«Déjà «4 meses, Vu»,3desemanas, Tony Scott 2 dias», de Cristian Mungiu
Filmar a dor
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É um filme espartano, evitando todo o supérfluo, onde acção e silêncio se articulam e jogam um milimétrico xadrez num notável trabalho de interpretação por um trio de actores romenos, perfeitos desconhecidos entre nós. Uma obra de cortar o fôlego, com a qual o realizador romeno Cristian Mungiu arrebatou o Festival de Cannes levando a cobiçada Palma de ouro para casa.
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Por Susana Paiva
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uando a 28 de Agosto, na sua antestreia em Paris, Cristian Mungiu apresentou o seu filme «4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias» na sala 10 do multiplexe UGC Les Halles, estava visivelmente emocionado. As suas escassas palavras, num francês imaculado, lembravam o facto deste ser o seu primeiro filme distribuído fora da Roménia. Jovem cineasta romeno, nascido em 1968 em Lasi, Mungiu realizou, entre 2002 e 2007, três obras cinematográficas – «Occident», «Turkey Girl» e «4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias», este último vencedor da Palma de Ouro na última edição do Festival de Cannes. Aclamado pela crítica internacional, o filme narra a história de duas colegas de universidade, uma das quais se encontra indesejadamente grávida e pretende fazer um aborto numa Roménia comunista onde a prática é proibida. Responsável pelo argumento, produção e realização, Chistian Mungiu criou um filme
assente «numa experiência pessoal que normalmente não partilhamos com os outros». E, surpreendido ao descobrir que «alguns amigos haviam passado por experiências semelhantes, dissumuladas, por vezes horríveis», Mungiu construiu um guião onde põe a nu as consequências da lei que, em 1966, interditou o aborto na Roménia. «O efeito foi imediato, desde os anos 70 que existem quatro novas gerações de crianças, gerações muito mais numerosas do que as anteriores a 1966. O número de crianças numa sala de aula passou de 28 a 36, e o número de turmas nas escolas passaram de 2 a 10. Quando entrei para a escola, éramos 7 “Christian” na sala – mesmo os nomes próprios já não eram suficientes para todas as crianças. Rapidamente as mulheres começaram a recorrer ao aborto ilegal. Com o fim do comunismo as fontes apontam para mais de 500 mil mulheres mortas graças a isso... Nesse contexto o aborto perdeu toda a
conotação moral e foi sobretudo praticado como um acto de rebelião e de resistência contra o regime, que proibia o aborto a fim de aumentar a mão de obra disciplinada.Após 1989, uma vez caído o regime comunista, uma das primeiras medidas tomadas no país foi o restabelecimento da legalidade do aborto». Situada em 1987, numa pequena cidade romena, a acção de «4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias» põe em cena Ottila e Gabita, colegas e amigas que partilham um pequeno quarto na cidade universitária local, tendo como problema, necessitando de resolução imediata, a avançada e indesejada gravidez de Gabita. Construído como uma verdadeira corrida contra o tempo onde a dedicada Ottila tem que solucionar todos os problemas inerentes à clandestinidade do aborto de Gabita, agravados ainda pela questão financeira, o filme assenta, como o afirmou Cristian Mungiu, na personagem primorosamente desempenhada pela actriz Anamaria Marinca. Vivendo em
Londres, desde que foi distinguida, em 2004, com um prémio Bafta pela sua interpretação em «Sex Traffic», de David Yates, a actriz romena declarou em entrevista à rádio francesa TSF que apesar de «estar a par das situações retratadas no filme não as vivenciara», congratulando-se por «dar voz aqueles que não podiam falar». Construído através de um forte mas escasso discurso verbal o filme intensifica o discurso do não dito, materializando nos silêncios um dramatismo ímpar onde, de acordo com Anamaria Marinca, se materializam «os momentos onde o personagem pode respirar». Um filme onde, ao longo de 113 minutos, se faz num registo livre e próximo do realismo um forte e coerente discurso, de grande genialidade, sobre os limites morais e físicos da dor. � Género: Drama Realizador: Cristian Mungiu Produção: Roménia, 2006
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Sob o signo da Utopia
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Durante 2 semanas, 45 alunos e 15 professores oriundos de 5 universidades europeias exploraram os contornos da Utopia, traçando ideias cenográficas e elaborando projectos arquitectónicos numa Lisboa reinventada à luz do teatro. Uma viagem metafórica que, elegendo “o teatro ilha ou a ilha do teatro” como ponto de partida, acabou por revelar como a cooperação transnacional poderá traçar novos mapas mentais e criativos para levar à cena na capital nacional.
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Texto de Susana Paiva/ Imagens gentilmente cedidas por José Manuel Castanheira
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ara os 60 participantes no projecto intensivo Erasmus, reunindo alunos e professores de Arquitectura oriundos das Faculdades de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, da Escola Superior de Arquitectura de Paris-la-Villette, da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica da República Checa, da Escola de Arquitectura da Faculdade de Engenharia da Universidade de Lund, Suécia, e da Universidade de Strathclyde em Glasgow, Escócia, os quinze dias de Fevereiro que passaram a criar em Portugal poderão ter constituído uma excepção, um sopro de utopia que jamais repetirão na sua vida profissional. Assim o verbalizou Mathab Mazlouman, professora de Arquitectura na Escola Superior de Arquitectura de Paris-
la-Villette, quando o júri de professores fez o balanço da primeira semana de criação dos alunos participantes na segunda estação do projecto intensivo de cenografia e arquitectura que este ano teve como palco a cidade de Lisboa. Concebido e aprovado como uma iniciativa a realizar durante três anos consecutivos, nas cidades de Praga, Lisboa e Paris, o projecto envolve instituições universitárias europeias em que a área da cenografia constitui uma disciplina autónoma no seio da licenciatura em Arquitectura e visa constituir-se como um espaço de criação utópica onde os alunos, devidamente agrupados em núcleos plurinacionais, têm como objectivo a criação de um objecto cenográfico e de um projecto arquitectónico simbólicos que “apontem para a definição de um conceito, prefigurado numa proposta que reformule e/ou re-apresente, num contexto original, as múltiplas pistas que as leituras, visitas, traba-
lho de grupo e discussões com os professores possam suscitar”. Uma proposta estimulante que, de acordo com José Manuel Castanheira, professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, pode encerrar também um elevado grau de dificuldade sobretudo para alunos e professores provenientes de instituições onde o objectivo final das propostas e projectos escolares tem que passar pela exequibilidade. Instituído como espaço de transgressão das práticas habituais e de permuta intercultural, esta edição do projecto acabou por se constituir como “uma aventura sem fronteiras” para a qual o único passaporte obrigatório foi a leitura do romance «A Jangada de Pedra», da autoria do Nobel da literatura José Saramago.Talvez por isso fosse inevitável escapar à inclusão simbólica do elemento água nas propostas cénicas solicitadas aos alunos. Talvez por isso mesmo o Tejo tenha mereci-
do a inclusão em muitos dos projectos cenográficos resultantes deste workshop tendo assim devolvido o protagonismo a espaços da capital para os quais já não olhamos de forma refrescada tão frequentemente. Reimaginar o Cais do Sodré como espaço central de um percurso que une o rio ao centro da cidade através de uma carpete vermelha, com criação de um espaço de “renascimento” de todos quantos experienciam “esse momento excepcional”, ou redescobrir no Terreiro do Paço uma passagem cujo secreto destino nos faz desembocar num “buraco” em pleno Tejo a partir do qual se pode visualizar e vivenciar diferentemente a cidade de Lisboa são algumas das utopias cenográficas que cumpriram o destino de “explorar os limites e transgressões da implantação dos dispositivos cénicos no terreno da arquitectura” tendo, claro está, “sempre em mente o seu carácter especulativo e utópico”. �
O teatro de sombras de Jorge Martins
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São 35 desenhos a grafite sobre papel, realizados entre 2002 e 2007, os que Jorge Martins expõe, até dia 11 de Abril, na sede do Centre Culturel Calouste Gulbenkian, em Paris. Um trabalho pontuado pelas aparições fragmentárias, projectadas ou fantasmagóricas da figura humana, que intrigam e cativam o público que deambula, mergulhado num universo de intimidade e memória, pela antiga residência particular de Calouste Sarkis Gulbenkian.
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Texto de Susana Paiva Desenhos de Jorge Martins, gentilmente cedidos pelo C.C.C. Gulbenkian
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«Algoritmo», 2003, grafite s/ papel, 160 x 120 cm
e a proposta artística que Jorge Martins apresenta actualmente no Centre Culturel Calouste Gulbenkian, em Paris, fosse transposta do plano das artes visuais para o das artes performativas não restariam dúvidas que, dada a utilização do desenho como instrumento de análise e reflexão da sua própria prática artística, a criação de universos pessoais assombrados pela memória e pelas artes, sejam elas o teatro, a ópera ou o cinema, e a inusitada utilização de títulos descritivos que tanto convergem como divergem dos desenhos a que estão associados, estaríamos perante um possível cruzamento do modelo teatral de Luigi Pirandello com o do estranho e misterioso universo cinematográfico de David Lynch. Difícil de classificar e até de categorizar a recente obra de desenho de Jorge Martins é um misto de continuidade e revelação, retomando na opinião de Rita Fabiana, curadora da exposição, “algumas questões exploradas na sua obra, ensaiando e dando corpo a novas soluções (e composições), marcadas por uma grande liberdade formal e conceptual que determina, em parte, uma tão grande diversidade de registos que caracteriza o conjunto exposto”. Dispostas no rés-do-chão do edifício, ao
«Slow motion suicide», 2003, acrílico e grafite s/ papel, 160 x 120 cm
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31 de mulheres: corpos fragmentados ou ocultados, luminosos ou evanescentes, fantasmagóricos, ou em queda, como o que atravessa o espaço de «Slow motion suicide». Corpos que atravessam arquitecturas rudimentares e desérticas ou paisagens geológicas incertas. Ou ainda corpos que emergem no espaço virtual da folha tornada ecrã. O desenho é aqui o local de uma acção, a dos corpos e das formas, mas também do próprio desenho que se revela terreno de todas as possibilidades, de todas as experiências do traço, do branco da folha e do negro do grafite. � Jorge Martins «Project Dessin 2002-2007» Até 11 de Abril, de 2ª a 6ª feira, das 9h00 às 17h30 Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris
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«Uma casa no campo», 2003, grafite s/ papel, 120 x 160 cm
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«Emoção e metáfora», 2004, grafite s/ papel, 120 x 160 cm
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«Three for darkness», 2004, grafite s/ papel, 120 x 160 cm
longo do habitual espaço expositivo do Centre culturel Calouste Gulbenkian, e prolongando-se pelo piso superior onde se articulam com as cadeiras de época devidamente dispostas de forma a apreciar os desenhos, as 35 obras de Jorge Martins, algumas das quais inéditas, foram escolhidas por Rita Fabiana à data da preparação da exposição entre as cerca de 150 que o artista produziu desde 2002, e segundo a comissária da exposição devem ser entendidas “enquanto projecto – um work in progress – cuja unidade é antes de mais afirmada pelo uso, continuado no tempo, da mesma técnica e do mesmo suporte, de iguais dimensões: grafite sobre papel, 160x120 cm”. Para além da clara unidade formal do projecto a proposta expositiva distinguese ainda “pela emergência (ou urgência) da figura humana, na sua maioria corpos
«Um safari em 1967», 2003, acrílico, tinta da china e grafite s/ papel, 120 x 160 cm
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A intolerância segundo José Saramago
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Foi no passado dia 12 de Dezembro que o Teatro Central de Sevilha recebeu a estreia mundial do espectáculo «In Nomine Dei», um texto teatral de José Saramago levado à cena pelo Centro Andaluz de Teatro, com encenação de José Carlos Plaza e cenografia de José Manuel Castanheira, onde se veiculam, numa versão operática, as magníficas palavras do escritor contra a intolerância.
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Texto e fotografias de Susana Paiva
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oi com um misto de surpresa, respeito e tristeza que o público da estreia de «In Nomine Dei» recebeu a mensagem, difundida em vídeo, na qual José Saramago endereçava ao público palavras que todos desejariam ter ouvido de viva voz. No ecrã instalado à boca de cena, o escritor, visivelmente abatido, proferia um discurso universal anti-fundamentalista e teste-
munhava, com pesar, a dor da ausência e a inveja de todos quantos ali podiam estar. Ele, em casa, cumpria estritas ordens médicas de 15 dias de repouso absoluto, convalescendo ainda de um recente problema de saúde que levará cerca de dois meses a recuperar. Dois dias antes, no âmbito de uma conferência de imprensa realizada na biblioteca Saramago em Lanzarote, havia declarado que, ainda que estivesse certo de
que a representação da sua obra não mudaria nada, esperava que a estreia do espectáculo em Sevilha servisse pelo menos para “despertar as consciências de algumas pessoas que causam dano à Humanidade”. Inegavelmente feliz com a estreia universal do seu texto teatral, originalmente publicado em 1993, Saramago aproveitou para contextualizar o momento histórico em que desenrola a história,
explicando que a mesma se baseia num caso verídico passado em Münster, uma cidade no norte de Alemanha, onde no século XVI um conflito entre católicos e protestantes, “em nome do mesmo Deus”, acabou numa carnificina tal que dos 14000 habitantes iniciais, após um processo de tortura e morte, apenas restaram 2000. Um texto pleno de actualidade dado que, na sua opinião, “em milhares de anos de criação, de natureza, de inteligência, de tudo o que faz grande o Homem, o ser humano continua a ser utilizado pelo próprio ser humano para atentar contra si próprio”. Nesse sentido o prémio Nobel da Literatura entende que, apesar das descobertas e avanços na sociedade, “não temos melhorado nada, bem pelo contrário – temos refinado métodos de tortura, transformando-a numa ciência exacta. Nós, seres inteligentes, capazes de rir, chorar e sentir, estamos numa hora de irresponsabilidade em que nada é culpável e todos têm a culpa, como sempre”. Tomado muitas vezes como uma voz crítica no debate de assuntos religiosos –recorde-se a polémica em Portugal em torno da obra «O Evangelho Segundo Jesus Cristo» – Saramago continua a sustentar o único desejo de “compreender as coisas” reforçando a ideia de que nunca pretendeu “convencer ninguém de nada”. “Os acontecimentos descritos nesta peça representam
apenas um trágico capítulo da grande e, pelos vistos, irremediável história da intolerância humana. Que a leiam assim, crentes ou não crentes, e farão um favor a si próprios”. Assumido como uma homenagem a José Saramago – nas palavras de Rosa Torres, “um andaluz que não nasceu em Andaluzia mas que desejou sê-lo sem renunciar a ser qualquer outra coisa”, numa alusão da conselheira para a cultura da Junta de Andaluzia à recente nomeação do escritor como “filho adoptivo de Andaluzia” – «In Nomine Dei», levado à cena pelo Cento Andaluz de Teatro, é um espectáculo maior por mérito próprio, conseguindo, como tão raras vezes acontece, uma perfeita sintonia entre todos os elementos teatrais, com especial destaque para os trabalhos de encenação de José Carlos Plaza e de cenografia de José Manuel Castanheira que criam em cena uma unidade onde se espelha na perfeição a mensagem de José Saramago. Concebido como “uma cidade em ruínas, metáfora universal da destruição do ser humano” o cenário de Castanheira dá o mote essencial para a agilização de uma encenação que se adivinha difícil dada a complexidade do texto e a presença dos cerca de 30 actores e cantores em palco. Tendo-se deslocado a Lanzarote para trabalhar durante um mês com Saramago na adaptação do texto, “que funciona
como um alerta contra os fanatismos que arrastam os seres humanos a matar e a deixar-se matar”, José Carlos Plaza tem o grande mérito de, recorrendo à sua prática na encenação de operas, ter criado um espectáculo que, apesar da sua complexidade, encontrou na forma musical a facilidade de expressão que o texto original, a priori, não deixava antever. Construído de forma operática, «In Nnomine Dei» revela também o excelente trabalho de Mariano Díaz, responsável pela música e espaço sonoro, que soube criar, com uma matéria humana onde pontuavam apenas quatro cantores, um ambiente sonoro extraordinário, revelador do estudo dos salmos e da música eclesiástica em geral, onde o coro desempenha um papel fundamental. Construído como um trabalho de grande fôlego e extraordinário empenho colectivo o espectáculo do Centro Andaluz de Teatro fará uma extensa itinerância pelos teatros da Andaluzia, com apresentação em 54 salas distintas, seguindo posteriormente digressão no restante território espanhol e possivelmente noutros países de expressão oficial espanhola. Para que, pelo menos, Saramago possa estar certo que, concordando com José Carlos Plaza, referindo-se a todos os intervenientes no espectáculo, “para todos nós, a partir de agora, será mais difícil ser intolerantes”. �
Hitchcock vive em todos nós
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Entre 7 de Julho e 23 de Setembro, em Vila do Conde, a essência de Hitchcock invade a Solar - Galeria de Arte Cinemática e revela «Under Hitchcock». Uma exposição de arte contemporânea, onde artistas nacionais e estrangeiros atestam nas suas criações a influência artística da obra e imaginário de um dos maiores mestres do “suspense”. Para ver, obras de Jean Breschand, Christoph Girardet, Johan Grimonprez, Laurent Fievet, Carlos Lobo, Matthias Müller e Salla Tykka.
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Texto de Susana Paiva
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Ron Burrage, Hitchcock Look-alike, “Looking for Alfred”, Johan Grimonprez, 2004 Photo: Theo Volpatti/ courtesy of Zapomatik
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“Portrait à l’hélice” (Marine) video still Photo: Laurent Fiévet
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erdeira da secção «Work in Progress», onde, desde Junho de 2002, o Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde tem vindo a destacar «obras e autores que se revelaram nas salas de cinema mas que cedo demonstraram necessidade de ocupar outros espaços e explorar outras fórmulas de apresentação dos seus trabalhos», a Solar Galeria de Arte Cinemática iniciou, em Março de 2005, uma actividade permanente «enquanto espaço de exposição dedicado às imagens em movimento». Desde então tem vindo a afirmar-se no panorama nacional como um projecto singular na divulgação de criadores cujas obras reflectem um conjunto de questões relativas ao universo do cinema e às suas repercussões na criação artística actual. Ao longo dos anos, por lá passaram, em estreia nacional, exposições de artistas como Matthias Müller e Gustav Deutsch, «referências a nível internacional na exploração e uso recorrente de found-footage», reflectindo assim uma lógica programática «nascida da necessidade de aprofundar e dar continuidade a projectos nos quais se explora o relacionamento entre o cinema e as outras artes, bem como a utilização do found–footage nos novos territórios dessas mesmas áreas». Fruto de uma progressiva «proliferação de peças artísticas – sobretudo na área do vídeo, mas também na fotografia ou nas Artes Plásticas –, a Galeria Cinemática surgiu, segundo José Nuno Rodrigues, director do Curtas Vila do Conde e coordenador artístico da Solar, «para dar voz a esse território de fronteira da criação artística o qual, por vezes, tem dificuldade em marcar presença de forma sistemática em galerias de arte contemporânea ou até na maioria dos festivais de cinema». Hoje, nesse território de fronteira – «um espaço de experimentação audiovisual, do cinema, do vídeo, da fotografia e das outras artes que de algum modo os prolongam e reinventam» – José Nuno Rodrigues e Sílvia Guerra comissariam e apresentam na Solar «Under Hitchcock», uma exposição de arte contemporânea onde se explora o modo como a obra e o imaginário de Alfred Hitchcock se repercutem na criação plástica e audiovisual contemporâneas. Aí, nos diferentes espaços do antigo solar de S. Roque, através de um percurso que se pretende orgânico, serão expostas não apenas uma selecção de peças anteriormente exibidas mas também peças totalmente novas, concebidas especificamente para esta exposição. Definido por Sílvia Guerra como sendo também «um pro-
jecto sobre a atracção das imagens, a atracção entre a arte contemporânea e o cinema», «Under Hitchcock» joga com o facto de nos filmes de Alfred Hitchcoock «não existir um tempo preciso mas sim um vórtice de pulsões», permitindo assim que as obras expostas criem «uma materialidade física inspirando-se nos filmes, criando a partir de fotogramas, de sons e de sequências, ou criando um universo, que lhes seja paralelo – transportando-nos assim à obra sem que para tal se utilizem as películas como matéria-prima». Tratando-se da primeira grande exposição nacional sobre este tema e contando com a presença de vários artistas de renome internacional – alguns dos quais exibidos nos mais importantes museus e galerias da actualidade, tal como Matthias Müller, que expôs na Tate Modern (Londres) e no Centre Georges Pompidou (Paris), Salla Tykkä, que apresentou trabalhos no Palais de Tokyo (Paris) e no Whitney Museum of American Art (NY), e Joan Grimonprez, que já expôs no MoMa (Oxford), no Centre George Pompidou (Paris) e no Whitney Museum of American Art (NY) –, a ousada exposição ambiciona «viver do quociente pulsional que os trabalhos expostos podem vir a suscitar no público, tal como os filmes de Alfred Hitchcock vivem no interior das pulsões dos seus personagens». Uma exposição que vivida intensamente por certo será capaz de ressuscitar as embriagantes memórias de todos quantos fruíram uma das muito belas e significativas obras de Alfred Hitchcock. No mais, para quem as queira rever, poderá assistir a um programa paralelo de cinema. � Solar Galeria de Arte Cinemática. Rua do Lidador, Vila do Conde. Terça a sexta, 14h30-18h00 (sextas, até 00h00), sábado, 09h30-12h30/14h30-00h00, domingo, 09h3012h30/ 14h30-18h00. De 7 de Julho a 23 de Setembro.
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«Under Hitchcock», Solar - Galeria de Arte Cinemática
«Le Monde Nomade», 2006
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Rock’n’Roll 39-59, Fondation Cartier pour l’Art Contemporain
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Filhos do Rock
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É uma exposição monumental aquela que, em Paris, a Fondation Cartier pour l’Art Contemporain dedica à génese do Rock’n’Roll. Uma mostra claramente pedagógica que proporciona aos seus visitantes a exploração, através de objectos e sonoridades, de um movimento que transformou o mundo.
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Texto de Susana Paiva Imagens gentilmente cedidas pela Fondation Cartier pour l’Art Contemporain
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© Susana Paiva
Rock’n’Roll 39-59, Fondation Cartier pour l’Art Contemporain
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É
uma exposição atípica aquela que aguarda os habituais visitantes do nº 261 do Parisiense Boulevard Raspail. Longe das eclécticas mostras de arte contemporânea a que a Fondation Cartier pour l’Art Contemporain nos tem habituado, o imóvel concebido por Jean Nouvel é agora habitado por coloridas jukeboxes dos anos 40 e 50, microfones das décadas de 30, 40 e 50, um Cadillac cabriolet série 62, fabricado em 1953, impecavelmente conservado e com os seus acessórios originais, e até por um estúdio de gravação dos anos 50 no interior do qual se ouvem, entre outras, as sessões originais de gravação de “She knows how to rock”, interpretada por Little Richards, “Great Balls of Fire” por Jerry Lee Lewis – ambas de 1957 – e “I got stung”, gravada em 1958 por Elvis Presley. Lá fora, no átrio, colunas difundem extractos das ondas hertzianas emitidas em 1955 pela Wins Radio nas suas “Alan Freed Sessions”, invocando deste modo o impor-
Rock’n’Roll 39-59, Fondation Cartier pour l’Art Contemporain
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tante papel desempenhado por Alan Freed na invenção e difusão do rock’n’roll. Tudo no espaço expositivo da fundação convida a um mergulho no passado – a estética retro, as irresistíveis sonoridades difundidas, a jukebox ainda em funcionamento na qual os visitantes podem escolher o disco a ouvir, a montra repleta de exemplares da “Dig”, “Teen”, “Movie Teen Illustrated” e “Song hits Magazine” - revistas dos anos 50 dedicadas aos adolescentes, esse “extracto social financeiramente emergente numa América Pós-Guerra” tão desejoso de novas sonoridades e práticas que reflectissem a sua rebeldia e vitalidade. Na sala contígua, em jeito de preparação para a visita global, projecta-se o filme “Rock’n’Roll:The Early Days”, realizado em 1984 por Patrick Montgomery e Pamela Page. Aí, desfilam, ao lado das guitarras expostas de três gigantes dos primórdios do rock – Elvis Presley, Buddy Holly e Carl Perkins –, imagens de Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Little Richards e muitos outros que contri-
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Rock’n’Roll 39-59, Fondation Cartier pour l’Art Contemporain
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buíram para a afirmação do rock como uma sonoridade de futuro. Ao longo de uma hora passa-se em revista a totalidade dos ingredientes reunidos para a génese do rock, desde a estética musical moralista vigente nos anos 30 e protagonizada unicamente por músicos brancos, à segregação racial que assolava sobretudo o sul dos Estados Unidos da América, passando pela emergência de uma cultura adolescente e um culto exacerbado de heróis rebeldes. É nesse ambiente social e culturalmente conturbado que surge o rock’n’roll, herdeiro dos cruzamentos de sonoridades como o Boogie-Woogie, as Big Band Jazz, o Gospel, o Blues, o Country e o Rhythm and Blues, como assim o demonstram os módulos que no piso inferior da Fondation Cartier traçam a cronologia detalhada da génese e evolução do rock, com particular enfoque na vida e obra de algumas figuras emblemáticas como “Bill Haley and his Comets”, o primeiro grupo a fazer conhecer e a popularizar o rock à escala internacional. Lugar de destaque na exposição merece ainda a mítica figura de Elvis Presley, o jovem camionista que aos 19 anos gravou “That’s all right” apanhando Memphis de surpresa e provando que a fórmula inicial do sucesso popular do rock poderia residir “num branco que cantava e dançava como um negro”. � “Rock’n’Roll 39-59” Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, Paris Até 28 de Outubro
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Vieira da Silva no Centre Culturel Calouste Gulbenkian, em Paris
Vieira da Silva em Paris
Caligrafias do Olhar
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Antecipando as comemorações do centenário do nascimento da pintora, o Centre Culturel Calouste Gulbenkian apresenta, nas suas instalações em Paris, uma exposição de 44 obras de Maria Helena Vieira da Silva provenientes da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva e do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Uma exposição a desfrutar gratuitamente até ao próximo dia 28 de Setembro.
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Texto de Susana Paiva Imagens gentilmente cedidas pelo Centre Culturel Calouste Gulbenkian
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al como urgia, a obra de Vieira da Silva re- ������� Vieira da Silva, gressou à ribalta em Paris, oito anos após a última mostra no Musée Maillot e dezanove anos depois de uma grande retrospectiva, no Grand Palais, confirmando perante o público a sua genialidade. É numa exposição mais modesta, mas também mais intimista e humanizada, que esse público pode agora conhecer melhor a vida e obra da pintora, desfrutando de oito pinturas e uma gravura do acervo do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, e de três óleos, um guache e 31 trabalhos sobre papel, entre desenhos e gravuras, pertencentes à colecção da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. Instaladas nos pisos inferior e superior da antiga mansão de Calouste Sarkis Gulbenkian em Paris, no número 51 da Avenue D’Iéna, as 44 obras de Vieira da Silva revisitam cronologicamente os temas da sua predilecção. Encontram-se lá «as estruturas espaciais fechadas dos primeiros anos, os tabuleiros de xadrez e os arlequins, o tema da guerra e da angústia representada pelas quadrículas que aprisionam os personagens, bem como as suas pesquisas da maturidade sobre o espaço, que caracterizam as suas construções e bibliotecas». E encontra-se também nesse espaço uma ajustada e interessante dimensão entre «público» e «privado», movimento e imobilidade, fragilidade e fortaleza. De outro modo, uma bela homenagem à pin-
anos 30, Paris
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«Composition», oléo sobre tela, 1936
«La bibliothèque en feu», oléo sobre tela, 1974 �������
Vieira da Silva no Centre Culturel Calouste Gulbenkian, em Paris tora, na comemoração do 50o aniversário da Fundação Calouste Gulbenkian, instituição com a qual Vieira da Silva manteve uma longa relação, tendo aquela um enorme papel de relevo – sobretudo graças à acção de José Sommer Ribeiro, primeiro director do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão e grande amigo de Vieira da Silva – na divulgação da sua obra em Portugal, através da organização de exposições e aquisições e do apoio à realização do seu «Catalogue Raisonnée» e à criação da Fundação que tem o seu nome e o do pintor de origem húngara com quem se casou em 1930, Arpad Szénes. Comissariada por Marina Bairrão Ruivo, conservadora na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, e por Ana Vasconcelos e Melo, conservadora no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, a exposição mostra, nas palavras de Isabel Matos Dias, a diversidade e a unidade da produção artística da pintora, fazendo sentir ao espectador que a percorre o eco das palavras de René Char, seu grande amigo: «Vieira da Silva...múltipla e una.» �������
«Vers le 5 octobre 1789», lápis sobre papel, 1938
«Le 5 octobre 1789», óleo sobre tela, 1938 �������
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«Un jour de fête à Sienne», tinta e guache/papel, 1950
«Recherches abstraites», tinta sobre papel, 1936
Para a pintora que afirmou, na monografia «Vieira da Silva», ter compreendido que a sua pintura era uma escrita – escrita de uma mão activa que age e que vê, e que nos permite falar de uma caligrafia do olhar –, a escolha do lápis e de um papel frágil como suporte dos seus desenhos sublinha a precariedade da obra, uma dimensão de efémero que descobriu muito cedo na vida. Numerosos temas seus de eleição são representados nos desenhos agora expostos, evidenciando o desejo de Vieira da Silva de alcançar a infinita variedade das
«Claustra», litografia, 1989 �������
diferentes manifestações da vida ou não tivesse Vieira da Silva declarado: «Tudo me espanta. Pinto o meu espanto que é, à vez, maravilhamento, terror, riso». � Exposição «Vieira da Silva» Obras da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva e da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa Centre Culturel Calouste Gulbenkian Avenue D’Iéna, no 51 – Paris Até 28 de Setembro http://www.gulbenkian-paris.org
«Les arlequins», tinta azul/papel. c.1939-1940 �������
«René Char», água-tinta a açúcar/cobre, 1975 �������
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Mônica Passos
uando em 2004 o saxofonista americano Archie Shepp fundou “Archieball”, juntamente com Monette Berthonier, cumpria um sonho de juventude, o de criar a sua própria editora, um “instrumento de liberdade” que lhe permitisse alcançar o essencial para qualquer artista – um espaço de expressão onde pudesse contar a sua história. Hoje, quatro anos mais tarde, Shepp avança um pouco mais no campo dos sonhos alcançados ao assinar com a paulista Mônica Passos a edição do seu disco «Lemniscate», tornando-se assim a primeira artista a assinar pela Archieball. Reconhecida pelos seus pares como um caso singular no panorama musical francês, não só pelas suas capacidades vocais e de composição musical mas também pelas suas capacidades performativas, Mônica Passos é uma brasileira residente em França desde 1980 que desde cedo chamou a atenção da crítica especializada e dos festivais internacionais de jazz.Trabalhando regularmente na área da música e do teatro – onde se destacam os trabalhos em França com o encenador Augusto Boal, o pai do “Teatro do Oprimido”, e mais tarde com o colectivo Théâtre d’Oz com o qual desenvolveria «Les chiens aboient et la caravane Passos», projecto materializado em disco e num espectáculo largamente aclamado pela imprensa – Mônica Passos tem sabido reunir na sua prática performativa os conhecimentos adquiridos em ambas as áreas artísticas, criando interpretações onde surpreende, oscilando entre registos de diva e de «enfant terrible». Possuindo uma voz que o jornalista François Lacharme descreveu como «um mundo», Mônica Passos assume em «Lemniscate», nome do seu último trabalho discográfico que designa o símbolo matemático de “infinito”, as influências musicais que mais a marcaram ao longo do seu percurso musical criando uma obra discográfica que se revela simultaneamente refrescante e revivalista e que materializa na perfeição a ideia do seu
eterno retorno às raízes musicais. Dando voz a «Águas de Março», de Tom Jobim, «Riders on the storm», de Jim Morrison, «Avec le temps» e «La mémoire et la mer», de Léo Férré, «Les feuilles mortes», de Jacques Prévert e Joseph Kosma, «Odéon», de Georges Moustaki, Ubaldo Sciangula Mangioe e Ernesto Nazareth, «Rien de rien», de Michel Vaucaire e Charles Dumont – melodia mundialmente celebrizada por Édith Piaf –, Mônica Passos faz ainda uma incursão pelo canto lírico interpretando «Carmen», de Henry Meilhac, Ludovic Halevy e Georges Bizet, antes de nos brindar com três pérolas: «Lemniscate», «João y Maria – JYM» e «Valsa do amor perfeito», temas originais cuja criação divide com Jean-Philippe Crespin, seu director musical. Se desde 2005, altura em que foi distinguida com o prestigiado prémio Django D’Or para as Músicas do Mundo, Mônica Passos tem habitado regularmente a cena parisiense, deixando marcas duradouras em todos quanto tiveram a oportunidade de a ver e ouvir – recorde-se a sua participação, em Maio de 2007, no memorável concerto comemorativo do 70o aniversário de Archie Shep no âmbito das «Soirées Nomades» da Fondation Cartier pour l’art contemporain em Paris –, após o lançamento de «Lemniscate» no final do passado mês de Abril, 2008 não pode deixar de se prever como o ano em que a intérprete não dará tréguas aos palcos franceses, mostrando com todo o seu magnetismo aquilo que faz melhor, utilizar o corpo como uma extraordinária caixa de ressonância por onde flui a sua límpida e versátil voz, materializando entre melancolia e euforia universos que há muito deixaram de ser pessoais. Um trabalho a acompanhar atentamente, já a partir do próximo dia 23 de Maio, altura em que no Parisiense Café de la Danse fará o concerto de apresentação do
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seu novo trabalho. �
Em «Lemniscate», de Mônica Passos, ecoam palavras de Tom Jobim, Jim Morrison, Leo Ferré, Jacques Prevert... Entre Brasil e França, em português, inglês, francês e dando voz a múltiplos estilos musicais, se celebra o regresso da mais francesa artista brasileira desta feita pela mão da editora Archieball.
«Lemniscate», CD Archieball, www.archieball.com
Por Susana Paiva Fotografia Céline Poutas
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