MADAME POMMERY
ALCIDES NOGUEIRA baseado em Hilรกrio Tรกcito
MADAME POMMERY....................................................................................................................2
PERSONAGENS
MADAME POMMERY, a dona do bordel MANOEL, seu braço direito e animador das noitadas PIANISTA PINTO GOUVEIA, um Coronel frequentador do bordel FIDÊNCIO PACHECO ISIDRO, um Coronel frequentador do bordel DOUTOR FELIPE MANGANCHA, da Cia. Paulista de Teatros e Passatempos FERNANDO DE CAMARINHAS, estudante de Direito NARCISO VIDIGAL, um diletante LIA e ISOLDA, as putas gêmeas CORALINA, a puta italiana LEDA ROSCOFF, a puta polaca NENÉA, a puta brasileira SIEGFRIED VON KRUFF, um escroque alemão JUSTINIANO DA SILVEIRA SACRAMENTO, fiscal OUTRAS PUTAS OUTROS FREQUENTADORES
A ação da peça passa-se em 1910, em São Paulo, em um bordel fuleiro, AU PARADIS RETROUVÉ, de propriedade de Madame Pommery. Mesinhas, cadeiras, namoradeiras, um bar, painéis eróticos, um piano, um pequeno palco... Madame Pommery, muito esperta, disfarça a pobreza de seu salão com uma iluminação adequada e badulaques que dão a impressão de requinte. Falso, obviamente. Este musical foi livremente adpatado de “Madame Pommery”, de autoria de José Maria de Toledo Malta, que assinou o livro com o pseudônimo de Hilário Tácito. Alcides Nogueira São Paulo, 1982
MADAME POMMERY....................................................................................................................3
PRIMEIRO ATO I - CORO DE ABERTURA Madame Pommery, Manoel, as putas, os Coronéis e demais frequentadores abrem a peça, cantando, animadamente, ao som de play-back, sem a presença do Pianista: TODOS -
Quando o sol, quando o sol se esconder e a lua do lampião se acender é Madame Pommery a receber no Paradis Retrouvé. É um sonho a descer na cidade é São Paulo refazendo a idade dentro dum jogo cheio de felicidade é a loucura, a insanidade. Vem! O Paradis abre suas portas. Vem! A Pommery lhe cede as camas. Vem! Aqui as culpas estão mortas. Vem! Vem se esquentar nas nossas chamas! Quando a lua, quando a lua arrebentar e o som do gramofone espernear somos nós, os garbosos coronéis bimbalhando no bolso os seus mil-réis. É o tango a rodar por entre as mesas é o champã acalmando mãos acesas é o prazer faiscando entre os corpos os pecados moralistas estão mortos. Quando o sol, quando o sol se esconder e a luz do lampião se acender é Madame Pommery a receber no Paradis Retrouvé. É um sonho a descer na cidade São Paulo refazendo a idade
MADAME POMMERY....................................................................................................................4
dentro dum jogo cheio de felicidade é a loucura, a insanidade. Quando o sol, quando o sol se esconder e a luz do lampião se acender é Madame Pommery a receber no Paradis Retrouvé. ATOR -
Estamos em 1910.
O PIANISTA NÃO ENTRA. ATOR -
Estamos em 1910.
O PIANISTA NÃO ENTRA. ATOR -
Estamos em 1910.
O PIANISTA ENTRA. SENTA-SE AO PIANO. DÁ UNS ACORDES. APLAUSOS. MANOEL Este é um ano de glória. Foi inaugurado o Paradis Retrouvé! Um dia, quando forem contar a história desta cidade tacanha, mal ajambrada, mesquinha e provinciana, que se chama São Paulo, terão de dedicar um bom capítulo, um enorme capítulo.... ATOR -
Enorme mesmo!
MANOEL -
Um enorme capítulo a ela: Ida Pommerikowsky!
MADAME -
Psssiuu, Manoel... A famosa, a telúrica etc....
MANOEL A famosa, a telúrica, a fatal, a Pompadour Tropical, a Maria Egipcíaca brasileira, a Madalena dos Trópicos.... Faltou alguém? ATOR -
A Xica da Silva dos anos 10.
MANOEL -
Essa é muito xinfrim! (T) Madame Pommery!!!!
MADAME -
Eu!
MANOEL Filha de pai judeu polaco, Ivan Pommerikowsky, que era lambeferas em um circo de ciganos, e de mãe espanhola. MADAME Brasileira que ninguém sabe como foi parar em um convento da Espanha. Seu nome era Maria da Silva Consuelo Sanches.
MADAME POMMERY....................................................................................................................5
MANOEL Durante uma novena, sua santa mãezinha saiu do convento protegida pela velha Madre Vigilante. O lambeferas, seu futuro pai, acantoava-se no pátio, vestido de botas e de calções justos. Daí para a fuga foi um pulo! Certo dia, a noviça Consuelo não apareceu no coro matinal. Foram procurá-la em sua cela. Estava vazia. (T) Cela é com cê ou com esse? TODOS -
Com cê!
MANOEL Eu sempre achei que ela estava a cavalo! (T) Nove meses depois, segundo as leis da natureza, nascia Madame Pommery. Pequenininha! Se me permitem, gostaria de contar alguns detalhezinhos de como Madame conseguiu montar esta maravilha aqui! Primeiramente, fez uso de seus dotes naturais. Ela vale quanto pesa! Depois, de certas habilidades manuais e linguísticas e ao que também podemos chamar de domínio sobre a consciência pesada dos fregueses. E, por fim, da gordura, sensualidade e furor uterino! Aos 34 anos estava em Marselha. Decaída!!!! Mas, assim mesmo, desejável. E foi aí que um dia, vestida de toureiro, em pleno porto, conheceu um marujo normando que servia como imediato no cargueiro Bonne Chance, que vinha para a América!
II - AMÉRICA, AMÉRICA AS PUTAS E MANOEL CANTAM E DANÇAM: PUTAS/MANOEL -
América, América aí está a minha bonne chance! Uma zarpada, uma fisgada, um grande lance! América, América aí está o meu porvir! Uma beijada, e rebolada fazendo o povo rir! Rema pra lá, rema pra cá! Me leva pro lado de lá! Rema pra lá, rema pra cá! Me leva pro lado de lá!
Na América tem coqueiro, tem macaco e coronel,
MADAME POMMERY....................................................................................................................6
tem banana e papagaio, e tem ouro a granel! É pra lá que eu vou, pra fazer a minha vida, com a liga, com a cinta, com champã e cafuné! Qualé? Qualé? América, América aí está a minha bonne chance! Uma zarpada, uma fisgada, um grande lance! América, América aí está a minha bonne chance! Uma zarpada, uma fisgada, um grande lance!
III - APRESENTAÇÃO DOS CORONÉIS CORONÉIS -
Hei! Ôôoo! Êta!!!!
P. GOUVEIA Eu sou o Coronel João Batista Pinto Gouveia, do PRP, da Guarda Nacional e dos três pontinhos. UM ACORDE DE PIANO. CAMARINHAS Fernando de Camarinhas, estudante de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco, que não fica em Oxford, mas em São Paulo. UM ACORDE DE PIANO. MANGANCHA Eu sou o Doutor Felipe Mangancha, Diretor-Tesoureiro da Companhia Paulista de Teatros e Passatempos. UM ACORDE DE PIANO.
NARCISO -
Narciso Vidigal, um diletante!
MADAME POMMERY....................................................................................................................7
SEM ACORDE DE PIANO. NARCISO -
Não tem acorde para mim?
TODOS -
Não!!!!
MANGANCHA (PARA PINTO GOUVEIA) Se o Coronel prestar bem atenção, descobrirá onde quero chegar. O que fez com que Cabral chegasse até o Brasil? P. GOUVEIA -
O vento.
MANGANCHA Eu prefiro acreditar que não foi por acaso que ele não desembarcou em Guadalupe, Farwell ou qualquer outra costa. Sabem por que ele veio ao Brasil? Sabem por quê? Porque ele sabia que ali estava o Brasil. E sabia que iria descobrir uma terra nova, um mundo novo, uma civilização nova. NARCISO -
E como Madame Pommery entra nessa caravela?
MANGANCHA -
Não entra nessa! Entra na Esquadra do Prazer!
NARCISO O senhor está querendo dizer que Madame não veio ao Brasil por coincidência também? MANGANCHA Exatamente! Há certos heróis que não aparecem na face da Terra por acaso. São providenciais. Madame é um deles! Veio até o Brasil para aqui plantar a semente da sensualidade, o broto do prazer, o arvoredo da excitação, a secóia do sexo! Enfim, um Cabral vaginal!!!! (T) Ambos são da mesma estirpe. Um veio para descobrir a terra. O outro, o prazer! Ambos, enviados pela mão da Providência. O que acha o Coronel Pinto Gouveia? P. GOUVEIA -
Eu sou positivista. Para mim, Providência não tem mão!
IV - RECUERDOS DE MANOEL E MADAME MANOEL Imaginem um botequim de quinta categoria, em Santos, chamado “O Bacalhau Voador”. Mulheres desmioladas e famintas vagavam por meio de homens de todas as espécies. Só se tomava cerveja. Champã ninguém conhecia, a não ser Madame, que aconteceu na minha vida naquele lugar, vestida com uma capa dourada, como um anjo, e me apontou o caminho du Paradis. Tradução: do Paraíso! E me disse: vem, Manoel, vem ser gauche na vida! Mudamos os dois para São Paulo, de mala, cuia e bidê. Vim a ser seu amigo, seu secretário e confidente. Foi quando Madame, usando de toda a sua técnica, adquirida ao longo
MADAME POMMERY....................................................................................................................8
dos anos, e de sua sabedoria, picardia e senso de oportunidade, resolveu montar um grande negócio. (T) A prostituição, neste país, não passava de uma atividade amadora. Madame Pommery resolveu profissionalizá-la. MADAME Diga-me, senhor Manoel: aqui no Brasil a profissão mais antiga do mundo é assim mesmo tão mal exercida? MANOEL -
São as contingências econômicas, Madame.
MADAME Culturais! Culturais! Será possível que serei eu, Madame Pommery, vinda do estrangeiro, que terá de ensinar às brasileiras como se exerce EFETIVAMENTE o ofício de mercadora do amor? MANOEL Tinha nascido a educadora! E, assim, Madame Pommery começava a executar os seus estudos. Era o início da putaria em grande estilo na cidade de São Paulo. (T) Madame sabe que o bordel é o lugar onde o sonho acontece. Que tal rolar na cama com dois corpinhos enxutos, novinhos e graciosos han? Han? Han??? Duas gêmeas exóticas, filhas de pai francês e mãe princesa africana, que foi, dizeeeeem, violentada pelo gaulês em cima de um elefante. E teve que fugir para a Martinica. No Paradis, o que parece impossível é real! Madame inventou e mostra as gêmeas Bogary!!!
V - A APRESENTAÇÃO DAS GÊMEAS AS GÊMEAS BOGARY, QUE, ALÉM DE GÊMEAS, SÃO XIFÓPAGAS, CANTAM E DANÇAM. AS DUAS -
Nossos corações batem juntos por um por um homem que nos conquistou mas ele tem de ser forte e valente pra dar conta de duas como a gente! Nossos corações batem juntos por um por um homem que nos conquistou mas ele tem de ser forte e valente pra dar conta de duas como a gente!
LIA -
Todo mundo fala que gêmea não se dá porque a outra sempre atrapalha mas conosco isso não há porque as duas são uma canalha!
ISOLDA -
Quando a Lia não consegue o que quer eu tô junto e lhe dou uma ajuda
MADAME POMMERY....................................................................................................................9
e as duas saem pra luta e a coisa logo muda! LIA -
Eu não vivo sem a Isolda como ela não vive sem mim! Nos amamos e juntas vivemos até que tudo chegue ao fim!
O CORONEL PINTO GOUVEIA SE APROXIMA DAS DUAS E COMEÇA A BOLINÁ-LAS AO MESMO TEMPO. DEPOIS, ELAS SAEM E ELE CONTINUA.
VI - A MODINHA DO CORONEL PINTO GOUVEIA P. GOUVEIA Felizmente eu herdei a cepa dos positivistas e do velho PRP. Pois em cima de um Coronel ninguém monta. Nós podemos ser chucros, mas somos bons cavalos. Certo estava o Benjamin Constant: ORDEM E PROGRESSO. Mas parece que ninguém mais crê nisso. Deviam pegar a bandeira e escrever no meio dela: DESORDEM E RETROCESSO. (T) Depois da chegada de Madame, toda vez que eu vou à Barra Funda, para tratar de café e fazenda, me vem a vontade que aumenta de apalpar uma bela de uma bunda. (CANTANDO) Quando passo absorto na rua, com a cara mais séria do mundo, fique certo que bem lá no fundo penso mesmo é em uma mulher nua. Se me chamam pra ir ao Palácio conversar com o nosso Presidente, tenho medo que se faça presente a vontade de fazer um felatio. Reunido com a maçonaria, uma coisa não me sai do pensamento, bem no meio de um requerimento, já começo a querer putaria.
VII - MANOEL APRESENTA CORALINA MANOEL Madame Pommery procurou servir os leitos de seu bordel com os melhores produtos do mercado internacional: trouxe para cá as ágeis francesas, as eficientes prussianas, e as fogosas portuguesas. E, usando a técnica da reciclagem, aproveitou como melhor podia o material que já havia à disposição na cidade de São Paulo. O importante é criar a situação. Por exemplo: quem não quer
MADAME POMMERY....................................................................................................................10
uma bela italiana, que entre outras coisas, exala do meio das coxas um cheiro quente de hóstia??!!! Ela conhece a fundo os segredos da massa e da carne. Ela é a esfusiante, a estonteante, a ribombante, CORALINA!!! TODOS OS ATORES FAZEM CORO PARA CORALINA. TODOS -
Quando se pianta una bela polenta una bela polenta se pianta così, Se pianta così.... Oh! Bela polenta così! Quando se colhe una bela polenta una bela polenta se colhe così se pianta così, se colhe così.... Oh! Bela polenta così. Quando se mangia una bela polenta una bela polenta se mangia così. Se pianta così, se colhe così, se mangia così. Oh! Bela polenta così....
CORALINA Meu nome é Coralina. Vim da Calábria, da distante Calábria, terra onde crescem as vendettas por causa das linguiças. Fui bela mocetona, corada... Tão corada, que me chamam de Coralina!! Cresci e me casei com um anarquista, que, no dia do meu casamento, deixando de lado as liberdades tão apregoadas, me botou para fora de casa, quando descobriu que meu lençol não ficou rubro de sangue. Corri por toda a Itália. Fiz pizza em Torino, macarrão em Veneza, fui ladra em Napoli, e assim por diante, até chegar em Roma. Um dia conheci um guarda suíço que tomava conta do Santo Padre. Mamma mia, era tão belo, tão robusto, tão sedutor e tão viril, que acabei me encontrando com ele todos os dias após a bênção papal. Um belo dia o farrabuto me abandonou! Grávida! Usando os conhecimentos de una vecchia amiga calabresa, mandei mais um anjinho para o céu e me tornei la prima puta del Vaticano. Passei toda a guarda suíça em minha cama, sem falar de dois seminaristas, dois padres e até mesmo um cardeal. Até que o Carmelengo descobriu e me botou para fora da cidade, com um bom pontapé. Aí, a minha vida se transformou. Passando certa vez por Óstia, entrei sorrateira em um navio que ia para as Antilhas. De cama em cama, cheguei até o Brasil. Dançava tarantella no Cassino, quando fui agenciada por Manoel para vir trabalhar no Paradis de Madame Pommery... e não saio mais daqui.... porque.... (CANTANDO) Sou suculenta como calzone apimentada como aliche, e voglio bracciola, e toma bracciola e quero brachola! Bela bracciola così...
MADAME POMMERY....................................................................................................................11
O ELENCO E CORALINA VÃO SAINDO, CANTANDO:
TODOS -
Quando se pianta una bela polenta una bela polenta così....
FICA SOMENTE MANOEL. MADAME ENTRA, ENQUANTO ELE FALA: MANOEL Muita gente ajudou Madame a abrir o seu Paradis Retrouvé. O espírito das saudosas Dona Beja e Dona Domitila de Castro Canto e Melo (a poderosa Marquesa de Santos). E os vivos, que se Deus quiser ainda vão virar nome de rua, numa justa homenagem, como os Prates, os Prado, os Cardoso de Almeida, os Simonsen... E até mesmo Prudente de Moraes! (T) E Madame ensinou às suas meninas o que elas não sabiam. MADAME -
O cunilingue!!! Vulgo cunete!!!!
VIII - CENA I DE LEDA ROSCOFF E SIEGFRIED LEDA Eu sou Leda Roscoff, puta! Ele é Siegfried von Kruff. Um bom macho alemão. Ele é sócio do Eletro-Club. Ele está muito bem situado na vida. Faz bons negócios. Sabe como empregar o seu dinheiro. Tem muito dinheiro mesmo. (T) Eu gosto de senhores educados. De senhores cultos. De senhores finos. Mas, até hoje, só conheci um verdadeiramemente rico, há muito tempo atrás... um velho grão-duque alemão, que me deu estas jóias... estas aqui, que trago sempre comigo no peito. São lindas, não são? Parecem falsas, eu sei!! Mas não são! São tão verdadeiras quanto a dona! (T) Nenhum galanteio, senhor Siegfried? OUVE-SE O PRIMEIRO ACORDE DO TANGO. LEDA Calma, Leda! Com tantos anos de profissão, ainda não aprendeu que dos homens só se deve arrancar o dinheiro e nunca o coração? EXPLODE UM TANGO SENSUAL, DANÇADO POR TODO O ELENCO, INCLUSIVE POR LEDA E SIEGFRIED. DEPOIS DE UM TEMPO, O TANGO CESSA RAPIDAMENTE, OS HOMENS SAEM E AS PUTAS SENTAM-SE, ENQUANTO MADAME DÁ UMA AULA A ELAS.
IX - A AULA DE MADAME
MADAME POMMERY....................................................................................................................12
MADAME Minha queridas, nunca se esqueçam de que a prostituição NÃO faz parte das ciências econômicas. Entendam que a famigerada lei da oferta e da procura pode ser perfeitamente adequada quando a mercadoria é bacalhau, carne de vaca, sapatos, tecidos, bugigangas e outros bens de consumo material. Mas quando o assunto é sexo, corpo, pele, unha, carícia, luxúria, suor, toque, penetração, a lei da oferta e procura não vale nada. Aqui, o assunto é outro. Não há o que regule o preço da carne prostituída. Tanto de uma grande cortesã, quanto de uma putinha xinfrim. Quem estabelece a cotação na bolsa do prazer é a própria profissional.
X - CENA II DE LEDA ROSCOFF E SIEGFRIED LEDA Eu vi, Siegfried, quando Madame não aceitou o seu cheque! Está sem fundos, não é? Você está falido, não é? (T) Eu sei, Siegfried, que você sustentou a farra da rapaziada, que emprestou muito dinheiro a eles, para que não deixassem de vir aqui. Que a sua mesa no Eletro-Club é a mais animada, que você pagou muito champã aqui no Paradis. (T) Mas, agora, o dinheiro acabou. Mas, agora, você está sem nenhum! E, por isso, não serve mais para Madame. Porque ela não perdoa, Siegfried. Não perdoaria nem a própria mãe. (T) Eu sei que você tem dinheiro para receber, mas gente fina não paga dívida, Siegfried. E, além do mais, você nunca cobraria, a menos que você fosse como Madame. Mas cadê a coragem? Cadê a coragem, Siegfried??? (T) Você... você quer... você quer uma das minhas jóias emprestada? Você vende e acaba com suas dívidas. Depois você me paga. Eu te amo. Depois você me paga! (CANTANDO) Ninguém me ama, só um grão-duque alemão! Que me deu muita jóia, muito ouro, menos a aliança na mão. Ninguém ama Leda Roscoff, que, na verdade, não é nenhum bofe! Que tem pele de açucena e muito creme de rainhas, usa pó-de-arroz cheiroso para cobrir suas espinhas. Ninguém me ama, só um grão-duque alemão! Que me cobriu de pérola e esmeralda, mas nunca pediu a minha mão. Ninguém ama esta Leda polaca,
MADAME POMMERY....................................................................................................................13
melhor que muita mulata, que vale um milhão de francos ou uma fortuna em libra esterlina! Eu sou uma mulher fina! P. ISIDRO (ENTRANDO) Eu sou o Coronel Fidêncio Pacheco Isidro e venho comunicar que o senhor Siegfried von Kruff acaba de se suicidar!
XI - O HINO AO FUTURISMO ENTRA TODO O ELENCO CANTANDO ANIMADO: TODOS -
Queremos cantar o amor ao perigo o uso da energia e a temeridade! A nossa poesia será corajosa, audaz e revoltada! O verdadeiro poeta terá que ser rico em calor e imensa prodigalidade! O nosso canto verá a terra totalmente desparafusada! Ai, ai, seu Marinetti, como é duro ser futurista! Tem muito artista, bem vigarista, que não sabe onde se mete! Ai, ai, seu Marinetti, a pessoa que é moralista não vai na linha de progressista, e a moral não lhe compete! Ai, ai, seu Marinetti, vou continuar farrista, pulo na pista, aguço a vista, e pratico um bom cunete! Um bom cunete, ôba!!!!! FIM DO PRIMEIRO ATO
MADAME POMMERY....................................................................................................................14
SEGUNDO ATO
XII - A CONVERSA ENTRE CAMARINHAS, MANGANCHA E NARCISO CAMARINHAS Humana.”
“Do Alcoolismo. Adaptação e Seleção Na Espécie
MANGANCHA -
O álcool é um alimento tesudo!
NARCISO -
O álcool nunca atrapalhou o progresso!
MANGANCHA O álcool ministra ao corpo o calor que, em última análise, é toda a nossa energia, tanto a física quanto a material, como a nervosa, ou psíquica...e a sensual. NARCISO Por esse lado, o álcool não só é alimento, sem nenhum favor, mas é mais rico ainda como fonte de calor; o primeiro e o mais rico dos alimentos, sem nenhuma comparação. CAMARINHAS alimentação.
Por ser o melhor dos combustíveis que entram na
MANGANCHA Estudemos os efeitos do alcoolismo. Sendo o álcool o mais rico dos alimentos, é natural que os grandes bebedores sejam extremamente sóbrios na comida.
MADAME POMMERY....................................................................................................................15
NARCISO Alguns têm as perturbações nervosas dos bebedores, a epilepsia dos degenerados alcoólicos, mas.... MANGANCHA Esses são os inadaptáveis! Ao lado de alguns chopistas infelizes que nos impressionam justamente pela miséria do seu estado, vivem inúmeros bebedores dos mais valentes, com aspecto vigoroso, alegre e sadio. CAMARINHAS anos de idade!
Goethe, por exemplo, bebia de cair até morrer, aos 83
NARCISO Beethoven era um maníaco, filho de alcoólatras. E bastam só esses dois. Se houver um Goethe e um Beethoven para um milhão de idiotas fabricados pelo álcool, ainda assim o lucro real da humanidade será inestimável! OS TRÊS -
Infinito! Prodigioso! (CANTAM) O álcool é fonte de energia, vida e calor que anima o corpo pra fazer o amor. É meio de prazer de farra e de tesão que transforma o fraco num belo garanhão. Quem sabe o que é bom, sabe o que beber. Vê que em sua vida não há nada a temer. Depois de um bom gole vira um dom joão pronto pra um combate em cima do colchão. Aí não há ninguém que possa resistir a essa força bruta que teima em explodir. Por isso não deixe na espera as fêmeas. Vamos rapidinho comer as nossas gêmeas.
XIII - PACHECO ISIDRO E CAMARINHAS FALAM SOBRE O FUTURISMO P. ISIDRO Como já tinha dito, mas acho que ninguém prestou muita atenção, eu sou o Coronel Fidêncio Pacheco Isidro, e, entre outra capacidades, faço parte do Círculo Literário Padre Antonio Vieira. E não posso permitir que, na presença de senhoras de berço, se pronuncie a palavra cunete! CAMARINHAS de mau gosto!
Foi apenas um brincadeira pretensamente intelectual e
P. ISIDRO (NÃO QUERENDO PARECER DESINFORMADO) Ah sim, é uma brincadeira com o tal doutor Marinetti, que lê o futuro, não é?
MADAME POMMERY....................................................................................................................16
CAMARINHAS Não, Coronel Pacheco Isidro, ela está falando do poeta Marinetti, um italiano que prega o futurismo. Um amigo nosso, o Oswald de Andrade, chegou de Paris dizendo maravilhas dele! P. ISIDRO O Oswaldinho, aquele descabeçado e descabelado filho do Andrade da Vila Cerqueira César? CAMARINHAS -
Pois sim, Coronel... um grande poeta!
P. ISIDRO Como grande? Como poeta? Ontem mesmo estávamos no salão de uma nossa conhecida e ele declamou, cheio de empáfia, um poema dele que falava, imagine só, da viagem de um tuberculoso pela cidade de São Paulo, de bonde! Como posso chamar aquilo de poema? Sem rima, sem métrica, sem consoante de apoio... Um arrazoado de termos ridículos, isso é o que é! CAMARINHAS -
Mas o futurismo de Marinetti, Coronel, é exatamente...
P. ISIDRO (INFLAMADO) Que futurismo? Que Marinetti, menino? Isso é um verdadeiro abuso à literatura pátria. Como diz o grande Bilac, “deve o poeta estudar com afinco a sua língua, conhecer-lhe as origens, a filiação, ler o maior número de clássicos autorizados, para depois se arriscar à arte difícil do verso, de todas as artes a mais difícil. Só depois de tudo esmiuçado, recolhido e analisado, pode escrever. Sem grande cópia de vocábulos sempre será falha a enunciação do pensamento. A língua em primeiro lugar - depois a arte, que trará o deleite e a vitória!”. CAMARINHAS Ora, Coronel... Essa é uma posição ainda parnasiana! Vivemos outros tempos, com outros pensamentos.... P. ISIDRO Já sei, já sei!!!! Você também é contra o serviço militar obrigatório! Você não passa de um anarquista!!!
XIV - MANOEL RECEBE JUSTINIANO JUSTINIANO -
Aqui é a Pensão para Artistas “Au Paradis Retrouvé”?
MANOEL -
Sim, senhor!
JUSTINIANO Convido o senhor a prevenir a Excelentíssima Senhora Dona Ida Pomerikowsky, a bem de seus interesses, de que se acha presente em sua casa, a serviço do Erário Público, o primeiro, segundo, terceiro Lançador da Arrecadação Estadual de Taxas e Impostos, Justiniano da Silveira Sacramento. (ENTREGA UM CARTÃO DE VISITAS A MANOEL)
MADAME POMMERY....................................................................................................................17
MANOEL Que nome bonito! (T) Madame Pommery não recebe a esta hora! Está para cima a dormir. JUSTINIANO Mas é um negócio nimiamente urgente e de particular interesse de sua Excelentíssima Patroa. De maneira que não será demais insistir com seu fiel servidor para que sua Excelência abandone o aconchego de seu leito. Eu lhe pedirei respeitosas desculpas por importuná-la em hora tão matinal, e espero que hei de ser atendido; pois sim... MANOEL já!
(SUSPIRANDO) O que eu não faço pelo senhor... Volto
MANOEL SAI. JUSTINIANO COMEÇA A OLHAR À SUA VOLTA E DEPARA COM O PALCO, O PIANO, GARRAFAS VAZIAS DE CHAMPANHE AINDA SOBRE AS MESAS. COMEÇA A FICAR INTRIGADO. JUSTINIANO Que lugar estranho! Que hábitos familiares há de haver em uma pensão, cuja patroa dorme até depois das oito? Mas, se não é pensão, o que é??? Parece-me um estabelecimento muito suspeito... Mas a lei vigente, consubstanciada no orçamento da Receita, aprovado pelo Congresso Legislativo para o presente exercício, apenas se refere a hotéis, restaurantes e pensões familiares! E não a lugares onde cavalheiros e senhoras se entregam a danças voluptuosas e libações, condenadas pela sabedoria da Justiça e do Santo Padre! MANOEL VOLTA E INTERROMPE JUSTINIANO. MANOEL Senhor Justiniano, Madame está com enxaqueca e pede que o senhor tenha a fineza de voltar logo após o almoço, quando o bordel (DÁ UMA RISADINHA PARA DISFARÇAR) estará mais em condições de recebê-lo. JUSTINIANO Diga à sua patroa que ela está sendo multada em dois contos de réis como proprietária de hotel e mais setecentos e vinte mil réis como promotora de bailes públicos ou diversões remuneradas. ABRE A PASTA, RETIRA UM PAPEL, ENTREGA A MANOEL E SAI DO PARADIS.
XV - MADAME POMMERY DOBRA O CORONEL PACHECO ISIDRO MADAME -
Bonjour, mon Colonel!
MANOEL -
Bom-dia, meu Coronel!
P. ISIDRO -
Como vai passando a Madame?
MADAME POMMERY....................................................................................................................18
MADAME Très bien et vôtre épouse, Madame Zoraida? Je ne la connais pas, mais tout le monde a dit qu’elle est une dame très belle et charmante! MANOEL blá....
Muito bem. E sua esposa, Madame Zoraida blá blá
P. ISIDRO Bondade dos amigos, bondade dos amigos... Realmente Zoraida tem uma educação mais primorosa do que as damas paulistas, pois, afinal, como a senhora, ela veio da Europa e isso já lhe dá um certo brilho que as nossas bandeirantes não têm! (T) Madame mandou me chamar. Em que posso ser útil? MADAME -
Connaissez-vous M. Justiniano da Silveira Sacramento?
MANOEL -
Conhece o Senhor Justiniano da Silveira Sacramento?
P. ISIDRO Como não, Madame? Ele é funcionário do Ministério dos Impostos, do qual, como Madame deve saber, sou Ministro! MADAME -
Vive le Ministre! Vive le Ministre!
MANOEL -
Viva o Ministro!
P. ISIDRO Est-il venu ici? Aquele beato???? Aquele beato que não larga a saia de um padre? Não pode ser.... Seus atos somente se inspiram na religião católica e na Constituição de 24 de fevereiro, isto é, só recebe ordens de Jesus Cristo e de Prudente de Moraes! Est-il venu ici???? MADAME me fodeu, Coronel!!!
E disse que vai fechar o meu estabelecimento. (T) Ele
P. ISIDRO Talvez possamos fazer alguma coisa, mas o problema é que o Justiniano... Como recusar uma multa pregada por ele? (CANTA) Minha Madame só há uma saída para esta situação tão fodida. É preciso mostrar que a decaída é mulher que nem sempre é uma perdida. Minha cara montemos um cenário, onde o milho se transforme em curau. Cada puta cantará como um canário com poesia declamada em um sarau. OS TRÊS -
Mentir! Mentir! Mentir!
MADAME POMMERY....................................................................................................................19
XVI - MANOEL REVELA SUA PAIXÃO MADAME E PACHECO ISIDRO SAEM E MANOEL CANTA, DILACERADO. MANOEL -
O meu coração começou a bater pois o meu Justiniano vai aparecer. A minha cabecinha vai enlouquecer quando abrir a porta e a ele receber. A minha mãozinha vai tremelicar quando em sua mãozona ela se encostar. E os meus olhinhos vão lacrimejar quando em seu bigode meu olhar pousar. E os meus pezinhos vão se enroscar quando finalmente ele for entrar. E o meu ouvidinho vai se emocionar quando a sua voz ele escutar. E a minha vidinha vai se transformar quando em seus braços eu for desmaiar.
XVII - O SARAU MADAME E MANOEL, COM AS PUTAS DISFARÇADAS, ESPERAM JUSTINIANO.
MADAME POMMERY....................................................................................................................20
MADAME -
Finjam muito bem! Disso depende o nosso futuro!
ISOLDA -
Ai, que estamos tão nervosas!
CORALINA que seria uma puta!
Mas eu não sei bancar a donzela! Desde criança sentia
NENÉA -
É só pensar no Pai Nosso e fingir que está rezando.
LEDA -
Pois eu acho que ele nem vai desconfiar.
TODAS RIEM NERVOSAMENTE. MADAME DÁ UM BASTA. MADAME -
Quietas, pois ele está chegando!
MANOEL, SE SEGURANDO, ACOMPANHA JUSTINIANO ATÉ ONDE ESTÃO AS PUTAS COM MADAME POMMERY. MANOEL Ministério dos Impostos.
O Senhor Justiniano da Silveira Sacramento, do
JUSTINIANO Não vim como funcionário do Ministério. Sou apenas um ínfimo servidor de Vossa Excelência, que se sente sobremaneira honrado em ser admitido entre a brilhante corte dos fervorosos admiradores de Vossa Excelência. MADAME Gostaria de apresentar-lhe, senhor Justiniano, as minhas alunas, a quem ensino boas maneiras, piano, francês e bordados, para que, mais tarde, possam cumprir, com zelo e dedicação, sua funções de mãe e esposas extremadas! Ensinando, por sua vez aos seus filhos, o respeito pelo Santo Evangelho e pela Constituição, obedecendo sempre cegamente a Jesus Cristo e ao presidente Prudente de Moraes! JUSTINIANO Que sábio raciocínio, Madame, e que belo porvir terão os pimpolhos que receberem tais ensinamentos! MADAME Esta é demoiselle Leda Amiroff Virioff Macroboff Roscoff, de nobre origem polonesa e russa, cuja família, parenta das cabeças coroadas, teve de fugir da revolução de 1905... e assim perdeu tudo. Sua mãezinha, uma das aias da Corte Romanov, pediu que eu zelasse por ela! JUSTINIANO -
Encantado, excelentíssima senhorita Roscoff!
MADAME Aqui está Coralina di Parma e Calabria, oriunda da boa Itália, onde aprendeu suas primeiras preces com o Monsenhor Carmelengo do Vaticano. Pretende se dedicar ao trabalho missionário, percorrendo o resto do país,
MADAME POMMERY....................................................................................................................21
que não é São Paulo, atendendo aos pobres e necessitados, como manda a Santa Madre Igreja! Além disso, pratica a declamação! JUSTINIANO -
Que bela alma, excelentíssima senhorita!
MADAME Estas são minhas queridas gêmeas Bogary: Isolda e Lia, filhas de minhas queridas primas-gêmeas que, por sua vez, também são filhas de gêmeas, e assim por diante. Em pouco tempo, a família delas ficou tão grande, com tantas gêmeas nascendo, que sua mãe pediu que eu me incumbisse da educação de Isolda e Lia. Vieram de uma pequena cidadezinha ao sul da França, onde aprenderam o cultivo de flores e o preparo de ricas compotas. Aprendem, também, o balé clássico! JUSTINIANO -
Que jovens finas!
MADAME Esta é a nossa brasileiríssima Nenéa, a verdadeira Flor do Lácio, só que culta é bela! Lídima representante do cruzamento das três raças tristes, traz em si a amabilidade do índio, a força do negro e a cultura do português! Estuda flauta e pretende se dedicar também ao corte e costura, impedindo assim que a moda adentre pelos caminhos não permitidos pela moral! JUSTINIANO -
Que tenha pleno êxito, excelentíssima senhorita!
MANOEL -
Eu sou o Manoel!
MADAME (DESCONSIDERANDO) Agora queira sentar-se, senhor Justiniano, que as meninas o brindarão com um pequeno sarau líteromusical. CORALINA -
De Gomes Leal, “Som e Cor”: “Bem sei que a planta engana e a natureza mente e que a flecha do sol nos pode assassinar, e que a peste torna o azul sereno e resplandecente, e a pérola sai das infecções do mar. Tudo é matéria, e lei onipresente! E, enquanto o lírio incensa e azula-se o luar, impassível talvez, embaixo, surdamente, a terra cria a flor que me há de envenenar! Bem sei! Mas, na floresta imensa das teorias, eu amo divagar, ouvindo as melodias que as plantas musicais dão aos astros e aos céus. Ah! Eu vejo Jesus no coração das rosas!
MADAME POMMERY....................................................................................................................22
Só eu vejo as leais flores melodiosas! E o lírio para mim é a hóstia onde está Deus!” JUSTINIANO Queira perdoar, distinta senhora, pelo crasso erro que cometi, impondo uma multa a este Instituto tão mimoso e saudável. Que ousadia a minha! Confundi-lo com uma mera diversão pública. E quero cumprimentá-la pela fina e primorosa educação que está a ministrar a estas jovens! São todas lindas flores no jardim plantado pelo Senhor! Mas há entre todas, uma que me cativou em particular: a meninazinha Nenéa... e se não for uma vã pretensão da minha parte, gostaria de poder cortejá-la, para que pudéssemos manter algumas palestras de alto nível moral e cívico e... quem sabe.... MADAME -
E quem sabe, senhor Justiniano?
JUSTINIANO -
(BERRANDO) EU QUERO ESSA NEGUINHA!!!
XVIII - CENA DE NENÉA DEPOIS DA SAÍDA DE JUSTINIANO NENEA Sei que um dia eu vou ter o meu próprio Paradis. Mas vai ser muito diferente do de Madame. Eu quero muita banana, muito sol, muito pé de avenca, muita cor. Um puteiro legitimamente brasileiro, com cachaça e muita rede para dormir. Com Madame Pommery aprendi com quantos paus se faz uma cama. Mas ou a puta brasileira se liberta do polaquismo internacional, ou vamos continuar tendo de gemer em francês! CANTA O TEMA DE NENEA, COM BACK ORQUESTRAL E TODAS AS PUTAS EM CORO. NENEA -
Fina Flor do Lácio culta e bela! Sou é mulher fácil, futil e sem trela! Moça educada, que lê francês, sou é abusada com qualquer freguês! Eu sou Nenéa, brasileira e desbocada! Filha de portuga e mulata desancada! Trago a vertigem da cor e da loucura sou da cor do jambo e da noite escura! Eu sou Nenéa, caprichosa e intrigueira! Cheia de malícia e felina flor trigueira!
MADAME POMMERY....................................................................................................................23
Evito o pudor e me visto com doidice! Quero o bem-bom e a faceirice! Alma com pendor, tecendo juras quero é um senhor com dinheiro às turras. Se sonho com o amanhã tendo meu lar???? Prefiro o champã e muito caviar!
XIX - NARCISO VIU ISADORA DUNCAN NARCISO ENTRA, MEIO ALUCINADO, COM UM PEDAÇO DE LENÇO VERMELHO NAS MÃOS, QUASE EM TRANSE. NARCISO Estou voltando do Theatro Municipal! Todo mundo estava lá. Ninguém se importou com a morte nem com a gripe espanhola que assola a cidade para aplaudir Isadora Duncan! (T) Ela é a própria Grécia! O pano se levantou e eu vi a Grécia, não a Grécia livresca dos sonetões de Bilac, que toda uma subliteratura ocidental vazava para a colônia inerme. Eu vi de fato a Grécia!!! Era uma criança seminua que colhia pedrinhas nos atalhos, conchas nas praias e com elas dançava. O cenário de uma só cor, de montanhas, de céu. E, do fundo de uma perspectiva irreal, as sombras da caverna platônica tomaram a carne virginal de Ifigênia para ressuscitar a realidade única. A voz do piano arquitetava Gluck. Essa mulher é alga, sacerdotisa, paisagem! (T) Louca de vida, louca de sensualidade, louca de amor descoberto e cantado pelos gregos, desde as mais primitivas formas de demonstrá-lo. Louca de mundo, de agitação febril, de contemplação plácida! Louca de sentimentos, de estranhas vibrações, de magnetismo pessoal, irresistível! (T) Grécia! Sol e carne! Martírio dos ventos! Isadora, uma bandeira! Sacundindo a poeira do mundo! Brandindo a espada da cultura nova! Somos deuses! Somos mágicos! (T) Eu me transfiguro em Isadora. Eu sou a Grécia. Pedrinhas e conchinhas. Quero a luz, quero o azul, quero um véu estendido sobre o mar! (T) Isadora! Isadora! Acolhe-me! Sou eu! Sou eu! (T) Sou uma labareda, um incenso, um arcabuz despejando sua bala sobre a cultura rançosa, um vulcão em explosão! E NARCISO SAI DO PARADIS, COMPLETAMENTE TOMADO POR ESSE ÊXTASE. CRUZA COM PACHECO ISIDRO, CAMARINHAS E MANGANCHA.
MADAME POMMERY....................................................................................................................24
XX - SEXO E ARTE P. ISIDRO Está bem, está bem!!! Eu sou reacionário e pronto! E acho que o Brasil está à beira do abismo por causa de pessoa como vocês. Vejam: um sexomaníaco e um moderno! MANGANCHA Ora, Coronel! Como é que o senhor pode ser reacionário com relação ao sexo? Eu gosto mesmo é de fornicar! Faz bem à saúde, desopila, renova as energias e outros que tais. P. ISIDRO casamento!
Sem dúvida! Mas só o sexo praticado sob o agasalho do
MANGANCHA -
Reacionário!
CAMARINHAS Quanto à arte, Coronel, por que esse nariz torcido para os modernos? São pinturas que contêm vida! P. ISIDRO -
Eu detesto pintura moderna!
MANGANCHA Mas que preconceito, Coronel!!! Faça como eu. Goste da pintura moderna porque ela é fálica, vaginal, orgasmática! P. ISIDRO -
Pintor, para mim, é um Almeida Junior!
CAMARINHAS -
Rego Monteiro!
P. ISIDRO -
Benedito Calixto!
CAMARINHAS -
Anita Malfatti!
P. ISIDRO -
Pedro Alexandrino!
CAMARINHAS -
Lasar Segall!
P. ISIDRO -
Lobato tem razão! Isso é paranóia ou mistificação.
XXI - FREVO DO SEGALL DO TETO VÃO BAIXANDO REPRODUÇÕES DOS QUADROS MODERNISTAS, COMO SE O PARADIS VIVESSE UM CARNAVAL DA SOCIEDADE DE ARTE MODERNA. TODOS ENTRAM E CANTAM, MUITO ANIMADOS:
MADAME POMMERY....................................................................................................................25
TODOS -
Apareceu um tal de Segall que faz um pintura sem igual. Muita cara chata muita cara triste e um ar fatal. Ele é o tal! A tal é tal da Anita que assina também Malfatti. Seu homem amarelo a cor de coisa bonita. Ela é fodida! O que vai acontecer com a arte brasileira? Ou vira uma beleza ou só baboseira? Será que descobriram a cor que o Brasil tem? Ou será que se esqueceram de como pintar bem? Só o tempo dirá, dirá. Por enquanto o negócio é dançar, dançar. Puxa a dama pra cá. Leva a dama pra lá. Sinta tudo rodar. Cada coisa tem a sua hora de chegar e de mostrar. Dá um tic, Segall, dá um tac, Malfatti, pondo o pé pra pular!
XXII - A DESPEDIDA DE MADAME. A SEMANA ACONTECEU. AS LUZES E O CLIMA NO PARADIS MUDAM TOTALMENTE. ESTAMOS EM 1922. MADAME POMMERY SURGE, VESTIDA DE NOIVA. É UM ENORME VESTIDO DE TULE, COM ALÇAS E PANOS QUE ENLAÇAM TODAS AS PUTAS. ELA CARREGA COPOS-DE-LEI NAS MÃOS. UM TOM AZUL COBRE TUDO. MANOEL AJUDA A ARRUMAR O VESTIDO, PARA QUE ELE TOME CONTA CADA VEZ MAIS DO ESPAÇO. MADAME Estamos em 1922. O Paradis Retrouvé foi fechado. Visto a minha grinalda e parto. Para onde? Não tem a mínima importância. A única importância é que de dentro de mim, de dentro do meu mais profundo, que é a pele, sobe uma onda que me empurra para fora deste país. E eu devo partir! (T) A única
MADAME POMMERY....................................................................................................................26
importância é que, do centro da minha cabeça, que é oca e ventilada como um bordel, me vem uma voz que diz: vá! (T) Nasci esperta, cresci vivida, e me encontro agora de olhos esbugalhados, frente a uma imensa, uma gigantesca interrogação. O que tem importância é que este país, como um bordel, vai reclamar de sua própria putaria! Esquecido de que foi ele mesmo que vendeu o seu corpo nos leitos escusos e amamentou em suas tetas rombudas os donos do poder! (T) O que tem importância é não ficar sentada à máquina registradora computando os saldos devedores e os males credores, tentando se chegar a um balanço que disfarce o rombo no cofre da consciência nacional. (T) SOU PUTA MAS NÃO SOU BURRA! Aciono os cavalos do meu bidê voador, dou todo vapor ao meu pichichê turbohelicoidal e saio! (T) O que tem importância é não deixar a chave do bordel! Porque este país está criando com falsa licenciosidade suas próprias víboras. (T) O que tem importância é que, da mistura do meu sangue cigano e cristão, nasceu uma pícola pitonisa que, sentada no canto esquerdo do meu cérebro, e mexendo na ponta direita do meu coração, sussurra: este país está indo para a merda! (T) Estamos em 1922. (T) O que tem importância é a volta. Sobre isso, eu não digo nada. Mas tudo poderá ser lido no segundo volume de minhas memórias a ser publicado pela Companhia Editorial Nacional. Monteiro Lobato, que me comeu, prometeu! (T) O que tem importância, agora, é minha mão vazia de mistério, agarrada ao gradil da história, vendo passar o desfile da memória brasileira, desconjuntado e esfarrapado, sem a capacidade de rir de sua própria imagem mal ajambrada. (T) Tudo isso é verborragia! O resto é o carnaval!
XXIII - O FIM MADAME SE DESFAZ DOS PANOS, QUE AGORA SÃO ESTANDARTES. ENTRAM OS CORONÉIS, MANOEL SE LEVANTA, ENTRAM FREQUENTADORES. TODOS CANTAM, COM CONFETES, SERPENTINAS, EM UMA ALEGRIA SURDA. TODOS -
Quando o sol, quando o sol se esconder e a luz do lampião se acender é Madame Pommery a receber no Paradis Retrouvé. É um sonho a descer na cidade é São Paulo refazendo a idade dentro dum jogo de felicidade é a loucura, a insanidade. Vem! O Paradis abre suas portas. Vem! A Pommery lhe cede as camas.
MADAME POMMERY....................................................................................................................27
Vem! Aqui as culpas estão mortas. Vem! vem se esquentar nas nossas chamas! Quando a lua, quando a lua arrebentar e o som do gramofone espernear somos nós, os garbosos coronéis bimbalhando no bolso os seus mil-réis. É o tango a rodar por entre as mesas é o champã acalmando mãos acesas é o prazer faiscando entre os corpos os pecados moralistas estão mortos. Quando o sol, quando o sol se esconder e a luz do lampião se acender é Madame Pommery a receber no Paradis Retrouvé! É um sonho a descer na cidade é São paulo refazendo a idade dentro dum jogo cheio de felicidade é a loucura, a insanidade. Quando o sol, quando o sol se esconder e a luz do lampião se acender é Madame Pommery a receber no Paradis Retrouvé.
FIM