independente de suas diferenças e individualidades especificas. Assim, se o conceito de sociabilidade remete a Simmel e a forma das interações sociais; solidariedade remete a Durkheim e a coesão de uma sociedade. Nestes termos, tanto a sociabilidade como a solidariedade são resultantes de processos sociais e históricos concretos, incorporando os conflitos, as contradições, as disputas e os consensos entre os sujeitos, sejam individuais ou coletivos. Quase desnecessário dizer que não há uma sociabilidade a-histórica que perpasse toda a humanidade. Da mesma maneira, os laços que mantém a solidariedade de um grupo social podem variar infinitamente, na dependência de estruturas sociais precisas. Em conformidade com os objetivos que esse texto se propõe, há que se perguntar, logicamente, em que termos se apresentam a sociabilidade e a solidariedade em um mundo moderno. 2 Para um debate sobre o concelto de sociabilidade ver SIMMEL, 2006. Em especial o capitulo 3, em que o autor apresenta a coqueteria e o jogo erótico como exemplos de sociabilidade. 3 Para o conceito de solidariedade ver Durkheim, 1999.

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Marcos Ferraz

Entre as diversas formas de se caracterizar a modernidade, Giddens (1991) remete a uma questão de desencaixe das relações sociais. Em sociedades modernas, as relações sociais se libertam dos contextos face to face; do aqui e do agora. Este desencaixe possibilita uma sociabilidade em termos abstratos, posto que o conteúdo das interações não necessita remeter a nenhuma experiência prévia, compartilhada entre os atores. A forma, muitas vezes quase vazia de conteúdo, garante a viabilidade das relações. Concomitantemente, a solidariedade se liberta dC!sseus aspectos puramente locais e comunais, possibilitando uma solidariedade mais ampla, seja nacional, de classe ou universal. O desencaixe das relações sociais, de Giddens, contempla tanto a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica durkheimiana, fruto da intensa divisão do trabalho social; como a substituição do valor de uso pelo valor de troca e a transformação das relações sociais em mercadoria da tradição marxista, resultado da concretização do modo de produção capitalista~. O que está em jogo é a substituição de uma sociabilidade e uma solidariedade de base comunal, em que os indivíduos dividem uma história e uma experiência compartilhada, por sociabilidades e solidariedades que se constituem sobre sistemas abstratos e, muitas vezes, mediados por estruturas altamente institucionalizadas, que possibilitam a convivência e a colaboração entre individuas estranhos entre si. Estas relações sociais desencaixadas - prossegue o autor britânico _ precisam 5

se reencaixar

,

através de sistemas institucionais, que dê estabilidade

para a ausência de conteúdo comum. É neste contexto que se faz necessário compreender duas instituições fundamentais da sociabilidade e da solidariedade moderna: o Mercado e o Estado. Para inverter título e subtitulo, pode-se dizer que, ao discutir as origens de nossa época, Polanyi (2000) não teve dúvidas em clas4 Ver Marx, 1998, 5 Para Giddens são dois os sistemas capazes de reencalxar as relações SOCiaiSmodernas As Fichas Simbólicas e os Sistemas Peritos. Ver GIDDENS, 1991. Em trabalho anterior procurei explorar os meios de comunicação de massa como sistemas de desencaixe e reencaixe de relações sociais, em um contexto de disputas políticas na esfera pública, Ver FERRAZ. 2000.

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Estado. política e Sociabilidade sificar o advento da economia de mercado como a Grande Transformação. E economia de mercado, para o autor, é um sistema auto-regulável de mercados, em termos ligeiramente mais técnicos, é uma economia dirigida pelos preçoS do mercado e nada além dos preços do mercado (POLANYI, 2000, p. 62). O que ocorre no século XIX, para o autor, é que, com a hegemonia do mercado, pela primeira vez, na história da humanidade, a economia se torna auto-suficiente. Livre, portanto, de outras amarras sociais. É evidente que qualquer sociedade, em qualquer periodo histórico, só conseguiu sobreviver tendo um amplo sistema econômico. No entanto, antes do liberalismo 6

do século XIX, todos os sistemas econômicos

estavam submetidos

a um conjunto de obrigações sociais que ligavam os individuos em comunidades. Neste sentido, a economia de mercado tornou-se uma força avassaladora que desmontou, significativamente,

as relações sociais

herdadas tanto do feudalismo, como das sociedades de corte. É este aspecto destrutivo do mercado que a obra de Marx tão bem desvenda do ponto de vista da economia política. E que polanyi coloca acentos sociais singulares. Entretanto, o aspecto destrutivo se fez acompanhar por um processO de reordenação tanto da sociabilidade, como da solidariedade. Para Durkheim, por exemplo, o mesmo mecanismo social que impulsiona um individualismo exacerbado e egoista, também ativa a valorização do indivíduo sobre o coletivo, possibilitando I) aparecimento dos direitos humanos. Em resumo, podem-se apontar ao menos, duas características revolucionárias lígadas ao mercado o rompimento com a sociabilidade tradicional e a circulação pública da~ identidades. Ao debater o assalariamento, ou seja, noS termos deste texto.

o

mercado de trabalho livre, Gorz registra o núcleo da questão que aqL se tenta salientar: 6 polanyi descreve Quatro principias básicos a ancorar dIferentes sistemas economicos' PrinciP'o <te n oomesticidade. Principia de ReciproCidade, Principio RedistributivO e Principio de Mercado. Oe.VO estes, os três primeiros são fundamentalmente princípios não economicOs, visto Que se suste "'" sobre compromissOS sociais entre os Individuos e a sociedade. por outro lado, o Pnncipio de Mer""d:.l~

é puramente econômico. visto Que regulado apenas pela oferta e procura.

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Marcos Ferraz Se os filhos de agricultores abandonaram os campos e se as mulheres reivindicam o direito de trabalhar, é porque o trabalho assalariado, por restritivo e desagradável que possa ser sob outros aspectos, liberta do encerramento numa comunidade restrita onde as relações interindividuais são relações privadas, fortemente personalizadas,

regidas

por uma relação de forças móvel, chantagens afetivas. obrigações impossíveis de formalizar (GORZ, apud FITOUSSI & ROSANVALLON. 1999, p. 117).

Gorz consegue, em um mesmo movimento, perceber o rompimento com a sociabilidade tradicional e a circulação pública das identidades. O primeiro fica evidente na fala do autor francês, pois o trabalho assalariado significa a possibilidade de liberdade frente a todos os aspectos autoritários e limitadores da sociabilidade familiar. Enquanto a sociabilidade tradicional se caracteriza pela impossibilidade de formalização e se abre para as diversas formas de chantagens afetivas - visto .que regulada fortemente pelas vontades -, o assalariamento pressupõe uma formalização que define deveres e direitos, diminuindo o conteúdo casuístico ou oportunista nas interações sociais. Mas este é o sentido mais evidente e explícito da fala de Gorz. Igualmente, ela contém um significado que não se mostra tão abertamente. A liberdade, frente ao que Gorz chamou de comunidade restrita, significa a circulação em um mundo amplo e público em que as diferenças se explicitam, causando tanto o conflito como o diálogo. As múltiplas identidades, sejam individuais ou coletivas, se tornam públicas e a construção de qualquer parâmetro de solidariedade se transforma qualitativamente.

Entre individuos culturalmente

diferen-

tes, a solidariedade se torna um desafio abstrato de construção de objetivos e interesses comuns, apesar das assimetrias culturais prévias. Da proximidade, simplesmente afetiva, se passa a construção social de projetos politicos que consolidem uma identidade que mantenha uma coletividade coesa sem, necessariamente, entre seus membros.

um passado comum

Mas o limite destas sociabilidade e solidariedade, forjadas pelo

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Estado, Política e Sociabilidade mercado, se apresenta em seu processo de mercantilização das relações sociais. A sociabilidade e a solidariedade familiar ou comunal são capazes de construir uma rede social de apoio que previne cada um de seus indivíduos contra os azares da vida cotidiana. Assim, acidentes de trabalho, invalidez, orfandade, velhice, falta de acesSO à educação são questões que o auxílio mútuo consegue, em pequenas comunidades, remediar sem colocar em colapso a reproduçãO social. A reciprocidade entre os indivíduos de um mesmo grupO familiar ou vicinal é suficiente para prover todos os vitimados pelos acidentes da vida social. A sociabilidade e a solidariedade geradas no interior do mercado, contudo, ainda que mais amplas e abstratas, não constituem o mesmo grau de reciprocidade entre os individuos. Assim, é incapaz de gerar uma rede de socorro mútuo suficiente para enfrentar os vários percalços das trajetórias individuais. É neste preciso sentido, que a questão da pobreza, ou a questão social, como diz Gastei (1998), é um fenômeno eminentemente moderno. O enfrentamento destas questões, no contexto de uma sociedade moderna, só se tornou possivel, portanto, em um nível ainda mais abstrato de construção da solidariedade. É neste ponto que o Estado Moderno se consolida como instituição capaz de regular novOS direitos e deveres. Direitos e deveres que vão além do simples contrato mercantil, transformando o Estado em mediador de solidariedades nacionais. Gonsequentemente, ainda que se possa tentar sustentar que,

\

em sua origem, o Estado, tanto absolutista como burguês, tenha se comportado como instituição exclusivamente opressora, logo, portadora dos interesses de uma única classe social. A partir dos diversoS conflitos sociais e da representaçãO política que as classes subalternas, pouco a pouco, conquistaram, ao longo dos últimos três séculos, o Estado se transformou em elemento fundamental para desmercantilizar as relações sociais. Nestes termos,.ainda que não se possa falar em um Estado antí-burguês, pode-se compreendê-lo como uma instituição não essencialmente burguesa7, e sim c1ivada de interesses. Interesses que se organizaram ao redor das diversas possibilidades 7 Para este debate entre Estado burgués e um Estado que não é mais essencialmente burgués seria necess acompanhar as discussões habermasianas sobre esfera pública burgueSa e esfera pública ario não-burguesa.

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o que fugiria dos objetivos deste texto. Ver HABERMAS.

1984.


Morem Ferraz

de constituir e distribuir um fundo público.

Nas palavras de Oliveira (1998), a constituição de um fundo público no interior do Estado, não apenas auxilia na desmercantilização das relações sociais, mas também produz um processo de reconhecimento da alteridade dos interesses em sociedade. É nestes termos que o autor, posteriormente, falará na dialética entre a privatização do público e da publicização do privado (OLIVEIRA, 1999). Mas, neste momento, basta compreender o carater plural do Estado e o reconhecimento dos diferentes interesses de classe que o institui, assim como este impacto sobre a sociabilidade que unem os individuas. [...) as condições

da regulação

contemporânea,

fundamentalmente

perpassada e estruturada pelo fundo público, diluem uma única razão de Estado, subslituindo.a

pelas razões particulares que ligam o fundo

público a cada movimento ou a cada capital. ou a cada condição especifica da reprodução social, incluindo-se ai a reprodução da força de trabalho e a sociabilidade geral (OLIVEIRA,

1998, p. 43).

Isto faz do Estado não apenas um lócus de poder, mas um espaço de disputa pela hegemonia política e pelos parâmetros da sociabilidade de uma sociedade. Entretanto, esta disputa não se trava como um simples embate de forças sociais que se enfrentam em um vazio institucional, mas de forças sociais que se enfrentam em um espaço institucional altamente organizado e racionalmente estruturadó. Como ensinou Weber (1994), enquanto instituição, o Estado se consolida como detentor do monopólio legitimo da violência e como portador de um corpo burocrático de servidores especializados. Estas características não se limitam a descrever fotograficamente a estrutura do Estado, mas revelam a dimensão da sua legitimidade, enquanto poder social. Esta legitimidade de poder burocrático, racional-legal, garante seu caráter universal e público. Logo, ainda que perpassadas por diversas disputas e interesses privados, suas decisões atingem indistintamente as diferentes classes ou grupos sociais. É somente atra31


Estado, Político e Sociabilidade vés do Estado que ações ou decisões políticas são universalizáveís. E, nesta exata medida, suas decisões universalizáveis requerem um jogo político estável e que projete confiança futura entre atores sociais tão diferentes. O processo político, no Estado moderno, adquire, assim, características bastante precisas. Segundo Poggi (1981), cinco características são fundamentais para o funcionamento do Estado moderno: civilidade, pluralidade de focos, metas irrestrítas, controvérsia e centralidade das instituições representativas" Civilidade: O exerci cio de governo sempre implica em algum controle dos meios de coerção, e como já registrado acima, no Estado Moderno é fortalecido o monopólio legítimo desta coerção. No entanto, a fantástica ampliação do aparelho de Estado torna a preocupação com os mecanismos de coerção um elemento um tanto quanto localizado e pontual em meio a todas as suas atividades. Dentre todas as funções exercidas pelo Estado Moderno, apenas as funções militar e de policia estão diretamente vinculadas ao aparato coercitivo. A maior parte das funções do executivo (administração, saúde, educação, assistência, infra-estrutura), assim como todas as atividades desempenhadas pelo legislativo, se desprendeu daquele aparato de coerção. Consequentemente,

todas as decisões fundamentais que dizem res-

peito à deliberação sobre as atividades do Estado, assim como ao seu fmanciamento, estão conectadas a amplas redes de deliberação não coercitivas. Da mesma forma, pouco a pouco, ao longo da história, as diversas oposições às lideranças políticas estabelecidas foram sendo institucionalizadas,

diminuindo, sensivelmente, tanto a repressão vio-

lenta às idéias divergentes, quanto as tentativas de tomada do poder político à força. Também questões impossíveis de serem negociadas, por se fundarem sobre idéias absolutas e totalizantes - como os conflitos religiosoS, por exemplo - foram remetidas para a esfera privada, reduzindo a tensão do espaço público. Todo este processo fez com que o exercício do poder se desmilitarizasse, tornando-se mais civil. 8 Toda a argumentação (1981).

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que se segue nos próximos parágrafos

é devedora explicita da obra de Poggi


Marcos Ferraz

Não é mera coincidência o fato dos parlamentos democráticos serem maciçamente ocupados por representantes civis, e não militares. Isto, contudo, não impede que o Estado ainda utilize da força e da violência, quando a elite política estabelecida se sinta de alguma forma ameaçada pelas camadas subalternas, principalmente em momentos de intensa mobilização popular. Pluralidade de Focos: Como instituição mediadora da sociabilidade moderna, as atividades de Estado, ainda que organizadas em um aparelho unitário, contemplam uma infinidade de focos. Do financiamento explícito da reprodução do capital, ao combate dos impactos de uma catástrofe natural, são Inumeráveis as ações empreendidas através do Estado. Também são Incontáveis os seus órgãos, cargos e níveis hierárquicos. Isto possibilita diferentes pontos de acesso ao processo decisório. Assim, setores diferentemente especializados da sociedade ocupam-se de decisões e políticas específicas de cada setor do aparelho estatal. Ainda que pertencentes a uma mesma classe social ou grupo ideológico, atores de pontos diferentes da estrutura do Estado tendem a se colocar em constante conflito. Visto que seus objetivos imediatos não são concordantes. Por exemplo, as prioridades dos Ministérios do Planejamento ou da Fazenda raramente são coincidentes com aquelas que mobilizam os Ministérios da Saúde, do Transporte ou da Educação. Da mesma maneira, os objetivos perseguidos e contemplados em nível nacional, muitas vezes se chocam com aqueles que se expressam nos níveis estaduaiS e municipais. Principalmente quando se observa o modelo federativo brasileiro. E por fim, interesses representáveis no Executivo e no Legislativo podem ser inconciliáveis, mesmo quando se olha para dentro de um único partido. Esta pluralidade promove o envolvimento de grupos sociais cada vez mais vastos no processo político. Metas Irrestritas: Se hoje o Estado se apresenta como uma instituição plural e com alto grau de civilidade, o seu nascimento é fundamentalmente marcado pela sua característica coerciva. Assim, 33


Estado, Política e Sociabilidade sua primeira forma de mediação da sociabilidade foi a repressão e a violência contra as camadas populares, em um esforço pela manutenção dos privilégios tradicionais das categorias dirigentes, A linguagem, portanto, pela qual individuos e grupos se dirigiam ao Estado Absolutista e, mesmo antes dele, ao Sistema Feudal de Governo, era o apelo aos costumes e à tradição. No Estado Moderno, a linguagem do privilégio é, paulatinamente, substituída pela linguagem do direito positivo. A universalidade do poder racional-legal é variável, ao longo do tempo, e capaz de expansão infinita. Nestes termos, o poder não é mais exercido em nome da manutenção de privilégios de setores especificos, por mais amplos que estes venham a ser. Ao contrário, o exercício do poder se orienta para alvos cada vez mais abstratos, como o bem-estar geral de um povo ou a felicidade do indivíduo. Em nóme desses alvos, metas e objetivos podem ser legitimamente

re-

visados, em função do equilíbrío político entre as classes sociais e dentro de regras previamente acordadas. Para traduzir na forma de uma expressão temporal: o poder não se legitima em nome de um passado, mas em nome do futuro. Controvérsia: Em um contexto de metas irrestritas, de pluralidade de focos e de civilidade, uma arena pública de debate se torna incontornável, assim como mecanismos de controle sobre a ação do Estado. O desdobramento lógico é que, mesmo dentro de parâmetros institucionalizados, limitados .ou regulamentados, a controvérsia não é simples concessão às vozes opositoras, mas elemento constitutivo, e não menos importante, para o regular funcionamento

do processo

polítíco do Estado Moderno. Sem o confronto de opiniões se tornaria impossível o funcionamento do aparelho de Estado, em sua complexidade atual. Centralidade

das Instituições Representativas:

Em um país

como o Brasil, no qual o papel do Executivo, muitas vezes, parece se sobrepor ao Parlamento, é quase ingênuo destacar as instituições representativas parlamentares. No entanto, enquanto a função

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Mç:lrCOS Ferraz

do Executivo é fundamentalmente prática, no sentido de realização e condução de politicas públicas definidas; ao Parlamento cabe o papel de constituir maiorias, consensos, opiniões. Ainda que se votem os projetos que o Executivo deseja, somente se vota após a construção de uma maioria política parlamentar em relação à proposta do Executivo. A centralidade do Parlamento é incontornável quando se olha sob a perspectiva do desenvolvimento do processo político. A função do Parlamento é tradicionalmente definida como legisladora e fiscalizadora das ações do Executivo. Não são menores estas funções, pois não há lei sem um consenso ou maioria parlamentar. E não há Executivo democraticamente instituído que não se movimente no interior desta legalidade, fruto do consenso parlamentar. Mas a função do Parlamento é ainda mais significativa, pois vai além de fixar os parâmetros legais em que o Executivo pode se movimentar. Ao se constituir como um espaço institucional da fala, da palavra, o Parlamento não apenas dá voz para a pluralidade de demandas que ecoa da sociedade, como as processa, construindo consensos entre demandas díspares. Como membro de um partido, de uma maioria, de um bloco ou de uma oposição, espera-se de um parlamentar que este não apenas expresse suas opiniões e princípios - ou mesmo as idéias de sua base política -, mas que seja capaz de negociá-Ias no interior das idéias mais amplas e comuns do coletivo que ele integra. "O parlamento é central no sistema porque não transmite simplesmente impulsos políticos originados alhures; ele produz impulsos politicos na medida em que processa as orientações do eleitorado que representa" (POGGI, 1981, p. 121). Os resultados desta ação não são simples negociatas ou conchavos, como adora salientar o jornalismo político brasileiro. Ao contrário, esta ação projeta consensos que transbordam do Parlamento para bases sociais organizadas ao redor dos parlamentares, diminuindo a violência dos conflitos sociais e dando estabilidade para uma sociabilidade ampla, assim como para as ativídades propriamente de governo, alojadas no Executivo. Por fim, o parlamento tanto realimen35


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Estado, Político e Sociabilidade ta a opinião pública, quando se coloca na posição de crítico do Executivo, como

é fonte de formação de novas lideranças capazes tanto

de formular soluções inovadoras para os problemas sociais, como de assumir responsabilidades públicas. Diante destas características do processo politico, torna-se evidente que o Estado não apenas representa um lócus de poder ou um agente de governança de politicas públicas. Ao contrário, é central para a sociabilidade e a solidariedade moderna, na exata medida em que é a instituição capaz de mediar o processo, que Oliveira (1999) chamou, de privatização do público e publicização do privado. Ainda que toda demanda atendida pelo Estado possa atingir determinados grupos específicos - e neste preciso sentido é sempre uma privatização

do público -, a formação de um consenso para atendê-Ia

implica em uma publicização do privado.

Esta publicização do priva-

do significa que os interesses privados, em um regime democrático, não podem e não devem ser atendidos clandestinamente. E deve se compreender que eles se tornam clandestinos tanto quando não se mostram, como quando se plasmam em um suposto interesse geral ou nacional, que interdita a circulação das diferenças. Talvez, um exemplo possa tornar mais compreensível o racio-

cínio de Oliveira. Um problema que desafia a sociedade e o Estado brasileiro hoje é a universalização da educação infantil. Em principio, não há brasileiro ou brasileira que se oponha á resolução do problema. No entanto, quanto do fundo público é necessário para enfrentar tal questão? Quais são as outras políticas públicas que devem ser abandonadas ou negligenciadas para que o aporte financeiro necessário esteja disponivel? Quais são os grupos sociais que terão suas demandas adiadas ou não atendidas? O caráter universal de tal política, caso fosse plenamente executada, é literal, visto que todas as crianças abaixo de cinco anos teriam sua vaga em um centro de educação infantil. Portanto, todo brasileiro ou brasileira menor de cinco anos seria diretamente beneficiado por tal politica, assim como todo brasileiro ou brasileira adulto 36


Marcos Ferraz

que tenha ou pretenda ter filhos. Resta o seguinte problema. Tal política atende interesses de brasileiros ou brasileiras adultos que não têm, nem pretendem ter filhos? Diretamente, não. Isto significa que parte do fundo público, composto com os impostos e taxas, também pagos por brasileiros e brasileiras sem filhos, não serão utilizados diretamente para poJiticas públicas que os beneficiem. Sob esta perspectiva, todas as políticas públicas, que não atendam indistinta e diretamente todos os brasileiros e brasileiras (desnecessário dizer que estas políticas são quase inexistentes), são formas de privatizar o público. Privatização do público, portanto, não se resume a venda de empresas estatais ou a terceirização dos serviços públicos. Toda política pública, financiada com o fundo público _ ou seja, fruto da contribuição da riqueza gerada por toda a população-, que atende um segmento especifico da população, é uma forma de privatização do público. E isto independe da justiça, da legitimidade ou do alcance da política em questão. Entretanto, em um Estado democrático, em que o processo político seja pautado pela civilidade, pluralidade de focos, metas irrestritas, controvérsia e central idade das instituições representativas, tal privatizaçao do público não se realizará sem uma relação dialética com uma concomitante publicização do privado. Exposta, principalmente, à civilidade, à controvérsia e à centralidade das instituições representativas; a privatização do público só é passível de ser operada na proporção em que os interesses privados são explicitados, confrontados e debatidos. Assim, em regimes democráticos, para se privatizar o público - e isto é sempre parte do processo politico _ é necessário publicizar o privado e, através de amplos consensos sociais, deliberar sobre como, quando e sob qual hierarquia de importância, os diversos interesses privados serão atendidos. Se o vigor de um sistema democrático pode ser verificado pela sua capacidade de privatizar o público e publicizar o privado, resta compreender através de qual linguagem tal processo é conduzido. Não há outra linguagem no Estado Moderno que não seja a racionallegal. E através do direito que se processa a divisão legitima entre as 37


Estado, Política e Sociabilidade

partes em sociedade. Mas ao se tratar de uma divisão entre partes, propriamente de uma redistribuição, não é nos direitos civis e nos direitos políticos que se encontra a condução deste processo. A estes direitos cabem salvaguardar os direitos do individuo, enquanto uma mônada. É nos direitos sociais, ou seja, no que cabe a cada coletividade, que se encontra a linguagem pela qual se processa a privatização do público e a publicização do privado. Ao se falar em direito ao trabalho, à saúde, ao salário igual por trabalho igual, ao repouso, ao lazer, à previdência social em caso de velhice, doença ou desemprego, à educação e em tantos outros, está se processando politicamente a distribuição pública do fundo público (o pleonasmo ê intencional), e não instituindo formas de privilégios como propagandeiam alguns arautos da lei da selva. Os direitos sociais, como Ewald (1986) identificou ao estudar a lei sobre acidentes de trabalho na França do século XIX, são a tradução pela qual uma sociedade reconhece o seu dever para com os azares individuais de cada um de seus membros. Assim se estabelece os parâmetros do justo e do injusto, para a distribuição das partes. É nesta mesma perspectiva que Telles (1999) compreende os direitos sociais. Para além das garantias formais inscritas na lei, os direitos estruturam uma linguagem pública que baliza os critérios pelos quais os dramas da existéncia são problematizados

em suas exigéncias de equidade

e justiça. E isso significa um certo modo de tipificar a ordem de suas causalidades e definir as responsabilidades

envolvidas, de figurar dife-

renças e desigualdades, e de conceber a ordem das equivaléncias que os principias de igualdade e de justiça supõem, porém como problema irredutível á equação juridica da lei, pois pertinente ao terreno conflituoso e problemático da vida social (TELLES, 1999, p. 178).

Esta formulação exposta por Telles significa que as experiências individuais de azares cotidianos são traduzíveis, pelos direitos sociais, em uma linguagem pública que tem significado político para todos os demais grupos sociais. É a passagem do micro ao macro, da 38


Marco~ Ferraz

ausência de médico no posto de saude do meu bairro ao orçamento municipal votado, todo final de ano, na Câmara de Vereadores. Faz esta tradução porque institui o consenso ao redor de quais demandas são justas ou injustas. Concomitantemente, possibilita àqueles que não fazem parte da divisão pré-estabelecida, reivindicar suas partes. Nas palavras de Ranciére (1996), os direitos sociais são a linguagem para a produção do dissenso, instaurando a política. Se ao Estado, através dos direitos sociais e do debate no parlamento, cabe a produção do consenso que confere equilíbrio à distribuição entre as partes; é pela produção do dissenso, que a linguagem dos mesmos direitos sociais confere aos novos atores, que a política se instaura, reabrindo sempre o jogo das metas irrestritas. É por isso que Lefort (1987) diferencia uma sociedade democrática e o totalitarismo, justamente pela presença de um espaço publico atravessado pela consciência do direito a ter direitos. Não é por estar inscrito na Lei que um direito se efetiva. Mas por estar na Lei, um direito abre o universo da reivindicação política. É sob este prisma, de uma cultura do direito a ter direitos, que se faz necessário inquirir a realidade da sociedade brasileira. Sociedade complexa e polissêmica, em que a negação do dissenso parece ser a regra, em planos tão diferentes, como a sociabilidade, o mercado de trabalho ou a institucionalidade. Sociedade complexa e injusta, que, para Paoli e Telles, [...) garante os direitos polfticos democráticos, mas não consegue fazer vigorar a lei, os direitos civis e a justiça no conjunto heterogêneo da vida social, subtraídos que são por circuitos paralelos de poder que obliteram a dímensão publica da cidadania, repõem a violência e o arbitrio na esfera das relações privadas, de classe, gênero e etnia [...) (PAOLl & TELLES, 2000, pp. 103-104).

Sociologicamente, é possível procurar por estes circuitos paralelos de poder, que interrompem o processo de efetivação dos direitos sociais no Brasil, no minimo, nas três esferas anteriormente suge39


Estado, Política e Sociabilidade ridas: a esfera institucional, a esfera da sociabilidade e a esfera do mercado de trabalho. Francisco de Oliveira (1999) apresenta, em um rápido cálculo matemático, que, entre 1930 e 1990, além da ditadura de Vargas e da ditadura militar de 1964, o Brasil viveu uma sequência de golpes e tentativas fracassadas de golpes, que perfaz uma média de um atentado á democracia, a cada três anos. Esta rápida conta já demonstra, quase que automaticamente, o circuito de poder autoritário que interrompe, continuamente, a validade dos direitos no plano institucional brasileiro. Mas o cálculo de Oliveira, por questões inerentes ao seu próprio debate, contempla apenas o Brasil industrializado. Pode-se recuar ao início da história nacional e, ainda assim, a democracia institucionalizada será uma exceção. Os periodos colonial e imperial, nem com muita boa vontade, poderiam ser classificados como democráticos. Na Primeira República, ~em a metade dos presidentes conseguiram concluir seus mandatos integralmente. Entre aqueles que o fizeram, muitos tiveram que apelar para o estado de sítio. À Primeira República se segue a Ditadura de Vargas. E no curto período democrático, que vai de 1946 a 1964, tem que se contabilizar a clandestinidade do Partído Comunista Brasileiro em 1947 (o que demonstra o limite da democracia sob a Presidência de Eurico Gaspar Dutra); o suicidio de Vargas em 1954 (motivado pela continua possibilidade de golpe); a tentativa de impedir a posse de Juscelino (que após assumir viria, ainda em seL) primeiro ano de governo, decretar a prisão domiciliar do general Juarez Távora, adversário derrotado nas eleições de 1955); a renúncia de Jânio Quadros em 1961; a instauração do parlamentarismo para impedir que o poder chegasse ás mãos de João Goulart, no mesmo ano; e, por fim, o golpe, propriamente dito, em 1964. Esta interrupção contínua da institucionalidade democrática é a obliteração do processo de publicização do privado, restando apenas a privatização do público, que, solitariamente, é sempre o fim do dissenso e o sepultamento da política. Um Estado, no qual o espaço

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Marcos Ferraz

para a controvérsia é reduzido, ou mesmo inexistente em alguns momentos, realimenta uma sodabilldade autoritária, e o circuito de poderes paralelos a interromper a constituição de uma cidadania pública é continuamente intensificado. Nestes termos, o papel do Estado, no processo de desmercantilização das relações sociais, não se efetiva. Mas esta continua interrupção na institucionalidade brasileira não é um mal intrinseco a estrutura de Estado, como uma sociologia bipolar e vulgar, que separa completamente Estado e mercado, poderia sugerir. Não se trata de separar o Estado, como pólo de todos os nossos vícios (o patrimoniaJismo,

° compadrio e a corrupção) e o

mercado como o centro das virtudes (a modernidade, a meritocracia, a concorrência). Definitivamente, não se trata de contrapor o mito da brasilidade malemolente e o mito paulista do motor da nação9

Esta

persistente e contínua interrupção se encontra na incapacidade de articulação entre Estado e sociedade (principalmente, deve ser considerada a elite politica desta sociedade) para aceitar e incorporar novos atores. falas e demandas sociais. Prado Jr. 10 (2004) interpretou esta dificuldade pela coexistência entre uma realidade colonial contemporânea ao capitalismo mercantil, portanto, participe de uma economia de mercado, com um modo de produção que repousava sobre o trabalho escravo _ a negação do mercado de trabalho. Florestan Fernandes (1987), por seu turno, sustentou a impossibilidade da revolução burguesa em terras brasileiras, visto que a precoce aliança entre burguesia ascendente e oligarquia decadente produziu uma revolução econômica, sem a contrapartida da revolução política que propunha o liberalismo clássico. Nesta chave interpretativa, Estado e mercado colaboram, igualmente, para a consolidação de uma individualidade, sem civilidade. Mas os clássicos da sociologia nacional delegaram outras chaves, igualmente eficazes, para se compreender a atávica dificuldade 9 Para uma leitura sobre os impasses brasileiros. hoje, sob uma perspectiva brasileiro e o mito paulista, ver o excelente trabaiho de SOUZA, 2009,

de confronto entre o mito

10 Esta maneira de se tomar o pensamento de Caio Prado Jr. Florestan Fernandes. Sérgio Buarque de Holanda, ainda que revlsitando os escritos origmais dos mesmos da leitura que Francisco de Oliveira (1999) faz destes clássicos.

Gilberto Freyre e

é devedora djreta

41


Estado, Política e Sociabilidade em reconhecer a legitimidade do dissenso politico. No plano da sociabilidade privada, Gilberto Freyre (2006) e Sérgio Buarque de Holanda (2006) evidenciam práticas sociais que teimam em não reconhecer a alteridade. Paralelamente a valorização da miscigenação como a grande virtude nacional, Freyre é contundente ao interpretar a prática de anulação do outro, contida nas relações escravocratas. Da proibição de cultos africanos á banalidade da violência sexual, passando por todos os métodos de punição do corpo que reprimiam qualquer forma de discordância; a cultura do "Sabe com que está falando?" se estabeleceu como regra de toda autoridade. No mesmo ritmo, a expertise da proximidade do homem cordial (HOLANDA, 2006) é a negação de qualquer formalidade que possa revelar a universalidade dos direitos. portanto, a informalidade, o compadrio, o patrimonialismo - ou mesmo, o tão famosO jeitinho brasileiro _ operam, sob o registro da sempre valorizada cordialidade, obscurecendo os limites entre vontades pessoais e formas de dominação privada, sem qualquer mediação pública, sujeitas, assim, a todas as chantagens e coerções. Por fim, resta a herança de quatro séculos de escravidão que moldou um mercado de trabalho, no qual, o principio de subordinação _ essência do direito do trabalho (SUPIOT, 1994) - é sistematicamente travestido de servidão, e a burla do contrato de trabalho torna-se recorrente, tanto pela parte patronal, como pelo trabalhador (CARDOSO, 2003). Esta reunião - de uma d~mocracia politica tantas vezes interrompida, da quase impossibilidade de uma revolução burgueSa, da cordialidade que nega, sistematicamente, a alteridade e de um mercado de trabalho, em que ainda sobrevivem algumas das piores práticas do passado escravocrata - explicita o tamanho do desafio político e social que o pais enfrenta, desde o seu retorno ao regime democrático, há cerca de duas décadas e meia. Mas estas duas décadas e meia trouxeram

algum alento a

tão maltratada idéia de cidadania noS trópicos, A modernização mercado capitalista sem a sua contrapartida

42

do

clássica da revolução


E

Marcos Ferraz

burguesa encontrou seus limites de mover a economia, sem produzir inclusão políticall , em fins do regime ditatorial. As grandes greves de 1978, 1979 e 1980 - as quais Sader (1988) descreveu como os novos personagens que entravam em cena - significaram a instalação do dissenso, na exata medida em que revelaram novos personagens e novas pautas, no tabuleiro político nacional. Trabalhadores urbanos, através de lideranças e instituições sindicais renovadas, juntamente com infinitos outros movimentos sociais que tensionaram toda a década de 1980 (Movimento Sanitarista, Movimento contra a Carestia, Fórum em Defesa da Escola Publica, Associações de Bairros, etc ...), estabeleceram bases para uma Constituição mais democrática, que passou a fornecer diversos espaços institucionais que não negam, a priori, o dissenso. Desta forma, os anos de 1970 e 1980 deixaram, ao menos, duas contribuições como seu legado para a democracia do Brasil do século XXI: 1) a independência de atores sociais novos, com demandas novas e capazes de formalizarem publicamente estas demandas, escapando da teia do homem cordial, sempre avessa a alteridade; e 2) um quadro institucional mais permeável ao reconhecimento e tratamento destas demandas, conferindo estabilidade ao conflito democrático de representação de interesses. A vitalidade do movimento social brasileiro, nas respectivas décadas, amplia a civilidade e a pluralidade de focos do processo político nacional. Par e passo, a nova institucionalidade, que emana da Constituição de 1988, possibilita equilíbrio ao jogo de metas irrestritas, assim como viabiliza o exercício da controvérsia nas instituições representativas, sem grandes sobressaltos. Entretanto, se sob a ótica do poder de fala dos movimentos sociais e da estruturação de um espaço formal, em que esta fala possa reverberar, a abertura dos anos de 1990, no Brasil, foi promissora, pois era o fruto das conquistas das mobilizações das décadas anterio-

11 Sob diferentes óticas, varlos autores registram a relação entre a consolidação do parque industrial automotivo e o desenvolvimento das condições sociológicas necessarias para o amadurecimento de um movimento sindical vigoroso e massivo. Ver ALMEIDA. 1975; HUMPHREY, 1982; OLIVEIRA. 2005; RODRIGUES, 1970.

43


Estado, Política e Sociabilidade

res; a desestruturação das relações de trabalho e a desmontagem do aparelho de Estado foram o lado perverso da última década do século XX. Os anos de 1990 coincidiram com o ápice de dois fenõmenos que permitem, a Oliveira (1999), caracterizar o neoliberalismo, em terras brasileiras, como um totalitarismo politico. Estes dois fenômenos, seguindo o autor supracitado, são a perda de central idade do trabalho e um processo de "intensa subjetivação da acumulação do capital, [...] que expressa a privatização do público, ou, ideologicamente, uma experiência subjetiva de desnecessidade, aparente, do público" (OLIVEIRA, 1999, p. 57). Não cabe aqui, em função dos interesses que norteiam o texto e, principalmente, do espaço reservado ao mesmo, adentrar ao debate sobre a perda de centralidade do trabalho".

Basta lembrar que

a formalização das relações de trabalho é base, no ocidente, para o desenvolvimento dos direitos sociais e de tudo que os mesmos significam no processo politico democrático. Logo, o significado sociológico da perda desta centralidade é a fragilização dos espaços da politica13. Mas, se faz necessário dedicar maior atenção ao segundo fenômeno registrado por Oliveira: a experiência subjetiva de desnecessidade, aparente, do público. Como foi argumentado até aqui, o Estado Moderno, através do fundo público (OLIVEIRA, 1998), é mediador da sociabilidade, por atuar desmercantilizando

as relações sociais e

promovendo o reconhecimento da alteridade. Neste sentido, o Estado do B~m-Estar transformou-se no modelo melhor acabado deste processo, ainda que imperfeito e insuficiente. O problema é que, apesar de ser fruto de um conflito politico - porque não dizer, um conflito de classe - que se materializou em direitos sociais, a longevidade do Estado do Bem-Estar"

produziu, nas últimas décadas, o processo de

12 A referência fundamental para o início deste debate é OFFE, 1989; mas o escopo da discussão é bem mais amplo, lendo enfoques sociológicos, econômicos e politícos diversos. Sobre este assunto, sob diferentes abordagens teóricas, pode.se, além de OFFE, consultar SOYER, 1990; CASTEL. 1998: FERRAZ, 2011: FITOUSSI & ROSANVAllON. 1999: GORZ, 1987; HABERMAS, 1987: MARKERT. 2002: SilVA, 2004. SUPIOT, 1994 e TEllES, 2001. 13 Para um debate sobre o significado politico da perda de centralidade do trabalho nos conflitos trabalhistas ao redor dos acordos coletivos, ver FERRAZ, 2006. 14 Sobre o Estado de Bem-Estar ver o já citado OLIVEIRA, 1998; além de FlORI, 1997 e ESPINGANOERSEN,1991.

44


Marco~ Ferraz

sua própria naturalização. Esta naturalização se efetiva na proporção inversa em que o conflito histórico, que deu origem a determinados direitos, se distancia no tempo. Ou seja, o fruto da conquista coletiva perde a historicidade de luta de uma classe ou grupo social e se apresenta como privilégio ou direito subjetivo, sendo, apenas, individualmente percebido. Assim, o caráter, muitas vezes, administrativo do exercício dos direitos, os descolam da base material do conflito e passam a ser fontes de percepção de uma desnecessidade do publico. Mas não é apenas a relação individualizada com os direitos que sugerem, ideologicamente, a aparente desnecessidade do público. Oliveira chama de experiência subjetiva de desnecessidade, aparente, do público, também, ao movimento que leva o indivíduo a se auto-retratar como responsável pela riqueza do Estado, sem tocar no papel central do Estado no processo de reprodução social. Talvez seja melhor dar a palavra ao próprio Oliveira: A privatização

do público é uma falsa consciência

de desnecessida-

de do público. Ela se objetiva pela chamada falência do Estado, pejo mecanismo

da dívida pública interna, onde as formas aparentes são

as de que o privado. as burguesias emprestam ao Estado: logo. o Estado, nessa aparência, somente se sustenta como uma extensão do privado. O processo real é o inverso: a riqueza pública. em forma de fundo, sustenta a reprodulibilidade

do valor da riqueza. do capital pri-

vado. Esta é a forma moderna de sustentaçãO" da crise do capital, pois anteriormente,

como nos mostrou a Grande Depressão de trinta, assim

como todas as crises anteriores, o capital simplesmente se desvaloriza (OLIVEIRA,

1999

p. 68)

E O autor não se detém nesta esfera da relação entre indivíduo e Estado. As experiências subjetivas, das diversas camadas da burguesia nacional, produzem uma sociabilidade cotidiana cada vez mais privatizada, que acaba por reforçar o fenômeno. Com exemplos esta afirmação pode ficar mais compreensível. Os filhos e jovens da burguesia brasileira crescem, hoje, no interior de condomínios fecha45


Estado. Política e Sociabilidade

dos, onde apenas se relacionam com membros da sua própria classe. Ao atingirem a idade escolar, escolas privadas, que não permitem a presença de nenhuma alteridade social, os acolhem e uma nova socialização é feita, novamente no interior da própria classe. Seu lazer e práticas de consumo são filtrados por padrões de mercado que segmentam os diversos shoppings e, mais uma vez, inibem o contato inter-classes.

O resultado é que, quando adulto, sua relação com o

Estado só pode se materializar na visão de uma grande empresa. Portanto, extensão do seu próprio escritório. Ou seja, sob olhos privatizantes, porque alheios a alteridade, o Estado se transforma em um espaço puramente técnico e administrativo. Se o Estado não é puramente o lócus do poder, tampouco é apenas um aparelho gerencial, em que qualquer conflito politico, seria a prova de seu atraso e ineficiência. Talvez por isso, por este olhar de pouca afeição a alteridade, a sociologia brasileira tenha gasto tantas linhas para substituir o conceito de burocracia, pelo conceito de tecnocracia15, nos estudos sobre o Estado brasileiro. Se em Weber a burocracia é fundamentalmente um conceito para explicar a legitimidade da dominação, logo é de poder e de politica que se trata; o conceito de tecnocracia esvazia o debate sobre a dominação legal entre classes e o transforma em uma discussão sobre as hierarquias técnicas no interior do aparelho de Estado. Sob todas estas facetas, a falsa impressão de desnecessidade do público é a forma mais contemporânea de privatização do público, sem a consequente possibilidade de publicização do privado. É a experiência privada do mundo, sem vislumbrar a alteridade. É a experiência privada do mundo que sepulta a fala, o dissenso e a politica. Com estas questões, torna-se possível colocar ponto final neste texto. Mas também há a possibilidade de se colocar alguns pontos de interrogação. Como pensar, hoje, no Brasil, o acesso aos direitos sociais, como saúde, educação, previdência, trabalho, lazer e cultura, em uma realidade repleta de virtuosidades como instituições democráticas re15 Sobre tecnocracia ver PEREIRA, 1972; e PEREIRA & MOTTA, 1980.

46


Marcos Ferraz

lativamente sólidas, setores organizados da sociedade capazes de exercer de modo contínuo a representação de interesses, espaços públicos propícios para o exercicio da pluralidade de focos e da contfO\Je.rS\a',mas ao mesmo 'lem"Çlo, em uma rea\\dade

\~al'\'3."Çlassada"Çlm

tradições que rejeitam a alteridade, como o golpismo político, a cordialidade e a escravidão, assim como as novas formas de interditar o debate público, através de processos contemporâneos de experiências subjetivas de desnecessidade do público? Em outras palavras, e para fazer uma questão mais direta e menos repleta de vírgulas e pontos e vírgulas: Como privatizar o público e publicizar o privado no atual estágio das relações politicas e sociais brasileiras?

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patriar-

47


Capítulo II Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização •

Rose Meri Trojan

51


Após duas décadas da Conferência Mundial de Educação para Todos16, e de um significativo percurso do atual processo de globalização, a análise das políticas educacionais não podem ignorar as influências e os impactos produzidos no âmbito da educação. Nessa direção, muitos estudos têm sido apresentados17, com o objetivo de analisar as reformas empreendidas. Entre os quais, destaca-se Casassus, que apresentou um primeiro balanço, após uma década das reformas ocorridas na América Latina, indicando que: As mudanças ocorridas são importantes e serviram para mostrar a complexidade com que ocorrem as mudanças da educação. Depois de dez anos, as mudanças também foram assimiladas pela população e parecem naturais. Por isso, é interessante destacar o dinamismo do setor e recordar que tem sido o setor da educação que tem operado como ponta-de-lança da reforma do Estado. (CASASSUS, 2001, p. 28)

Portanto, tal tarefa ainda se faz necessária, especialmente, para dar continuidade ao processo de avaliação dessa dinâmica nos países da América Latina, considerando sua condição de maior dependência dos organismos multilaterais, que definem metas e financiam projetos para levá-Ias a cabo, pois: "A formulação das políticas educativas, particularmente nos paises da periferia (e da semiperiferia) do sistema mundial, começou a depender, cada vez mais, da legitimação e da assistência técnica das organizações internacionais" (TEODORO, 2008, p. 21). Essa dependência das organizações internacionais está associada ao processo de globalização, que efetivou ajustes no modelo capitalista de produção, distribuição e consumo, Tais ajustes podem ser percebidos em mudanças de caráter econômico e político em todos os países do mundo, com ênfase na reforma do Estado, pois: 16 A Conferencia foi organizada pela UNESCO em Jontiem, no ano de 1990, na qual os paises sigo natários firmaram um acordo para expandir significativamente as oportunidades educacionais para crianças, jovens e adultos até 2015, (UNESCD. 2008) 17 Ver, por exemplo, os trabalhos organizados por Nora Krawczyk, Maria Malta Campos e Sergio Haddad (2000). Nora Krawc.zyk e Luiz Eduardo Wanderley (2003), Dalila Andrade Oliveira (2003), Antônio Cabral Nela [et ali], Anl6nio Teodoro (2008) e Nora Krawc.zyk e Vera Lucia Vieira (2008), entre outros,

53


Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização

Para garantir a implementação, macroeconômicas

no ãmbito internacional,

e de desenvolvimento

de politicas

social coerentes com esses

novos parãmetros, com uma orientação padronizada

e global a todos

os palses (...) organismos internacionais de desenvolvimento

(...) ela-

boraram e divulgaram as diretrizes gerais e orientadoras das Reformas de Estado, em especial, do setor educacional, o que é perceptível por meio de seus documentos oficiais (SOUZA, 2002, p.89-90).

Entre os principais objetivos proclamados para essa reforma constam a melhoria da eficácia da atividade administrativa, a melhoria da qualidade na prestação dos serviços públicos, o aumento da produtividade na administração do Estado e, especialmente, a redução dos gastos públicos, cujos principais instrumentos utilizados foram a privatização e a descentralização (SOUZA, 2002). Na educação, a reforma do estado e a redução dos gastos públicos causaram impactos na gestão do sistema na maioria dos paises latino-americanos, destacando-se a municipalização da educação obrigatória, mudanças no modelo de gestão e a instituição de sistemas nacionais de avaliação. Nessa direção, na Conferência Mundial de 1990, foi firmado pelos paises signatários o chamado EPT _ Marco de Ação de Educação para Todos, reafirmado em Dacar, no ano 2000, quando novamente se reuniram para avaliar os primeiros resultados do acordo firmado. A avaliação de Casassus sobre as reformas educacionais realizadas na América Latina destaca três objetivos da politica no nivel regional: o reposicionamento da educação no quadro das estratégias de desenvolvimento como uma politica prioritária, cujo instrumento principal foi o financiamento; a geração de nova etapa de desenvolvimento educacional impulsionada por uma nova gestão apoiada na reestruturação do papel do Estado; e a melhoria da qualidade e da eqüidade na educação (CASASSUS, 2001). Como forma de dar continuidade a essa avaliação, propõemse analisar, nesse artigo, as políticas de financiamento e de acesso 54


Rose Meri Trojon

à educaçào, a partir dos dados disponibilizados pela UNESCO, BIRD e 810; a situação do processo de descentralização da gestão educacional e a melhoria dos niveis de qualidade da educação, balizados pelos objetivos da ETp18 , avaliados, estatisticamente, no último ReJatório de Monitoramento Global da UNESCO (2008). Cabe destacar que "a agenda globalmente estruturada faz-se sobretudo tendo como ponto nevrãlgico os grandes projetos estatisticos internacionais", nos quais a questão determinante consiste na definição dos indicadores (TEODORO, 2008, P. 27). Nessa analise, para venficar as mudanças ocorridas, adota-se uma metodologia de estudos comparados, qual seja: analisar os efeitos desse acordo e das orientações decorrentes, considerando o movimento global em direção a uma homogeneização - que se realiza de acordo com as especificidades de cada contexto nacional e regional_ sem, com isso, estabelecer uma análise classificatória em qualquer direção. Uma análise mais profunda exige considerar a especificidade histórica de cada pais, ou seja: Una especificidad histórica es lo que resulta de una articulación de múltiples dimensiones en un momento y en un espacio, lo que supone más que cálculos econométricos, algo más que matrices. (. ) Una serie de relaciones que hacen la realidad. la realidad es asi. No querer entenderIa

y querer lrabajar con supuestos de simplíficaciôn para

resolver fácil mente el problema, lógica dei Banco Mundial. Que nos ha nevado a falsos disefios, a crearnos realidades ficticias, creyendo que son reales, a suponer que existen sujetos cuando no existen sujetos con determinadas fuerzas, y a tomar decisiones sobre esas bases de orden politico lJeva aI fracaso (ZEMElMAN, 2003, p. 97).

Assim, não se pretende com esse estudo propor encaminha_ mentos para atingir as metas de Oacar ou soluções para resolver os problemas enfrentados pelos países latino-americanos, mas, tão somente indicar tendências em Curso.

18(1990), EPT Educaç~o objetivos acordados pelos paises signatános da UNESCO. em Jomliem ratificados para em lodos: Dacar (2000).

55

--


Políticos Educocionois no América Lotino e os Impoctos do Globolízocão

Políticas de Financiamento e Aportes Multilaterais

I •I

o financiamento

é o principal indicador

do esforço de

cada governo nacional para ampliar a cobertura e a qualidade da educação. Por outro lado, os aportes das agências multilaterais revelam não só o esforço de cada país, mas, também, as prioridades estabelecidas pelas agências para facilitar o cumprimento da agenda global fixada pelos acordos internacionais. Entre os países da região latino-americana, com dados disponíveis, Cuba é o país que apresenta os maiores indices percentuais de gasto público em PNB e o Paraguai, os menores. Porém, os relatórios da UNESCO pesquisados não discriminam o valor do custo unitário ou total investido por esses paises, o que não permite comparação, pois, esse valor está condicionado por diversos fatores, entre os quais os limites da economia de cada país e a posição da educação no conjunto das prioridades estabelecidas. Além disso, é importante destacar, desde logo, que a análise que se pode fazer - tendo em vista a América Latina _ não pode ser conclusiva, dado que apenas alguns países da região figuram no relatório e nem todos os dados daqueles que são apresentados estão completos - como se pode verificar, de modo geral, em todos os quadros e tabelas disponíveis. O caso do Uruguai, por exemplo, que é o que investe os menores percentuais no período, entre 2,29% e 3,3% do PNB, não indica os valores de 1999 e 2004/05.

56


Rose Meri Trojan Tabelo 1:CASTO PÚBLICO

EM EDUCAÇÃO

Total de gastos publicas em educação em % do PNB (produto nacional bruto)

Pais

1980

1990

1995/96

1998

1999

2002

2004/05

Argentina

2,67

1,12

3,50

4,1

4,6

4,3

4,0

Bolívia

4,42

5,39

5,58

5,6

.

6,5

.

Brasil

3,60

4,55'

5,55

5,3

4'

4'

4,5

Chile

4.63

2,67

3,11

38

4,0

43

3,8

Colómbia

2,38

2,61

4,43

4,0

4,5

5,0

Cuba

7,20

6,55

.

5,4

68

.

8,7

.

MélCico

4,73

3,73

4,87

4,3

4,5

5,4

5,5

Panamá

4,90

4,98

.

5,3

.

1,51

1,12

3,94

45

. .

4,6

Paraguai

44

.

Peru

3,09

.

2,94

3,3

3,5

31

35

Uruguai

2,29

3,08

3,33

2,6

.

2,6

.

Fonte:

198011996 - Global

Education

Data Base e UNESCO (In: CASASSUS,

Relatório

de Monitoramento

Global

2001); 1998/2005_

UNESCO (2006 e 2008); 1989

E

possível perceber um aumento significativo nos gastos públicos em quase todos os países (indicados na tabela 1) a partir da década de 1990, demonstrando

uma valorização da educação, pos-

sivelmente decorrente dos acordos internacionais firmados a partir do marco de ação da Educação para Todos, da UNESCO, Porém, ao analisar todo o percurso histórico de 1998 a 2005, pode-se observar que os gastos não apresentam grande variação e, menos ainda, um aumento constante. De um modo geral, confirma-se a tendência, observada por Casassus (2001), de destinação um percentual similar do PNB, em torno dos 4%. Tomando o Brasil como exemplo, percebese que houve um aumento significativo de 1980 (3,6%) para 1990 (4,55%), 1995 (5,55%) e 1998 (5,3%); mas, dai em diante, o percentual se reduziu e se mantém entre 4,4 e 4,5%. Essa tendência, de investimento em torno dos 4% do PNB, pode ser verificada de um modo geral em todos os países da região, indicando uma possível adesão ao ponto de vista do Banco Mundial, que entende que já se investe o suficiente em educação e que o problema é que: "O gasto público em 57


• Políticas Educacionais

na América

Latina e os Impactos da Globalização

educação costuma ser ineficiente e inequitativo" (BANCO MUNDIAL, 1995). Bolívia, Colômbia, Cuba e México - entre os paises citados _ são as exceções, que mantém um processo de aumento progressivo dos gastos. Mas, o problema desse tipo de análise comparativa é não levar em consideração as diferenças de cada contexto. Se compararmos, de modo linear, Brasil e Argentina investem em torno de 4% do PNB, mas, ao analisar o valor unitário investido no ciclo inicial do ensino fundamental, percebe-se uma diferença significativa. Nessa mesma linha de entendimento, o Chile apresenta um valor superior ao brasileiro, apesar de investir um percentual menor, 3,8% em 1998 e 2005. Tabela:z,

Custo-aluno

GASTO PÚBLICO

EM EDUCAÇÃO

do ciclo inicial do ensino fundamental

em PPC (valor em U$)

Pais

1998

1999

2002

2004105

Argentina

551

1594

1173

1498

Brasil

-

855

663

1071

Chile

864

1026

1452

1421

906

1478 1442

Colõmbia México

1011

1054

1252

Peru

136

355

134

Fonte: Relatório de Monitoramento

Global-

403 UNESCO (2006 e 2008)

Ainda assim, não se devem tirar conclusões precipitadas, pois, uma análise mais consistente deveria considerar, em primeiro lugar, outros dados de natureza quantitativa, tais como o número total de matrículas, o valor total dos gastos e em cada nível de ensino. Em segundo lugar, considerar também as questões de ordem política e cultural que condicionam a definição das políticas: as correlações de poder em disputa, a relação entre oferta pública e privada de ensino,

,

o valor atribuído à educação pela população em questão, entre outros fatores. Outro problema apresentado pelos relatóríos da UNESCO refere-se à utilização do PNB (produto nacional bruto) e não do PIB 58


Rose Mer; Trojan

(produto interno bruto), que são tomados, ás vezes, como sinônimos. Considerando que o PIB é resultado da "soma do valor bruto da contribuição de todos os produtores nacionais atuantes na economia, incluindo comércio e transporte distributivos,

acrescida de todos os

impostos sobre os produtos e descontados todos os subsidios

não

incluidos no valor dos produtos", o PNB refere-se ao "Produto Interno Bruto acrescido das receitas liquidas provenientes de fontes externas. Uma vez que as receitas podem ser positivas ou negativas, o PNB tanto pode ser maior como menor que o PIB" (UNESCO, 2006, p. 422). Desse modo, os países que recebem maiores remessas do exterior, normalmente, tem o PIB menor que o PNB, porque suas transaçôes internacionais são maiores que as nacionais. No Brasil ocorre o contrário, o PNB normalmente é menor que o PIB, pois há maior saida de dinheiro do que entrada, uma vez que as empresas transnacionais enviam parte de seus lucros para seus paises de origem. Assim, sem um conhecimento mais apurado de economia, fica difícil saber exatamente o quanto á opção por um ou por outro indice interfere no montante do investimento em educação e nas análises comparativas que se possam realizar. A título de exemplo, é possivel confrontar alguns dados sobre os gastos em educação em percentuais do PIB, mas, como as fontes são distintas, não se podem tirar conclusões.

Utilizando os dados disponibilizados

pelo Mercosul em

2005, somente de modo preliminar, podem-se identificar algumas diferenças entre os índices, mais nada, além disso. Tobelo 3, CAITOS

PÚBLICOS EM EDUCAÇÃO,

2005

MERCOSUL

UNESCO

PAis

% em PIS

%em PNB

Argentina

4.3

4.0

Brasil

4.0

4,5

Chile

3.8

3.8

Fonte: MERCOSUL. Indicadores Estadís!tcos dei Sistema Educativo dei Mercosur 2005.

Para facilitar esse olhar, sem a intenção de propor conclusões 59


Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização

definitivas, podem-se comparar os dados dos três países, referentes às duas fontes. Assim, considerando os dados de 2005, no caso da Argentina, o percentual do PNB é menor do que o do PIB, no que se refere aos gastos públicos em educação; o do Brasil é maior; e do Chile, igual. Uma análise comparativa mais adequada deveria isolar essas distinções, utilizando indicadores que possam ser equiparáveis. À primeira vista, o melhor indicador para isso seria o valor custo-aluno em cada etapa e nível de ensino. Porém, se levarmos em consideração o processo de descentralização e municipalização do ensino, realizado na maioria dos países, mesmo o valor unitário investido não reflete uma condição homogênea, mas, a média do país. Tomando o Brasil e o Chile como exemplos, podem-se constatar esses problemas. No caso brasileiro, mesmo contando com políticas de equalização - como o FUNDEF,g ou o FUNDEB20 -, as diferenças persistem de um estado federado para outro e de um município para outro. Assim: "O processo de municipalização

acabou resultando numa sim-

ples transferência de encargos e gastos do governo central para os municípios, cujos problemas se acentuaram em face da diversidade de suas condições socioe'conômicas" (KRAWCZYK; VIEIRA, 2008, p.

53-54). No caso do Chile, o sistema de subvenções para escolas públicas e privadas que foi adotado, produz novas diferenciações que, por sua vez, reforçam as desi,gualdades de origem social e econômica. Em outras palavras: o sistema gerido por empresários ou por entidades religiosas, embora cobrando mensalidades dos pais e pouco atenden-

19 FUNDEF: Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, criado pela Lei n' 9494, de 24 de dezembro de 1996. A sua finalidade seria reduzir as diferenças regionais e locais, decorrentes de problemas de arrecadação, distribuição e execução de recursos entre as esferas nacional, estadual e municipal. mediante a redistribuição de recursos, bal. izada pela definição de um valor anual minimo para o custo.aluno do ensino fundamental. 20 FUNDEB: Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização do Magistério, criado pela Lei n' , de 24 de dezembro de , substitui o FUNDEF, ampliando a sua abrangência para toda a educação básica. O fundo anterior deixava de fora o ensino médio e a educação infan. til, gerando uma diminuição dos recursos destinados a essas duas etapas (KRAWCZYK; VIEIRA, 2008).

60


Rose Meri TrJ>jan do à clientela de mais baixo nivel socioecon6mico,

tem recebido finan-

ciamento oficial, por aluno, praticamente idêntico àquele concedido às escolas municipais, sendo que essas ultimas atendem aos filhos das familias mais pobres e não contam, em geral, com o aporte financeiro dos pais (ZISAS, 2008, p, 202),

o

financiamento da educação latino-americana conta, para atingir as metas acordadas na agenda da UNESCO, com aportes das agências internacionais, especialmente o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Segundo Casassus (2001, p. 17), o mais alto niveJ de empréstimos foi alcançado em 1994, com um total para ambos os bancos de pouco mais de dois bilhões de dólares, revelando que "efetivamente se produziu mudança na política de empréstimos por parte dos dois bancos, tal como fora postulado na reunião de Jomtiem, em 1990", Ainda que esses aportes, normalmente, sejam diferentes ano a ano, pode-se perceber que o montante de empréstimos verificado em 1994 e 1998 pelo Banco MUndial- nos quais se registraram os maiores valores - não é mais atingido de 2001 a 2006, obtendo o nivel máximo em 2003, com um total bastante inferior a um bilhão de dólares, TABELA

4: APORTES DO BANCO

MUNDIAL

BANCO MUNDIAL - EMPRÉSTIMOS PARA AMÉRICA LATINA E CARIBE SETOR EDUCAÇÃO -1994 - 2006 (em milhões de dólares) 1994 1083,3

I 1995 I 747,1

1996

1997

1998

493,1

61,5

1062,8

Fonte: BANCO MUNDIAL. Disponível

2001_1 529,1

2002

I

560.4

I I

.

2003

2004

2005

2006

785.5

218.3

680.0

712.7

em: http;//web.wOrldbank.org(1994-1998:CASASSUS,2001)

Evidentemente, essa diferença pode ser resultado de vários motivos e avaliada a partir de distintos pontos de vista, Por exemplo, no caso da constatação de aumento dos gastos públicos com educa. ção, em valores reais, pode significar uma melhoria na economia do pais, no caso da manutenção ou redução, pode significar uma mu~ 61


;

Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização

dança de prioridades, por parte do país ou da própria agência financiadora. É o que se pode perceber com relação aos aportes do BID que, na média, tem priorizado a competitividade em relação ao setor de desenvolvimento

social.

TABELA 5, APORTES DO BID, BANCO INVESTIMENTO

Desenvolvimento Social

Período

INTERAMERICANO

DE DESENVOLVIMENTO,

POR SETOR <em %)

Reforma e Modernização do Estado

Total Competitividade

%

Média 1961-2007

33

16

51

100

2005

48

15

37

100

2007

32

5

63

100

Média 2005-2007

40

10

50

Fonte: Banco lnteramericano

No âmbito do setor de desenvolvimento

100 de Desenvolvimento

social, a educação

também não é prioridade entre os empréstimos concedidos em 2007, ocupando o quinto lugar (3,8%), á frente apenas do índice da área da saúde (3,3%). O maior nivel de aportes do BID foi atribuído ao meio ambiente. TABELA 6, BID - DISTRIBUiÇÃO

SETOR Desenvolvimento

Social

DE EMPRÉSTIMOS <em milhãe,

2007

%

1961-2007

%

2.890,2

32,2

51.682,4

33,1

586,2

6,5

20,448,0

13,1

443,7

4.9

10,104.1

6.5

578,5

6,4

8.108.4

5,2

342,0

3,8

5.779,6

3,7

Saúde

300,0

3.3

3.335,7

2,1

Meio ambiente

627,7

7,0

3.398,3

Investimento

Social

Ãgua e Saneamento Desenvolvimento

urbano

Educação

Fonte: Banco Interamericano

i

\

de dólare,)

A média percentual, do período compreendido

2,2 de Desenvolvimento

entre 1961 e

2007, não demonstra uma diferença significativa (3,7%), entretanto,

62


Rose Meri Trojan

também perde em prioridade, ocupando os últimos lugares, juntamente com a saúde (2,1 %) e o meio ambiente (2,2%), que fica em primeiro lugar em 2007. TABELA 7: BID - EMPRÉSTIMOS SETOR EDUCAÇÃO 1994 - 2007 (em milhÕ(>1 de dólorel)

810 - EMPRÉSTIMOS SETOR EDUCAÇÃO (em milhões de dólares) 1994

1997

968,75

704.8

I I

1994 _ 2007

1998

955 Fonte;

I I

2007

342

BID (1994 a 1998; CASSASUS,

2001)

No que se refere aos valores emprestados, percebe-se que ocorreu uma redução significativa, cortando os aportes em mais de 50% - de quase um bilhão de dólares em 1994, para 342 milhões em 2007, Ao contrário do que ocorreu na década de 1990, quando os aportes revelavam o atendimento ao postulado na reunião de Jomtiem de 1990 (CASASSUS, 2001); os anos 2000 indicam uma mudança de rumos na definição das políticas de empréstimos dos dois bancos,

Descentralização da Gestão Educacional No que se refere à gestão, Casassus (2001) constatou a homogeneidade do modelo adotado no -que se refere à centralização das decisões de política educacional, de regulamentação e de avaliação dos sistemas; e descentralização operacionalização

da normatização complementar

e

do processo pedagógico nas esferas administra-

tivas menores. Ao contrário desse modelo, Cuba se apresenta como exceção, por praticar um sistema nacional de educação centralizado, tanto no que se refere à tomada de decisões e avaliação quanto na operacionalização,

garantindo condições de igualdade para todas as

unidades escolares (TROJAN, 2008). O Uruguai, pais que também apresentava um sistema nacional unificado, está discutindo, desde 63


Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização

junho de 2008, um novo projeto de lei geral para a educação no qual, segundo o Ministério da Educação e Cultura, o sistema deverá ser descentralizado (URUGUAY, 2008). A adesão á descentralização

da gestão como uma das dire-

trizes da reforma é confirmada pela pesquisa de Krawczyk e Vieira

(2008), envolvendo Argentina, Brasil, Chile e México. Nessa investigação evidenciam que: A descentralização do sistema educacional para as diferentes instãncias governamentais, que minimizou a responsabilidade do Estado pela educação, é comum a todos os paises. No entanto, obselVam-se diferenças significativas na regulação desse processo, que vai desde a mera transferéncia do serviço educacional até a forte regulamentação do financiamento da educação (KRAWCZYK; VIEIRA, 2008, p. 130-131).

Assim, para avaliar a condição atual desse processo, para além da constatação da adesão à politica de descentralização,

seria neces-

sário um aprofundamento, considerando as mudanças empreendidas por meio das novas leis e políticas especificas implantadas nos últimos anos, como é o caso da Argentina e do Chile, que reformularam sua legislação geral em 2006 e 2007. A maior dificuldade para realízar tal empreendimento,

no âmbito da América Latina, decorre das diferen-

ças, de um ano para outro, na metodologia, parâmetros, procedimentos, fatores e indices adotados pelos diferentes paises para avaliar os impactos dessas medidas nos resultados obtidos. Além disso, como as decisões de caráter operacional sâo tomadas, principalmente, nas esferas administrativas menores, "é nesse nivel em que se aprecia a diversidade quanto às formas concretas em que se dão as soluções organizativas" (CASASSUS, 2001, p. 22). Por essa razão, entende-se que a melhor maneira de compreender tal diversidade seja por meio 21

de estudos de cas0

.

. TEOOORO'

21 Ver, por exemp Io.'

64

SCOCUGLlA

(2008)' KRAWCZYK' "

VIEIRA (2008);

e

ZIBAS (2008).


Rme Meri Trojon

Sistemas de Avaliação da Qualidade da Educação Os sistemas nacionais de medição e avaliação do rendimento escolar foram criados em todos os países da região, com exceção de Cuba, como peça-chave da nova gestão e do novo papel do Estado. O grau de generalização foi tal que, em 1995, foi criado o Instituto Latino Americano de Avaliação da Qualidade da Educação, o LLECE, coordenado pela UNESCO. Seu primeiro estudo comparativo foi publicado em 1998, envolvendo 14 paises, o qual, através de uma mesma pro. va, semelhante ao sistema adotado pelo P/SAn, demonstra que "nos sistemas educacionais da região, exceto as particularidades nacionais, existe um curriculo comum regional" (CASASSUS, 2001, p. 23). Em 2008, o instituto apresentou os resultados de uma nova pesquisa que avaliou a realidade de quase 200 mil estudantes de 3.000 escolas, agora envolvendo 16 países: Chile, Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana,

Uruguai

e, inclusive, Cuba. O Segundo Estudo Regional Comparativo e Explicativo voltou a assinalar as enormes desigualdades que se registram no continente. Brasil, Colômbia, Peru e Argentina acham-se dentro da média regional latino-americana. Cuba foi o país que obteve os melhores resultados:

Acima de tudo, destacam-se os resultados dos estudantes cubanos de 3° (8 anos) e 6° (11 anos) anos do primaria. Poucos alunos receberam as nalas mais baixas, e mais da metade obteve o n/ver mais alta (a 4) em malematica e 44% em leitura.

Bem atrás, também obtiveram resultados acima da média, Chile, Costa Rica, México e Uruguai. Já os piores resultados vieram do 22 PJSA- Program Jl1temallol1al of Studel1t Avallation. realizado pela OCDE.

65


PolíticasEducacionaisna América Latina e os Impactosda Globalizacão Paraguai, Equador e dos paises da América Central. Em ciências, qUE foi avaliada em apenas 10 países, Cuba voltou a se destacar nova. mente, em 6° lugar (DELANO, 2008). Segundo Delano (2008), a influência exercida pelas condições existentes no interior das escolas demonstra a importância dessa instituição para diminuir as desigualdades relacionadas às diferenças sociais. A igualdade ainda està longe de ser conquistada, a pesquisa indica que, quanto maior a desigualdade na distribuição da renda. menor é o rendimento médio dos estudantes da América Latina e do Caribe. Ainda segundo o estudo, o fator que tem maior incidência no aprendizado é a qualidade das escolas, que explica entre 40% e 49% dos resultados, ao lado das disparidades econõmicas, que explicam entre 12% e 49% da variação no rendimento. Também influi sobre os resultados a localização da escola, verifica-se que os centros rurais obtêm em quase todas as provas resultados inferiores aos urbanos nos mesmos paises. É no Peru que tais diferenças entre as zonas urbanas e rurais são mais agudas. Outro fator importante destacado é que: ... além das médias de pontuação, talvez o mais importante do estudo sejam suas conclusões, que dizem que o principal fator que incide sobre a aprendizagem dos estudantes do ensino básico é a existência de "um ambiente de respeito, acolhedor e positivo" nos colégios, acima inclusive do nível sócio-económico

e cultural médio das escolas, fato(

esse mais determinante segundo o informe Pisa, da OCDE (DELANO, 2008).

A confirmação dos bons resultados cubanos chama a atenção para os diferenciais da politíca educacional adotada pelo país: sistema nacional de educação, igualdade na distribuição dos recursos e nas condições de trabalho garantidas aos professores. Nesse aspecto, pode-se afirmar que o fato de ser garantida a relação de 1 professor para cada 15 alunos (TROJAN, 2008) contribui para criar

66


Rose Merí Troian

um ambiente acolhedor. Assunção (2003, p. 100) afirma que más condições de trabalho, como salas aglomeradas de alunos, são incom pativeis com as características e as necessidades humanas e que, 4

apesar de serem consideradas ineVitáveis, "o conforto das condições reais de trabalho não pode ser negligenciado sob pena de desfavorecer a qualidade do ensino e provocar a angústia individual de cada trabalhador diante do fracasso dos seus objetivos".

Avaliação

do Marco de Ação da Educação para Todos

No ano 2000, em Dacar, "reuniram-se governos de 164 países para avaliar os progressos realizados desde a Conferência Mundial de Educação para Todos, organizada pela UNESCO em Jomtiem, no ano de 1990", quando assinaram um acordo para expandir significativamente as oportunidades educacionais para crianças, jovens e adultos, até 2015, reconhecendo que as desigualdades educacionais eram inaceitáveis. (UNESCO, 2008, p.7) Para isso, foram fixadas metas em torno de seis objetivos: ampliar e aperfeiçoar os cuidados e a educação para a primeira infância; assegurar que, até 2005, todas as crianças tenham acesso ao ensino primário gratuito, obrigatório e de boa qualidade; assegurar que sejam atendidas as necessidades de aprendizagem de todos os jovens e adultos; alcançar, até 2015, uma melhoria de 50% nos niveis de alfabetização de adultos; eliminar até 2005, as disparidades de gênero no ensino primário e secundário, alcançando, em 2015, a igualdade de gêneros na educação; melhorar todos os aspectos da qualidade da educação e assegurar a excelência de todos, especialmente em alfabetização lingüística e matemáti_ ca e na capacitação essencial para a vida (UNESCO, 2008, p. 11-17). Em relação ao primeiro objetivo, constata-se uma melhoria nos índices de atendimento à criança da pré-escola, situando-se a América Latina (61 %) acima da média mundial (40%) e dos paises em desenvolvimento (34%), mas, abaixo dos paises desenvolvidos (78%), 67


-

Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização

conforme se pode observar: TABELA 8, CUIOADOS COM A 10 INFÃNCIA, TAXA BRUTA DE ESCOLARIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO

PRÉ-PRIMÃRIA

(TBE) (%)

1991

1999

2007

BRASIL

48

58

63

MÉXICO

18

24

34

ARGENTINA

49

57

64

CHILE

72

77

54

COLÓMBIA

13

36

39

PERU

30

55

62

40

45

58

33

40

PAíSES DESENVOLVIDOS

76

78

PAíSES EM DESENVOLVIMENTO

28

34

PAis OU TERRITÓRIO

VENEZUELA 'MÉDIA

,

PONDERAOA MUNOO

AMÉRICA LATINA

-

61

55

Fonte: UNESCO,

2008.

Entre os paises avaliados pelo relatório, a Argentina, o Brasil e o Peru são os paises que mais avançaram na ampliação do atendimento desse nível. Entretanto, o acesso à educação não é condição suficiente para analisar este objetivo, pois, a priorização do investimento na educação obrigatória, associada ao processo de municipalização do ensino primário, tendencialmente, indica a possibilidade de redução de gastos públicos. Tal redução interfere:, inequivocamente, na qualidade do atendimento prestado. No Brasil, por exemplo, "em decorrência da concentração dos recursos disponiveis para esse nível de ensino nos municípios, em contrapartida, foi constatada a diminuição de recursos para a educação infantil (creche e pré-escola)" (KRAWCZYK; VIEIRA, 2008, p. 55). No que se refere à educação primária, em primeiro lugar devese identificar o que deve ser considerado como tal. O ensino obrigatório, na maioria dos países, inclui o ensino primário e secundário básico que corresponde, em geral, de 8 a 11 anos de estudo.

68


Rme Meri QUADRO

Faix.a etária

Duraçao

BRASil

5 a 14

9 anos

MEXICO

6 a 15

10 anos

ARGENTINA

5 a 15

11 anos

CHILE

5 a 14

10 anos

CÓlOMBIA

5 a 15

11 anos

PERU

6 a 16

11 anos

6 a 15

10 anos

VENEZUELA

Troian

I - ENSINO OBRIGATÓRIO

Fonte: UNESCO, 2008.

°

Na Argentina, por exemplo, ensino obrigatório é de 10 anos de estudo, incluindo o último nível da educação pré-primária, a educação primária com 6 anos de estudo e o ensino secundário de 3 anos, compreendendo a faixa etária dos 5 aos 14 anos; no Brasil, o ensino obrigatório é de 9 anos, o qual corresponde ao ensino fundamental_ que, ainda reflete, na prática, a antiga organização que também era denominada de primário (1° ao 5° ano), hoje P etapa ou séries iniciais, e secundário ginasial (6° ao 9° ano), ou 2a etapa os séries finais do ensino fundamental. Assim, como o relatório não discrimina o número de anos de estudo ou faixa etária correspondente, pode-se inferir que se trata das séries iniciais do ensino fundamental que compreende 5 anos no Brasil e na Argentina, 6 anos de estudo. Mesmo que a variação não seja muito grande - em geral uma duração de 4 a 6 anos _, deve-se levar em consideração que existem diferenças de pais para outro e que um ano a mais ou a menos de estudo implica em diferença em termos de gastos.

TABELA

9: EDUCAÇÃO PRIMÁRIA UNIVERSAL - TAXA LlOUIDA (TLE) NA EDUCAÇÃO PRIMÁRIA (%)

DE ESCOLARIZAÇÃO

(vide próxima página)

69


Políticas Educacionail na América Latina e OI Impactol da Globalização 1991

1999

2007

BRASIL

85

91

95

MÉXICO

98

98

98

99

99

ARGENTINA CHILE

89

COLÔMBIA

69

90 88

87

98

96

87

86

91

MUNDO

81

83

87

PAíSES DESENVOLVIDOS

96

97

96

PAlsES EM DESENVOLVIMENTO

79

81

86

87

93

PERU VENEZUELA MÉDIA PONDERADA

AMÉRICA LATINA

95 Fonte: UNESCO, 2008.

De acordo com o relatório, a média de cobertura do ensino primário nos países latino-americanos

nível dos países desenvolvidos

(95%) está muito próxima do

(96%) e conseqüentemente,

da uni-

versalização. Esses índices, em que pesem as diferenças regionais, comprovam o alinhamento às proposições da agenda global, que propõem a universalização

desse nível de ensino, apresentando

boas

possibilidades de atingir a meta proposta para 2015. Curiosamente, o Chile, que é o primeiro país a adotar a reforma de Estado e a política educacional sugerida pelos organismos internacionais, apresenta uma das menores taxas de matrícula na educação primária (90%), à frente apenas da Colômbia (87%) que, no entanto, consegue com que todos os alunos efetuem a transição para o ensino secundário. Ao se considerar a 2a etapa da escolaridade

obrigatória

na

maioria dos países, que corresponde ao ensino secundário ou, no Brasil, às séries finais do ensino fundamental, os índices de conclusão da etapa obrigatória (93,7%) estão abaixo do nivel dos paises desenvolvidos salização. 70

(99,3%) que, basicamente, jáconquistaram

a univer-


Rose Meri Trojan TABELA 9(2) - MATRfCULA

NA EDUCAÇÃO

SECUNDÁRIA' TRANSIÇÃO PI SECUNDARIA (%)

GRUPO ETÀRIO

1999

2005

(milhares)

(milhares)

BRASIL

80,5

11 a 17

MÉXICO

24,983

25.128

93,7

12 a 17

8.722

10.554

94,6

12 a 17

3,722

3.516

96,7

12 a 17

1.305

1.630

100,0

11 a 16

3,589

PERU

4.297

94,7

12 a 16

VENEZUELA

2.278

2.691

98.8

12 a 16

1.439

2028

91,8

-

438.570

511,936

ARGENTINA

CHilE COlÔMBIA

MÉDIA PONDERADA I

MUNDO PAfsES DESENVOLVIDOS PAJSES EM DESENVOLVIMENTO AMÉRICA LATINA

99,3

87,5

-

93,7

84.659

85,280

321.911

398.529

51.802 Fonte:

57.231 UNESCO, 2008 .

• Incluído sa a 8" séries do ensino fundamental e 3" series do ensino médio, no Brasil.

A matrícula no ensino superior aumentou significativamente em todos os países latino-americanos, superando a média dos países desenvolvidos em numero de matrículas. TABELA

10 - MATRiCULA

NA EDUCAÇÃO

Total de alunOl matriculadO!

SUPERIOR-

(milharel)

1999 BRASIL M~XICO ARGENTINA CHILE CÓlOMBIA

2.457 1,838 1.605 451

878

PERU

-

VENZUELA

-

MÉDIA PONDERADA MUNDO PAlsES DESENVOLVIDOS PAlsES EM DESENVOLVIMENTO AMt'RICA

LATINA

92.863 9,272 3.6365 10.583

2005

-

4.275 2.385 2.127 664

1.224 908 1.050

137.769 14.208 43.411 15,189 Fonte: UNESCO, 2008.

71

j

, ••


PolíticasEducacionaisna América Latina e osImpactosda Globalizacão Mas, não se deve considerar com esse número uma condição superior para os paises da região, pois a matricula não revela o percentual da demanda atendida, não evidencia melhoria da qualidade de ensino e nem garantia de conclusão do curso por esses alunos. Além disso, a pesquisa inclui todas as matriculas do sistema público e privado, o que não permite avaliar o investimento público no setor. Os resultados de escolarização de jovens e adultos apresentados estão restritos à taxa de escolarização para a faixa de 15 a 24 anos. Considerando o processo histórico de exclusão, evasão, repetência e os indices renitentes de analfabetismo, além dos percentuais de matricula referentes à educação primária, do próprio relatório, que variam de 87 a 99%, conclui-se que existam jovens com menos de 15 anos e adultos com mais de 24 anos que podem não estar sendo atendidos em suas necessidades de aprendizagem. Nesse caso, o excelente indice de 97% de taxa de escolarização não revela a realidade da cobertura da educação de jovens e adultos. TABELA 11,TAXA DE ESCOLARIZAÇÃO

OE JOVENS

(15-24 ANOS) - ('lo)

1985-1994

97

BRASIL MÉXICO

95

98

ARGENTINA

98

99

CHILE

98

99

COLOMBIA

97

98

95

97

PERU

95

97

83

88

99

99

PAlsES DESENVOLVIDOS

80

85

PAiSES EM DESENVOLVIMENTO

94

97

VENEZUELA

"

\ \

1995-2004

MÉDIA PONDERADA MUNDO

AMÉRICA LATINA

Fonte: UNESCO,

1

2008.

Segundo a UNESCO (2008, p.16), no "acompanhamento das metas de EPT realizado em 1999-2000 evidenciou-se que, de cerca 72


•••

Rose Meri T rojan

à escola primária,

de 113 milhões de crianças que não tinham acesso

60% eram meninas, o que motivou explicitar no Compromisso

de Da-

car o objetivo de paridade e igualdade de gênero na educação

primá-

ria e secundária." Mas, segundo o Relatório de Monitoramento

Global, essa reali-

dade não se aplica aos países da América Latina - ao menos aqueles que possuem

dados - que, desde 1999, já atingiram

paridade de gênero nos ensinos primário e secundário de fazê-lo. O problema (UNESCO,

se evidencia

o objetivo

de

ou estão perto

nos paises africanos

avaliados

2008, p. 16). TABELA 12 - PERCENTUAL DE MATRíCULAS DE MULHERES NA EDUCAÇÃO BÁSICA SECUNDÂRIO

PRIMÂR10

1999

2005

1999

2005

BRASIL

48

47

52

52

MÉXICO

49

49

50

51

ARGENTINA

49

49

51

51

48

50

49

CHILE

48

CÓLOMBIA

49

48

52

52

PERU

49

49

48

50

VENEZUELA

49

48

54

52

INDIA

43

47

39

43

NIGÉRIA

44

45

47

45

PAQUISTÃO

.

42

.

41

47

47

47

47

PAISES DESENVOLVIDOS

49

49

49

49

PAíSES EM DESENVOLVIMENTO

46

47

46

47

48

48

51

51

MÉDIA PONDERADA

.

MUNDO

AMÉRICA LATINA

Fonte:

Ainda

que a paridade

disso, pode-se perceber

pretendida

esteja atingida

UNESCO,

ou próxima

que se no ensino primário a vantagem

centual ainda está com os homens, no secundário são em favor das mulheres

porque, segundo

2008.

per-

ocorre uma inver-

a UNESCO

16): "decorre do fato de que uma vez que ingressaram

(2008, p.

na escola, elas

73


Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalizacão

tendem a avançar mais rapidamente e concluir mais séries". No entanto, a paridade entre os gêneros nas matriculas não significa superação das desigualdades - são temas diferentes. Mesmo que a paridade revele um aumento do acesso feminino á escola, isso não significa igualdade. Outros fatores devem ser considerados, especialmente a proporção entre os sexos no conjunto da população. No Brasil, por exemplo, a população feminina, segundo o Censo de 2000, equivale a 50,78% do total (IBGE, 2000). Nesse caso, a diferença entre os percentuais deveria ser revista, tendo em vista o número maior de mulheres. Como a partir do ingresso, a permanência é maior entre as mulheres, o problema está no acesso ao ensino inicial. Nesse aspecto, deve-se destacar que no Brasil, mesmo que apenas em 1%, houve um decréscimo nas matrículas femininas de 1999 para 2005. Esse dado merece uma pesquisa mais detalhada para verificar se há um problema ou não, identificando a população feminina na faixa etária correspondente á idade de ingresso na escola e aquela que é atendida nos programas para jovens e adultos. Em relação á melhoria de todos os aspectos da qualidade da educação, destaca-se, nesse artigo, a relação do número de alunos por professor que, salvo melhor juizo, é um dos fatores mais relevantes para a qualidade do ensino. (quadro 12) Exemplo disso pode ser verificado em Cuba, que apresenta os melhores resultados da região, e que garante a relação de 15 alunos por professor em toda a educação primária e secundária (TROJAN, 2008). Com exceção da Argentina (17) e da Venezuela - que apresentou uma redução significativa (19), todos os demais paises (23 alunos, em média) estão aquém dos 15 alunos por professor, que é a regra em Cuba e a média dos paises desenvolvidos. TABELA 13, RELAÇÃO ALUNOS/PROFESSOR EDUCAÇÃO

1991

1999

2005

BRASIL

23

26

21

MEXICO

31

27

28

22

17

ARGENTINA

74

NA

PRIMÃRIA'


-@Q

Rose Meri Trojan

CHILE

não -V1es-

CÓLOMBIA PERU

:;o/a,

MÉDIA PONDERADA

;030. J de

PAíSES DESENVOLVIDOS

MUNDO

PAisES EM DESENVOLVIMENTO AMÉRICA LATINA

ve se

".

I

26 2B 2J

.

19

26

25

17

25

16

29

15

27

25

2B

26

2J Fonte:

"Baseado na contagem do número de alunos e professores.

lU-

to,

30 26

-dos,

era

32

29

VENEZUELA

'en~

25

UNESCO, 2008.

Para concluir o estudo, que não esgota os dados estatísticos apresentados pelo relatório de 2008 e, muito menos, a totalidade das

,-

questões que envolvem a qualidade da educação e o cumprimento do direito universal à educação, apresenta-se IDE _ índice de Desenvol_ vimento de EPT de 2005, proposto pela UNESCO.

,

Os indicadores do IDE compõem-se de quatro fatores: educação primária universal; alfabetização de adultos; qualidade da educa-

m

.a

ção (sobrevivência até a 5<1 série) e eliminação das desigualdades de gênero, cujo valor de cada um corresponde a X. TABELA 14: IDE - fndice de Desenvolvimento (educaçoo para todos) e seUl comPOnentes

IDE ARGENTINA CHIELE

POSiÇão

TLE

0.979

27

0,995

0,969

37

0,941 0,998

0,916

TAA

de EPT _ 2005

Gênero

sobrevivência até a sa série

0,974

0,976

0,9

0,963

0.981

0,9

0,961

0,9

MEXICO

0,953

VENEZUELA

0,931

64

PERU

0,928

0,931

0,930

65

0,953

0,992

0,9

0,879

0,954

0,9

48

BRASil

0,901

76

COLÔMBIA

0,964

0,899

0,892

78

0,943

0,899

0,9

0,928

0,961

0,9

TLE - taxa de escolanzaçaoTAA

=:

_ ensino prima no taxa de alfabeti2ação de adultos

negrito: disparidades em favor dos homens observadas particularmente secundário Fonte:

no ensino

UNESCO, 2008.

75


Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização

Ainda que se concorde com a relevância dos fatores definidos, estes não permitem uma avaliação satisfatória. Em primeiro lugar, como já se evidenciou anteriormente, os dados obtidos não permitem avaliar os níveis de desigualdade interna de cada pais, dado a condição da descentralização administrativa. Em segundo lugar, as diferenças entre a situação de cada fator variam de acordo com a condição política, econômica e social de cada região. Como o valor de cada fator é igual, a variação para mais ou para menos de um ou outro, interfere na avaliação geral. No caso da escolha da eliminação das desigualdades de gênero, por exemplo, pode-se verificar que, nos paises da América Latina "as mulheres estão um pouco subrepresentadas na taxa bruta de matriculas da educação primária e super-representadas na educação secundária", mas, especialmente nos paises africanos, que apresentam dados, existem algumas situações "de grande disparidade desfavorável ás mulheres, como o caso do Paquistão, Nigéria e índia, na educação primária e na secundária" (UNESCO, 2008, p. 16). Segundo a UNESCO (2004, p.22), "Quarenta e um países (um terço do total), quase todos eles da América do Norte e da Europa Ocidental, Central e Oriental, já alcançaram ou praticamente alcançaram os quatro objetivos" e a América Latina está atrasada "em relação ao objetivo da qualidade da educação, com muitas crianças que tiveram acesso a escola abandonando prematuramente os estudos". Entre os paises da América Latina analisados pela UNESCO, a Argentina (27) é o pais que apresenta a melhor posição e o Brasil (76) está entre os piores, á frente apenas da Colômbia (78). Porém, Cuba, que aparece em outros estudos como o pais que apresenta os melhores resultados de qualidade educacional, não consta do relatório. A conclusão da UNESCO (2008, p.22) é simples: "os paises que mais avançaram na universalização da educação primária foram os que mantiveram ou aumentaram os recursos para a educação em relação ao PNB"; e que "o alcance dos objetivos de Dacar dependerá do

76


Ro~eMeri Trojan

crescimento econômico e dos recursos governamentais, ,s,

",li. a os a ]f

bem como

da sua destinação à educação básica". Isso é verdade, porém, a solução não é tão simples. Considerando que os estudos sempre se baseiam na média - tanto dos resultados do ensino quanto do financiamento -, a desigualdade decorrente do processo de municipalização do ensino adotado pela maioria dos países da região dificulta, ainda mais, a conquista da universalização da educação básica e da igualdade no acesso á escola.

n

Conclusões: tendências em curso

IOf

,-

•••

A partir da análise dos dados disponíveis sobre o financiamento da educação, a situação do processo de descentralização da gestão educacional e a melhoria dos níveis de qualidade da educação, avalia~ dos, estatisticamente, pela UNESCO (2008), é possivel constatar que, de modo geral, permanecem em curso as mesmas tendências em termos de políticas educacionais. Porém, o destaque dado a educação, apontado por Casassus (2000), perdeu força - ao menos no que se refere aos aportes internacionais. Ainda que, pelo que se pode perceber, a globalização das políticas educacionais é fato confirmado e monitorado pelos organismos multilaterais, especialmente a UNESCO. No àmbito do financiamento, o percentual do PNB investido permanece relativamente homogêneo em torno dos 4%, sem indicação de aumento no percentual - a exceção da Colômbia e do México. Porém, sem dados sobre a relação entre os valores do PNB e do custo por aluno com a demanda existente, não se pode avaliar se houve ou não algum avanço em termos de qualidade, Os sistemas internacionais de avaliação não identificam as desigualdades internas de cada país - para isso seria necessario realizar estudos específicos sobre os efeitos da descentralização, especialmente da municipalização da educação. Em contrapartida,

a participação das agências financiadoras 77


Políticas Educacionais na América Latina e os Impactos da Globalização

internacionais para a América Latina não mantém a prioridade dada à educação, constatada por Casassus (2000). Nos últimos anos, houve redução dos aportes concedidos para a área. A prioridade dos aportes concentrou-se na economia (competitividade) em detrimento das políticas sociais e, entre as políticas sociais, a prioridade foi dada para o meio ambiente em detrimento da educação e também da saúde. Em relação à universalização da educação, tomando como referência os estudos da UNESCO, podem-se observar avanços significativos em relação ao aumento das matriculas em todos os níveis de

ensino, mas, com relação à melhoria da qualidade do ensino não é possivel avalíar com segurança, dada a diversidade buição dos recursos financeiros.

interna na distri-

Assim, ainda que a partir de dados limitados, pode-se concluir que a tendência predominante em curso mantém a direção das reformas efetuadas na esteira dos acordos firmados pela agenda da UNESCO. Tais reformas, apresentam uma "matriz" comum que, conforme Krawczyk e Vieira:

...demonstra graus e formas distintas de concretização, das particularidades

ruptura ou continuidade de mobilização

dependendo

dos governos e suas alianças, da presença de frente a projetos anteriores

e da eXistência

ou de resistência de diferentes segmentos

da socie-

dade. Mas, podemos afirmar que o binômio pretendido, eqüidade com qualidade, comum em todos os discursos legitimadores

da reforma,

não se concretizou em nenhum dos paises da região, e os problemas de financiamento,

participação social e inclusão social continuam nas

agendas de estudiosos e da sociedade (KRAWCZYK; p 135).

VIEIRA; 2008,

Porém, considerando que as propostas de gestão têm a democratização e a participação como categorias fundamentais; que a educação seja parte integrante dos discursos e objeto de avaliação internacional e nacional; e que a divulgação dos resultados _ mesmo que limitados - seja constante e pública; abre-se um espaço para 78


Rose Meri Trojan

avaliar e discutir as desigualdades, aprofundadas pelas políticas, de~

j

,

correntes da nova configuração da ordem mundial.

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79

.,-..


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