LEMBRANÇAS DA CHINA
ALCIDES NOGUEIRA
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................2
“Eu amei loucamente uma pessoa e queria ir com ela para a China. Daí, descobri que ela não me amava e que a China era apenas um país.” Alcides Nogueira São Paulo, verão de 1985
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personagens
LAURA RUY ANA OTÁVIO
um ATOR, que representa o dono do bar, o analista, o policial, o enfermeiro da clínica, o namorado etc etc...
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São três espaços. À direita, a casa de LAURA e OTÁVIO. Um lugar que eventualmente se transforma em quarto, em sala, em banheiro, em qualquer dependência privativa deles. À esquerda, a casa de RUY e ANA. Com os mesmos fins da casa do outro casal. No centro, um espaço vago, onde se desenrolam todas as ações externas. É o bar, é a praça, é o motel, é a rua, é a cidade. A simultaneidade das ações e os flashes-backs são indicados por mudanças de luz, como se estivéssemos em um espaço onde o tempo discorre lento e rápido, como no cinema. Como na vida.
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CENA 01 - NO BAR UM BALCÃO. UM HOMEM QUE VENDE BEBIDAS, COM AR SEMPRE ENTEDIADO, QUE NÃO FALA NADA. SÓ OLHA, COM UM OLHAR DE URUBU MISTURADO COM UMA PENA INFINITA POR AQUELES QUE SÃO PARA ELE O QUE SOBROU DA HUMANIDADE. NO BALCÃO, UM TELEFONE. MESINHAS. EM UMA DELAS, DISPLICENTEMENTE SENTADO, RUY, ACOMPANHADO DE UMA JACA, COLOCADA TRIUNFALMENTE SOBRE A MESA. TEMPO. LAURA ENTRA, NERVOSA. VAI DIRETO AO BALCÃO. LAURA -
Posso telefonar?
SILÊNCIO ABSOLUTO DO DONO DO BAR. LAURA -
Posso telefonar?
TEMPO. LAURA -
Posso telefonar?
O HOMEM DO BAR SÓ OLHA. LAURA PEGA O TELEFONE. DISCA NERVOSAMENTE. ESPERA. NINGUÉM ATENDE. ELA BATE O TELEFONE. (T) LIGA DE NOVO. NINGUÉM ATENDE. (T) MAIS UMA VEZ. (T) DEZENAS DE VEZES. NUNCA NINGUÉM ATENDE. O HOMEM DO BAR AVANÇA E COLOCA EM FRENTE DELA UM DRINQUE. LAURA -
Eu não pedi nada... Obrigada...
COM O AR DE QUEM NÃO TEM NADA A VER COM AQUILO, O HOMEM DO BAR DÁ DE OMBROS. RUY PRESTA ATENÇÃO EM LAURA. DE VEZ EM QUANDO, ELE ACARICIA A JACA. LAURA -
Esse maldito telefone não atende.
RUY -
É porque não tem ninguém em casa.
LAURA -
Mas deveria ter. Está lá... Não pode ter saído...
RUY -
Saiu...
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LAURA -
Que saiu coisa nenhuma!... Como você sabe?... E, além do mais, ninguém perguntou nada pra você...
RUY Desculpe... LAURA VOLTA AO TELEFONE. TENTA DE NOVO. NADA... DESANIMADA, OLHA O DRINQUE À SUA FRENTE... BEBE UM GOLE... RUY -
Senta aqui...
LAURA -
Obrigada... Eu vou tentar de novo...
RUY -
Ele não vai atender...
LAURA -
Como você sabe que é ele?
RUY -
Tá escrito na sua cara. Com todas as letras. Brigamos e ele não quer atender.
LAURA ENCARA RUY, COMO QUERENDO ENFOCÁ-LO DIREITO. RUY -
(SORRINDO) Senta aqui... Eu não mordo...
LAURA PEGA SEU DRINQUE E AVANÇA ATÉ A MESA. RUY -
Esta é uma jaca!
LAURA -
Conheço jacas.
RUY -
É que tem gente que nunca viu uma jaca. Nem ouviu falar. Nem sabe que existe. Por isso, eu costumo apresentar.
LAURA -
Não estou muito pra brincadeiras.
RUY -
Nem eu... Só te convidei pra sentar e apresentar a minha jaca. (T) Ela não tem nome, mas você deve ter...
LAURA -
Claro... Laura...
RUY -
Ruy!
LAURA -
O que você está fazendo com uma jaca?
RUY -
Fomos expulsos de casa.
LAURA -
Fomos?
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................7 RUY -
É... Eu e ela... Nós dois... Eu e minha querida jaca... Daí, como nunca há lugar melhor para os expulsos de casa que os bares, estou aqui. Ou melhor, estamos. Nós dois. Um brinde?
LAURA -
Não... Sem espírito para brinde...
RUY -
Ele também te deu o cano?
LAURA -
Por que você insiste que é “ele”?
RUY -
Olha, Laura, há muita coisa que a gente não percebe. Mas mulher ferida é um negócio que me bate assim na cara, entra nos meus olhos, chega no coração e pronto: não há como errar!
LAURA -
Não... Eu não levei um cano... Eu dei um cano!... Quer dizer, não sei se foi cano... Foi tão terrível... Tão desastroso... Tão louco...
RUY -
Então, não conta... Que eu já estou com a cabeça fervendo de coisas loucas. Não cabe mais nada. (T) Por que nós casamos? Por que, de repente, a gente tem um impulso incontrolável, fica com um medo danado, e resolve que TEM de escolher alguém... TEM de ficar com alguém... e TEM de repartir a vida com alguém? Vida não se reparte. Vida se vive. Só isso. Sozinho. Por aí... No mundo... Se o homem é um bicho solitário, que ele continue solitário... Ou, no máximo, que escolha uma jaca para parceira...
LAURA -
Não dá pra fazer muita coisa com uma jaca!
RUY -
É verdade... Mas, por enquanto... Com o tempo, acontece a osmose. Então, ou ela passa a ter reações humanas, ou eu passo a ter sentimentos jacais!
LAURA -
Você é louco!
RUY -
Antes fosse!!! (T) Mas, e daí, por que você deu o cano nele?
LAURA -
Não foi cano... É uma crise! (T) E você, por que ficou com ela?
RUY -
Com quem?
LAURA -
Com a jaca, óbvio! Por que, pelo jeito, a opção que te deram foi assim: ou eu ou a jaca!
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RUY -
Exatamente. E eu fiquei com a jaca!
LAURA -
Ela não te queria mais?
RUY -
Por que você insiste em usar um “ela”?
LAURA -
Não vem roubando minhas frases não... A gente deve estar no mesmo barco...
RUY -
Bom, eu não sei pra onde vai indo o seu, mas o meu atracou aqui mesmo. Neste bar. (T) As pessoas não sabem que a gente tem desejos secretos. Desejos que aparecem assim, de repente, como uma visita inesperada. E que entram pela cabeça e chegam ao coração e pronto... Não há mais o que fazer...
RUY LEVANTA-SE COM A JACA E VAI PARA CASA. CORTA.
CENA 02 - NA CASA DE RUY RUY ENTRA FELIZ, COM A JACA. ANA POR ALI. RUY -
Veja o que eu trouxe.
ANA -
O quê?
RUY -
Comprei uma jaca para nós.
ANA -
Uma o quê? Não, pelo amor de Deus, você não trouxe uma JACA pra dentro de casa... Isso não!
RUY -
Claro que trouxe! Estava morrendo de vontade de comer jaca... Daí, passei ali pela quitanda e quando eu vi, não resisti... Ela tinha de ser minha!
ANA -
Eu tinha pedido só um maço de espinafre! Além de tudo, eu ODEIO jaca.
RUI -
Eu ADORO jaca.
ANA -
Pois você fica com ela. Que eu vou comer fora!
RUY -
Mas hoje é o meu aniversário. Achei que podia escolher o que mais gostava.... E o que mais gosto é jaca! Você quer me empurrar espinafre mas eu não gosto de espinafre! Eu tenho trauma de espinafre! Minha mãe me enfiava espinafre goela abaixo,
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................9 dizendo que eu tinha que ficar forte, e eu nunca gostei de espinafre. ANA -
Meu amor, você paga análise exatamente pra isso! Se o teu complexo de Édipo... se a tua relação com o mundo ainda não foi resolvida, não sou eu que vou ficar aqui, plantada feito uma idiota, vendo você devorar essa jaca, e morrendo de fome...
RUY -
Ana, mas é o meu aniversário... Você podia...
ANA -
Detesto aniversários... Os seus, os meus, os nossos, os dos nossos filhos...
RUY -
Nós não temos filhos!
ANA -
Eu detesto os aniversários dos filhos que nunca tivemos! É isso!
RUY -
Nós vamos comer esta jaca... Com velinha em cima e tudo... E cantar parabéns, e usar chapeuzinho, apito, tudo o que temos direito... É meu aniversário...
ANA -
Pois você vai armar o seu circo em outro lugar. Nesta casa não... Não é porque é o dia do seu aniversário que você vai me desrespeitar!!! E quer saber de mais uma coisa? Eu estou cheia !!!
RUY -
Cheia, vazia, neurótica, cansada, descansada, ou qualquer coisa, nós vamos cantar parabéns e comer esta jaca! E ainda chamar todo mundo do prédio pra participar da festinha!
ANA -
Você vai é embora daqui com essa fruta fedorenta!
RUY -
Ela não é fedorenta!
ANA -
Claro que é... Passei o dia inteiro limpando este maldito carpete, passando pano molhado nos móveis e tudo e você vem com essa tralha???? TIRA ESSA JACA DO MEU SOFÁ!!!!
RUY -
Não grita com a minha jaca!!!!
ANA -
Grito quando e com quem eu quiser... Com ela, com você, com o mundo!!! Vou lá pra janela, abro, enfio a minha cara na cara das pessoas e dou o maior berro. Ensurdeço a cidade!!! Duvida??? Duvida??? Quer ver???
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RUY -
Não... Pelo amor de Deus... Eu não suportaria...
ANA -
Como eu não suporto a presença dessa coisa aqui em casa... Olhe aqui, Ruy... Estou falando sério... Nunca falei tão sério na minha vida!!! TIRA ESSA MERDA DE JACA DAQUI !!!!
RUY -
Não tiro!
ANA -
Então, eu boto vocês dois pra fora!
RUY -
Mas é o meu aniversário!
ANA -
No dia do seu aniversário e tudo... Assim, sua neurose aumenta ainda mais, sua rejeição fica do tamanho do mundo e você enlouquece de uma vez! E eu fico livre!!! FORA!!! FORA DE CASA!!!
CORTA.
CENA 03 - NA CASA DE LAURA LAURA -
Nunca! Nunca imaginei que você fosse fazer isso comigo... Pra usar a expressão mais barata que eu conheço: o mundo desabou aqui embaixo... Olha, bem aqui embaixo dos meus pés...
OTÁVIO -
Você está fazendo tempestade em copo d’água!
LAURA -
Tempestade em copo d’água? Descubro uma carta na sua bolsa, abro, leio, vejo que é uma carta de amor... Tonta, penso que é pra mim, me emociono... Depois, percebo que você não está escrevendo pra mim! É para outra! E vem você vem me falar que estou fazendo tempestade em copo d’água? Pelo amor de Deus, Otávio...
OTÁVIO -
Não é outra! É outro!
LAURA -
Como?
OTÁVIO -
É... É para um homem...
LAURA -
Você... Você está tentando, por acaso, me dizer que está apaixonado por um ... um homem? Está querendo me contar que virou bicha...? Viado???? PEDERASTA????
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OTÁVIO -
Cala essa boca! Não é nada disso... É uma relação amorosa, afetiva, como qualquer outra... Só que homossexual!
LAURA -
Não... Não é possível!... Você diz isso com toda a calma... Como se fosse a coisa mais natural do mundo... Uma relação afetiva como qualquer outra.... Não, você não passa de um viado... UM VIADO. Eu vou lá fora, vou abrir essa janela aí e botar a boca no mundo. EU ME CASEI COM UM VIADO!
OTÁVIO -
Laura, por favor, você não é assim... Você é inteligente, sensível, informada... Você não tem preconceitos, Laura... Por que isso?
LAURA -
Porque baixou o bicho em mim. Um bicho enorme, que não tem censura, que não tem medo, que não tem vergonha. Eu quero abrir essa janela e berrar para o mundo que me casei com um viado!
OTÁVIO -
Por favor!
LAURA -
Não me peça por favor... Agora não! Você não sabe o que estou passando... O tamanho da minha humilhação... Eu estou sofrendo...
CORTA.
CENA 04 - NAS CASAS DE LAURA E RUY ABREM-SE AS JANELAS. LAURA, EM SUA CASA, E ANA, NA DELA. GRITAM, SIMULTANEAMENTE. LAURA/ANA -
FORA DAQUI! FORA DAQUI! FORA DAQUI!
CORTA.
CENA 05 - NO BAR LAURA E RUY SENTADOS. DESOLADOS. ARRASADOS. RUY -
Te chocou tanto assim?
LAURA -
Não sei... Depois fiquei desesperada...
RUY -
Ele saiu?
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LAURA -
Saiu. Parecia um cachorinho com o rabo entre as pernas... Enxotado... Me deu um nó horrível na garganta...
RUY -
Como eu.
LAURA -
Você sentiu esse nó também?
RUY -
Não. Me senti como o cachorrinho... É terrível...
LAURA -
Ai, meu Deus....
RUY -
E pra que você estava ligando pra lá?
LAURA -
Pra ver se encontro o Otávio. A gente precisa conversar... Não podemos ficar assim... Somos adultos... Somos racionais... Estamos casados há um tempão...
RUY -
Eu já liguei pra minha casa.
LAURA -
E daí?
RUY -
E daí que o telefone está fora do gancho. Só dá ocupado.
LAURA -
A Ana deve estar contando pra alguém...
RUY -
Não. Ela nunca contaria esse tipo de coisa nem pra melhor amiga dela... Ela morre de vergonha de dizer que tem uma parte fraca. E que essa parte fraca é justamente o seu marido...
LAURA -
Você gosta dela?
RUY -
Não sei...
LAURA -
Eu também não sei... Por isso que fico pior ainda quando me lembro do que fiz. Eu não tinha o direito de agredir o Otávio daquele jeito... Poxa, é uma opção sexual, como qualquer outra... É que dói!
RUY -
Dói porque você se sente trocada.
LAURA -
Como a Ana deve ter se sentido com relação à jaca!
RUY -
Mas eu não trepo com a jaca!
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................13 LAURA -
Mas ia comer a jaca! Isso não diz nada pra você? Há quanto tempo você não vai pra cama com a Ana? Aposto que faz um tempão...
RUY LAURA -
É... Faz... Perdi o tesão... Como acha que ela deve estar se sentindo?
RUY -
Mas como ir pra cama com um quilo de creme contra ruga, mais cinquenta e seis produtos naturais pela cara inteira, o cabelo enrolado numa touca pra fixar a hena? Não dá... Prefiro a jaca!
LAURA -
Ontem mesmo eu transei com o Otávio.. Foi tão bom... Ele estava tão carinhoso...
RUY -
Devia estar pensando no outro.
LAURA -
Pára com isso!
RUY -
É verdade! Se hoje eu for para a cama com a Ana, vou estar pensando na jaca... Ou em você...
LAURA -
Você pensaria em mim?
RUY -
Por que não?
LAURA -
Você acha que eu pareço uma jaca?
RUY -
É que me bateu uma coisa... Assim, de repente... Eu não sei o que é... Talvez...
CORTA.
CENA 06 - NA CASA DE LAURA UMA CAMA. OTÁVIO, SOLITÁRIO, FUMANDO. (T) LAURA ENTRA. LAURA -
Oi.
OTÁVIO -
(SILÊNCIO)
LAURA -
Eu liguei mil vezes pra cá... Estava preocupada...
OTÁVIO -
Não devia... Quem se dá ao luxo de abrir a janela e ficar gritando feito uma louca, não tem que ficar preocupada com nada...
LAURA -
Mas eu fiquei...
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OTÁVIO -
Por quê? Medo de que eu pulasse no rio? Medo de que desse um tiro na cabeça, tomasse um porre, ou medo de que eu fugisse?
LAURA -
Medo que você fugisse...
OTÁVIO -
Pensei que você nem quisesse mais me ver...
LAURA -
Otávio, as coisas não são assim... A gente tem ficado junto, tem segurado as barras, tem procurado ser honesto um com o outro...
OTÁVIO -
Não é verdade! Você não foi honesta comigo hoje...
LAURA -
Eu fiquei baratinada... Você não ficaria?
OTÁVIO -
Sabe qual o problema, Laura? Não foi o fato de você ter lido aquela carta... Muito menos de saber que há um homem na minha vida... O problema é que você está com medo de ficar sozinha... De ter me perdido... Mas será que você não me perdeu há muito tempo? Será que não fui procurar outra pessoa exatamente por isso? Porque nós não estávamos mais juntos?
LAURA -
Mas... mas por que um homem?
OTÁVIO -
Preconceito?
LAURA -
Curiosidade. Melhor: será que você não achou um homem exatamente por não querer achar outra mulher? Por que meu lugar ainda não pode ser ocupado?... Com um homem é mais fácil... É outro tipo de relação... Você não precisa me destruir... Você fica com a mulher e preenche as suas outras necessidades com ela... Não há troca, percebe? Não há substituição... Mas isso não é uma coisa muito mesquinha, muito pequena da sua parte? Será que eu concordo com isso?
OTÁVIO -
Não me encha de perguntas... Eu já tenho tantas na minha cabeça...
LAURA -
Você quer se separar?
OTÁVIO -
Não. Por favor.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................15 LAURA ACENDE UM CIGARRO. OS DOIS FUMAM EM SILÊNCIO, NA CAMA. SEM SE TOCAR. CORTA.
CENA 07 - NA CASA DE RUY PENUMBRA. RUY ENTRA, COM SUA JACA, EM SILÊNCIO. DEPOSITA A JACA SOBRE A MESA. FICA UM TEMPO OLHANDO PARA ELA. (T) SURGE ANA, DÓCIL, DO OUTRO PONTO. ANA -
Fiquei com medo que você não voltasse mais.
RUY -
Eu ainda moro aqui.
ANA -
Eu gritei.
RUY -
Não precisa repetir, Ana. Eu ouvi. Ouvi muito bem. Ah, desculpe, eu vou tirar a jaca de cima da sua preciosa mesinha.
ANA -
Pode deixar.
RUY -
É mesmo?
ANA -
É... Ela até que fica bonita aí... É como se a gente vivesse num país tropical!
RUY -
A gente vive num país tropical! Quer dizer, eu vivo num país tropical. Você, não sei onde vive... Realmente, eu não sei onde vive...
ANA -
Você está furioso, não é?
RUY -
Por incrível que pareça, não!
ANA -
Eu tenho sido péssima com você...
RUY -
Tem.
ANA -
Não me lembro há quanto tempo não te digo uma c coisa gentil...
RUY -
Nem eu.
ANA -
Não te faço um agrado, não te conto uma coisa gostosa, não te digo suavemente que te gosto...
RUY -
Você gosta?
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................16 ANA -
Eu fiz uma coisa pra você!
RUY -
Um vudu!
ANA -
Não... Apague a luz...
RUY -
Já está quase apagada... Mais, eu me perco... Não gosto do escuro, nunca gostei...
ANA -
Então, espera um minutinho...
ANA SAI CORRENDO. RUY AINDA GRITA. RUY -
Vai trazer uma bomba-relógio, é isso?
ANA VOLTA COM UM BOLO DE ANIVERSÁRIO. NÃO CANTA. RECITA LENTA E MONOCORDICAMENTE. ANA -
Parabéns pra você. Nesta data querida. Muitas felicidades. Muitos anos de vida.
RUY -
Não!!! Não é possível!
ANA -
Pode assoprar!
RUY -
Deixe que elas queimem até o fim!
ANA -
Eu procurei um presente pra você e não achei!
RUY -
O que era?
ANA -
Um corta-jaca! Depois eu descobri que corta-jaca é só um ritmo... Não é uma coisa... Como sou louca, não? Sabia que existia uma palavra chamada cortajaca e aí eu pensei: “Se o Ruy é louco por jaca, então vai gostar de ganhar um corta-jaca de aniversário!” Mas não achei nenhum por aí... Depois, fiquei sabendo que era um ritmo... Você quer um ritmo de presente de aniversário?
RUY -
Esquece.
ANA -
Então, um beijo.
RUY, AO INVÉS DE BEIJAR ANA, SOPRA AS VELAS VIOLENTAMENTE. CORTA.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................17
CENA 08 - NA RUA RUY ESPERA ANSIOSAMENTE, ANDANDO DE UM LADA PARA O OUTRO. CHOVE. ESTÁ COM GUARDA-CHUVA. UM PACOTE NA MÃO. (T) LAURA SURGE, DE GUARDA-CHUVA E ÓCULOS ESCUROS. RUY -
Pra que esses óculos escuros?
LAURA -
Não quero que ninguém me veja por aqui!
RUY -
O que é isso?
LAURA -
Ora, você me chama correndo... Diz que precisa muito me ver... Eu não devia ter dado meu telefone...
RUY -
Não deu. Eu roubei.
LAURA -
Roubou?
RUY -
Ontem, quando você foi ao toilette do bar, eu revistei sua bolsa...
LAURA -
Eu não tenho meu telefone na bolsa... Você está me enganando...
RUY -
Ou você está esquecida... Achei um cartãozinho que dizia assim: EM CASO DE PÂNICO, PIRAÇÃO OU ACIDENTE AVISE MEU MARIDO.... OTÁVIO, TELEFONE.... E MEU ANALISTA.... TELEFONE...
LAURA -
(SILÊNCIO)
RUY -
Você sempre tem isso?
LAURA -
Isso o quê?
RUY -
Esse medo de se perder, de precisar que alguém avise seu marido... essas coisas todas...
LAURA -
Não! Só pânico!
RUY -
Você é maluca!
LAURA -
Se foi pra isso que me ligou, com licença que eu tenho mais o que fazer.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................18 RUY LAURA -
Não... Não... Como terminou sua história? Falou com ele? Comecei. Mas fiquei tão emocionada que nem consegui dizer tudo o que pensava.
RUY -
Eu também. Ganhei um bolo de aniversário.
LAURA -
Com velinha? É mesmo? (T) E a jaca? Não vai me dizer que jogou a jaca fora só porque a Ana não suporta jaca?
RUY -
E eu sou louco? Por isso chamei você aqui... Pra comemorar meu aniversário comigo... Ontem não valeu... Vamos para um motel!
LAURA -
Que vamos para um motel coisa nenhuma. Eu sou uma mulher casada!
RUY -
Com um cara que está casado com outro cara!
LAURA -
Isso não tem nada a ver!
RUY -
Nós vamos para um motel. É meu aniversário.
LAURA -
Foi seu aniversário. E, além disso, você nem sabe se quero ir pra cama com você...
RUY -
Nós vamos para um motel comer a jaca...Olha ela aqui...
RUY DESEMBRULHA O PACOTE. TIRA A JACA. LAURA -
Parece meio passada...
RUY -
Está no ponto. Se não for comida hoje, apodrece. (T) Cansei de perder coisas. Cansei de ver coisas apodrecerem. Principalmente as minhas.
CORTA.
CENA 09 - NA CASA DE LAURA UMA MESA. OTÁVIO, NERVOSO, ESCREVE UMA CARTA. ESCREVE, ESCREVE, ESCREVE. LUZ SE ACENDE TAMBÉM EM CASA DE RUY. OTÁVIO CONTINUA ESCREVENDO.
CENA 10 - NA CASA DE RUY
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ANA LÊ UMA CARTA EM VOZ ALTA. ANA (LENDO) Não me espere para o jantar. O seu bolo de aniversário estava delicioso mas resolvi comemorar o meu dia de outro jeito. Sei que hoje já não é mais meu dia, mas será se eu quiser. Cansei de ter todos os meus aniversários comemorados pelas mães e esposas do mundo. Nunca quis fazer festinha pra amigo e sempre me fizeram aquelas coisas idiotas. Sempre quis ganhar uma pistola e me deram postinho de gasolina. Uma vez, até um guarda-chuva. Desde quando guarda-chuva é presente de aniversário? Por isso, saí por aí... Eu e a minha jaca... Que vai ser comida solenemente. Sei que nem preciso me preocupar com você, pois você odeia jacas e aniversários. De qualquer forma, foi bom saber que você é boleira. Quem sabe, um dia, a gente faça um lindo bolo de bodas de prata. Ou de bodas de água. Ou de bodas de nada. Beijos, Ruy. CORTA NAS DUAS CASAS.
CENA 11 - NO MOTEL UMA CAMA REDONDA. LAURA E RUY DEITADOS, DE ROUPA. A JACA, COMIDA, JAZ A UM CANTO. LAURA -
Que bonito que é um motel! Parece brinquedo! Eu nunca tinha vindo num...
RUY -
Nem eu...
LAURA -
Quer saber de uma coisa? Todas as minhas fantasias eróticas passam por uma cama redonda, com luz negra, espelho, vídeo pornô, rampa que leva pra piscina... Essas coisas que têm por aqui...
RUY -
E por que você nunca convidou o Otávio pra vir pra um?
LAURA -
Não sei... Talvez ele não seja meu parceiro erótico ideal...
RUY -
Você já pensou nisso?
LAURA -
Fico bloqueada.
RUY -
Eu também.
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LAURA RUY -
Você também o quê? Nunca consegui vir prum motel com a Ana. Ela já me convidou vinte mil vezes. Mas eu tenho medo de pegar doença.
LAURA -
Não acredito!!! Você, com essa cara de garanhão? Com esse jeito de quem já passou a mulherada toda na cara? Com medo de pegar doença venérea? Não... Isso é piada...
RUY -
Eu tenho medo de mulher!
LAURA -
Não, pelo amor de Deus... Outro, não!!!
RUY -
Não é o que você está pensando... Eu acho que mulher é uma coisa meio mágica, meio bruxa... Me dá medo!... Medo de que ela me domine, me pegue assim pelo braço e me vire inteiro... Me revire... Me deixe atarantado, confuso, girando feito um pião...
LAURA -
Até hoje você só transou com a Ana?
RUY -
Pergunta rejeitada.
LAURA -
Eu não sei se transaria com você.
RUY -
Você já foi pra cama com outro homem além do Otávio?
LAURA -
Depois de casada não...
RUY -
Por quê? Medo do inferno? Medo do pecado? Medo do quê?
LAURA -
Não é medo... É que eu acreditava na tal da fidelidade!
RUY -
Não acredita mais?
LAURA -
Mudou tudo.
RUY -
Por causa da carta que você leu? Por causa do carinha que está com ele?
LAURA -
Não. Por sua causa!
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................21 SILÊNCIO ENTRE OS DOIS. RUY PEGA SUAVEMENTE NA MÃO DE LAURA. ESTA SE DEIXA PEGAR... LAURA COLOCA A CABEÇA NO OMBRO DELE... UMA COISA SUAVE... QUASE ASSEXUADA... RUY Preciso te dizer uma coisa. Eu fui cruel com você. LAURA -
(SILÊNCIO)
RUY -
Quando eu brinquei com a estória do seu cartãozinho. Aquele que dizia: EM CASA DE PÂNICO, PIRAÇÃO OU ACIDENTE...
LAURA -
Não fala disso agora não...
RUY -
Eu também entro em pânico. Frequentemente. De repente, meu coração acelera, a boca seca, vem um troço na garganta, uma sensação de desmaio, de desrealização, de que vou sumir, evaporando, me perder pra sempre... É terrível!
LAURA -
É o que eu sinto. O que você faz?
RUY -
Entro em pânico! (T) Você me desculpa?
LAURA -
Não tem que pedir desculpa... É assim mesmo... E não deixa de ser engraçado alguém ficar com um cartãozinho desses na bolsa...
RUY -
Não é engraçado... É terrível... principalmente porque as pessoas não acreditam no pânico. Fica parecendo frescura.
LAURA -
Eu entro em pânico sempre.
RUY -
Sempre sempre?
LAURA -
Quando me vem uma sensação absoluta de perda, de que não vou conseguir. Quando eu me sinto rejeitada, perdida. Quando eu vejo que não entendo o mundo. Não porque não quero. Mas porque há uma barreira enorme e invisível entre o mundo e eu.
RUY -
Eu sei como é isso.
OS DOIS SE ABRAÇAM VIOLENTAMENTE. COMEÇAM A SE AMAR. RUY -
Parece que tudo vai sumir.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................22 LAURA -
Parece que eu tenho que me agarrar em alguma coisa, em alguém, para que não suma, para que não me desintegre!
RUY LAURA -
Agarra em mim! Agarra em mim você! O pânico fica menor! A gente, junto!
RUY -
Você NÃO é o meu amor, mas eu te amo!
LAURA -
(SILÊNCIO)
OS DOIS SE AMAM VIOLENTAMENTE, ABRAÇADOS, ROLANDO. CORTA.
CENA 12 - NA CASA DE RUY A MESA ESTÁ CHEIA DE BOLOS DE ANIVERSÁRIO. MUITOS BOLOS. INFINITOS BOLOS. ANA, DE CHAPEUZINHO NA CABEÇA, ACABANDO DE ACENDER AS VELAS DAQUELA BOLARIA TODA. RUY ENTRA. PÁRA, VENDO TUDO AQUILO. RUY -
Está com medo de me perder?
ANA -
Feliz aniversário. De novo.
RUY -
Foi ontem.
ANA -
Você disse que não valeu... A gente não comemorou...
RUY -
Não precisava...
ANA -
Você não vai apagar as velinhas?
RUY -
Você já fez bolo pra mim ontem... Está com medo de que eu vá embora? De que eu fuja? De que eu suma?
ANA -
Por favor, Ruy... Por favor...
OLHAM-SE, SEM NENHUM MOVIMENTO. CORTA.
CENA 13 - NA CASA DE LAURA OTÁVIO, NERVOSO, ESPERANDO POR LAURA. ESTA SURGE, EM PAZ. CALMA. OTÁVIO ESTÁ COM UMA CARTA NA MÃO.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................23 OTÁVIO -
Eu acabei com ele. Escrevi uma carta. Expliquei que não era nada daquilo. Que te amo. Que quero mesmo é ficar com você... Que não vou trocar a nossa relação... estável, boa, saudável... por outra coisa que nem sei o que é ... Toma, lê a carta!
LAURA -
Estou exausta, Otávio. Depois, já cansei de ler cartas que não são para mim!
OTÁVIO -
Eu preciso que leia esta carta. Por favor, Laura.
LAURA -
Não me peça por favor... Hoje, não!
OTÁVIO -
Aconteceu alguma coisa?
LAURA -
Entrei em pânico!
OTÁVIO -
Isso é frescura.
LAURA -
É... É sim...
OTÁVIO -
Leia esta carta, Laura. Estou pedindo. Por favor, Laura... Estou implorando... Estou mandando!
LAURA -
Leia você, e depois me conta!
OTÁVIO -
Eu sei tudo o que está escrito nela.
LAURA -
Que bom... Nem vai precisar ler!... Eu vou tomar um banho!
OTÁVIO -
A carta, Laura... Eu acabei tudo com ele... Eu quero ficar com você!
LAURA -
(SAINDO) Que bom, Otávio... Você é muito gentil! E eu sempre dependi da bondade alheia...
LAURA SAI. OTÁVIO ABRE SUA PRÓPRIA CARTA E LÊ. EMOCIONADO. CORTA.
FICA
CENA 14 - NA CASA DE RUY RUY ESTÁ LENDO UM LIVRO. RI DE VEZ EM QUANDO. ANA ENTRA. PÁRA. PRESTA ATENÇÃO. ANA -
O que você está lendo?
RUY -
Uma estória. De aventura.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................24
ANA -
Boa?
RUY -
Ótima.
ANA RUY -
Lê pra mim? Você não ia gostar...
ANA -
Você não sabe... Do que se trata?
RUY -
Dois moleques que constroem um túnel, que começa num terreno baldio e vai dar do outro lado do mundo. Daí, eles ficam de ponta-cabeça, porque estão do outro lado do mundo, mas pelo buraco, eles são capazes de enxergar o que acontece no lado onde estavam antes...
ANA -
Que graça tem isso?
RUY -
Nenhuma. Só a possibilidade de você inverter toda a sua vida!
ANA -
E que graça tem em se inverter toda a vida? É bobagem...Você fica do mesmo jeito... É só uma questão de ângulo!
RUY -
Talvez seja... Mas é engraçado...
ANA -
Você não foi à análise hoje?
RUY -
Não. Preferi ir para um motel.
ANA -
Que ótimo! Com quem?
RUY -
Com ninguém! Fui comer aquela jaca que estava empesteando sua linda casinha. No motel, eles não fazem conta.
ANA -
Você está louco. Devia se internar.
RUY JOGA O LIVRO. AGARRA ANA, FORTEMENTE. RUY -
Você acha mesmo? Por quê? Pra te deixar solta, numa boa? Quem sabe não seja essa a melhor solução mesmo????
ANA -
Me solta, Ruy... Você está me machucando!
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................25 RUY -
Eu tenho duas alternativas. Ou eu construo um buraco, um túnel, que vare o mundo e me deixe do outro lado da Terra, ou então te mato. Assim acabo com a minha prisão.
ANA -
Pára com essa brincadeira.
RUY -
Te assustei?
RUY SOLTA ANA, QUE PROCURA FICAR MEIO LONGE DELE. ANA -
Assustou. Eu nunca sei quando você está falando sério, quando está brincando... Você nunca olha pra minha cara e me diz algo decente... Algo que não seja um “oi”, ou “como vai”... nem um “vamos pra cama?”... Sabe o que é isso? In-co-mu-ni-ca-bi-li-dade!!!! Você sofre desse mal, meu querido. De uma total incomunicabilidade com os seres humanos. Não vai adiantar nada você me matar. Ou cavar um túnel. A menos que você cave esse túnel aí, dentro de você. Que remexa sua cabeça até entender por que diabos você é tão intolerável...
RUY -
Por que você está comigo?
ANA -
Pelo mesmo motivo que você está comigo. Medo dessa bruxa velha chamada solidão. Certo?
RUY -
Certo!
RUY PEGA O LIVRO E CONTINUA A LER. RUY -
Você sabe onde existe um terreno baldio nesta cidade?
ANA -
Perto do rio. Mas não dá pra cavar nenhum túnel.
RUY -
Certo!
CORTA.
CENA 15 - NO TERRENO BALDIO PERTO DO RIO RUY ENTRA E FICA VENDO O TERRENO. EXAMINA A ÁREA. AFOFA A TERRA COM O PÉ. SENTA POR ALI. FICA OLHANDO. CORTA.
CENA 16 - NA CASA DE LAURA
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................26
UMA BANHEIRA. LAURA DENTRO. QUASE DORMINDO. BATIDAS À PORTA. LAURA -
(SONOLENTA) Quem é?
OTÁVIO LAURA -
(OFF) Otávio. Me deixa em paz.
OTÁVIO -
(OFF) Quero falar com você!
LAURA -
Não tem nada que falar, Otávio... Eu estava sonhando... Um sonho estranho. Que, de repente, eu achava um caminho e ia seguindo por ele... Um caminho que me levava daqui, da mediocridade da minha vida, desta cidade, desta casa... de tudo... Um caminho que saía do chão e ia para dentro de mim... Até o centro do meu peito... Lá, tinha um bauzinho no meio de um terreno baldio... Um bauzinho de prata, que eu abri... E, de dentro foi saindo toda a minha vida: minha infância, as bruxas, as fadas, até aquelas que eu nunca vi... Minha mãe, meu pai... Daí, eu não quis mais ver o que saía do bauzinho... Mas saiu um livro muito velho, que me dizia que eu ia ficar que nem a carochinha... enrugadinha... cheia de pelanca... e em pânico!!! Em pânico pro resto da minha vida! Eu até disse que era casada e tudo, mas uma lagartixa enorme saiu de um matinho, o que tinha do lado, e só riu na minha cara... “Você já têve orgasmo? Não???? Então, foda-se!!!”
OTÁVIO -
(OFF) Abre, Laura... Tem um cara aí querendo falar com você!
LAURA -
Não quero falar com ninguém... Nem com o Ruy!
OTÁVIO -
(OFF) É o Ruy!!!!
CORTA.
CENA 17 - NA CASA DE RUY RUY ENTRA PUXANDO OTÁVIO. OTÁVIO -
Mas eu não quero conhecer nada!
RUY -
Você tem de conhecer! Esta é a MINHA casa... Esta é a poltrona onde fico horas sentado, imaginando todas
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................27 as coisas da minha vida... Estes aqui são meus discos... Adoro Wagner... Você gosta de Wagner? Não? OTÁVIO -
Você é maluco!
RUY -
Claro que sou maluco! Eu dormi com a sua mulher. Sabia? Sabia ou não sabia?
OTÁVIO -
Eu não vou ficar aqui ouvindo barbaridades... Você aparece na minha casa, quer falar com a Laura, eu digo que ela está no banho, há horas no banho, você me rapta pra sua casa à força... O que é isso????
RUY -
Você não gostou?
OTÁVIO -
Claro que não gostei. Você não tem o direito de invadir a minha privacidade. De entrar na minha vida.
RUY -
Eu já estou dentro dela muito mais do que você imagina. (T) É verdade que você acabou tudo com ele?
OTÁVIO -
O que é isso? Quem lhe contou essas coisas?
RUY -
Eu estou apaixonado por sua mulher. Ela por mim. A gente não tem segredo. Olha, cara, eu dou a maior força. Não vou pra cama com homem, mas acho que ninguém tem nada a ver com isso. Se você quer dar, o rabo é teu!
OTÁVIO -
Não seja grosso!
RUY -
Eu vou chamar a Ana! Você precisa conhecer a Ana! (GRITANDO) Ana, Ana, vem cá!!!
ANA APARECE, COM A CARA REBOCADA DE CREMES, ETC... ANA -
Pelo amor de Deus, Ruy, você devia ter me avisado que tinha gente aqui.
OTÁVIO -
Me desculpe... Eu não vim porque quis!
RUY -
Ela usa tudo isso na cara mas por baixo é mulher mesmo. É gente! Não é tão bonita como Laura, mas é mulher! E a gente tenta transar numa ótima. Não é, Ana?
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................28 ANA -
Pare com essa palhaçada!
RUY -
Não é palhaçada!!! E agora, com licença... Vocês ficam aí, que tenho mais o que fazer!
OTÁVIO ANA -
Eu vou embora.... Por favor, fique... Ele está sendo meio deselegante mas a gente não costuma...
RUY DEIXA OS DOIS ALI, E SAI CORRENDO DA CASA. OTÁVIO -
Meio deselegante? Tudo isso aqui é uma loucura, uma grosseria...
ANA -
Aceita um chá?
OTÁVIO -
Aceito.
ANA -
Um momento.
DE ALGUM LUGAR POR ALI, ANA TIRA UM BULE E DUAS CHÁVENAS. SORRI PARA OTÁVIO. ANA -
O chá já estava pronto!
OTÁVIO -
Você não prefere tirar essa coisa toda da cara?
ANA -
Você se importa?
OTÁVIO -
Não!
ANA -
Nem eu... Afinal, você já é de casa... Está bom de açúcar?
OTÁVIO -
Ótimo!
CORTA.
CENA 18 - NO TERRENO BALDIO PERTO DO RIO LAURA, DE ROUPÃO ARRASTADA POR RUY.
DE
BANHO
E
TOUCA,
ENTRA,
QUASE
RUY -
É aqui.
LAURA -
Aqui onde?
RUY -
Aqui. Se a gente cavar, conseguimos fazer o túnel.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................29
LAURA -
Não sei se eu quero ir para o outro lado da Terra. Além do mais, o que eu vou fazer com o Otávio?
RUY -
Você não vai querer levá-lo conosco, não é?
LAURA -
Eu não posso viver sem ele... Acho...
RUY -
Acha ou tem certeza?
LAURA -
Como é você com relação à Ana?
RUY -
Também só acho.
LAURA -
Então, se a gente fica só nesse acho, é melhor desistir. Você vai para a sua casa, eu vou para a minha. Nós esquecemos tudo, esquecemos que nos conhecemos, que sabemos quem é o outro, e pronto.
RUY -
Não dá mais... A gente já comprou as passagens.
LAURA -
Para a China?
RUY -
É... Para a China... (T) Você nunca quis conhecer a China?
LAURA -
Não sei... Eu já quis conhecer tanta coisa... O Paraguai, a Índia, Poços de Caldas, o outro lado da cidade, onde eu nunca fui... Mas, de repente, me dá uma preguiça, uma coisa que vem por dentro, e eu digo:”Ah, não vou fazer viagem nenhuma...” Daí, vou para o cinema, para o teatro, leio um livro, ouço uma música e pronto...Viajo...
RUY -
Essa viagem é completamente diferente... É para uma China sem chinês... Uma China onde ninguém come de palitinho, onde não houve Mings, Lings, Maos e Revoluções Culturais. É uma China que está lá, do outro lado. Onde se empina pipa e se voa, catando sementes mágicas, incensando nossos fantasmas queridos... Só isso...
LAURA -
Ah, mas pra isso que não preciso ir para a China! Faço tudo por aqui mesmo e vou ficando...
RUY -
Você nunca sente saudades das coisas que não viveu? Das grandes, gigantes, quiméricas coisas que gostaria de ter feito e, de repente, se viu barrada? Impedida?
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................30 LAURA -
Sinto... E fico triste, triste... É uma sensação de estar esticando um fio... De que preciso esticar esse fio pra saber que som tem minha vida... Mas eu nunca consigo que esse fio fique completamente retesado, esticado, como se fosse um traço... (T) Você falou em empinar pipa... É como quando a gente empina uma e o vento acaba... A gente fica lutando o tempo todo com o barbante, dando linha, cada vez mais linha, e a pipa não sobe... Vai caindo e aquela linhona toda formando uma barriga que toca o chão e ...
RUY -
E se enrosca nos matinhos, nas gramas, nas latas de cerveja, não é?
LAURA -
É...Vem uma sensação de peso... E o braço fica sem saber como puxar, como fazer... É esquisito... É tão ruim...
RUY -
Na nossa China, as pipas vão voar sem precisar de linha, nem de carretel, nem de vento...
LAURA -
Imagina!
RUY -
É verdade. Somente um céu azul imenso, que não tem fim, cheio de planos, como se fosse a lona de um circo revirada, aberta pro lado de fora... E nós lá...
LAURA -
Que bonito!!! Dá vontade de ir! China!!! Sentir saudades antecipadas da China!!!!
RUY -
Mandar recados pra todo mundo!
LAURA -
Eu não quero mandar nada... pra ninguém... Só um cartão-postal enorme. Gigantesco. E em branco... Em branco não! Mas só escrito: LEMBRANÇAS DA CHINA!!! Ninguém vai entender nada!!! Mas nós dois vamos estar lá, olhando as pessoas de cabeça pra baixo... Nós dois felizes, felizes... Você trouxe a pá?
RUY -
Ainda não. Queria mostrar antes pra você. Ver se você concordava com isso. Com o lugar. Com o túnel.
LAURA -
Você se lembra do buraco que havia na árvore da Alice no País das Maravilhas? Era um buraco assim... Igual ao que a gente vai cavar... Quando eu era menina, ficava horas imaginando como seria esse buraco... E ficava andando pelo sítio do meu avô, procurando nas árvores e vendo se em alguma delas havia um sinal de que fôra ali o Coelho Maluco
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................31 mostrara a Alice a entrada. E, de repente, a entrada está aqui! RUY -
LAURA -
É claro... A entrada está aqui! Vai ser aqui! E vamos entrar! E sentir o mundo daquele jeitinho que queremos mesmo... Isso me assusta...
RUY -
Por quê?
LAURA -
O pânico. O maldito pânico que sinto quando percebo que tenho de encontrar caminhos, fazer viagens, estabelecer contatos, telefonar para estranhos...
RUY -
O pânico acabou! Viva o pânico!
LAURA -
Não... Ele ainda não acabou, Ruy... Pode ser que acabe, mas ainda não acabou...
RUY -
Precisamos de duas pistolas.
LAURA -
Como?
RUY -
É isso aí! Precisamos de duas pistolas. Para nos proteger. Para impedir que qualquer pessoa venha até aqui e nos segure pelo braço e não deixe que a gente entre pelo túnel. E chegue à China!
LAURA -
Ninguém vai fazer isso... A Constituição nos garante o direito de ir e vir!
RUY -
Eles têm medo!
LAURA -
Medo? Medo de quê?
RUY -
Medo do nosso pânico. Pânico do nosso pânico. A liberdade da gente assusta quem está por fora... E eles podem nos barrar. (T) Eu não tenho grana pra comprar as pistolas...
LAURA -
Otávio!
RUY -
Otávio tem as pistolas?
LAURA -
Tem grana!
CORTA.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................32
CENA 19 - NA CASA DE LAURA LAURA E OTÁVIO DEITADOS NA CAMA. LAURA, OLHANDO PARA CIMA. OTÁVIO -
Você passou o dia todo fora hoje...
LAURA -
É... Vendo coisas... Procurando tralhas...
OTÁVIO -
Que tralhas?
LAURA -
Coisinhas... Se, de repente, aparecer uma viagem assim de última hora, eu não tenho absolutamente nada... Fui comprar uma bolsa, uns cosméticos, uma caixa de aspirina... Aí, acabou o dinheiro...
OTÁVIO -
Você está sem dinheiro?
LAURA -
Não tem importância...
OTÁVIO -
Claro que tem... Precisa de muito?
LAURA -
Bom, pra comprar um vestido, um aparelho de depilar, um pacote de algodão, duas pistolas, um estojinho de agulha...
OTÁVIO -
Amanhã, pega no meu bolso...
LAURA -
Tá, obrigada...
OTÁVIO -
Eu vou dormir. (T) Você está bem?
LAURA -
Com saudades da China...
OTÁVIO -
A China deve ser bonita...
LAURA -
É... Dizem que nem tem chinês...
OTÁVIO DORME. LAURA FICA UM TEMPO DEITADA. LEVANTA-SE. VAI ATÉ O BOLSO DA ROUPA DE OTÁVIO E TIRA UMA PORÇÃO DE NOTAS. CONTA. VÊ QUE DÁ. FICA COM O DINHEIRO. VOLTA PARA A CAMA. CORTA.
CENA 20 - NA CASA DE RUY
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................33 ANA E RUY DEITADOS. RUY OLHA PARA CIMA. DE REPENTE, ELE FAZ UM MOVIMENTO BRUSCO E COMEÇA A CATAR ALGUMA COISA DEBAIXO DA CAMA. ANA NÃO LIGA MUITO. ANA -
Se é chinelo, está deste lado aqui!
RUY -
Não! É uma pá!
ANA -
A pá não fica debaixo da cama. Fica na garagem, junto com toda aquela porcaria que você tem mania de guardar.
RUY -
Eu trouxe a pá para cá. Vou precisar dela.
ANA -
Pra quê?
RUY -
Pra nada. Será que eu não posso dormir com a pá debaixo da cama? Existe alguma lei, algum decreto, alguma legislação que proíba um homem de dormir com a pá debaixo da cama?
ANA -
Você tá azedo!!!!
RUY -
Estou!
(T) OS DOIS FICAM CALADOS. (T) ANA VOLTA-SE PARA RUY, QUE ESTÁ ESTIRADO DE CARA PARA CIMA E COMEÇA A PASSAR A MÃO NO PEITO DELE. ACENDE-SE A LUZ NA CASA DE LAURA TAMBÉM.
CENA 21 - NA CASA DE LAURA LAURA E OTÁVIO DEITADOS. LAURA DE CARA PARA CIMA. OTÁVIO SE MEXE, APROXIMA-SE DELA E COMEÇA A PASSAR A MÃO NOS SEIOS DE LAURA.
CENA 22 - NAS CASAS DE LAURA E DE RUY OTÁVIO, ACARICIANDO LAURA. ESTA, ACARICIANDO RUY. ESTE, IMPASSÍVEL.
IMPASSÍVEL.
ANA,
RUY -
Não adianta. estou muito longe. Sua mão não me alcança.
ANA -
Deixa... Deixa eu passar... Quem sabe você ainda pode sentir... um pouco... um pouquinho só...
RUY -
Estou longe. Não estou a fim.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................34
LAURA -
Não adianta, eu me sinto mal. Pára, Otávio, por favor...
OTÁVIO -
Relaxa... Deixa eu te acariciar!
LAURA -
Eu fico me sentido um homem. Eu fico me sentindo como se fosse ele, e parece que desaprendi tudo...
OTÁVIO -
Deixa... É bom...
ANA -
É bom, Ruy... Presta atenção... Seus pelos vão se ouriçando, você vai sentindo um calor...
RUY -
Não, estou longe... Eu não sei mais se é assim mesmo... Agora é diferente!
OTÁVIO -
Seus bicos vão ficar durinhos... Deixa eu passar a língua neles... A ponta dos meus dedos...
LAURA -
Não, agora é diferente!
LAURA E RUY PULAM DE SUAS CAMAS. CORREM PARA O ESPAÇO CENTRAL. HÁ UMA CAMA. CAEM NELA E COMEÇAM A SE AMAR. CORTA NAS DUAS CASAS.
CENA 23 - NO MOTEL LAURA E RUY CONTINUAM NA CAMA CENTRAL. LAURA -
Agora, eu só conheço a tua mão... O caminho que ela traça em meu corpo!
RUY -
Um escândalo! Um enorme escândalo que todos os meus poros comemoram...
ABRAÇAM-SE FORTEMENTE. (T) SEPARAM-SE. RUY -
Você conseguiu as pistolas?
LAURA -
Amanhã!
OLHAM-SE FIRMES. CORTA.
CENA 24 - NA CASA DE LAURA
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................35 OTÁVIO LÊ UM JORNAL. (T) LAURA ENTRA, CARREGANDO UM EMBRULHO. DENTRO, AS PISTOLAS. OTÁVIO -
(SEM DESGRUDAR DO JORNAL) Comprou?
LAURA -
Comprei.
OTÁVIO -
Tudo o que precisava?
LAURA -
Só faltaram os cotonetes.
OTÁVIO -
Mas é tão fácil achar cotonetes. Se você ainda tivesse saído para comprar pistolas, revólveres, canhões, vá lá... Mas cotonetes!!!
LAURA -
Vou procurar em outro supermercado.
OTÁVIO -
Você faz uma tragédia pra comprar qualquer coisa...
LAURA TIRA AS PISTOLAS DO EMBRULHO. OTÁVIO CONTINUA LENDO. LAURA -
(MOSTRANDO AS PISTOLAS) Gosta?
OTÁVIO -
(AINDA COM O JORNAL) Gosto. Você tem bom gosto, querida!
LAURA -
Me disseram que são ótimas, que não falham, que acertam em cheio mesmo!
OTÁVIO -
Que bom, ao menos não foi dinheiro perdido!
LAURA -
(SAINDO) Fico mais aliviada por você ter gostado... Me sinto menos culpada!
OTÁVIO -
(ABAIXANDO O Culpada de quê?
JORNAL)
Que
bobagem!!!
LAURA JÁ SAIU. OTÁVIO FAZ A PERGUNTA PARA O VAZIO. CORTA.
CENA 25 - NA CASA DE RUY RUY ENTRA. LAURA ENTRA ATRÁS. COM AS PISTOLAS. LAURA -
Me sinto culpada.
RUY -
Cadê as pistolas? São lindas! Lindas! São lindas! Brilham!!! Olhe o brilho delas!! Por que as armas
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................36 têm um brilho próprio? Será que é porque elas sabem que podem matar? Será que elas têm consciência do medo que provocam? LAURA -
Eu estou com medo! Um medo enorme... Peguei um ônibus... Estava cheio... Tinha gente pisando no meu pé... E essas malditas pistolas na bolsa. Cada tranco do ônibus eu pensava que ia disparar... Foi me dando um desespero! Pensei em descer antes e vir a pé!... Mas aí era aquela paranóia! E se alguém está me seguindo? E se alguém desconfia que estou andando armada pela cidade? De duas, uma... Ou eu saio correndo, jogo as pistolas pra qualquer lado e aí, adeus sonho chinês... o, então, faço outra loucura: subo num prédio, começo a atirar em qualquer pessoa e descubro realmente o que uma pistola tem de tão mágico, de tão misterioso... (T) Mas não fiz nada disso. Aguentei firme até aqui, com uma mulher horrorosa que enfiou seu guarda-chuva molhado no meio do meu sapato e inundou meu pé.
RUY -
As pistolas foram molhadas?
LAURA -
Elas estavam na bolsa. Pelo jeito, as pistolas são mais importantes...
RUY -
As pistolas são tão importantes! Elas que vão garantir nossa passagem para a China. Se não temos armas, como vamos segurar a barra? Ou você acha que vamos sair desta impunemente?
LAURA -
A Ana está sabendo de tudo?
RUY -
Não. Ela acha que estou louco e brocha. Só isso. E o Otávio?
LAURA -
Ele se sente culpado e só. Não me perguntou nada.
RUY -
Isso é perigoso. Quem não pergunta nada é porque sabe de tudo.
LAURA -
Ele não desconfia de nada...
RUY -
Mas, se desconfiar... tudo bem... Amanhã, temos túnel. Vamos para a obra armados. O túnel tem que estar pronto logo. A China não espera muito. Por isso, urgência. (T) Elas são lindas!
LAURA -
Elas são lindas!
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................37
CORTA.
CENA 26 - NO ANALISTA RUY, DEITADO NO DIVÃ DO ANALISTA. ESTE, ATRÁS DE RUY, MUDO. RUY Elas são lindas! Primeiro, achei fálicas. Mas não são. São femininas. São dois clitóris. Prontos para serem massageados. Com as pontas dos dedos. Somente com as pontas dos dedos...Vou levar as pistolas comigo para a China. Mesmo que eu e Laura não precisemos delas... Ficarão para serem olhadas. Lembradas. Admiradas. Amadas. Como duas fotos antigas, dois escapulários, dois pedaços de papel de bombom amassados, duas dessas coisas que a gente guarda a vida inteira. Como tenho guardado uma porrada de coisas a vida inteira. Me sentindo em luta com a vida e sempre perdendo. Sempre perdendo. Porque nunca tive culhão pra chegar pra vida e dizer: olha, tô aqui!!! Pronto pra briga!!!! Atravessei toda a minha adolescência carregando a infância. E agora sou um adulto que carrega a infância, a adolescência, a maturidade, tudo embrulhado pra presente num imenso saco de silêncio. É isso aí! Sempre fiquei quieto. Olhava para tudo e nada... Quieto... Eles podem te pegar... Eles podem te capar... Eles podem te matar... Eles podem te silenciar... Mas que medo idiota era esse? Já estava silenciado mesmo! Sabe o que é uma pistola? Ela faz assim: PUM PUM PUM. Ou então assim: um PUM seco, duro, que entra na cara do outro, que derruba. Um furinho por fora e um furão por dentro. Como se fosse um túnel. Mas agora quem está cavando um túnel sou eu! Mudou tudo.... Me abri para uma mulher e estou cavando um túnel. Indo para a China. Vai querer saber se já não tinha feito tudo isso antes? Eu casei com a Ana, mas Laura é a mulher! O túnel está sendo cavado com minhas mãos e uma pá! E a China... A China não é um país! Esta China não é um país! É o lugar para onde vamos. Eu e Laura. Laura e eu. Você sabe o que é a loucura? Claro, você tem as definições acadêmicas, psicanalíticas, ortodoxas da loucura! Mas não é nada disso! A loucura é caminhar por um fio de navalha. De um lado a pressão do Estado Magnético imantando, chamando, seduzindo. Do outro lado, a China! Ter lembranças e saudades de uma China para onde nunca se foi! (PULA DO DIVÃ E VAI SAINDO COMO SE ATIRASSE NO
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................38 ANALISTA) Assim, doutor... PUM PUM PUM... A China não é um país! CORTA.
CENA 27 - NO TERRENO BALDIO PERTO DO RIO RUY CAVANDO COM UMA PÁ. LAURA, SENTADA, MONTANDO GUARDA E FUMANDO. LAURA -
Claro que a China não é um país! Eu procurei no Atlas e só vi uma mancha enorme escrito China. Em Inglês. CHAINA. Mas CHAINA não é CHINA. Se a gente for por aí, entrar aí, a gente vai cair num campo inteirinho forrado de girassóis... Que estranho eu me lembrar de girassóis agora... Por que hein?
RUY -
Você foi hippie?
LAURA -
Não... Não tive a coragem de deixar crescer os cabelos e parar de tomar banho... Minha vida inteira eu quis imitar a menininha bem comportada, depois a estudante contestadora, depois, a mulher liberada... depois, depois, depois todos os figurinos que minha cabeça ia montando...Como aquelas bonecas antigas, dos almanaques, que só vinham com o corpo e a gente ia botando a roupinha. Vesti mil roupinhas na minha cabeça. E ela continuou oca como a touca de um bebê sem bebê.
RUY -
Está montando guarda direitinho?
LAURA -
Estou... Nenhum perigo à vista! Sabe o que me fascina nessa história toda de cavar um túnel? É a sensação de poder olhar e ver tudo, absolutamente tudo, invertido, de cabeça para baixo, sem nenhum ponto de referência, sem nenhuma roupinha para vestir na minha cabeça nua. (T) Mas será que esse túnel vai dar na China?
RUY -
A China não é um país!
LAURA DÁ UMA LONGA TRAGADA EM SEU CIGARRO. LAURA -
É verdade. Eu te amo loucamente e a China não é um país! Por isso estamos indo para lá... Por causa das duas coisas...
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................39
RUY -
LAURA -
Eu também te amo loucamente e sei que a China não é um país. Se eu não te amasse, não confiava minha cabeça a você. Nem me enfiava junto com você por esse túnel. E nem ia para a China. Ia para um país. A bordo de um avião, seguro, com uma pasta cheia de dólares. Só isso. E se eu não te amasse loucamente, não iria sair daqui, não iria sair do meu quarto, não iria deixar de lado meus livros, meus discos, meus pontos de referência. Iria continuar do lado de cá da lâmina da faca. Do lado que não corta. Tá?
OS DOIS SE SORRIEM. CORTA.
CENA 28 - NA CASA DE RUY RUY ENTRA. ANA ESTÁ COM AS PISTOLAS NA MÃO. ANA -
O que é isto aqui?
RUY -
Pistolas.
ANA -
Claro que são pistolas. Mas pra quê? Já sei... Você vai me matar... É claro... Eu já devia ter percebido isso há muito tempo. Eu não me importo que você tenha um caso com aquela mulher. Mas não vou permitir que me mate. Isso não! Isso nunca! Eu te mato antes! Te prendo! Te denuncio!
RUY -
Me dá as pistolas. Eu não vou matar ninguém. Eu só comprei pra me proteger. Tem gente que quer me matar.
ANA -
Quem vai querer matar um cara tão insignificante como você, Ruy? Isso é paranóia... Mas você quer me matar. Isso é verdade.
RUY -
Me dá as pistolas.
ANA -
Não dou!
RUY -
Me dá!
ANA -
Não dou! Você vai me matar!
RUY -
Você que quer me matar! Eu sei disso. Você quer impedir que eu viaje, que eu vá embora. Mas não vai
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................40 adiantar. Mas você não vai conseguir impedir. NUNCA!!! Me dá essa porra de pistola! RUY AVANÇA SOBRE ANA. OS DOIS LUTAM. ELE A DOMINA. CORTA.
CENA 29 - NUM BARZINHO OTÁVIO E O NAMORADO. SENTADOS. CARA A CARA. OTÁVIO -
Ela está estranha. Ás vezes, acho que quer me matar... Que quer me fuzilar! Que quer apontar uma arma para mim e puxar o gatilho e me mandar pro espaço... Estou com medo dela! E não sei o que fazer. Ela está enlouquecendo... Ela tem de se tratar... Ela nunca foi disso, e agora fica remexendo nas coisas todas da casa, chega tarde e suja de terra, cansada, dizendo que trabalhou o dia inteiro. A Laura sempre leu. Nunca trabalhou. Estou com medo dela.
UM SIMPLES CARINHO ACARICIADO. CORTA.
DO
NAMORADO.
OTÁVIO
SE
SENTE
CENA 30 - NA CASA DE LAURA RUY, DESESPERADO, BATENDO À PORTA. LAURA ATENDE. RUY ENTRA COM TUDO. RUY -
Estamos cercados. A Ana já sabe de tudo. Diz que vai impedir. Diz que a gente não viaja nem morto... Ela explode o túnel, a gente, a cidade, o mundo, mas a gente não chega na China.
LAURA -
Ela não pode fazer isso. Ela não tem o direito.
RUY -
As pessoas têm o direito de não terem direito. Pelo menos pra elas. Eu trouxe as pistolas.
LAURA -
Mas o que eu vou fazer com as pistolas?
RUY -
Guardar. Se a Ana me pegar, pelo menos você se garante. E me espera. Promete que me espera?
LAURA -
Claro que espero. Mas, Ruy, o que vai acontecer?
RUY -
Não sei... Essa gente é tão louca! Ela está em pânico... É capaz de qualquer coisa...
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................41
LAURA -
Quem está em pânico é você! Fique escondido aqui em casa. É melhor. Quanto tempo falta pra gente acabar o túnel?
RUY -
Sei lá. Quanto tempo a gente quiser... Mas o problema não é esse... Qual o problema?
LAURA RUY -
O problema é que agora sei qual o preço da passagem.
LAURA PÁRA. FERE RUY COM O OLHAR. LAURA -
Eu também sei.
RUY -
Você paga?
LAURA -
Você paga?
RUY -
Eu pago.
LAURA -
Eu também pago. Agora não há mais retorno. A gente vai até o fim.
RUY -
Você fica com as pistolas?
LAURA -
Fico. Mas pra onde você vai?
RUY -
Enfrentar a Ana. Não vou fugir dela. Quero saber do que ela é capaz... Tome as pistolas.
RUY JOGA AS PISTOLAS PARA LAURA. SAI CORRENDO. LAURA OLHA PARA AS PISTOLAS. CORTA.
CENA 31 - NA DELEGACIA ANA DIANTE DE UM DELEGADO, QUE A ESCUTA, MUDO. ANA -
O senhor tem que prendê-lo. Ele está armado. Com duas pistolas. Sei lá se uma é pra amante dele... Se estão formando uma quadrilha, qualquer coisa assim... Só sei que não sou mulher de ficar esperando tranquilamente a morte, fazendo tricô em casa. Se o senhor não prendê-lo, vai ter de responder pela minha vida. Ele é uma ameaça. A mim. Ao senhor. Às criancinhas do bairro. Às moças. Aos homens. Aos bancos, às instituições. Ao Estado. Ele é uma
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................42 ameaça ao MUNDO!!!! Ele está louco e com uma arma nas mãos. Os senhores não prendem os loucos quietos? Esses que ficam num canto, babando, sem dizer nada? Então, vão lá e peguem meu marido, que não baba, mas está com duas pistolas nas mãos. Eu tenho o direito de viver. E estou apavorada. Não faço mais nada na vida a não ser vigiar os movimentos dele o dia inteiro. Pra onde vai, de onde vem, o que faz, quantas vezes entra no banheiro, quanto tempo fica lá, quantas vezes dá descarga... Boto o ouvido na fechadura e fico tentando perceber se ele não está carregando o tambor da arma. E fico esperando ouvir o clique. Até agora não ouvi... Mas, quando ouvir, vou ser uma mulher morta. E o senhor será o culpado. EU PAGO IMPOSTO PRA SER PROTEGIDA!!! CORTA.
CENA 32 - NA CASA DE RUY RUY, LENDO SEU LIVRO. RI. (T) ENTRA O POLICIAL, COM ANA ATRÁS. ELA APONTA. O POLICIAL PRENDE RUY, QUE NÃO RESISTE. CORTA.
CENA 33 - NA BOITE GAY OTÁVIO DANÇA COM O NAMORADO. (T) LAURA ENTRA, COM AS PISTOLAS NA BOLSA. OLHA, VÊ OS DOIS DANÇANDO. VAI DIRETAMENTE PARA ELES. LAURA -
Você tem que soltá-lo... Ele foi preso! Não fez nada. Ninguém tinha o direito de botar o Ruy na cadeia... Você tem que soltá-lo...
OTÁVIO -
Laura, por favor...
LAURA -
Vai soltar o Ruy! Você pode fazer isso!
OTÁVIO -
Pra que eu vou fazer isso? Pra ele me matar??? Ou pra você me matar??? Não, não vou...
LAURA -
Ah, é disso que você está com medo? É disso que a Ana está com medo? Não precisam... Nós não vamos matar ninguém... Você tem de soltar o Ruy, Otávio! Nós precisamos ir embora!
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................43 OTÁVIO -
E pra que eu vou deixar você ir embora com aquele homem? Você não o ama. Você AINDA me ama!
LAURA -
(APONTANDO O NAMORADO) E ele, não conta?
OTÁVIO -
Isso é outra coisa... Um desejo antigo, uma coisa que vem de longe...
LAURA -
É a mesma estória minha e do Ruy... Um desejo antigo... uma história que vem de longe.... Vamos lá pra cadeia, tirar o Ruy!
OTÁVIO -
Eu não vou coisa nenhuma!
LAURA -
Vai!
LAURA AGARRA OTÁVIO. SEPARA-O DO NAMORADO. ESTE PENSA EM INTERVIR. MAIS FICA QUIETO. OTÁVIO -
Não faça escândalo!
LAURA -
Faço o escândalo que quiser! Tira o Ruy da cadeia. Ele não vai matar ninguém. Isso é paranóia de vocês.
OTÁVIO AGARRA LAURA COM FORÇA. OTÁVIO -
Nós vamos sim... Mas é pra outro lugar. Eu fico com medo só de pensar que você vai chegar em casa, um dia, e me apontar aquelas malditas pistolas. Me matar!!! Estou cheio disso! Até aqui! Não consigo pensar em outra coisa! A não ser na pistola, na pistola, na pistola...
LAURA -
(ARRASTADA) Eu não quero matar! Quero ir para a China! Só isso!
OTÁVIO -
Você vai! Ah, você vai!!!
OTÁVIO E O NAMORADO SAEM ARRASTANDO LAURA. CORTA.
CENA 34 - NA CASA DE LAURA LAURA NUMA CAMISA DE FORÇA, SENTADA. OTÁVIO, NERVOSO, ANDA AO LADO DELA. OTÁVIO -
Pela última vez, me dá as pistolas!
LAURA -
(FAZ QUE NÃO COM A CABEÇA)
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................44
OTÁVIO -
As pistolas e te solto!
LAURA -
(FAZ QUE NÃO)
OTÁVIO -
Pode entrar!
ENTRA UM ENFERMEIRO E LEVA LAURA. CORTA.
CENA 35 - NO TERRENO BALDIO PERTO DO RIO ANA E OTÁVIO OLHAM O BURACO. CURIOSIDADE E DESPREZO. ANA -
Era este o túnel!?? Este buraquinho?
OTÁVIO -
Acho que iam cavocar mais...
ANA -
O tamanho necessário pra enfiar nós dois aí... E covas rasas... Eles são tão vagabundos, que nem um buraco maior iam fazer...
OTÁVIO -
Diziam que iam chegar na China.
ANA -
Estão loucos. Sempre foram. A gente que descobriu tarde.Você internou a Laura?
OTÁVIO -
Internei. O Ruy continua preso?
ANA -
Se Deus quiser, por muito tempo... Até que eu morra de morte natural. E não por causa da bala de dois loucos.
OTÁVIO -
Eu também acho que eles queriam nos matar.
ANA -
Você ainda tem dúvida?
OTÁVIO -
Mas a Laura me amava.
ANA -
Primeiro, o que a morte tem a ver com o amor? Segundo, ela amava o Ruy. Loucamente. Aí, sim, eram capazes de acabar conosco. Por isso.
OTÁVIO OLHA ATERRORIZADO PARA ANA. CORTA.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................45 CENA 36 - NA CASA DE RUY ANA ENTRA EM CASA E DÁ DE CARA COM RUY, SORRINDO PRA ELA. ANA -
Você devia estar preso.
RUY -
Fugi.
ANA -
Como fugiu? Como fugiu?
RUY -
Fugi. Usei toda a minha cultura ocidental, bolei um plano infalível e fugi! O que você fez com a Laura? E eu tenho alguma coisa a ver com aquela mulher? Pergunte pro marido dela... Pergunte em que sanatório ele enfiou a vítima das SUAS loucuras... Agora, tem o seguinte, rapaz: se veio pra me matar, faça isso logo, porque eu não tenho mais saúde pra aguentar essa tensão! O tempo todo. O dia inteiro. Cada minuto. Cada segundo. Pega essa maldita pistola e me arrebenta. Mas de uma vez!!!
ANA
RUY NÃO RESPONDE. SAI E ANA VARRE A CASA, SUSPIRANDO. CORTA.
CENA 37 - NA CASA DE LAURA OTÁVIO, DESESPERADO, PROCURANDO PELAS PISTOLAS. REVIRA TUDO. (T) LAURA ENTRA. FICA OBSERVANDO OTÁVIO EM SILÊNCIO. SORRINDO. LAURA -
Perda de tempo. Não vai achar!
OTÁVIO -
Não me mate!
LAURA -
Quem falou em matar, seu idiota! Olha só, está tremendo!!!
OTÁVIO -
Como você saiu de lá?
LAURA -
Sou mais louca que a loucura média do sanatório. Eles não tinham como me catalogar. Ninguém tem a lucidez necessária para entender o meu projeto de ir embora. Só isso. Está com medo?
OTÁVIO -
De você me matar! O resto não importa mais...
LAURA -
Nunca importou...
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................46 E LAURA SAI APRESSADA. OTÁVIO FICA PROSTRADO. CORTA.
CENA 38 - NO TERRENO BALDIO PERTO DO RIO/NUM PONTO DA CIDADE RUY, COM A PÁ, JUNTO AO BURACO. NUM OUTRO PONTO, NEUTRO, DISTANTE, LAURA, COM A PISTOLA NA MÃO. OS DOIS CONVERSAM. SEM NUNCA SE VEREM. RUY -
É aqui! Vai ser daqui a pouco! Falta muito, muito pouco, para que finalmente possamos dar a partida. Entrar por esse túnel e sair lá... na China! (T) Você vai ter coragem? Você vai ter peito para dar esse passo? Para cair aqui dentro, como se isto fosse um buraco negro, sem gravidade, e deixar que o corpo circule à vontade? Deixar que a nossa alma sofrida, esmagada, corrompida, quebrada, fodida se desintegre? Ou se integre nessa coisa maior, o Desconhecimento, para vivermos, de uma vez, a invencível escolha do Amor? Você vai ter coragem?
LAURA -
Você vai ter coragem? Vai ter peito para assinar embaixo esse papel imaginário que nós escrevemos, onde se lêem as palavras SOLIDARIEDADE SEMPRE, AMOR TOTAL, ROMPIMENTO ABSOLUTO? Será que você, na última hora, não vai pular pra trás e me deixar rodopiando dentro desse túnel? (T) Eu vivi tanta tempo tensa, carregada de lá pra cá como se fosse um embrulho mal ajambrado, como uma coisa disforme, que agora que tenho a visão da liberdade, eu não me permito mais ter medo... Você entende isso?
RUY -
Eu não sei onde você está agora. Mas espero por você. Pacientemente. Por que sei que, de repente, você vai surgir usando uma sombrinha de papel de arroz imaginária, com uma túnica leve e solta que não existe, um resto de carmim nos lábios e sorrir... Sorrir como quem promete alguma coisa que vai cumprir. (T) Você vai cumprir, não é?
LAURA -
Você deveria ter um requixá! Para me levar para dentro do túnel como a Princesa do Tempo Inesquecível... Como uma figurinha recortada para a lanterna mágica... Nós dois somos personagens de uma lanterna mágica. Você já percebeu isso? Não? Então, se olhe, se vire, se movimente... Sua sombra
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................47 fica projetada no mundo... E ela é que vale! É ela que marca seu limite aqui. E lá. E em todo o lugar... RUY -
Eu te espero... Não demore!
CORTA NOS DOIS LUGARES.
CENA 39 - NA CASA DE RUY ANA ESTÁ LAVANDO PRATOS, PANELAS, COPOS, TODA A LOUÇA. ANA -
Eu te espero lavando louça. Acho que é para me dar a sensação de que estou lavando tudo dentro da minha vida... Um prato sujo que, de mansinho, vai levando água, sabão, detergente biodegradável e fica limpo!... Até brilha... Eu não sei o que fazer com você. Nunca soube. Você estava em outra sintonia. Mas eu tentei. Eu quis ficar com você. Me acostumei. Como a gente se acostuma com aquele vaso no canto da sala. O dia em que a gente tira o vaso, e descobre que o carpete embaixo dele está podre, vem uma sensação gozada... estranha...Parece que ficou tudo fora do lugar!... É isso o que acontece com você? Foi isso que te deu? Se foi, eu respeito, mas não te dou o direito de querer acabar com a minha vida, meter uma bala na minha cabeça e pronto: acabou a Ana, como se ela fosse um bombril usado e enferrujado que a gente joga fora! Desse jeito não! Você pode até não ter estado comigo, ter estado com outra, mas EU ESTAVA com você. Inteirinha. Com meus bobbies, meus cremes, minhas rugas precoces, meus desinfetantes, meus esmaltes, mas estava... Você é que passou, de uma hora para outra, da AM para a FM... por causa disso vou desligar o rádio? Não dá! (T) MAS VOCÊ NÃO TEM O DIREITO DE ME EMPURRAR PARA O TEU BURACO. EU NÃO QUERO IR E NÃO VOU. E NÃO VOU MORRER. EU MATO VOCÊ!!!
CORTA.
CENA 40 - NA CASA DE LAURA OTÁVIO, DIANTE DE UM ESPELHO, FALA CONSIGO MESMO. OTÁVIO -
Ela era doce, gentil, meiga... Olhava para mim como se olha para um passarinho na gaiola... De repente,
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................48 eu fui descobrindo que ela não me dava mais alpiste, nem trocava a minha água... Se eu a amo? Amo, ou melhor, não amo, não sei. Minha cabeça rodopia e eu acho que não sei mais o que pensar dela. (T) Ela comprou essas pistolas. Ela vai me matar. Ela vai acabar comigo de uma vez... Não... Não é por causa de ninguém... É por causa dela mesma! Ela sabe que o caminho dela chegou numa placa onde está escrito assim: AVANCE! E ela vai avançar. Passando por cima de mim, de quem estiver à sua frente! Ela achou o homem! Eu não tenho mais nada a ver com isso. Só me dá uma pontada aqui, que penso que é enfarte, angina, essas coisas, mas no fundo, sei que é saudade e inveja dessa coragem que ela tem. MAS ELA NÃO TEM O DIREITO DE ME MATAR. A TROCO DO QUÊ??? POR QUÊ??? EU NÃO QUERO MAIS NADA DELA... SÓ FAZER PARTE DE SUA HISTÓRIA... E ISSO NÃO É MOTIVO PARA MATAR... SÓ FAZER PARTE DA HISTÓRIA DELA... SÓ... CORTA.
CENA 41 - NAS CASAS DE LAURA E DE RUY NA CASA DE LAURA, RUY APONTANDO A ARMA PARA OTÁVIO. NA CASA DE RUY, LAURA APONTANDO A ARMA PARA ANA. (T) CONGELADOS. NENHUM PÂNICO. SÓ OLHARES. ANA E OTÁVIO ABAIXAM AS CABEÇAS. COMO OVELHAS. RUY E LAURA ABAIXAM AS ARMAS. SAEM OS DOIS. CORTA.
CENA 42 - NO TERRENO BALDIO PERTO DO RIO LAURA E RUY, NERVOSOS, COM SUAS PISTOLAS... OUVEM-SE SIRENES DE POLÍCIA E AMBULÂNCIA AINDA DISTANTES... LAURA E RUY USAM MACACÕES IDÊNTICOS E BONÉS. LAURA TEM OS CABELOS PRESOS, DE MODO QUE FIQUEM COM SUAS SILHUETAS MUITO PARECIDAS... INDEFINÍVEIS.... RUY -
Agora eles sabem de tudo... Sabem que nós não temos coragem para matá-los...
LAURA -
Não é não ter coragem... É que nós, no fundo, não queremos mesmo isso, a morte deles...
RUY -
Estamos acuados.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................49 LAURA -
Estamos... Se não sairmos agora, nunca mais... (T) E eu vou ter de voltar para aquela vida absolutamente odiosa, sem cor, sem cheiro, branca, que levava antes...
AS SIRENES ESTÃO AUMENTANDO, AUMENTANDO... RUY -
LAURA -
E eu vou ter de continuar arrastando os chinelos, sozinho... sabendo que essa solidão me espera na cadeira de balanço para me derrubar e dizer: ei, cara, este lugar é meu! Desinfeta! (T) Não, eu não quero!!! Eu também não quero!
RUY -
Mas eles estão aí!
AS SIRENES AGORA ESTÃO COM TUDO. LAURA -
Seremos dois idiotas, catados como loucos, enfiados em qualquer canto do mundo... E nunca ninguém vai saber a extensão real deste gesto!
RUY -
Cair fora da mediocridade! Eu te amo, Laura...Eu te amo loucamente e a China não é um país!
LAURA -
A China não é um lugar... A China não é uma região... A China não fica pra baixo nem pra cima, nem pro lado... (T) Eu estou pronta!
RUY -
Então, quando eles chegarem, serão DOIS tiros ecoando por este terreno baldio. E, do terreno, para a cidade. E, da cidade, para o mundo. Dois tiros, dizendo que, pelo menos, duas pessoas foram até o fim!!!
LAURA -
Não serão tiros! Para eles sim!!! Mas, para nós, serão DOIS foguetes chineses iluminando o céu da cidade... Assim, DOIS foguetes daqueles que sobem, que explodem, que apitam e que NÃO caem!! DOIS!!!
RUY -
DOIS!!!
LAURA -
(SORRINDO) Você me paga a passagem?
RUY ENCOSTA O CANO DA PISTOLA NA CABEÇA DE LAURA. RUY -
Você paga a minha?
LAURA ENCOSTA A PISTOLA NA CABEÇA DE RUY.
LEMBRANÇAS DA CHINA.....................................................................................50
AS SIRENES PARAM COMPLETAMENTE. SILÊNCIO TOTAL. A LUZ VAI CAINDO, CAINDO... FICA SOMENTE A PENUMBRA. DUAS SILHUETAS QUE SE MOVEM, QUE TROCAM DE LUGAR TODO O TEMPO, COMO FIGURAS DE LANTERNA MÁGICA. RUY -
Parece que eles desistiram...
LAURA -
Já não importa...
RUY LAURA -
Os dois foguetes chineses! (T) Estou com saudades da China! A gente vai mandar lembranças de lá! Nunca ninguém saberá quem de nós entrou primeiro no túnel!
RUY -
Entraremos juntos!
LAURA -
Eternamente!
LUZ CAI TOTAL. OUVE-SE APENAS UM TIRO. LUZ SOBE UM POUCO, MUITO POUCO. NA PENUMBRA VÊ-SE UM CORPO CAÍDO, À BEIRA DO BURACO... E A OUTRA PESSOA EM PÉ, COM A PISTOLA VOLTADA PARA CIMA... UM FOI TRAÍDO... NÃO SE SABE QUEM... AS SIRENES VÃO AUMENTANDO, AUMENTANDO, AUMENTANDO, ATÉ SE TORNAREM INSUPORTÁVEIS... BLACK TOTAL.
FIM