PARIS - BELFORT ALCIDES NOGUEIRA
PARIS - BELFORT....................................................................................................2
“But time is always guilty. Someone must pay for Our loss of hapiness, our hapiness itself.” W.H.Auden
Para Edmar Fonseca, por tudo.
Meus agradecimentos a João Cândido Galvão, que me motivou a escrever esta tchecoviana caipira.
PARIS - BELFORT....................................................................................................3
Apresentação Alberto Guzik
“Paris-Belfort” é o nome de uma música famosa antigamente, e é também título de uma das peças mais fascinantes de Alcides Nogueira. Com mais de duas décadas de ótimos serviços prestados à dramaturgia brasileira, Alcides tem sabido explorar vertentes muito diversas umas das outras em sua criação. Em princípios dos anos 70, articulava uma inteligente conexão do teatro brechtiano com as mais salutares iconoclastias surrealistas em A Farsa da Noiva Bombardeada e O Maestro Tide Moreyra e sua Banda de Najas. Nos anos 80, deu início a sua investigação de ícones da cultura ocidental em Ópera Joyce. Ao mesmo tempo, enveredava pela recuperação de memórias em Lua de Cetim e avançava no estudo dos efeitos avassaladores da paixão em Lembranças da China. “Paris-Belfort” é um de seus textos estruturalmente mais ambiciosos. A ação oscila entre alguns dias de 1932, na época da Revolução Constitucionalista, e a passagem de ano de 1979 para 1980. O cenário é a vasta casa senhorial das irmãs Úrsula, Lydia e Olga Paes de Almeida numa cidade do interior de São Paulo. E as três, mais um antigo conhecido, Afonso Dattoli, são os protagonistas da história. Que vai desvendar aos poucos, num constante jogo de idas e vindas temporais, a razão pela qual Afonso, que na juventude foi íntimo das três irmãs e deveria ter-se casado com uma delas, deixou a cidade para integrar-se às tropas rebeldes de São Paulo, e nunca mais retornou. Ou melhor, volta 47 anos mais tarde, para um tardio e doloroso ajuste de contas. Os quatro personagens do drama são duplicados. Estão no palco quando jovens e na velhice. O recurso não é novo, foi bastante usado pelo inglês J.B. Priestley (de O Tempo e os Conways), por Arthur Miller, que bebeu em águas de Eugene O’Neill. No Brasil, Jorge Andrade foi exímio montador desse tipo de quebra-cabeças. Mas Alcides Nogueira confere a esse esquema uma voz própria, única. Seu verdadeiro tema não é a descoberta da verdade sobre a relação entre
PARIS - BELFORT....................................................................................................4 os personagens, embora isso também esteja em jogo. Ele fala, no fundo, do destroçamento dos sonhos, das ilusões, e da capacidade do ser humano de continuar sonhando, apesar disso, ou talvez por isso mesmo. Há algo de proustiano nesta peça. Não são as longas frases nem as narrativas minuciosas das ações dos personagens. “Paris-Belfort” mostranos esses seres em ação, é puro teatro, não um romance dramatizado. Mas existe um outro personagem, além dos jovens e dos velhos que povoam suas cenas. Esse ser invisível, que perpassa cada página do texto, cada instante da narrativa de Alcides Nogueira, é o Tempo, tão fundamental para a vida da obra quanto os sentimentos e segredos de Úrsula, Lydia, Olga e Afonso. Não é preciso que se fale muito no Tempo, dentro da peça. E efetivamente é mencionado com parcimônia e discrição em “Paris-Belfort”. Mas essa artimanha do dramaturgo só serve para tornar sua presença ainda mais palpável, determinante, do início ao fim. Os protagonistas humanos de “Paris-Belfort” são compostos por seres lastimáveis, de um lado. E, de outro, por gente com uma intensidade interior, uma sede de vida, que os toma memoráveis. Já que mencionei Proust, não posso deixar de citar outra presença forte que se sente por trás das páginas deste texto: Anton Tchécov. Não só pelo fato de serem três irmãs as heroínas, mas pelo tom da narrativa, por seu clima e ambiente, o texto é um tributo de Alcides Nogueira ao dramaturgo russo. É um resgate de emoções e ao mesmo tempo uma constatação funda, inapelável, de fracasso. Que nem por isso invalida a vida vivida por essa gente complexa, torturada. Essa gente em quem nos reconhecemos com tanta facilidade.
PARIS - BELFORT....................................................................................................5
personagens
AFONSO DATTOLI, 68 anos AFONSO DATTOLI, 20 anos
ÚRSULA PAES DE ALMEIDA SALLES (SULITA), 68 anos ÚRSULA PAES DE ALMEIDA SALLES (SULITA), 20 anos
LYDIA PAES DE ALMEIDA SALLES (LIDDY), 67 anos LYDIA PAES DE ALMEIDA SALLES (LIDDY), 19 anos
OLGA PAES DE ALMEIDA SALLES (GAIA), 65 anos OLGA PAES DE ALMEIDA SALLES (GAIA), 17 anos
PARIS - BELFORT....................................................................................................6
Toda a peça se passa na casa das irmãs Paes de Almeida Salles. Uma casa ampla, senhorial, antiga, como que intocada pelo tempo. Localizada em uma cidade do interior do Estado de São Paulo. A ação transcorre simultaneamente durante a passagem de 1979 para l980 e em l932, nos dias da Revolução Constitucionalista, na casa das irmãs Úrsula, Lydia e Olga, que moram juntas. Os atores que representam as personagens velhas e os que representam as personagens quando jovens circulam pela cena, aparecendo e desaparecendo misteriosamente. Como se ação do tempo fosse algo totalmente subjetivo. Não há mudanças de cenários para mostrar que o tempo parou naquela casa. A casa das irmãs dispõe-se no cenário em diversos ambientes. Dominando todo o palco uma sala ampla, decorada com móveis brasileiros antigos, do início do século. Móveis finos. Tapetes, um pianoarmário colocado junto a uma parede, quadros acadêmicos, muitas folhagens, uma mesa de jantar imponente, com cadeiras no mesmo estilo. Um jogo de palhinha austríaco em um outro ponto, fazendo o estar. Por ali, uma eletrola, com discos antigos. Fotos dos ancestrais quatrocentões. Um aparelho de rádio da época. Em um jirau, vêem-se dois quartos, vazados para a platéia e dando de frente um para o outro, separados por uma escada que vem até o centro do palco. O quarto à direita é de Úrsula, com penteadeira, cama de solteiro etc. Sóbrio. O quarto à esquerda é um quarto de hóspedes, que será usado por Afonso. Ali há um armário, cama de solteiro, baús velhos que guardam recordações de família, livros empilhados cuidadosamente. Nos dois quartos, muita ordem. Todo o cenário é de um requinte paulista. Nada de espalhafato. Sobriedade. Assim também os figurinos das mulheres. Quando velhas, vestem-se discretamente e com elegância, embora não tenham mais a fortuna que foi dilapidada. Mas suas roupas e pouquíssimas jóias mostram a origem do dinheiro velho. Quando jovens, as roupas são alegres, mas também sempre discretas. Afonso, quando jovem, usará roupas simples e limpas; quando velho, roupas que procuram esconder o usado, o puído, a má-qualidade delas. Tudo disfarçado convenientemente. Quando a ação da peça está no passado, há uma certa leveza no ar; no presente, um clima de solenidade. E, sempre, o cheiro de flores secas quardadas em livros que, repentinamente, invade o espaço.
PARIS - BELFORT....................................................................................................7
PRIMEIRO ATO CENA 1
MANHÃ. A SALA ESTÁ VAZIA, COM AS CORTINAS ABERTAS, DE MODO QUE A CLARIDADE CONSIGA INVADIR O PALCO. É O DIA 31 DE DEZEMBRO DE 1979. LUZ VAI SUBINDO SOBRE O QUARTO DE ÚRSULA VELHA. ESTA, AINDA DE PENHOAR ELEGANTE, FAZ SUA TOALETE DIANTE DE UMA PENTEADEIRA ANTIGA. BATIDAS À PORTA DA FRENTE DA SALA. ÚRSULA VELHA, EM SEU QUARTO, PÁRA SEUS MOVIMENTOS, À ESCUTA. DEPOIS, APARENTEMENTE, NÃO PRESTA MAIS ATENÇÃO. BATIDAS NOVAMENTE. LYDIA VELHA CRUZA A SALA, VINDO DE UMA PORTA DOS FUNDOS, COM UM AVENTAL SOBRE A ROUPA. VAI EM DIREÇÃO À PORTA. NÃO SE VÊ O CARTEIRO QUE ENTREGA UM TELEGRAMA A LYDIA VELHA. ELA ASSINA O RECIBO, DESPACHA O CARTEIRO E FICA UM TEMPO, ESTRANHANDO. FECHA A PORTA. COM O TELEGRAMA ÀS MÃOS. NÃO SABE SE ABRE OU NÃO. ABRE. LÊ EM SILÊNCIO. UMA SENSAÇÃO ESTRANHA TOMA CONTA DELA. FICA MEIO AGITADA. PERCEBE OS PASSOS DE ÚRSULA VELHA DESCENDO AS ESCADAS, AINDA DE PENHOAR. LYDIA VELHA QUARDA APRESSADAMENTE O TELEGRAMA EM UM BOLSO. ÚRSULA VELHA CHEGA À SALA. FALA COM LYDIA VELHA SEM NENHUM TOM QUE DEMONSTRE ESTAR INTIGRADA. TUDO NATURAL. ÚRSULA VELHA -
Quem era, Liddy?
LYDIA VELHA -
(NERVOSA) Ninguém...
ÚRSULA VELHA -
(SORRINDO) Como ninguém? Eu ouvi as batidas...
LYDIA VELHA -
Ouviu?
ÚRSULA VELHA -
Achei que era alguém dando Boas-Festas...
LYDIA VELHA -
(APROVEITANDO A DEIXA) Era alguém dando Boas-Festas...
ÚRSULA VELHA -
(SARCÁSTICA) Dando? Pedindo Boas-Festas... É o que eles fazem... (IMITANDO) Boas-Festas... Boas-
PARIS - BELFORT....................................................................................................8 Festas... E nós damos o dinheiro... Perdi a conta de quanto a gente gasta nesses dias... Uma fortuna! LYDIA VELHA MANTÉM A CONVERSA PARA DISFARÇAR. LYDIA VELHA -
Não é tanto assim, Sulita!
ÚRSULA VELHA -
Não é tanto assim, não é tanto assim! É assim sim! Aposto que você nunca fez as contas de quanto dá de esmola entre o Natal e o Ano-Novo... E há quantos anos você faz isso? Já estamos entrando em 1980 e você continua esbanjando, Liddy... Se somar, vai ver que passou uma fortuna para as mãos desses vagabundos! (AMARGA) Há quando tempo nós já estamos vivas?
LYDIA VELHA -
(SORRINDO) Você já está viva há 68 anos, Úrsula Paes de Almeida Salles!
ÚRSULA VELHA -
Não repita a minha idade!
LYDIA VELHA -
Foi você quem me pediu que fizesse as contas!
ÚRSULA VELHA -
Do dinheiro! Só do dinheiro que você esbanja... Não da minha idade!
LYDIA VELHA -
Você me perguntou: há quantos anos estamos vivas, Lydia?
ÚRSULA VELHA -
E você foi atrevida e respondeu!
LYDIA VELHA -
Eu sempre respondo quando me perguntam alguma coisa!
ÚRSULA VELHA -
Mesmo?
LYDIA VELHA REAGE, PERCEBENDO QUE CAIU NUMA CILADA. ÚRSULA VELHA -
Muito bem... Então responda... Quem estava aí?
NESSE MOMENTO, OLGA VELHA VEM DO EXTERIOR PELA MESMA PORTA POR ONDE VEIO O CARTEIRO. OLGA VELHA ENTRA, COM VÁRIOS PACOTES E UMA SACOLA DE FEIRA. ESTÁ CANSADA. JÁ VAI ENTRANDO RECLAMANDO, MAS BEM- HUMORADA. OLGA VELHA -
Os preços estão uma loucura... Nós vamos acabar falindo um dia...
PARIS - BELFORT....................................................................................................9 ÚRSULA VELHA -
Nós já falimos, querida... Você que não percebeu ainda...
OLGA VELHA -
Então, por que você insiste em fazer peru no AnoNovo? Mude para frango!
ÚRSULA VELHA -
Nunca!
OLGA VELHA -
Tudo caríssimo... Nem sei quanto gastei...
LYDIA VELHA -
(ANSIOSA) Você comprou o meu licor?
OLGA VELHA -
Licor?... Que licor?
LYDIA VELHA -
Por favor, Olga... Você sabe muito bem que eu não passo passar o ano sem o meu licorzinho... Meu único luxo!
ÚRSULA VELHA -
Nós ainda temos licor de jabuticaba!
LYDIA VELHA -
Eu me recuso! Não faço questão de peru, nem de purê de castanhas, nem de nada... Só do meu licorzinho italiano...
OLGA VELHA -
(BRINCANDO) Como papai...
LYDIA VELHA -
Como papai, sim!
ÚRSULA VELHA -
(SARCÁSTICA) As tradições da família...
LYDIA VELHA -
Meu licor, Gaia!
OLGA VELHA -
Eu trouxe, Liddy!... Eu trouxe... Mas você vai desmaiar quando souber o quanto custou!
LYDIA VELHA -
Não tem importância!
ÚRSULA VELHA VAI SAINDO PARA O INTERIOR. ÚRSULA VELHA -
Nós temos uma milionária aqui em casa, Gaia... Lydia Maria ainda não percebeu que os tempos das vacas gordas se acabaram... Não somos mais filhas de barões do café, meu amor...
ÚRSULA VELHA SAI. LYDIA VELHA E OLGA VELHA ENTREOLHAMSE. PAUSA. OLGA VELHA ENTREGA O LICOR PARA LYDIA VELHA.
PARIS - BELFORT....................................................................................................10 OLHA VELHA -
Você está nervosa, Liddy... E não é por causa do licor... Você sabia que eu ia trazer... Há quase cinqüenta anos que faço essa brincadeira com você...
LYDIA VELHA -
Venha cá!
OLGA VELHA -
O que foi, Liddy? Do que a Sulita reclamou agora? Eu preciso começar a lidar com este peru...
LYDIA VELHA OLGA VELHA -
Deixa o peru de lado... Aconteceu uma coisa! Nesta casa nunca acontece nada...
LYDIA VELHA -
Chegou um telegrama!
OLGA VELHA REAGE EM SILÊNCIO. TEMPO. OLGA VELHA -
Um telegrama?... Qual das nossas primas ou das filhas das nossas primas ou das netas das nossas primas se lembrou de mandar um Feliz Ano Novo? Eu fico muito comovida... Sinceramente, fico muito comovida, mas vou começar a lidar com o peru senão a ceia vai ficar...
LYDIA VELHA -
(CORTANDO) Gaia, um telegrama dele!
SILÊNCIO. AS DUAS ENTREOLHAM-SE. OLGA VELHA DEIXA OS PACOTES SOBRE A MESA. ESPANTO DE OLGA VELHA, QUE SE APROXIMA MAIS DE LYDIA VELHA. OLGA VELHA -
Dele??? Dele mesmo???... De quem estou pensando?
LYDIA VELHA -
De Afonso Dattoli!
REAÇÃO DE OLGA VELHA. ESPANTADA. DEPOIS, ESTENDE A MÃO. OLGA VELHA -
Não acredito! Deixe eu ver!
LYDIA VELHA -
Não contei para Úrsula!
OLGA VELHA -
Deixe eu ver!
LYDIA VELHA -
Você acha que eu deveria dizer para ela? Alguma coisa? Qualquer coisa?
OLGA VELHA -
Deixe eu ver o telegrama, Lydia!
LYDIA VELHA ENTREGA O TELEGRAMA PARA OLGA VELHA. ESTA LÊ, ESPANTADA.
PARIS - BELFORT....................................................................................................11 OLGA VELHA -
Ele diz que está vindo... Que vem nos ver... Agora... No réveillon...
LYDIA VELHA -
Eu sei...
OLGA VELHA -
Ele diz que vai aparecer aqui! Liddy, você entendeu?
LYDIA VELHA -
Entendi... Claro que entendi. Eu recebi o telegrama... Eu abri o telegrama... Eu li o telegrama...
OLGA VELHA -
Você acha que devemos receber esse homem?
LYDIA VELHA -
Não é esse homem, Gaia... É Afonso!
OLGA VELHA -
(NERVOSA) Afonso... Afonso que vivia aqui...Que estava conosco o tempo todo... Nosso maior amigo... Que tomou conta de nós quando papai e mamãe morreram...
LYDIA VELHA -
(PROFUNDAMENTE) Tomou conta...
OLGA VELHA -
(MUITO RESSENTIDA) E que um dia sumiu... Desapareceu... Sem dizer nada...
LYDIA VELHA -
Houve a Revolução, Gaia... Ele foi lutar...
OLGA VELHA -
A Revolução acabou há tanto tempo... A Revolução foi em 1932, Liddy... E ele?... Que notícia ele nos deu durante todo esse tempo? Nenhuma... Nada... A gente nem sabia se ele estava vivo ou morto...
LYDIA VELHA -
Ele está vivo!
OLGA VELHA -
Claro que ele está vivo, sua pateta!
LYDIA VELHA SE MOSTRA RESSENTIDA. OLGA VELHA -
Desculpe, querida... Eu não quis dizer isso... Pateta é ele... Sumir desse jeito... Depois, cinqüenta anos depois, manda um telegrama, dizendo que tem saudades das irmãs Paes de Almeida Salles e que vem nos ver... De onde é o telegrama?
LYDIA VELHA -
Não sei... Não tive tempo de olhar muito... Não queria que Sulita...
OLGA VELHA -
(OLHANDO PARA O TELEGRAMA) Do Rio de Janeiro!... Ele passou esse telegrama do Rio de Janeiro... Então...
PARIS - BELFORT....................................................................................................12
ÚRSULA VELHA, QUE ENTROU SEM QUE AS DUAS PERCEBESSEM, DIZ FIRME. ÚRSULA VELHA -
Não vamos receber nenhum carioca aqui em casa!
OLGA VELHA E LYDIA VELHA ENTREOLHAM-SE. ÚRSULA VELHA APROXIMA-SE. ÚRSULA VELHA -
Se esse calhorda sumiu daqui de casa sem dar nenhuma satisfação, acho que não devemos ter nenhuma relação com ele... Nem meramente social...
OLGA VELHA -
(CONFUSA) Eu também acho... Mas também não acho...
ÚRSULA VELHA -
Não acha o quê?
LYDIA VELHA -
Ele sempre foi nosso amigo, Sulita...
ÚRSULA VELHA -
(SARCÁSTICA) É mesmo, Liddy?... Depois, papai nunca gostou que nos metêssemos com ele...
LYDIA VELHA -
Mas passamos toda a infância, e depois que ficamos mocinhas...
ÚRSULA VELHA -
Um carcamano! Ele nunca passou de um carcamanozinho! Um qualquer!
OLGA VELHA -
Também não é assim, Úrsula... Quando papai e mamãe morreram...
ÚRSULA VELHA -
Eu sei! Eu sei de tudo! Quando papai e mamãe morreram naquele acidente horroroso, ele ficou aqui conosco... Ajudou... Ajudou muito! Sempre presente... Sempre conosco...
LYDIA VELHA -
(ENTUSIASMADA) conosco...
ÚRSULA VELHA -
A troco de quê?
É
isso
mesmo...
Sempre
SILÊNCIO. UMA PAUSA CONSTRANGEDORA. ÚRSULA VELHA -
A troco do golpe do baú... Sim, minhas irmãs... O nosso amigo Afonso Dattoli, carcamano da pior espécie, só queria dar o golpe do baú... Só isso... Nós éramos três idiotas... Três mocinhas que, da noite para o dia, estavam sem pai nem mãe...
PARIS - BELFORT....................................................................................................13 Literalmente... E aí, o que ele faz? Torna-se o anjo da guarda das Paes de Almeida... Para quê?... Será que além de velhas, vocês se tornaram cegas... e burras? LYDIA VELHA -
Você está sendo cruel, Úrsula!
ÚRSULA VELHA -
Eu sempre sou cruel... Foi assim que sobrevivi ...
OLGA VELHA ÚRSULA VELHA -
Eu acho... Você não acha nada, Olga... Você só era uma menina... A mais nova de nós... O que você sabia das coisas? Nada... E ainda não aprendeu...
OLGA VELHA -
Você gostava dele! Você brincava com ele! Você se divertia com ele!... Eu me lembro muito bem... Você fez questão de bordar todos os monogramas nas camisas que ele ia levar para a Revolução... De bordar os lenços...
ÚRSULA VELHA -
Ele nunca foi cavalheiro o bastante para usar lenços!
LYDIA VELHA -
Você bordou os lenços dele sim, Sulita! Olga lembrou bem...
ÚRSULA VELHA -
Devo ter feito uma marca qualquer... Um xis!... Não ia machucar os meus dedos com pano grosseiro... E com um homem grosseiro!
OLGA VELHA -
(SONHADORA) Lenços de cambraia!... Fininhos!... Pareciam casca de ovo!... Tinham um cheiro forte de cânfora!... Eu me lembro bem... Eram de papai... Estavam naquela caixa que ficava na cômoda...
ÚRSULA VELHA -
Você está delirando! Vocês duas estão delirando! Lenços de cambraia para Afonso Dattoli? Que desperdício! Acho que eram uns trapinhos de chita mesmo...
LYDIA VELHA -
Você se lembra de quando ele apareceu aqui fardado? Lembra, Olga?
OLGA VELHA -
(SONHADORA) Tão bonito! Tão forte... Viril...
ÚRSULA VELHA REAGE SARCÁSTICA. LYDIA VELHA -
(SONHADORA) Era o soldado mais bonito daqui da cidade... Todas as moças olhavam para ele...
ÚRSULA VELHA -
E o mais pobre!
PARIS - BELFORT....................................................................................................14
LYDIA VELHA -
Eu fui com ele até a Escola Normal para saber para onde ia o Batalhão...
OLGA VELHA -
Você nunca me disse isso!
LYDIA VELHA -
Não? Que estranho! Achei que vocês sabiam...
ÚRSULA VELHA ACENDE UM CIGARRO E FICA OUVINDO. LYDIA VELHA -
Eu e Afonso desfilando pelas ruas... Todo mundo parava para ver... Vocês se lembram de dona Marieta Correia? Ela ficou com um olho deste tamanho quando viu Afonso todo engalanado...
ÚRSULA VELHA -
Foi nesse dia que você caiu, não foi, Lydia Maria?
LYDIA VELHA -
(SEM JEITO) É... Um machucadozinho à toa... Nem me lembrava mais disso...
ÚRSULA VELHA -
Você apareceu aqui com medo...
SILÊNCIO. ÚRSULA VELHA SORRI E SAI PARA A VARANDA. OLGA VELHA RETOMA A CONVERSA. OLGA VELHA -
(SENTIDA) Ela tinha prometido que ia dar uma volta comigo, de farda... E passeou com você!
LYDIA VELHA -
(SOTURNA) Naquele dia, partiu...
OLGA VELHA -
Em compensação, quem ensinou o “Paris-Belfort” para ele fui eu!
LYDIA VELHA -
Ele já sabia! Vivia cantando...
OLGA VELHA -
Porque eu ensinei! Aqui, no piano...
OLGA VELHA APRESSA-SE ATÉ O PIANO. LYDIA VELHA -
Não acredito nisso! Você nem sabia o “ParisBelfort”!
OLGA VELHA -
Ha ha ha ha ha... Eu sabia de cor e salteado... O dono da Casa Aliança tinha me dado a partitura... Quer ouvir?
OLGA VELHA SENTA-SE AO PIANO. DÁ UM ACORDE. OLGA VELHA -
Parece que estou vendo Afonso aqui ao meu lado!
PARIS - BELFORT....................................................................................................15
LYDIA VELHA -
Não acredito! Não acredito! Você está blefando! Vá cuidar do peru!
OLGA VELHA -
(SONHADORA) Eu dei o primeiro acorde e comecei a cantar para ele!... (CANTA) “Nooooove de julho é a luz da Pátria!”
A LUZ VAI CAINDO NA SALA, ENQUANTO OLGA VELHA CANTA O “PARIS-BELFORT”. O SOM DO PIANO E DE SUA VOZ É ENCOBERTO POR UMA GRAVAÇÃO DE “PARIS-BELFORT” COM FANFARRA. UM SOM GRANDIOSO, FORTE. LUZ ACENDE NA VARANDA, ONDE ÚRSULA VELHA FUMA UM CIGARRO, OLHANDO PARA O VAZIO. SEMPRE A MÚSICA FORTE DE “PARIS-BELFORT”. NISSO, UM FOCO ILUMINA AFONSO VELHO, DE TERNO, COM UMA PEQUENA MALA NAS MÃOS. AFONSO VELHO SORRI PARA ÚRSULA VELHA. ELE FICA NEUTRA, MUDA, FRIA. FUMANDO E OLHANDO PARA ELE. CAI O SOM DE “PARIS-BELFORT”. AFONSO VELHO -
Você continua a mesma, Úrsula! Aprendeu a tragar?
ÚRSULA VELHA NÃO RESPONDE. AFONSO VELHO SE APROXIMA MAIS DELA. AFONSO VELHO -
Receberam meu telegrama?
ÚRSULA VELHA DÁ UMA BAFORADA, SEM DIZER NADA. MÚSICA DE “PARIS-BELFORT” SOBE COM TUDO. LUZ CAI SOBRE OS DOIS. BLACK-OUT.
CENA 2
LUZ ACENDE-SE SOBRE A SALA. OLGA JOVEM AO PIANO. LYDIA JOVEM AO LADO DELA. OLGA JOVEM AGORA TOCA UMA VALSINHA (“RÓSEAS FLORES D’ALVORADA”). LYDIA JOVEM CANTA. UM TEMPO COM AS DUAS ENLEVADAS. LUZ VAI ACENDENDO TAMBÉM NA VARANDA. ÚRSULA JOVEM (COM UM CIGARRO) CONVERSA COM AFONSO JOVEM. AFONSO JOVEM -
Você fumando?
ÚRSULA JOVEM -
Não faz um chic?
AFONSO JOVEM -
É horrível!
ÚRSULA JOVEM RI E ENGASGA COM A FUMAÇA.
PARIS - BELFORT....................................................................................................16 AFONSO JOVEM -
Pra que tanta pose, Úrsula? Não sabe nem tragar... Se o seu pai fosse vivo...
ÚRSULA JOVEM -
Meu pai morreu! Pronto! E eu vou fumar quanto quiser...
AFONSO JOVEM -
(TIRANDO O CIGARRO DELA, QUE ENGASGOU DE NOVO) Espere... Preciso contar uma coisa pra você...
ÚRSULA JOVEM -
Posso ouvir e continuar fumando!
AFONSO JOVEM -
Não pode! É coisa séria!
ÚRSULA JOVEM REAGE. AFONSO JOVEM -
Eu me alistei! Vou pra luta!
UM TEMPO COM ÚRSULA JOVEM, QUE NÃO SABE COMO REAGIR. POR FIM, ELA CAI NA GARGALHADA. AFONSO JOVEM OLHA ESPANTADO PARA ELA. AFONSO JOVEM -
Eu ... Eu pensei que você fosse ficar orgulhosa, Sulita!
ÚRSULA JOVEM -
Você não era comunista?
AFONSO JOVEM -
Não... (SEM JEITO) Anarquista, porque o nonno...
ÚRSULA JOVEM -
Comunista! Comunista, sim senhor! Você até me deu aquele livrinho para ler...
AFONSO JOVEM -
Fale baixo! (PAUSA) Eu... Eu pensei melhor...Eu preciso lutar... A Revolução...
ÚRSULA JOVEM -
(FIRMÍSSIMA) A Revolução não é para covardes! E você é um covarde, Afonso Dattoli! Molecão!
AFONSO JOVEM -
Eu tenho exatamente a sua idade... Vinte anos...
ÚRSULA JOVEM -
E o que você sabe da vida com vinte anos?
AFONSO JOVEM -
E o que você sabe da vida com vinte anos?
ÚRSULA JOVEM -
Eu sei tudo... Pelo menos, sei o que me interessa...
AFONSO JOVEM -
Eu também sei o que me interessa...
PARIS - BELFORT....................................................................................................17 ÚRSULA JOVEM -
(SARCÁSTICA) Lutar por São Paulo? Derrubar o ditador? (RINDO) Você sempre foi getulista... Confesse, Afonso!
AFONSO JOVEM -
Quero ser um herói! Eu vou ser um herói!
ÚRSULA JOVEM -
Duvido!
AFONSO JOVEM -
A Revolução não é só sua não, Úrsula... Nem dos seus priminhos de São Paulo... Dos bacharéis... Desse povinho que pensa que é o dono do mundo! A Revolução é de todo o mundo!... Do povo... Nós estamos indo pro front... Nós estamos indo morrer pela Constituição!
ÚRSULA JOVEM -
Bravo! Bravo! Bravo! Até parece que eu acredito nesse discurso!... Por que você não se alistou antes, quando a luta começou?
AFONSO JOVEM -
Eu... Eu estava pensando...
ÚRSULA JOVEM -
E vai continuar pensando quando as granadas explodirem? Enquanto continuarem os bombardeios? Não acredito em você, Afonso... Um blefe... É isso: um blefe!... Ou será que está indo porque ficou aqui sem ter o que fazer? Todos os rapazes de bem já seguiram com seus batalhões... Foi isso?
AFONSO JOVEM -
(COM MUITA RAIVA) Não dá pra conversar com você... Suas irmãs estão aí?
ÚRSULA JOVEM -
Não está ouvindo as duas maritacas ao piano?
AFONSO JOVEM -
Posso entrar?
PAUSA LONGA. ÚRSULA JOVEM ACENDE OUTRO CIGARRO. DÁ UMA LONGA BAFORADA, ANTES DE RESPONDER. ÚRSULA JOVEM -
Alguma vez você pediu permissão para entrar nesta casa?
AFONSO JOVEM -
(FIRME) Um dia, quando eu voltar... Herói... Um herói... essas portas estarão abertas para mim... As portas e tudo o mais.. Tudo... Tudo... Se pra pisar firme na sua casa tem de ser herói, eu vou ser um!
AFONSO JOVEM ENTRA. OLGA JOVEM E LYDIA JOVEM PARAM DE TOCAR E CANTAR QUANDO VÊEM AFONSO JOVEM ENTRAR.
PARIS - BELFORT....................................................................................................18
OLGA JOVEM -
Você brigou com Úrsula de novo?
AFONSO JOVEM -
Ela não entende nada de nada...
LYDIA JOVEM -
Fique aqui conosco...
AFONSO JOVEM -
Eu me alistei! Vou lutar!
SILÊNCIO. AS DUAS REAGEM, COMOVIDAS. LYDIA JOVEM -
Eu... Eu não sei o que dizer...
OLGA JOVEM -
Eu estou muito comovida! Agora, São Paulo vai ganhar a Revolução!
AFONSO JOVEM -
(RINDO) Só com os meus tiros? Úrsula acha que não consigo fazer nada...
OLGA JOVEM -
Quem não consegue fazer nada é ela... Vive resmungando... Não sabe nem bordar os uniformes...
AFONSO JOVEM -
Mas ela vai bordar as minhas roupas! Eu faço questão!
AS OUTRAS DUAS ENTREOLHAM-SE. LYDIA JOVEM -
(CORTANDO) Acho que podíamos brindar! Com o licor que papai gostava...
AFONSO JOVEM -
Supimpa!
OLGA JOVEM -
Lydia, mas o licor...
LYDIA JOVEM -
O licor sim, Gaia... Pegue lá dentro...
OLGA JOVEM -
Eu não sei...
AFONSO JOVEM -
(CHARMOSO PARA ELA) Um licorzinho italiano... Desce tão bem... E a ocasião merece... Não acha, Gaia?
OLGA JOVEM -
Eu ... Eu vou buscar...
OLGA JOVEM VAI PARA O INTERIOR. AFONSO JOVEM APROXIMA-SE MAIS DE LYDIA JOVEM. AFONSO JOVEM -
Quando eu já estiver com a farda... Quando já for um soldado de verdade, quero que você vá comigo
PARIS - BELFORT....................................................................................................19 até a Escola Normal... Para saber para onde vão me mandar... LYDIA JOVEM -
(COQUETE) Eu ???
AFONSO JOVEM -
Não vai gostar de desfilar comigo pelas ruas? Nós dois, sozinhos... Juntos...
LYDIA JOVEM -
Você quer mesmo? Quer que eu vá?
AFONSO JOVEM -
Quero!... Só você...
OLGA JOVEM CORTA O CLIMA, VINDO DE DENTRO COM LICOREIRA E CÁLICES. OLGA JOVEM -
Acho melhor chamar Úrsula...
LYDIA JOVEM -
Não... Deixa a Úrsula... Eu vou colocar aquela música que você gosta...
AFONSO JOVEM -
A italiana?
LYDYA JOVEM -
(RINDO) A italiana... É uma ária, Afonso... “Casta Diva”...
LYDIA JOVEM VAI ATÉ A ELETROLA E COLOCA A ÁRIA “CASTA DIVA”, DA ÓPERA “NORMA”. A MÚSICA SAI DA ELETROLA E PREENCHE TODO O AMBIENTE, ENQUANTO OLGA JOVEM SERVE O LICOR E OS TRÊS BRINDAM SOLENEMENTE. LUZ CAI NA SALA. BLACK-OUT.
CENA 3
LUZ SOBE NA VARANDA. AFONSO VELHO e ÚRSULA VELHA ESTÃO MUITO PRÓXIMOS. A MALA DE AFONSO VELHO JÁ COLOCADA DENTRO DA VARANDA. ÚRSULA VELHA -
(SECA) Por que você voltou?
AFONSO VELHO -
Eu precisava...
ÚRSULA VELHA -
Depois de cinqüenta anos? Não acha que passou muito tempo, Afonso?
AFONSO VELHO -
Eu não queria voltar de qualquer jeito...
ÚRSULA VELHA REAGE.
PARIS - BELFORT....................................................................................................20
AFONSO VELHO -
Eu queria voltar como um vencedor!
ÚRSULA VELHA -
Nós perdemos a Revolução, Afonso... Todo mundo sabe disso...
AFONSO VELHO -
(PRA BAIXO) Eu sei... Aqueles getulistas...
ÚRSULA VELHA -
(PRA BAIXO) Também, isso já aconteceu há tanto tempo... Perdemos... Quando vieram me contar, eu chorei...
AFONSO VELHO -
Você chorou? Não acredito! Eu nunca vi você chorar... Nunca...
ÚRSULA VELHA -
Você me conhece muito pouco...
AFONSO VELHO APROXIMA-SE BASTANTE DELA. AFONSO VELHO -
Ninguém a conhece como eu...
ÚRSULA VELHA FAZ UM GESTO PARA ELE SE DETER. ÚRSULA VELHA -
Eu não poderia impedir que você entrasse... Minhas irmãs ainda gostam de você... Ou dizem que gostam, não sei...
AFONSO VELHO -
E você?
ÚRSULA VELHA SE MANTÉM EM SILÊNCIO. AFONSO VELHO -
Gosta, Úrsula? Gosta de mim?
ÚRSULA VELHA VAI CAMINHANDO EM DIREÇÃO À PORTA. AFONSO VELHO PEGA SUA MALA E VAI ATRÁS. ÚRSULA VELHA VOLTA-SE DE REPENTE. ÚRSULA VELHA -
Você venceu, Afonso?
AFONSO VELHO -
A Revolução? (RINDO) Você mesma disse que todo mundo sabe que nós perdemos...
ÚRSULA VELHA -
Na vida! Você venceu?
A PORTA ABRE-SE E OLGA VELHA APARECE, FELIZ, RINDO. OLGA VELHA -
Afonso! Você voltou mesmo... Entre, entre... Você vai ver que a casa não mudou nada...
PARIS - BELFORT....................................................................................................21 AFONSO VELHO -
Nem vocês mudaram... Você está muito bem, Olga...
OLGA VELHA -
Eu agora sou uma velha... Só isso...
ÚRSULA VELHA OLHA DIRETAMENTE PARA AFONSO VELHO. AFONSO VELHO -
(INCOMODADO) Todos nós ficamos velhos... Mas parece que estamos conseguindo fazer isso muito bem...
OLGA VELHA -
Sempre galante! Sempre galante...
AFONSO VELHO -
E Lydia?
OLGA VELHA -
Vai morrer quando olhar para você... Você...Você está muito garboso...
AFONSO VELHO -
São seus olhos, Gaia...
OLGA VELHA -
Está sim... Vamos entrando...
TODOS VÃO ENTRANDO QUANDO ÚRSULA VELHA REPETE A PERGUNTA. ÚRSULA VELHA -
Você venceu, Afonso?
UM TEMPO DE PAUSA LONGA. OLGA VELHA NÃO ENTENDENDO. ÚRSULA VELHA SORRINDO. AFONSO VELHO RESPONDE FIRME. AFONSO VELHO -
Venci! Eu venci, Úrsula!
E OS TRÊS ENTRAM. LUZ ACENDE NA ANTIGA SALA, ONDE LYDIA VELHA ESTÁ LIMPANDO ALGUMA PRATARIA SOBRE A MESA. ELA FICA NERVOSA QUANDO VÊ AFONSO VELHO. VEM ATÉ ELE. AFONSO VELHO -
(PARA LYDIA VELHA) Eu devia beijar a sua mão...
ÚRSULA VELHA -
(SECA) Ela não se casou, meu caro... Continua a senhorita que você conheceu... E você deve ter aprendido que não se beija a mão de senhoritas.
LYDIA VELHA -
(TÍMIDA) Você sumiu... Tantos anos...
AFONSO VELHO -
Posso explicar...
LYDIA VELHA -
(NERVOSA) Agora não... Vamos brindar... Nós precisamos brindar... (SEGREDANDO) Nós sempre temos aquele licor...
PARIS - BELFORT....................................................................................................22 ÚRSULA VELHA -
Licor de jabuticaba!
LYDIA VELHA -
Não! O licor italiano! Eu comprei o licor...
OLGA VELHA -
(NERVOSA) E você pode ouvir música! A eletrola ainda funciona... Só nós mesmo para ainda termos uma eletrola!
LYDIA VELHA -
Se quiser, podemos cantar...
OLGA VELHA -
E eu vou mostrar a você as begônias novas!
ÚRSULA VELHA -
(CORTANDO) Acho que nenhuma de nós ainda tem tanta disposição...
SILÊNCIO. PAUSAS. AFONSO VELHO -
Eu aceitaria... Com muito prazer... Um calicezinho daquele licor...
OLGA VELHA -
E quer ouvir a “Casta Diva” também?
AFONSO VELHO -
(NOSTÁLGICO) A italiana... (RINDO) Eu não entendia nada de ópera... Vocês sabiam tudo... Tão finas, tão cultas, tão alinhadas... Eu, um brutamontes...
OLGA VELHA -
(CARINHOSA) Um carcamanozinho!
AFONSO VELHO -
(BRINCANDO CARINHOSO) Um carcamanozinho! Mas aprendi muita coisa... Vocês vão ver!
LYDIA VELHA SERVE OS LICORES. OLGA VELHA COLOCA A “CASTA DIVA” NA ELETROLA. A MÚSICA INVADE TODA A CENA. TODOS BRINDAM. NISSO, A PRÓPRIA OLGA VELHA TIRA A MÚSICA, INCOMODADA. OLGA VELHA -
Úrsula está certa... Tudo isto é uma... uma... Não sei... Com licença, eu vou preparar o quarto de hóspedes para Afonso!
OLGA VELHA VAI SUBINDO AS ESCADAS, LENTAMENTE, ENQUANTO OS OUTROS OLHAM PARA ELA, SEM ENTENDER. ÚRSULA VELHA, SECAMENTE. VAI ATÉ A ELETROLA E RECOLOCA A ÁRIA. UMA COISA SÁDIA. A MÚSICA CONTINUA TOCANDO ENQUANTO OLGA VELHA SOBE LENTAMENTE. LUZ CAI NA SALA E SOBE NO QUARTO DE HÓSPEDES. ALI ESTÁ OLGA JOVEM. EM BG, A ÁRIA TOCANDO. OLGA JOVEM ESTÁ MEXENDO EM ALGUMAS PARTITURAS, QUE
PARIS - BELFORT....................................................................................................23 ESTÃO ESPALHADAS PELA CAMA. A PORTA SE ABRE E AFONSO JOVEM ENTRA. OLGA JOVEM SE ESPANTA. OLGA JOVEM -
Você não pode subir aqui! Úrsula já disse...
AFONSO JOVEM -
A Úrsula não sabe de nada...
OLGA JOVEM -
Isto aqui está uma bagunça...
AFONSO JOVEM -
Não estou preocupado com a bagunça... Estou pensando em outra coisa...
OLGA JOVEM -
Está arrependido porque se alistou?
AFONSO JOVEM -
Não...
OLGA JOVEM -
Olha... É a partitura da “Casta Diva”... Eu sabia que nós tínhamos... Mamãe cantava... Também vou aprender a tocar e a cantar... Aí, quando você voltar da Revolução... Cheio de medalhas e vencedor, eu vou cantar inteirinha para você... Se você me desculpar a desafinação, é claro...
AFONSO JOVEM FICA EM SILÊNCIO. OLHANDO PARA OLGA JOVEM. ESTA, COM A PARTITURA NA MÃO, PERCEBE ALGO. PROCURA DISFARÇAR OLGA JOVEM -
Não me parece tão difícil... Quer ver? (COMEÇA A CANTAROLAR A ÁRIA)
EM BG, A ÁRIA CONTINUA TOCANDO. AFONSO JOVEM APROXIMA-SE DELA. PEGA UMA DE SUAS MÃOS. AFONSO JOVEM -
Você não é mais uma menina, Gaia...
OLGA JOVEM -
Claro que não sou... Tenho 17...
AFONSO JOVEM -
O que você... Bom, o que você acha de mim?
OLGA JOVEM -
(MEIO SURPRESA) Não sei... Você nunca me perguntou nada parecido... Ninguém nunca me perguntou o que eu acho de alguma coisa... Acho que não sei achar nada...
AFONSO JOVEM -
Nem de mim?
OLGA JOVEM FICA TENSA COM O CLIMA. TITUBEIA. OLGA JOVEM -
É melhor você sair daqui, Afonso...
PARIS - BELFORT....................................................................................................24
AFONSO JOVEM -
Para São Paulo?
OLGA JOVEM COMEÇA A RIR, MUITO NERVOSA. OLGA JOVEM -
Não, seu bobo... Para baixo... Para a sala para a varanda, para o quintal... sei lá...
AFONSO JOVEM -
Você quer ir comigo daqui, para São Paulo, Gaia?
OLGA JOVEM REAGE, ESPANTADA. AFONSO JOVEM -
Nós vamos embora... Fugindo... Ninguém vai descobrir... Eu gostaria de viver... de viver com você...
OLGA JOVEM -
Eu... Eu não sei...
AFONSO JOVEM -
(REPENTINAMENTE) Uma brincadeira... Só uma brincadeira... Que gosto muito de fazer... Esqueça!
OLGA JOVEM FICA COMPLETAMENTE ATURDIDA. PEGA A PARTITURA E SAI CORRENDO, DEIXANDO AFONSO JOVEM POR ALI, SOZINHO. LUZ CAI NO QUARTO E SOBE NA SALA. ÚRSULA VELHA ESTÁ SOZINHA NA SALA, FUMANDO. A ÁRIA CONTINUA TOCANDO NA ELETROLA. OLGA VELHA DESCE. AINDA PERTURBADA. A ÁRIA CONTINUA TOCANDO. OLGA VELHA VAI ATÉ A ELETROLA E TIRA O DISCO. OLGA VELHA -
Por favor, Sulita, eu não quero mais ouvir isso...
ÚRSULA VELHA -
Recordações, Gaia?
OLGA VELHA -
(DISFARÇANDO) Onde está Liddy?
ÚRSULA VELHA -
Saiu com Afonso para o quintal... Foi mostrar as plantas novas... Novas? Devem estar aí pelo menos há uns trinta anos ou mais..
OLGA VELHA -
Para ele, são novas... Eu arrumei o quarto de hóspedes... Ele vai ficar lá, não é?
ÚRSULA VELHA -
Por mim, ficaria no quintal... Na edícula, em qualquer lugar... Menos na casa...
OLGA VELHA -
Por que você não gosta mais dele, Úrsula? O que aconteceu?
PARIS - BELFORT....................................................................................................25 ÚRSULA VELHA -
Por que você fica perturbada com ele, Casta Diva? O que aconteceu?
OLGA VELHA -
(SEM GRAÇA) Eu preciso cuidar da ceia... Será que vai dar a comida?
ÚRSULA VELHA NÃO RESPONDE. OLGA VELHA -
Essa visita tão inesperada... Vou precisar de mais castanhas... E não sei se vai dar tempo de ir comprar...
ÚRSULA VELHA -
Olga?
OLGA VELHA -
Sim...
ÚRSULA VELHA -
Alguma vez aconteceu alguma coisa entre você e Afonso?
OLGA VELHA -
Não! Nunca!
ÚRSULA VELHA -
Não precisa ser tão explosiva! Foi apenas uma pergunta!
OLGA VELHA -
O que podia ter acontecido?... Eu... eu era tão menina quando ele foi embora...
ÚRSULA VELHA -
Você já tinha 17 anos... Não era menina coisa alguma... Podia ser meio bobona, mas não era uma menina...
OLGA VELHA -
Eu sabia de tão pouca coisa... Depois, Lydia...
ÚRSULA VELHA -
O que tem Lydia?
OLGA VELHA -
Acho que Lydia queria Afonso para ela!
ÚRSULA VELHA -
Que bobagem!
LUZ CAI NA SALA E ACENDE NO QUARTO DE ÚRSULA. ÚRSULA JOVEM ESTÁ COM VÁRIOS LENÇOS NA MÃO. LYDIA JOVEM AO LADO DELA. LYDIA JOVEM -
Eu vou bordar os lenços de Afonso! E as camisas também!
ÚRSULA JOVEM -
Você está me atrapalhando, Lydia Maria!
LYDIA JOVEM -
Dê os lenços para mim!
PARIS - BELFORT....................................................................................................26
ÚRSULA JOVEM -
Eu estou bordando os monogramas!
LYDIA JOVEM -
Eu ia fazer isso... Ele falou que era você porque estava com raiva... Mas eu vou fazer isso...
ÚRSULA JOVEM -
(FIRME) Por que você? Acaso têm uma ligação mais forte? Alguma coisa que eu e Olga não sabemos? Se é assim, então é melhor que fique com tudo mesmo... Com os lenços e com tudo o mais... Mas, se for isso, você está perdida... Uma mulher como você não pode...
LYDIA JOVEM -
(EXASPERADA) Pare! Pare! Não é nada disso! Você está imaginando coisas...
ÚRSULA JOVEM -
Então, por que esse desespero todo? Só por causa de uns lenços?
LYDIA JOVEM COMEÇA A CHORAR. ÚRSULA JOVEM FICA FIRME. JOGA OS LENÇOS PARA ELA. ÚRSULA JOVEM -
Borde! Borde tudo! Está tudo tão claro... Essas suas lágrimas idiotas! Esse seu desespero! Faça o que esse homem quer!
LYDIA JOVEM -
(EXASPERADA) Eu não vou bordar mais nada! Porque eu não tenho nada com ele... Você está imaginando coisas... Você vai bordar! Está louca para fazer isso!
ÚRSULA JOVEM -
Louca? Só estou querendo fazer uma gentileza para um pobre coitado...
LYDIA JOVEM -
Um pobre coitado que deve mexer fundo no seu coração!
ÚRSULA JOVEM -
Agora quem está imaginando coisas é você, Lydia Maria...
LYDIA JOVEM -
Borde! Borde tudo! Eu não quero mais nem ver esses panos... Ah, você comprou cambraia finíssima para ele... Parabéns!
ÚRSULA JOVEM -
Não comprei nada! Peguei os lenços que eram de papai!
LYDIA JOVEM -
Úrsula! Como pôde fazer isso?
PARIS - BELFORT....................................................................................................27 ÚRSULA JOVEM -
Papai vai usar estes lenços, onde está?
LYDIA JOVEM -
Você precisa se confessar! Isso é blasfêmia!
ÚRSULA JOVEM -
Eu sei o que digo... E o que faço! Leve os lenços com você! Acabe esse trabalho bobo!
LYDIA JOVEM NÃO PEGA OS LENÇOS. VAI SAINDO FURIOSA. ÚRSULA JOVEM MAL CONSEGUE SEGURAR O RISO. LUZ CAI NO QUARTO E SOBE NA VARANDA. LYDIA VELHA E AFONSO VELHO ESTÃO CHEGANDO DOS FUNDOS. AFONSO VELHO -
São muito bonitas as begônias... E as outras flores... Mas eu gosto mesmo é deste pé de manacá...
LYDIA VELHA -
Tão velho! Como nós!
AFONSO VELHO -
Você não está velha, Liddy! Continua tão bonita... (PEQUENA PAUSA) Como quando...
LYDIA VELHA -
(RAPIDAMENTE, PARA CORTAR) Gostaria de ver as rosas? Essas são novas mesmo...
AFONSO VELHO -
Liddy...
LYDIA VELHA -
Por favor, Afonso... Apaguei tudo da minha cabeça... Por favor... Estou velha! Você está velho!
AFONSO VELHO -
Eu nunca penso na minha idade!
LYDYA VELHA -
Sessenta e oito...
AFONSO VELHO -
Quero ver uma coisa neste pé de manacá!
LYDIA VELHA FICA MUITO INCOMODADA. LYDIA VELHA -
É melhor entrarmos.
AFONSO VELHO -
Um minuto... Havia uma inscrição... Uma marca...
LYDIA VELHA -
Não havia nada!
AFONSO VELHO -
Feita a canivete! Em 32... Pouco antes de eu ir para a Revolução! Os nossos nomes...
LYDIA VELHA -
Eu vou entrar, Afonso!
AFONSO VELHO CONTINUA MEXENDO NO PÉ DE MANACÁ. SEGURA LYDIA VELHA.
PARIS - BELFORT....................................................................................................28
AFONSO VELHO -
Sumiu... Não há nada no tronco...
LYDIA VELHA -
Sobra alguma coisa depois de tanto tempo? O tempo apaga tudo...
AFONSO VELHO -
Não apaga não, Liddy...
AFONSO VELHO ENFIA A MÃO NO BOLSO E TIRA UM LENÇO DE CAMBRAIA. MUITO FINO. PELE DE OVO. UM MONOGRAMA BORDADO COM AS INICIAIS DELE. AFONSO VELHO -
Um dos lenços que você bordou para mim...
LYDIA VELHA FICA CONSTRANGIDA. AFONSO VELHO -
Ficou comigo durante todas as batalhas... E depois, quando eu fui embora... quando me perdi por esse mundo todo... ficou sempre comigo... O lenço que você bordou...
LYDIA VELHA -
(NUM FIO DE VOZ) Não fui eu...
AFONSO VELHO REAGE. LYDIA VELHA -
Eu não bordei nada para você...
AFONSO VELHO -
Mas a Úrsula, quando me entregou os lenços, disse que você tinha passado as noites bordando...
LYDIA VELHA -
(ESPANTADA) Ela disse isso?
AFONSO VELHO -
Que você tinha escolhido os melhores lenços de seu pai... e que tinha bordado para mim, com muito carinho...
LYDIA VELHA ESPANTA-SE MUITO. AFONSO VELHO -
Mas você não queria me entregar, porque tinha medo que eu... que eu pudesse interpretar de outra maneira...
LYDIA VELHA -
Não estou entendendo nada...
AFONSO VELHO -
Quem bordou os lenços para mim, Lydia?
LYDIA VELHA -
Úrsula...
PARIS - BELFORT....................................................................................................29 CAI A LUZ LENTAMENTE COM AFONSO VELHO SEGURANDO O LENÇO, ESPANTADO. BLACK-OUT.
CENA 04
LUZ NO QUARTO DE ÚRSULA. ÚRSULA JOVEM SE APRONTANDO. OLHA VÁRIAS VEZES PARA O ESPELHO DA PENTEADEIRA. COLOCA UMA BOINA. NÃO GOSTA. COLOCA UM CHAPÉU. NÃO GOSTA. COLOCA UMA ÉCHARPE NO PESCOÇO. GOSTA! EXAMINA-SE MAIS. DEPOIS, PÕE A ÉCHARPE SOBRE A CABEÇA. SEMPRE UMA COISA COQUETTE. ENQUANTO ELA SE PERFUMA E VAI SE ARRUMANDO, LUZ ACENDE NA SALA VAZIA. AFONSO VELHO ABRE A PORTA DA FRENTE E ENTRA, SOZINHO. AINDA ESTÁ COM O LENÇO BORDADO NAS MÃOS. COMEÇA A TOSSIR FORTE. TOSSE BASTANTE. SEGURA A TOSSE COM O LENÇO. COMEÇA A SUBIR AS ESCADAS MEIO TRÔPEGO. VAI PARA O QUARTO DE HÓSPEDES, QUE SE ILUMINA. EM SEU QUARTO, ÚRSULA JOVEM AGORA ESTÁ TOTALMENTE ARRUMADA. MUITO BONITA. NO QUARTO DE HÓSPEDES, AFONSO VELHO JOGA-SE NA CAMA, SEMPRE PROCURANDO SEGURAR A TOSSE. CONSEGUE CONTROLAR. MAS FICA ARFANTE. MUITO ARFANTE. DEITADO, ELE VAI FECHANDO OS OLHOS LENTAMENTE. ÚRSULA JOVEM SAI DO QUARTO ALEGRE, FELIZ, E VAI DESCENDO AS ESCADAS, CORRENDO. QUANDO CHEGA À SALA, A PORTA DA FRENTE SE ABRE E AFONSO JOVEM ENTRA, SORRINDO. LUZ CAI TOTAL NO QUARTO DE HÓSPEDES, ONDE ESTÁ AFONSO VELHO. NA SALA, ÚRSULA JOVEM FINGE SURPRESA QUANDO VÊ AFONSO JOVEM. ÚRSULA JOVEM -
Você ?
AFONSO JOVEM -
Vai sair?
ÚRSULA JOVEM -
Ainda não sei...
AFONSO JOVEM -
Claro que sabe... Esse lenço... Essa pintura... Você nunca se pintou antes...
ÚRSULA JOVEM -
Não estou pintada! Só um pouco de ruge...
AFONSO JOVEM APROXIMA-SE PETULANTEMENTE DELA. TIRA UM LENÇO DO BOLSO. UM LENÇO GROSSEIRO. PASSA O PANO NO ROSTO DE ÚRSULA JOVEM. AFONSO JOVEM -
Um pouco de ruge? Parece vermelhão que colono passa no chão da casa!
PARIS - BELFORT....................................................................................................30 ÚRSULA JOVEM -
(MUITO IRRITADA) Bruto! Grosseiro! Você devia é ir passar vermelhão no chão da sua casa, que está caindo aos pedaços... Você não se enxerga não?
AFONSO JOVEM -
Calma, calma, minha flor... Eu vim convidar você...
ÚRSULA JOVEM -
Saia daqui! Fora da minha casa!
AFONSO JOVEM COMEÇA A GARGALHAR. ÚRSULA JOVEM -
Está rindo de quê?
AFONSO JOVEM -
Da sua raiva...
ÚRSULA JOVEM -
Pode rir! Pode rir à vontade...
AFONSO JOVEM CONTINUA RINDO. DE REPENTE, ELE SE AFOGA. COMEÇA A TOSSIR. ÚRSULA JOVEM -
Bem-feito! Bem-feito! Tomara que morra!
AFONSO JOVEM PROCURA SE APOIAR EM ALGUMA COISA. TOSSE MUITO. ÚRSULA JOVEM FICA PREOCUPADA. CHEGA ATÉ ELE. ÚRSULA JOVEM -
Vou buscar um copo de água...
AFONSO JOVEM AGARRA ÚRSULA JOVEM E DÁ-LHE UM BEIJO. ELA RESISTE. ELE SEGURA. ELA SE DEIXA BEIJAR. BEIJAM-SE LONGAMENTE. LUZ VAI CAINDO SOBRE OS DOIS SE BEIJANDO. LUZ SOBE NO QUARTO DE HÓSPEDES. AFONSO VELHO DÁ UM SOBRESSALTO. AFONSO VELHO -
Úrsula! Onde está você?
LUZ CAI TOTAL NA SALA. CONTINUA NO QUARTO DE HÓSPEDES. AFONSO VELHO, JÁ MAIS CALMO, MAS AINDA CHAMANDO. AFONSO VELHO -
Úrsula! Onde está você?
LUZ NO QUARTO DE ÚRSULA. ÚRSULA VELHA POR ALI, FUMANDO EM PÉ, OLHANDO PARA A PARTE VAZADA QUE DÁ PARA A PLATÉIA. ELA OUVE AFONSO VELHO CHAMAR. RESOLVE IR ATÉ LÁ. ABRE A PORTA DO QUARTO DE HÓSPEDES. AFONSO VELHO PROCURA SE LEVANTAR. ÚRSULA VELHA -
(SECAMENTE) Continue deitado... Você está bem?
AFONSO VELHO -
Cansado, Úrsula... Muito cansado...
PARIS - BELFORT....................................................................................................31 ÚRSULA VELHA -
Você disse que veio de avião do Rio até São Paulo... E, de São Paulo até aqui não é tão longe...
AFONSO VELHO -
Estou muito cansado... Nós temos 68 anos, minha querida...
ÚRSULA VELHA -
Não estou muito interessada nisso...
AFONSO VELHO LEVANTA-SE. PROCURA SE APROXIMAR DE ÚRSULA VELHA. ELA EVITA. VAI PARA PERTO DA JANELA. ACENDE OUTRO CIGARRO. ÚRSULA VELHA -
Você se importa?
AFONSO VELHO -
Devia largar essa porcaria...
ÚRSULA VELHA -
Quem está tossindo não sou eu...
SILÊNCIO ENTRE OS DOIS. AFONSO VELHO -
Precisamos conversar...
ÚRSULA VELHA -
Você gosta do Rio de Janeiro?
AFONSO VELHO -
Precisamos conversar, Úrsula...
ÚRSULA VELHA -
Você costuma ir a São Paulo?
AFONSO VELHO -
Úrsula...
ÚRSULA VELHA -
Que engraçado, você vivia me dizendo que me levaria a São Paulo... E, uma vez, disse com tanta convicção, que eu acreditei... (MUDANDO) Ainda bem que não cheguei a fazer as malas...
AFONSO VELHO -
Você nunca me perdoou, não é?
ÚRSULA VELHA PERMANECE EM SILÊNCIO. AFONSO VELHO -
Úrsula, as coisas não foram exatamente...
ÚRSULA VELHA -
Você não vai desfazer a sua mala? Quer ajuda?
AFONSO VELHO -
Você me ajuda?
ÚRSULA VELHA -
Com certeza Liddy ou Gaia sabem fazer isso melhor do que eu... Com licença, Afonso...
PARIS - BELFORT....................................................................................................32 ÚRSULA VELHA VAI SAINDO DO QUARTO. AFONSO VELHO AINDA A DETÉM. AFONSO VELHO -
Nós precisamos conversar, Sulita...
ÚRSULA VELHA -
Foram quase cinqüenta anos, Afonso... Eu nem me lembro mais do que aconteceu!
AFONSO VELHO -
Mentira!
ÚRSULA VELHA -
Vou pedir a Liddy que suba... Olga está lidando com a ceia...
ÚRSULA VELHA SAI DO QUARTO. VAI EM DIREÇÃO ÀS ESCADAS. MAS DESISTE. VOLTA PARA O SEU QUARTO. LUZES NOS DOIS QUARTOS. O RESTO DO CENÁRIO NA PENUMBRA. AFONSO VELHO -
(BERRANDO) Mentira! Você não esqueceu! Não pode ter esquecido!
ÚRSULA VELHA, IMPASSÍVEL. CONTINUA FUMANDO, SENTADA NA CAMA, DE COSTAS PARA A PLATÉIA. LUZ CAI UM POUCO NOS DOIS QUARTOS. ACENDE LEVEMENTE NA SALA. NA SALA, AFONSO JOVEM E ÚRSULA JOVEM AINDA ESTÃO SE BEIJANDO. ÚRSULA JOVEM SE AFASTA DELE. ÚRSULA JOVEM -
Eu enlouqueci!
AFONSO JOVEM -
Eu também!
ÚRSULA JOVEM -
Por favor, Afonso...
AFONSO JOVEM -
Eu sei que Olga e Liddy estão na casa da dona Sinharinha... Fazendo a bandeira...
ÚRSULA JOVEM -
Eu também vou para lá... Agora...
AFONSO JOVEM ABRAÇA ÚRSULA JOVEM. AFONSO JOVEM -
Você não quer ir...
ÚRSULA JOVEM -
Não faço nada que não queira...
AFONSO JOVEM -
Você quer ficar comigo...
ÚRSULA JOVEM -
Por favor...
AFONSO JOVEM DÁ UM BEIJO NELA. OS DOIS VÃO SE ENCAMINHANDO PARA O CENTRO DO PALCO. AFONSO JOVEM
PARIS - BELFORT....................................................................................................33 COMEÇA A TOCAR ÚRSULA JOVEM COM TODA A SENSUALIDADE. ÚRSULA JOVEM DEIXA. AFONSO JOVEM -
Nós vamos embora... Deixamos esta cidade miserável e vamos embora... Para São Paulo... Você é mulher para viver em São Paulo... Com toda a sua inteligência, com tudo o que sabe, com seu dinheiro... Você quer isso...
ÚRSULA JOVEM -
Eu nem sei mais o que quero...
AFONSO JOVEM -
Meu amor...
ÚRSULA JOVEM -
Eu tenho medo...
AFONSO JOVEM -
Você não tem medo de nada... de nada...
ÚRSULA JOVEM -
Vem...
OS DOIS ABRAÇAM-SE FORTEMENTE. AGACHAM-SE. FICAM DE JOELHOS. UM LONGO BEIJO. DEPOIS, AFONSO JOVEM DEITA ÚRSULA JOVEM SUAVEMENTE NO CHÃO E COMEÇAM A SE AMAR COM FUROR. CADA VEZ MAIS INTENSAMENTE. ENTRA EM BG A ÁRIA DE “NORMA”. LUZ VAI CAINDO NA SALA. SOBE UM POUCO NOS DOIS QUARTOS. AFONSO VELHO JOGA-SE NOVAMENTE NA CAMA E ÚRSULA VELHA VOLTA-SE PARA A PLATÉIA. LUZ MUITO TÊNUE NOS QUARTOS. ÚRSULA VELHA CHORA LEVEMENTE. OS DOIS VELHOS FALAM, COMO SE CONVERSASSEM. GENTIS. MAS CADA UM EM SEU QUARTO, SEM OLHAR PARA O OUTRO. AFONSO VELHO -
Eu não estava mentido... Quando eu a vi com aquele lenço... Você era tudo o que eu queria na minha vida... Na minha vida nova... Eu estava cansado da mediocridade desta cidade... Eu queria fugir... Correr, correr com você...
ÚRSULA VELHA -
Fiquei tão magoada... Naquele momento, só nós dois, imaginei que fosse sair daqui. Para sempre... Deixando para trás as frustrações todas... Eu só tinha 20 anos mas já me sentia como agora... Devo ter nascido uma velha... Mas, naquele momento, nos seus braços, fazendo amor com você, eu imaginei que tudo era possível! (PAUSA) Ir embora! São Paulo! Viver! Tudo era possível! E não era!
AFONSO VELHO -
Quis lhe dar o mundo... Juro, eu queria lhe dar o mundo... Mas só soube lhe dar aquele momento... Mas era possível? Teria sido possível?
PARIS - BELFORT....................................................................................................34 ÚRSULA VELHA -
Não era possível! Nada era possível!
LUZ VAI CAINDO LENTAMENTE SOBRE OS DOIS, ENQUANTO ENTRAM EM BG VOZES DE AFONSO JOVEM, ÚRSULA JOVEM, LYDIA JOVEM E OLGA JOVEM CANTANDO NA SALA O ““PARIS-BELFORT””, ACOMPANHADOS POR OLGA JOVEM, QUE TOCA ANIMADAMENTE O PIANO. LUZ VAI SE ACENDENDO NA SALA. OS JOVENS CANTAM ENTUSIASMADOS, ENQUANTO UMA ENORME BANDEIRA PAULISTAESTÁ ESPALHADA POR ALI, EM CIMA DA MESA. JOVENS -
(CANTANDO) “Noooooove de Julho é a luz da Pátria...”
AFONSO JOVEM -
(HERÓICO) Eu vou acabar com os getulistas! Eu vou botar o Getúlio pra correr! Eu vou fazer a Constituição valer! Eu vou botar São Paulo de cabeça erguida de novo!
AS JOVENS -
Bravo! Bravo! Bravo!
AFONSO JOVEM -
Quem for brasileiro que me siga!
AFONSO JOVEM PEGA A BANDEIRA E COMEÇA A AGITÁ-LA. LYDIA JOVEM GRITA COM ELE. LYDIA JOVEM -
Não, Afonso! Ela ainda não está pronta. Só está montada... Os alfinetes...
AFONSO JOVEM -
Eu furo os olhos dos federais com os alfinetes!
ÚRSULA JOVEM -
(RINDO) Então é melhor as mulheres irem lutar... Nós que entendemos de alfinetes...
AFONSO JOVEM -
Isso não tem graça, Sulita! As mulheres ficam em casa... e esperam a volta dos heróis!
ÚRSULA JOVEM -
Deixe a bandeira, Afonso... A dona Sinharinha acaba conosco se acontecer alguma coisa...
OLGA JOVEM -
Ninguém mais quer cantar?
AFONSO JOVEM -
Eu quero lutar... Rárárárárá... (IMITANDO A METRALHADORA) Eu quero explodir tudo... Eu vou amarrar meu cavalo no obelisco lá em São Paulo...
LYDIA JOVEM -
(RINDO) O obelisco fica no Rio... E o Getúlio já amarrou o cavalo dele... No Rio, não em São Paulo...
PARIS - BELFORT....................................................................................................35 AFONSO JOVEM -
(EUFÓRICO) Eu mando construir um obelisco em São Paulo... Por causa da Revolução... Daí, todo mundo vai dizer: foi aqui que o grande Afonso Dattoli amarrou o seu cavalo!
TODOS RIEM MUITO. AFONSO VELHO -
Uma valsa, Liddy! Uma valsa das boas!
LYDIA JOVEM CORRE PARA A ELETROLA. COLOCA UMA VALSA VIENENSE. AFONSO JOVEM DANÇA UM POUCO COM LYDIA JOVEM, ENQUANTO ÚRSULA JOVEM E OLHA JOVEM DANÇAM. DEPOIS, AFONSO JOVEM DANÇA COM OLGA JOVEM, ENQUANTO ÚRSULA JOVEM DANÇA COM LYDIA JOVEM. POR FIM, AFONSO JOVEM DANÇA COM ÚRSULA JOVEM. LUZ VAI CAINDO. MÚSICA TAMBÉM VAI CAINDO. OS DOIS VÊM DANÇANDO PARA A BOCA DO PALCO. FOCO SÓ NOS DOIS. AFONSO JOVEM -
Diga para todo o mundo que você me ama, Sulita...
ÚRSULA JOVEM -
Não seja bobo, Afonso...
AFONSO JOVEM -
Então, eu vou gritar que você me ama...
ÚRSULA JOVEM -
Não faça isso!
AFONSO JOVEM -
Eu vou gritar!
ÚRSULA JOVEM -
Por favor... Eu não quero... Elas não podem saber nunca que...
AFONSO JOVEM -
Eu sei! Você tem vergonha de mim! Eu só sirvo para o seu prazer! Só sirvo pra você se sentir mulher!
ÚRSULA JOVEM SOLTA-SE DOS BRAÇOS DELE E VAI EM DIREÇÃO À VARANDA. SAI CORRENDO PELA VARANDA E SOME. TODOS PARAM DE DANÇAR. OLGA JOVEM TIRA A MÚSICA DA ELETROLA. LYDIA JOVEM -
O que deu nela?
AFONSO JOVEM -
Ela é louca!
LYDIA JOVEM -
O que você disse a ela, Afonso?
AFONSO JOVEM -
Nada... Nada... O que eu poderia ter dito?
OLGA JOVEM -
Eu vou atrás dela...
PARIS - BELFORT....................................................................................................36 AFONSO JOVEM -
Deixe de bobagem, Olga... Não aconteceu nada... Talvez ela tenha se cansado de dançar... Só isso...
OLGA JOVEM -
Eu vou atrás dela...
OLGA JOVEM SAI PELA PORTA DA FRENTE. FICAM SÓ LYDIA JOVEM E AFONSO JOVEM. UM TEMPO DE SILÊNCIO CONSTRANGEDOR ENTRE ELES. LYDIA JOVEM -
Você me ajuda a arrumar a bandeira?
AFONSO JOVEM -
Claro...
LYDIA JOVEM -
É para dobrar com cuidado... Senão, os alfinetes caem...
AFONSO JOVEM -
E a dona Sinharinha acaba com vocês!
LYDIA JOVEM -
Afonso, o que houve com Sulita?
AFONSO JOVEM -
A bandeira já está dobrada, Liddy... Eu me vou... Até mais...
AFONSO JOVEM VAI SAINDO. LYDIA JOVEM SE APROXIMA DELE. LYDIA JOVEM -
Não gosto quando você se magoa...
AFONSO JOVEM -
Prova isso!
LYDIA JOVEM -
Provar? Não entendo...
AFONSO JOVEM -
Quando fomos dar nosso passeio.
AFONSO JOVEM SAI. LYDIA JOVEM FICA PENSATIVA. DEPOIS, RODOPIA FELIZ. LYDIA JOVEM -
Eu sairei por aí de braço com você... (INTIMIDADA COM AS PRÓPRIAS PALAVRAS) Como se fôssemos casados...
LYDIA JOVEM VAI CORRENDO ESCADAS ACIMA, DEIXANDO A CAIXA COM A BANDEIRA POR ALI. OLGA VELHA VEM, DE DENTRO. OLGA VELHA -
Úrsula, Úrsula... Lydia, Lydia... Quem deixou esta caixa aqui?
NINGUÉM RESPONDE. OLGA VELHA COMEÇA A ABRIR A CAIXA. TIRA A BANDEIRA. NISSO, AFONSO VELHO DESCE E SURPREENDE OLGA
PARIS - BELFORT....................................................................................................37 VELHA ALISANDO A BANDEIRA. OLGA VELHA TEM UMA REAÇÃO DE SURPRESA. AFONSO VELHO -
Não! Não guarde... Eu me lembro dela... A bandeira da dona... da dona...
OLGA VELHA -
Sinharinha!
AFONSO VELHO -
Sinharinha! (RINDO) Que nome esquisito! Era inspetora da escola, não era?
OLGA VELHA -
AFONSO VELHO -
Isso mesmo! Casada com o doutor Penaforte... O doutor Penaforte, que se orgulhava de ser filho de um dos Convencionais de Itu! Bela merda!
OLGA VELHA -
Afooooonso!
AFONSO VELHO -
Desculpe, Olga... Aprendi que essas coisas não valem nada... Valem sim... A bandeira nunca foi terminada... Por sua causa...
OLGA VELHA -
AFONSO VELHO -
Minha?
OLGA VELHA -
Você brincou tanto com ela, que nós perdemos os alfinetes... Aí, a dona Sinharinha...
AFONSO VELHO -
Acabou com vocês? (RI)
OLGA VELHA TAMBÉM RI. AFONSO VELHO -
Essa bandeira não ia servir pra nada mesmo.
OLGA VELHA -
(REAGINDO) Como não ia servir? Escute aqui, Afonso Dattoli. O que tem valor para você? Pelo jeito, nada... Nem a Convenção de Itu, nem a Bandeira de São Paulo, nem a dona Sinharinha...
AFONSO VELHO -
A vida, Gaia! A vida, minha querida e meiga amiguinha... Essa tem todo o valor!
OLGA VELHA -
Ainda bem que não acredito em você!
AFONSO VELHO -
Não?
OLGA VELHA -
Não... No dia que você me prometeu São Paulo... Naquele dia que eu...
PARIS - BELFORT....................................................................................................38 AFONSO VELHO -
Olga, o peru!
OLGA VELHA -
Que peru?
AFONSO VELHO -
O seu peru!
OLGA VELHA -
Eu não tenho peru!
AFONSO VELHO -
O peru da ceia... Eu estou louco de fome... Estou morto de vontade de comer esse peru... Como nos bons tempos...
OLGA VELHA -
Como você é mentiroso, Afonso Dattoli!
AFONSO VELHO REAGE. OLGA VELHA -
Você nunca comeu peru nesta casa! Você nunca esteve em nossas ceias... Você nunca... Desculpe...
AFONSO VELHO FICA EM SILÊNCIO. OLGA VELHA -
Eu falei uma bobagem...
AFONSO VELHO -
Você falou uma verdade!
OLGA VELHA REAGE. AFONSO VELHO -
Eu nunca tive a honra de estar nas ceias das Paes de Almeida Salles... Eu nunca deixei de ser um carcamano! Porca miséria! Um italiano!
LUZ ACENDE IMEDIATAMENTE NA VARANDA. ESTÃO ÚRSULA JOVEM E OLGA JOVEM. NA SALA, OLGA VELHA DOBRA A BANDEIRA NOVAMENTE E VAI SAINDO. AFONSO VELHO SENTA-SE AO PIANO. SEM TOCAR NADA. SÓ OLHANDO. ANTES, TIRA O PALETÓ, JOGANDO POR ALI. A FALA DE ÚRSULA JOVEM COMEÇA IMEDIATAMENTE APÓS A ÚLTIMA FALA DE AFONSO VELHO COM OLGA VELHA. ÚRSULA JOVEM -
Um italiano, Olga...
OLGA JOVEM -
Não seja preconceituosa, Úrsula... Isso era coisa dos nossos pais... O que ele disse a você?
ÚRSULA JOVEM -
Nada... Eu não gosto dele... Eu não gosto do cheiro dele... Eu não suporto o cheiro desse italiano...
NA SALA, AFONSO VELHO DEIXA O PALETÓ POR ALI, LEVANTA-SE E VAI PARA O INTERIOR, PARA ONDE FOI OLGA VELHA.
PARIS - BELFORT....................................................................................................39 ÚRSULA JOVEM -
Ele fede a campo...
OLGA JOVEM -
O cheiro do campo é tão bom...
ÚRSULA JOVEM -
Você não entende o que eu quero dizer...
OLGA JOVEM -
Entendo sim... Você diz que ele fede a campo!
ÚRSULA JOVEM -
Fede a campo... Fede a esterco de vaca... A leite... A estábulo...
OLGA JOVEM SE MANTÉM EM SILÊNCIO. ÚRSULA JOVEM -
Ele fede a outros cheiros também!
OLGA JOVEM -
Que cheiros?
ÚRSULA JOVEM -
Cheiros ruins... Mas eu não quero mais pensar nisso...
PAUSA ENTRE ELAS. SILÊNCIO. NA SALA, ÚRSULA VELHA DESCEU. JÁ ESTÁ NA SALA. VÊ O PALETÓ DE AFONSO VELHO POR ALI. APANHA. COMEÇA A CHEIRÁ-LO. CONTINUA O DIÁLOGO ENTRE ÚRSULA JOVEM E OLGA JOVEM NA VARANDA. OLGA JOVEM -
Eu não entendo...
ÚRSULA JOVEM -
(IMPACIENTE) O que você não entende?
OLGA JOVEM -
Se você não gosta dele... Se o cheiro dele incomoda tanto a você, por que você não fica longe de Afonso?
ÚRSULA JOVEM FICA EM SILÊNCIO. OLGA JOVEM -
Às vezes, eu acho que você o provoca o tempo todo... Como querendo...
ÚRSULA JOVEM -
Querendo o quê?
OLGA JOVEM -
Nada... Passou uma coisa na minha cabeça, mas é bobagem...
ÚRSULA JOVEM -
Como querendo seduzir Afonso, é isso?
OLGA JOVEM SENTE-SE ENVERGONHADA. ÚRSULA JOVEM -
Eu espero outro tipo de homem para mim!
OLGA JOVEM -
Úrsula! Que modos! Não se fala assim!
PARIS - BELFORT....................................................................................................40
ÚRSULA JOVEM -
O que você quer que eu diga? Um marido? Não quero um marido! Quero um homem!
OLGA JOVEM -
Úrsula, se mamãe ouvisse!
ÚRSULA JOVEM -
Mamãe morreu! Papai morreu! Tudo está morrendo! Esta Revolução maldita! E eu não quero morrer também!
SILÊNCIO PESADO ENTRE ELAS. NA SALA, ÚRSULA VELHA EXAMINA O PALETÓ. NOTA QUE É UM PALETÓ PUÍDO, CERZIDO, GASTO. QUANDO ESTÁ EXAMINANDO, OLGA VELHA VEM DO INTERIOR. OLGA VELHA -
Úrsula!
ÚRSULA VELHA -
Pensei que ele tivesse notado que há um guardaroupa no quarto de hóspedes...
OLGA VELHA -
Afonso sempre foi distraído... Dê o paletó...
ÚRSULA VELHA -
Por que você o desculpa tanto, Gaia? Será... amor?
SILÊNCIO ENTRE AS DUAS QUE SE ENCARAM. ÚRSULA JOVEM E OLGA JOVEM CONTINUAM A CONVERSAR NA VARANDA. OLGA JOVEM -
Úrsula, você já imaginou como é o amor?
ÚRSULA JOVEM -
Não!
OLGA JOVEM -
Nunca pensou nisso?
ÚRSULA JOVEM -
Qual amor? O platônico, o das cartinhas, o dos correios-galantes, ou o físico?
OLGA JOVEM -
Meu Deus, nesse só vou pensar quando estiver casada...
ÚRSULA JOVEM -
(RINDO) Nesse é o único que vale a pena pensar!
OLGA JOVEM -
(EMBARAÇADA) Amor físico... Será que amor físico tem cheiro? Como esses que você diz sentir... em Afonso?
ÚRSULA JOVEM -
Eu sinto cheiro de nojo em Afonso! Só isso!
LUZ NA VARANDA CAI TOTAL. ÚRSULA VELHA AINDA EXAMINA O PALETÓ.
PARIS - BELFORT....................................................................................................41 ÚRSULA VELHA -
Engraçado...
OLGA VELHA -
Úrsula, me dê o paletó de Afonso... Vou colocar lá em cima...
ÚRSULA VELHA -
É muito engraçado...
OLGA VELHA -
O que é engraçado?
ÚRSULA VELHA -
Se Afonso disse que venceu na vida... que está muito bem no Rio de Janeiro... por que esse paletó tão velho? Cerzido... E aqui um pouco puído!
OLGA VELHA -
Úrsula, isso não é elegante!
ÚRSULA VELHA -
Não estou discutindo elegância! Ou melhor, estou sim... Elegância e verdade! Ele mentiu! Suas roupas são horrorosas... Velhas... Acabadas... Remendadas...
OLGA VELHA -
Nós também remendamos nossas roupas... Eu já cerzi muita camisola para você, minha querida!
ÚRSULA VELHA -
É diferente!
OLGA VELHA -
Por que é diferente?
ÚRSULA VELHA -
Porque nós somos perdedoras! Nós perdemos tudo para a vida! Então, não precisamos disfarçar!
OLGA VELHA ARRANCA O PALETÓ DAS MÃOS DE ÚRSULA VELHA E VAI SUBINDO AS ESCADAS. OLGA VELHA -
(DURA) Eu não perdi nada! Nadinha!
ÚRSULA VELHA -
Você é que pensa!
OLGA VELHA SOBE COM O PALETÓ. ÚRSULA VELHA FICA POR ALI. VÊ A BANDEIRA. NUM ACESSO DE RAIVA COMEÇA A RASGAR A BANDEIRA. FAZ UM RASGO GRANDE. DEPOIS, ELA SE ARREPENDE. MEIO QUE SE EMBRULHA NA BANDEIRA, COMO SE ELA FOSSE UM XALE. ALISA SUAVEMENTE A BANDEIRA. LUZ VAI CAINDO. SOBE NO QUARTO DE HÓSPEDES. AFONSO VELHO ESTÁ TIRANDO ALGUMAS COISAS DA MALA. BATIDAS À PORTA. ELE ABRE. OLGA VELHA ENTRA, COM O PALETÓ DELE. OLGA VELHA -
Perdão, Afonso, mas é que...
AFONSO VELHO -
Eu deixei o paletó na sala? Que desastre! Não se faz isso na casa de três damas!
PARIS - BELFORT....................................................................................................42
OLGA VELHA SORRI SEM JEITO. AFONSO VELHO -
Entre, Gaia...
OLGA VELHA COLOCA O PALETÓ SOBRE A CAMA. VÊ AS OUTRAS ROUPAS. VELHAS. PEGA UMA CAMISA. VÊ QUE ESTÁ SUJA. OLGA VELHA -
Quer que eu lave para você, Afonso?
AFONSO VELHO -
Não, não... Amanhã mando tudo para uma lavanderia... A viagem foi tão corrida que não tive tempo de ver essas coisas... Depois, minha querida, um homem solteirão, por melhor que esteja na vida, não tem uma esposa dedicada e amável para cuidar das roupas dele...
OLGA VELHA -
Por que você não se casou?
AFONSO VELHO -
Não achei a minha Princesa Encantada...
OLGA VELHA -
E procurou?
AFONSO VELHO -
Olga, você sempre vai direto ao ponto!
OLGA VELHA -
Desculpe, eu não quis ser petulante!
AFONSO VELHO -
Você não foi petulante! (PEQUENA PAUSA) Por que você não se casou comigo?
OLGA VELHA DÁ UMA RISADA SOLTA. OLGA VELHA -
Só se fosse por edital... Você sumiu!
AFONSO VELHO -
Estava ganhando a vida!
OLGA VELHA -
E ganhou?
AFONSO VELHO -
Por certo... Não estou aqui? Bem? Bonitão? Bem vestido?
OLGA VELHA -
É... Eu vi um rasgo no seu paletó...
AFONSO VELHO -
É mesmo? Deve ter sido quando desci do ônibus em São Paulo!
OLGA VELHA -
Você não veio de avião até São Paulo, Afonso?
PARIS - BELFORT....................................................................................................43 AFONSO VELHO -
No ônibus que vai do aeroporto até a rodoviária... Lá tudo é longe... Até parece que você não conhece São Paulo...
OLGA VELHA -
Não... Não conheço... Você sabe disso...
AFONSO VELHO -
(SEM JEITO) Claro... Olga, se você não se importa, eu gostaria...
OLGA VELHA -
Já entendi... Só vim trazer o paletó... Separe a roupa suja... Não vá gastar dinheiro com lavanderia... Depois do Ano-Novo a Creuza vem e lava tudo para você...
AFONSO VELHO -
Creuza?
OLGA VELHA -
(RINDO) Nossa diarista... Você se lembra, Afonso? Tínhamos tantos empregados... Aqui e na fazenda...Hoje, temos uma diarista e olhe lá...
AFONSO VELHO -
Não é tão mal assim...
OLGA VELHA -
Não... Não é... Podia ser pior... Até logo...
OLGA VELHA SAI. AFONSO VELHO FECHA A PORTA E COMEÇA A EXAMINAR SUAS ROUPAS. FAZ EXPRESSÃO DE QUE ELAS REALMENTE ESTÃO RUINS. DEPOIS, TIRA UM PÉ DOS SAPATOS E, COM O DEDO, VARA A SOLA. HÁ UM ENORME FURO NELE... ARRUMA UM PEDAÇO DE PAPELÃO E FORRA. ENQUANTO FAZ ISSO, LUZ SE ACENDE NO QUARTO DE ÚRSULA. ÚRSULA VELHA E LYDIA VELHA CONVERSAM. LYDIA VELHA -
Olga tem feito quase todo o serviço da casa, Úrsula...
ÚRSULA VELHA -
Ela é a mais nova...
LYDIA VELHA -
Sessenta e cinco anos... Está cansada...
ÚRSULA VELHA -
O que você está querendo? Uma empregada para todo dia? Não temos dinheiro para isso...
LYDIA VELHA -
Temos!
ÚRSULA VELHA -
Não estou sabendo...
LYDIA VELHA -
As jóias de mamãe!
ÚRSULA VELHA -
Não! Nunca! Lydia, em cinqüenta anos, nós acabamos com as fazendas, com as ações, com os
PARIS - BELFORT....................................................................................................44 bônus, com os quadros, com muita coisa... mas as jóias de mamãe não! LYDIA VELHA -
Para quem elas vão ficar? Para as filhas de Maria Augusta? Para as filhas de Beatriz? Para as filhas de qual das primas?
ÚRSULA VELHA -
Para ninguém. Seremos enterradas com elas!
LYDIA VELHA -
Então, ficarão para os coveiros... Ou para os ladrões de cemitério...
ÚRSULA VELHA -
Que coisa horrível, Lydia Maria! Que assunto para véspera de Ano-Novo!
LYDIA VELHA -
Estou tentando ser prática. Úrsula! Não quero entrar no Ano Novo, nos anos oitenta, sem saber como vamos comer... Se vamos comer...
ÚRSULA VELHA -
Nós vamos comer!
LYDIA VELHA -
Sulita, somos nós três... Só sobramos nós três... Nós não nos casamos, não fizemos nada... Nós três...
ÚRSULA VELHA -
Estamos morrendo as poucos, querida! Eu sei disso!
LYDIA VELHA -
Eu não quero morrer! E não vou morrer assim! Eu quero uma velhice tranqüila!
ÚRSULA VELHA -
Você já está tendo uma velhice tranqüila! Não é a presidenta do Centro Cultural? Não faz parte da Damas de Caridade? Não organiza quermesses e festas da paróquia? Você é a elite, meu amor... Você terá um enterro cheio de gente, e rezarão mil missas para você, e você ainda vai ter um caixão branco...
LYDIA VELHA -
Úrsula!
ÚRSULA VELHA -
Ou não?
LYDIA VELHA -
Não estou entendendo...
ÚRSULA VELHA -
Por que ficou tão excitada com a volta de Afonso?
LYDIA VELHA NÃO RESPONDE. ÚRSULA VELHA -
Será que ele prometeu casamento a você e, depois de cinqüenta anos, veio cumprir a promessa? Não sei...
PARIS - BELFORT....................................................................................................45 Talvez naqueles dias tão corridos de 32 tenha acontecido alguma coisa e aí vocês... LYDIA VELHA -
Não admito! Não admito!
ÚRSULA VELHA APROXIMA-SE DE LYDIA VELHA. ABRAÇA A IRMÃ. ÚRSULA VELHA -
Desculpe, Liddy... Estou nervosa, cansada... Esse assunto de dinheiro sempre me perturba... Nunca soube como lidar com ele...
LYDIA VELHA -
(CHOROSA) Nenhuma de nós... Tenho medo!
ÚRSULA VELHA -
Não tenha medo! O máximo que pode acontecer é termos de vender esta casa, e não as jóias...
LYDIA VELHA -
Úrsula!
ÚRSULA VELHA -
Iremos para um asilo! Qual o problema? Aqui já é um asilo!
LYDIA VELHA -
Não, não é não!
ÚRSULA VELHA -
A única diferença é que, aqui, fingimos que esperamos por dias melhores... Os dias melhores já aconteceram, amorzinho... Há cinqüenta anos atrás... Os dias melhores nós passamos ouvindo o “ParisBelfort”!
LYDIA VELHA COMEÇA A CHORAR NOS BRAÇOS DE ÚRSULA VELHA. LYDIA VELHA -
Você acha isso mesmo?
ÚRSULA VELHA -
Naqueles dias, nós tínhamos nossos heróis! Nós achávamos que eles iriam para a Revolução, lutariam por nós, por todas as mulheres paulistas, e voltariam, cheios de galões nos ombros e medalhas no peito...
LYDIA VELHA -
Muitos voltaram!
ÚRSULA VELHA -
Os nossos heróis não voltaram! Passamos a vida esperando por eles... Nem que fosse um só... Eu ficaria muito feliz se um deles tivesse voltado para você, ou para a coitada da Olga... Mas ficamos aqui, limpando com caol os nossos brasões... Para vendêlos... E nada, ninguém apareceu!
LYDIA VELHA -
Afonso...
PARIS - BELFORT....................................................................................................46 ÚRSULA VELHA -
Um herói esfarrapado... Só esfarrapado...
LYDIA VELHA -
Por que você acha que ele voltou?
ÚRSULA VELHA -
Não sei... Não me interessa mais isso... Eu só gostaria de uma coisa hoje...
LYDIA VELHA -
Se eu puder ajudar...
ÚRSULA VELHA -
Eu gostaria que o “Paris-Belfort” tocasse de novo... Com fúria... Com raiva... Com glória... E que nós fôssemos belas, e jovens, e ricas, e inteligentes... E que pudéssemos amar!
LYDIA VELHA -
(ESPANTADA) Você nunca falou em amor!
ÚRSULA VELHA -
Porque não acredito nele, sua boba!... (RI) Como não acredito no “Paris-Belfort”, nem nas lembranças de 32, nem em Afonso Dattoli, nem em nada... Só vejo o nosso asilo... Onde estaremos um dia...
LYDIA VELHA APRUMA-SE DIGNA. LYDIA VELHA -
Eu não irei! Eu vendo as jóias de mamãe!
ÚRSULA VELHA -
(SUAVE) Irá, meu amor... Irá, minha querida... Se quiser, venda as jóias... Mas guarde uma ametista... Porque as jóias também acabarão... Aí, você colocará a sua roupa menos velha, retocará o pó, arrumará os cabelos com aquele azul horroroso, colocará o broche de ametista e me dará o braço... Assim...
ÚRSULA VELHA PEGA LYDIA VELHA PELO BRAÇO. VÃO EM DIREÇÃO À PORTA. ÚRSULA VELHA -
E nós iremos...
LYDIA VELHA -
Para o asilo? Não... Não... Eu morro aqui! Eu me jogo na frente de um táxi, eu pulo da mangueira...
ÚRSULA VELHA -
Venha! Vamos ajudar a pobre Olga! (PEQUENA PAUSA) Liddy, o que estava gravado, há muitos anos, no pé de manacá?
SILÊNCIO DE LYDIA VELHA. ÚRSULA VELHA ENCARA A IRMÃ. LYDIA VELHA -
Uma data... Uma data muito importante... E dois nomes... Só isso...
PARIS - BELFORT....................................................................................................47 URSULA VELHA -
O que aconteceu?
LYDIA VELHA -
O tempo apagou tudo... Nasceu outra casca por cima... Depois outra casca... E essas cascas cobriram a história...
ÚRSULA VELHA -
A natureza apaga tudo... Até nossas rugas... Escute... Parece que me atenderam... Você ouve?... Vamos descer dignas, como duas Paes de Almeida Salles... Ninguém precisa saber que somos pobres, que somos frustradas, que nossos corações estão secos... Ouça... É “Paris-Belfort” tocando... Vamos descer como as damas que sempre fomos...
AS DUAS DÃO-SE OS BRAÇOS E COMEÇAM A DESCER. OUVE-SE O “PARIS-BELFORT” MUITO ALTO. EM ARRANJO DE FANFARRA. QUANDO CHEGAM À SALA, AFONSO VELHO ESTÁ POR ALI. O SOM DA MÚSICA FICA SOMENTE NA ELETROLA. AFONSO VELHO -
Maravilhosas lembranças! Essa música me traz o tempo de volta! O tempo do heroísmo!
ÚRSULA VELHA -
É mesmo?
AFONSO VELHO -
Eu aprendi a cantar essa música com quem? Foi com você, Liddy?
OLGA VELHA VEM DO INTERIOR E DIZ FORTE. OLGA VELHA -
Foi comigo, seu desmemoriado... Eu ensinei a letra, a melodia, a entonação, tudo, para você...
AFONSO VELHO -
Ando meio perdido nas minhas lembranças... São tantas...
ÚRSULA VELHA VAI TIRAR A MÚSICA DA ELETROLA. LYDIA VELHA -
Afonso, eu tenho até hoje os cartões que você nos mandou da frente de batalha!
AFONSO VELHO -
Não acredito!
LYDIA VELHA -
Guardei todos! Os mais bonitos são os da Batalha do Túnel...
AFONSO VELHO -
Uma batalha horrível! Dolorosa! Foi quando vi Neco Pedreira levar aquele tiro no peito...
PARIS - BELFORT....................................................................................................48 OLGA VELHA -
Mas o tiro foi na perna! Tanto que ele voltou e tiveram que amputar...
AFONSO VELHO -
Foi na perna? Não pode ser... Eu vi!
ÚRSULA VELHA SORRI. LYDIA VELHA -
Você deve estar fazendo confusão, Afonso... E o Neco Pedreira nem estava na Batalha do Túnel...
AFONSO VELHO -
Pode ser... Pode ser... Quem me acompanha para tomar a fresca na varanda?
OLGA VELHA -
Eu preparo uma limonada para vocês, enquanto tomo conta da ceia!
ÚRSULA VELHA -
Olga, vá também... Eu lido na cozinha... Você já fez muito por hoje, querida!
OLGA VELHA -
Você não sabe fritar um ovo, Sulita!
ÚRSULA VELHA -
(SORRINDO) Teremos ovos na ceia, por acaso?
OLGA VELHA -
Você não perde o jeito! Muito bem... Mas fique de olho nas castanhas... E no peru!
OLGA VELHA, LYDIA VELHA E AFONSO VELHO VÃO SAINDO PARA A VARANDA. OLGA VELHA AINDA DANDO SUAS RECOMENDAÇÕES. OLGA VELHA -
Veja se os quindins não queimaram... E eu deixei a vinha d’alho bem forte para pegar gosto... Não meta a mão no meu molho ferrugem...
ÚRSULA VELHA -
Eu sei, eu sei... Só vou ficar de olho...
TODOS SAEM PARA A VARANDA. ÚRSULA VELHA VAI PARA O INTERIOR. LUZ CAI NA SALA. SOBE NO QUARTO DE HÓSPEDES. LYDIA JOVEM ABRE A PORTA E DÁ COM OLGA JOVEM QUE ESTÁ POR ALI. LYDIA JOVEM -
Você me assustou!
OLGA JOVEM -
Você me assustou!
LYDIA JOVEM -
O que você está fazendo aqui?
OLGA JOVEM -
Onde está aquela capa do termômetro de papai? Aquela de ouro, com a esmeralda em cima?
PARIS - BELFORT....................................................................................................49 LYDIA JOVEM -
Acho que ficou com Úrsula... Por quê?
OLGA JOVEM -
Que azar! Eu queria trocar por uma aliança!
LYDIA JOVEM -
Você está louca?
OLGA JOVEM -
“Dei ouro para o bem de São Paulo”. Ia ser a maior contribuição da cidade!
LYDIA JOVEM -
Úrsula nunca ia deixar você fazer isso!
OLGA JOVEM -
Papai nunca disse que o termômetro seria dela!
LYDIA JOVEM -
Ela é a mais velha!
OLGA JOVEM -
E o que eu vou dar para o bem de São Paulo?
LYDIA JOVEM -
Para que você quer a aliança?
OLGA JOVEM -
(IRÔNICA) Para me sentir casada! Só isso!!!
LUZ CAI NO QUARTO DE HÓSPEDES. SOBE NO QUARTO DE ÚRSULA. ÚRSULA JOVEM ESTÁ COM UM LENÇO AMARRADO NAS MÃOS. TIRA DE DENTRO DO LENÇO DUAS ALIANÇAS. COLOCA UMA NO DEDO. PERCEBE QUE A ALIANÇA DANÇA EM SEU DEDO. SAI CORRENDO DO QUARTO E DESCE AS ESCADAS. LUZ SOBE NA SALA. AFONSO JOVEM ESTÁ ALI. ÚRSULA JOVEM JOGA-SE NOS BRAÇOS DELE. BEIJAM-SE. ÚRSULA JOVEM -
Eu fiz uma loucura!
AFONSO JOVEM -
Adoro suas loucuras!
ÚRSULA JOVEM -
Eu doei o termômetro de ouro que foi de papai! E consegui duas alianças!
AFONSO JOVEM -
Ficou louca mesmo! O termômetro do doutor Salles?
ÚRSULA JOVEM -
Duas alianças! Olhe só...
ELA MOSTRA A QUE ESTAVA NO DEDO E A OUTRA, MENOR. ÚRSULA JOVEM -
Esta eu coloco em seu dedo!
COLOCA A ALIANÇA GRANDE NO DEDO DE AFONSO JOVEM. DEPOIS, ENTREGA A MENOR PARA ELE. ÚRSULA JOVEM -
Essa você coloca no meu dedo...
AFONSO JOVEM -
Como se fosse um casamento...
PARIS - BELFORT....................................................................................................50
ÚRSULA JOVEM -
(RINDO) Nós já não nos casamos?
AFONSO JOVEM COLOCA A ALIANÇA NO DEDO DE ÚRSULA JOVEM. OS DOIS SE BEIJAM. AFONSO JOVEM -
Coloca a italiana para cantar!
ÚRSULA JOVEM VAI ATÉ A ELETROLA E COLOCA A “CASTA DIVA”. MÚSICA SAI DA ELETROLA E TOMA TODO O ESPAÇO. OS DOIS COMEÇAM A SE BEIJAR NOVAMENTE. ÚRSULA VELHA VEM DO INTERIOR. PASSA POR ELES, SEM OLHAR. JÁ NAS ESCADAS, OLHA PARA TRÁS E VÊ OS DOIS JOVENS. SORRI. LUZ CAI NELA, SORRINDO, ENQUANTO TIRA DO BOLSO UMA ALIANÇA DE 32 E COLOCA NO DEDO. ÚRSULA VELHA, GIRANDO A ALIANÇA EM SEU DEDO, SORRI FRACA. ÚRSULA VELHA -
O tempo é sempre o culpado. Alguém tem de pagar pela perda da nossa felicidade!
ÚRSULA VELHA VAI SUBINDO AS ESCADAS EM SILÊNCIO, ENQUANTO OUVEM-SE RISADAS ABERTAS E FRANCAS, VINDAS DA VARANDA. DE REPENTE, TUDO EM SILÊNCIO. LUZ CAI TOTAL. BLACK-OUT.
PARIS - BELFORT....................................................................................................51
SEGUNDO ATO CENA 5
NA VARANDA, OLGA VELHA, AFONSO VELHO E LYDIA VELHA TOMAM LIMONADA E CONVERSAM ANIMADAMENTE. RISOS, ALEGRIA. AFONSO VELHO -
Nunca consegui me esquecer do pôr-do-sol daqui...
LYDIA VELHA -
É... E eu nem me lembrava mais de como era... Só hoje é que... (PÁRA, ENVERGONHADA)
OLGA VELHA -
Liddy, Afonso vai pensar que você está se declarando! (RI)
AFONSO VELHO TAMBÉM RI. LYDIA VELHA -
E eu tenho idade para me declarar para alguém, Gaia? Que bobagem... Mas eu não me lembrava mesmo de como era o pôr-do-sol... Há quanto tempo não ficávamos aqui na varanda, olhando... olhando...
AFONSO VELHO -
E tomando limonada, como se o tempo não existisse...
FOCO NAS ESCADAS, SOMENTE SOBRE ÚRSULA VELHA. ALTIVA. ÚRSULA VELHA -
O tempo... Esse velho agiota... Mas eu resgatei a promissória... Eu não devo nada a ele!
ÚRSULA VELHA COMEÇA A DESCER AS ESCADAS, ATRAVESSANDO A SALA, EM DIREÇÃO À VARANDA. AFONSO VELHO -
(ANIMADO) Eu estava em Cunha... Éramos poucos constitucionalistas... Aí, nós percebemos que estávamos cercados pelos aeronautas...
OLGA VELHA -
(ESPANTADA) Aeronautas?
PARIS - BELFORT....................................................................................................52 AFONSO VELHO -
Aeronautas, sim senhora... Que tinham subido de Paraty!
OLGA VELHA -
Que horror!
AFONSO VELHO -
(COM BRAVURA) Mas nós resistimos! Do jeito que pudemos! E os getulistas acabaram voltando para Paraty... Com o rabo entre as pernas... Era um tal de paulista sair correndo atrás do pessoal da Ditadura...
LYDIA VELHA -
Foi aí que você viu o Trem Blindado? Você nos escreveu sobre o trem... Disse que ele era monstruoso...
AFONSO VELHO -
(COMO QUE SONHANDO) O Trem Blindado! Que figura! Destruindo tudo por onde passava... Impondo a nossa força... Lá em Cunha ele passou como se fosse um raio!
LYDIA VELHA -
Meu Deus!
AFONSO VELHO -
Já era agosto... Um pôr-do-sol como o de hoje!... As montanhas de Cunha vendo aquele corisco passar!
ÚRSULA VELHA ENTRA NA VARANDA, CORTANDO. ÚRSULA VELHA -
O Trem Blindado não passou por Cunha. Em agosto, ele foi de Queluz para Bianor!
AFONSO VELHO -
(SEM JEITO) Imagine! Você acha que eu não ia me lembrar?
ÚRSULA VELHA -
Eu tenho certeza absoluta! Foi nesse dia que morreu o capitão Manuel de Freitas, gritando como um herói: “Paulista não se rende.” (BREVE PAUSA) Como um herói, Afonso!
SILÊNCIO ABSOLUTO. CLIMA DE CONSTRANGIMENTO. OLGA VELHA -
(CORTANDO, Afonso...
SORRINDO)
Foi
confusão
de
AFONSO VELHO -
Minha cabeça já não anda tão boa!
ÚRSULA VELHA -
Nunca soube que você tivesse lutado em Cunha!... Você mandou um cartão de Buri, se não me engano!
PARIS - BELFORT....................................................................................................53 LYDIA VELHA -
Foi... Foi de Buri, sim... Você falava dos “vermelhinhos”, que apareciam no céu, despejando bombas!
AFONSO VELHO -
(CANSADO) Em Buri?... (PEQUENA PAUSA) Deve ter sido... Realmente, eu estava em Buri... Mas em Cunha...
OLGA VELHA -
(QUEBRANDO O CONSTRANGIMENTO) Mais limonada, Afonso? Posso ir buscar gelo, se você quiser...
AFONSO VELHO -
Que importância tem onde eu estava?
ÚRSULA VELHA -
Nenhuma... Nada mais tem importância... A Revolução de 32 aconteceu mesmo, Afonso Dattoli?
AFONSO VELHO ENTENDE E ABAIXA A CABEÇA. LYDIA VELHA CORTA. LYDIA VELHA -
Sulita, você diz cada disparate! Nosso herói está aqui! Nosso herói paulista!
AFONSO VELHO LEVANTA-SE LENTAMENTE E VAI ATÉ A BEIRADA DA VARANDA. OLHA BEM PARA A PLATÉIA, COMO SE O PÔR-DO-SOL ESTIVESSE ALI. AFONSO VELHO -
O herói que não consegue mais se lembrar de como eram os dias de luta! Nem das noites! Nem de como o sol caía ou se levantava!... O herói que não se lembra de nada, Úrsula... De nada...
LUZ CAI TOTALMENTE NA VARANDA, ACENDENDO IMEDIATAMENTE NA SALA, ONDE ESTÃO AFONSO JOVEM, LYDIA JOVEM E OLGA JOVEM. AFONSO JOVEM, FARDADO, MUITO CHEIO DE SI. AS DUAS, COMPLETAMENTE DESLUMBRADAS COM ELE. LYDIA JOVEM -
(EMOCIONADA) Um herói! Só posso dizer que você é um herói!
AFONSO JOVEM -
(RINDO) Mas eu nem lutei ainda!
LYDIA JOVEM -
Mas já é um herói! Pelo menos, para mim!
OLGA JOVEM -
(RESSENTIDA) Para nós!
AFONSO JOVEM -
Se dependesse de vocês duas, eu nem precisava ir para o front...
PARIS - BELFORT....................................................................................................54 OLGA JOVEM -
Você já sabe para onde vai, Afonso?
AFONSO JOVEM -
(MISTERIOSO) Não... Ainda não sei... Vão me dizer lá na Escola Normal... Estão aguardando ordens, para saber para onde segue meu batalhão...
LYDIA JOVEM -
Tudo isso é tão emocionante!
AFONSO JOVEM -
Meu cantil está vazio! (BRINCANDO) Como pode um soldado paulista ir para o front com o cantil vazio?
LYDIA JOVEM -
(ASSUSTADA) Mas você já vai? Agora?
AFONSO JOVEM -
(SOLENE) Não importa a que horas parta o soltado! Ele deve estar sempre alerta! Sempre pronto para o embate! (BRINCANDO) E o meu cantil está vazio! Olga, você faz isso para mim?
OLGA JOVEM -
Encher o cantil? É pra já!
AFONSO JOVEM -
Mas não quero água comum!... Eu quero a água do poço do quintal!
LYDIA JOVEM E OLGA JOVEM RIEM. AFONSO JOVEM -
É verdade!
OLGA JOVEM -
Qual a diferença?
AFONSO JOVEM -
Eu quero a verdadeira água das Paes de Almeida...
HÁ UM CERTO TOM DE SENSUALIDADE NO QUE ELE DIZ. AS DUAS PERCEBEM E CORAM. AFONSO JOVEM -
Só essa água mata a minha sede... (PAUSA CURTA) Essa água é diferente!
OLGA JOVEM -
Igual à de todo mundo!
AFONSO JOVEM -
É água de quatrocentos anos! (SENSUALÍSSIMO) Minha garganta sabe disso... Quando estiver no meio do barro, vai ser essa água que vai me lavar... Que vai me deixar feliz!
LYDIA JOVEM -
Até lá, a água vai estar choca!
AFONSO JOVEM -
Não! Essa água não apodrece! Nunca vai apodrecer! (PEQUENA PAUSA) Como vocês!
PARIS - BELFORT....................................................................................................55
OLGA JOVEM -
Você está dizendo sandices! Não entendo nada disso!
AFONSO JOVEM -
Entende sim, Gaia... Entende tudo... Tim-tim por tim-tim... Eu quero beber orgulho, raça, brasão antigo, soberba, riqueza...
LYDIA JOVEM -
(RINDO) Afonso, você não diz coisa com coisa... Será que já acertaram você?
AFONSO JOVEM -
Quando me acertarem na trincheira, é com a água das três irmãs que eu vou me curar... (SENSUAL) Vocês não sabem o poder que há nela... A sedução...
OLGA JOVEM -
(APRESSADA, SEM JEITO) Eu vou encher o cantil lá no poço... Antes que ele enlouqueça de uma vez!
OLGA JOVEM RETIRA-SE PARA OS FUNDOS. SILÊNCIO. AFONSO JOVEM ESTÁ NERVOSO. LYDIA JOVEM PERCEBE. LYDIA JOVEM -
Se Úrsula estivesse aqui...
AFONSO JOVEM
(CORTANDO RÍSPIDO) Úrsula não está aqui!
LYDIA JOVEM -
Mas se estivesse, ela diria que você está zombando de nós!
AFONSO JOVEM -
E você acha que estou?
LYDIA JOVEM -
Eu... Eu não sei...
AFONSO JOVEM -
Você vem comigo!
LYDIA JOVEM REAGE. AFONSO JOVEM -
Vem comigo até a Escola Normal! Você prometeu! Vamos desfilar pela cidade de braços dados... Eu e você...
LYDIA JOVEM -
(CONFUSA) Afonso, as pessoas...
AFONSO JOVEM -
As pessoas vão dizer o que quiserem, Liddy... Mas você se importa?
LYDIA JOVEM -
Não sei... (TÍMIDA) Eu nunca sei de nada...
AFONSO JOVEM
(SEDUTOR) Da Escola Normal nós iremos dar um passeio... O último passeio do soldado...
PARIS - BELFORT....................................................................................................56 LYDIA JOVEM -
Não seja agourento!
AFONSO JOVEM -
Eu morreria nos seus braços, Liddy! Você sabia o que eu estava dizendo... Você sabia que não estava falando da água... Que estava falando de outra coisa... Sabia, não sabia?
LYDIA JOVEM -
Eu tenho medo dessas bobagens que aparecem na minha cabeça!
AFONSO JOVEM -
(VIBRANTE) Não são bobagens! Essas bobagens não são bobagens! (RÁPIDO) Vem comigo!
LYDIA JOVEM -
Mas e Gaia?... Ela foi encher o cantil... Você quis tanto a água do poço...
AFONSO JOVEM -
Nós dois sabemos onde está esse poço, Liddy... Venha...
ANTES QUE LYDIA JOVEM POSSA RESISTIR, AFONSO JOVEM PUXA-A PELO BRAÇO E OS DOIS DEIXAM A CASA PELA PORTA DA FRENTE. LUZ CAI NA SALA E SOBE NO QUARTO DE HÓSPEDES, ONDE AFONSO VELHO TOSSE, SENTADO NA CAMA. DEPOIS DE UM TEMPO, ELE PROCURA EM SUAS COISAS E PEGA UM VELHO RELÓGIO DE OURO, TIPO PATACÃO, COM CORRENTE. FICA BALANÇANDO O RELÓGIO, COMO SE ESTIVESSE AUTO-HIPNOTIZANDO. LUZ CONTINUA NELE E SOBE NA SALA, ONDE ÚRSULA JOVEM VEM ENTRANDO, DA RUA. NESSE MOMENTO, OLGA JOVEM SURGE DOS FUNDOS, COM O CANTIL. OLGA JOVEM -
Afonso! Aqui está o cantil (PÁRA)
ÚRSULA JOVEM -
O que é isso aí?
OLGA JOVEM -
O cantil de Afonso... Eu fui encher com a água do poço... Ele disse... Ele não disse nada...
ÚRSULA JOVEM -
(INTRIGADA) Que história é essa?
OLGA JOVEM -
(MUITO IRRITADA) Onde está Afonso? E Liddy?
ÚRSULA JOVEM -
Não sei... Estou chegando agora...
OLGA JOVEM -
Não viu os dois aí fora?
ÚRSULA JOVEM -
Não... Eles saíram?
OLGA JOVEM -
Eu não sei... Eu não sei... Eu não sei... (COM TODA A RAIVA) Eu não sei!
PARIS - BELFORT....................................................................................................57
ÚRSULA JOVEM -
(ESPANTADA) Gaia!
OLGA JOVEM COMEÇA A DESPEJAR LENTAMENTE A ÁGUA DO CANTIL, COM OS OLHOS MAREJADOS E MUITA RAIVA. OLGA JOVEM -
Eu não sei! Eu não sei! A água das irmãs! A água das três irmãs! Burra! Burra! Burra!
ÚRSULA JOVEM -
(SEGURANDO E DETENDO OLGA) Gaia, pelo amor de Deus, o que está acontecendo?
OLGA JOVEM FICA FIRME E VAI INDO PARA OS FUNDOS. OLGA JOVEM -
Ele vai morrer de sede na trincheira! Ele vai morrer implorando por uma gotinha de água!... E nem água podre ele vai ter! Ele não vai ter nada! A boca dele vai ficar grossa e pastosa, e ele vai procurar o cantil por toda a parte... e sabe o que ele vai achar? Nada! Nada! Sulita, nada!
OLGA JOVEM SAI PARA OS FUNDOS, MAGOADÍSSIMA. ÚRSULA JOVEM NÃO ENTENDE. LUZ VAI CAINDO NA SALA. CONTINUA NO QUARTO COM AFONSO VELHO. OLGA VELHA BATE À PORTA E ENTRA, COM UM EMBRULHO NAS MÃOS. AFONSO VELHO ESCONDE RAPIDAMENTE O RELÓGIO. OLGA VELHA -
(TÍMIDA) Eu preciso devolver uma coisa para você! (BREVE PAUSA) Você teve muita sede durante a Revolução?
AFONSO VELHO -
Sede? Não sei... Por quê?
OLGA VELHA -
Eu... Eu roubei o seu cantil... Tome... Eu guardei durante esse tempo todo... Eu sabia que, um dia, eu iria poder devolvê-lo a você!
AFONSO VELHO -
(RINDO) E matar a minha sede, Gaia?
OLGA VELHA -
Não brinque com isso, Afonso... Pegue o cantil...
AFONSO VELHO PEGA O CANTIL. TIRA UM CANTIL. MUITO BEM CONSERVADO. AFONSO VELHO -
Está novinho!
OLGA VELHA -
(TÍMIDA) Eu cuidei dele... Nunca deixei enferrujar...
AFONSO VELHO -
O que eu faço com esse cantil agora?
PARIS - BELFORT....................................................................................................58
OLGA VELHA -
(DURA) Mata a sede com a água das Paes de Almeida... Não era isso o que você queria?
SILÊNCIO ENTRE OS DOIS. AFONSO VELHO -
Você ainda está magoada comigo...
OLGA VELHA PERMANECE EM SILÊNCIO. AFONSO VELHO -
Eu também preciso devolver uma coisa para você...
OLGA VELHA -
(AMARGA) Você nunca ficou com nada meu...
AFONSO VELHO MOSTRA O RELÓGIO DE OURO. AFONSO VELHO -
Isto!
OLGA VELHA -
Meu Deus! Esconda isso... Por favor...
AFONSO VELHO -
Esconda você! O relógio é seu!
OLGA VELHA -
De papai!
AFONSO VELHO -
Você me emprestou um dia!
OLGA VELHA PEGA O RELÓGIO. FICA OLHANDO PARA ELE. DEPOIS, JOGA O RELÓGIO SOBRE A CAMA. OLGA VELHA -
(IRÔNICA) Era o preço da nossa fuga!
AFONSO VELHO -
(TENTANDO DISFARÇAR) Você me emprestou porque...
OLGA VELHA -
Não emprestei! Eu roubei esse relógio do quarto de Úrsula, para que você vendesse e comprasse as nossas passagens para São Paulo!
AFONSO VELHO -
Gaia, você está brincando comigo... Eu nunca...
OLGA VELHA -
Você nunca... Você... (COMEÇA A FICAR MUITO AMARGA) Eu devo estar misturando tudo mesmo... Talvez eu só tenha sonhado com isso... Talvez eu tenha entendido tudo errado... Durante toda a minha vida entendi tudo errado... Mas era para você vender o relógio de papai... E nós dois ... É ... Eu tenho vergonha de lembrar o que tinha acontecido entre a gente... Agora eu sei que você só quis dar um jeitinho em tudo... Afinal, eu fui a culpada! Por que eu tinha
PARIS - BELFORT....................................................................................................59 de me... de me entregar a você?... E ainda era menor... Por isso, Afonso, você não quis fugir comigo! Por isso, você quis ir para a guerra! Por isso quis ir lutar!... E São Paulo? Para que São Paulo? (QUASE CHORANDO) Que eu ficasse aqui mesmo, suja... impura... Você não ia cumprir sua palavra... AFONSO VELHO -
Foi um mal-entendido, Gaia!
OLGA VELHA -
Não me chame de Gaia! Sou Olga Paes de Almeida Salles! E me dê esse relógio que você roubou! Já que a outra coisa que você roubou nunca vai poder devolver mesmo... E eu ainda fui até a estação naquela noite... Sonhando com São Paulo, com tudo o que ouvia dizer da cidade grande... Sonhando... Mas São Paulo nunca chegou para mim... E eu nunca cheguei a São Paulo...
OLGA VELHA BATE A PORTA COM FORÇA. LUZ CAI. SOBE NAS ESCADAS. QUEM DESCE AS ESCADAS SORRATEIRAMENTE É OLGA JOVEM, COM UMA MALA NA MÃO. OLGA JOVEM ATRAVESSA TODA A SALA EM PENUMBRA E SAI, LENTAMENTE. LUZ CAI TOTAL NA SALA E SOBE NO QUARTO DE ÚRSULA. ÚRSULA VELHA ESTÁ OLHANDO PARA O RELÓGIO DE OURO. OLGA VELHA COM ELA. ÚRSULA VELHA -
(ESPANTADA) Mas é o relógio de papai! Como foi que você achou?
OLGA VELHA -
(MENTINDO) Fui dependurar algumas coisas de Afonso no armário e o relógio estava bem no fundo dele... Para você ver como a Creusa limpa bem a casa!
ÚRSULA VELHA -
Não é possível! (PAUSA) Gaia, será que esse pilantra roubou o relógio de papai?
OLGA VELHA -
Úrsula! Por favor! Isso nem me passa pela cabeça!
ÚRSULA VELHA -
Não sei... É tão estranho! É muita coincidência! Esse relógio some durante cinqüenta anos... De repente, justo quando Afonso Dattoli aparece...
OLGA VELHA -
Você está sendo injusta com ele! Afonso nunca teria feito isso... É só uma coincidência, como você disse!
ÚRSULA VELHA -
Estou irritada! Esse homem aqui dentro! É como se a casa estivesse sendo invadida! Nosso casulo... Nós nos protegemos durante anos e, de repente...
PARIS - BELFORT....................................................................................................60 A PORTA SE ABRE E ENTRA LYDIA VELHA. LYDIA VELHA -
Posso? (ESPANTADA) O relógio de papai?
ÚRSULA VELHA -
Apareceu quando o herói voltou! (PEQUENA PAUSA) Não sei mais que histórias, ou coisas, ou desgraças, ou memórias esse homem trouxe na bagagem...
OLGA VELHA -
Por favor, Úrsula...
LYDIA VELHA -
Quando você fala assim, fico com medo...
ÚRSULA VELHA -
O que ele trouxe para você, Liddy? O que estava aí guardado, dentro de você e... de repente... Afonso puxou para fora? Como se quisesse expor alguma coisa muito íntima sua...
LYDIA VELHA -
Nada... Claro que nada... Eu nunca tive nenhum segredo... (TENTANDO BRINCAR) Minha vida sempre foi um livro aberto...
ÚRSULA VELHA -
Ele nunca arrancou nenhuma página desse livro?
LYDIA VELHA SE MANTÉM EM SILÊNCIO. ÚRSULA VELHA -
Você ficou muito abatida com a partida dele...
OLGA VELHA -
Pare, Sulita... Por que diz tudo isso?
ÚRSULA VELHA -
Porque nós três estamos em perigo... Um vento diferente está batendo nas nossas janelas, e eu não sei mais se elas resistem!
OLGA VELHA -
Você está com manias de velha! É melhor alguém avisar Afonso que logo a ceia estará pronta!!!
OLGA VELHA VAI SAIR, QUANDO ÚRSULA VELHA A BRECA COM A PERGUNTA. ÚRSULA VELHA -
E você, Gaia, que bobagem secreta você guardou durante todo esse tempo?
OLGA VELHA -
Não sei do que você está falando...
ÚRSULA VELHA -
É... Nenhuma de nós quer ver o tempo de frente... O tempo é cruel demais para as nossas velhices... Você sabe disso, Gaia... Esperou tanto...
PARIS - BELFORT....................................................................................................61 LUZ CAI TOTAL NO QUARTO DE ÚRSULA E SOBE NA SALA. OLGA JOVEM VEM ENTRANDO PELA PORTA DA FRENTE, COM A MALA NA MÃO. ESTÁ PROFUNDAMENTE ABATIDA. ELA SENTA-SE, DESANIMADA. FOCO DE LUZ REVELA OLGA VELHA DESCENDO AS ESCADAS, ENQUANTO FALA COM OLGA JOVEM. OLGA VELHA -
Ele não apareceu na estação... Fiquei lá, escondida, para ninguém me ver... Idiota, com a mala na mão, e ele não apareceu...
OLGA JOVEM -
E eu fui sentindo o tempo passar...
OLGA VELHA -
Sentindo até hoje... Cada segundo, cada minuto, cada hora, cada dia, cada mês, cada ano... Quantos anos?
OLGA JOVEM -
Tantos...
OLGA VELHA -
Eu tentei desculpar o tempo... Mas isso não é possível...
OLGA JOVEM -
Eu me recuso a desfazer a mala... Ele vai voltar...
OLGA VELHA -
Nunca desfiz essa mala... Cada peça que eu tentava tirar da mala me queimava as mãos! Era como se eu quisesse prolongar infinitivamente a espera... Infinitivamente!
OLGA JOVEM -
Não há esperança mesmo?
OLGA VELHA -
Eu sei a resposta... Mas não quero dizer nada em voz alta... Porque não quero ouvir o som da minha própria amargura... Anos e anos com as roupas dobradas... O cheiro de sachê... Como se a viagem pudesse acontecer de repente...
OLGA JOVEM -
Os trens não esperam...
OLGA VELHA -
E nem São Paulo acaba... Mas eu envelheci na espera... Me dê essa mala... Eu terei muito carinho por todas as peças que estão aí... Tomarei conta para que as traças não comam nada... O tempo não irá parar nunca, mas eu serei teimosa!
OLGA JOVEM -
(BERRANDO) A mala é minha! O tempo é meu! Ele vai voltar!
OLGA VELHA SORRI AMARGA E SOBE AS ESCADAS LENTAMENTE. OLGA JOVEM SAI RAPIDAMENTE COM A MALA PELA PORTA DOS
PARIS - BELFORT....................................................................................................62 FUNDOS. OLGA VELHA BATE NA PORTA DO QUARTO DE HÓSPEDES. AFONSO VELHO LEVANTA-SE E ABRE. OLGA VELHA -
A ceia logo estará pronta!
AFONSO VELHO -
Ainda vai ter a ceia?
OLGA VELHA -
(CANSADA) E por que não?
AFONSO VELHO -
Estarei pronto e elegante para as três damas! Depois de tanto tempo, elas me consideram digno de me sentir à mesma mesa!
OLGA VELHA SORRI, CANSADA. OS DOIS FICAM SE OLHANDO. LUZ CAI TOTAL NO QUARTO DE HÓSPEDES. BLACK-OUT.
CENA 06
LUZ ACENDE LENTAMENTE NA SALA. LYDIA JOVEM ENTRA, PELA PORTA DA RUA. ESTÁ COM OS CABELOS MAL-ARRUMADOS, QUASE DESGRELHADOS, A ROUPA AMASSADA. ELA ESTÁ PÁLIDA. PRATICAMENTE DEIXA-SE CAIR EM UMA POLTRONA. PUDICAMENTE, COLOCA AS MÃOS SOBRE O SEXO, POR CIMA DO VESTIDO. CHORA BAIXINHO. LYDIA VELHA SURGE DAS SOMBRAS. FALA SUAVEMENTE COM LYDIA JOVEM. LYDIA VELHA -
Há uma manchinha de sangue no vestido...
LYDIA JOVEM TENTA FRENETICAMENTE ESFREGAR A MANCHA, PARA QUE ELA SAIA. LYDIA VELHA -
Não adianta... Essa mancha vai ficar dentro de mim!
LYDIA JOVEM -
Eu não queria! Eu não queria! Eu não queria! Juro que não queria!
LYDIA VELHA -
Eu me entreguei a ele como se fosse uma qualquer... No meio do mato, como uma meretriz!
LYDIA JOVEM -
Eu não sabia o que estava fazendo!
PARIS - BELFORT....................................................................................................63 LYDIA VELHA -
Meu corpo tremia todo. De excitação. (CONFESSANDO) Eu sempre quis isso...
LYDIA JOVEM COMEÇA A CHORAR. LYDIA VELHA -
LYDIA JOVEM -
Eu tenho chorado por todos esses anos... À noite, sozinha na cama, eu me lembro de tudo... Como foi bom sentir aquele homem em cima de mim... Era essa a água sagrada!... A água funda do nosso poço! Pare! Pare! Pare! Eu não posso mais pensar nisso... Estou perdida!
LYDIA VELHA -
É verdade! Porque nunca serei de mais ninguém! A vergonha será tanta que eu não conseguirei mais olhar para outro homem!
LYDIA JOVEM -
Eu pensei no prazer! Pecado!
LYDIA VELHA -
(CALMA) O inferno me espera! Eu finjo que não penso nisso, mas o Inferno me espera... Mas eu já estava no Inferno e não sabia... A “Casta Diva” não era mais casta!
LYDIA JOVEM -
(DESESPERADA) O que eu faço? O que eu faço?
LYDIA VELHA -
Vou esperar até que volte! Um dia ele voltará! Um dia ele estará aqui de novo!
LYDIA JOVEM -
É horrível pensar no que estou pensando... Mas eu gostaria que ele de novo...
LYDIA VELHA -
Mas eu nunca mais o terei! Nunca mais! Essa vai ser a maior dor! Eu estarei sozinha com meu corpo! E com a minha vergonha!... Com o tempo, a vergonha irá se transformar em manto preto que cobrirá todas as outras coisas... Até a própria vergonha! E eu serei a solidão... Nada mais que isso...
SILÊNCIO. LYDIA VELHA VAI ATÉ A ELETROLA E COLOCA A “CASTA DIVA”. LYDIA JOVEM COMEÇA A CHORAR BAIXINHO. LYDIA VELHA VAI ATÉ ELA. COMEÇA A PENTEAR SEUS CABELOS. SUAVEMENTE. LYDIA VELHA -
Não deixarei Úrsula perceber nada... Nem Olga... Eu não suportarei que elas me olhem assim, desgrenhada, com uma mancha de sangue no vestido... Eu preciso me recompor...
PARIS - BELFORT....................................................................................................64 LYDIA JOVEM SE LEVANTA. LYDIA VELHA ENXUGA AS LÁGRIMAS DELA. LYDIA JOVEM JÁ ESTÀ NOVAMENTE COM A APARÊNCIA NORMAL. ÚRSULA JOVEM VEM DE DENTRO JÁ CHAMANDO. ÚRSULA JOVEM -
Liddy! Liddy! É você quem está aí?
ÚRSULA JOVEM ENTRA NA SALA, VINDO DOS FUNDOS. VAI DIRETO PARA A ELETROLA. TIRA A ÁRIA QUE AINDA TOCA. ÚRSULA JOVEM -
Onde está Afonso?
LYDIA JOVEM -
(TOTALMENTE CONTROLADA) Não sei... Nós fomos até a Escola Normal e depois ele saiu com seus amigos...
ÚRSULA JOVEM -
Para onde ele foi?
LYDIA JOVEM -
Não sei, Sulita... Não sei...
ÚRSULA JOVEM SAI APRESSADA PELA FRENTE. LYDIA JOVEM VAI SUBINDO AS ESCADAS. LYDIA VELHA ATRÁS DELA. LYDIA JOVEM SOME NO JIRAU. LYDIA VELHA PÁRA, EM MEIO ÀS ESCADAS. DIZ SOLENE. LYDIA VELHA -
O tempo me fez culpada. E eu queria só que houvesse amor. Mas essa palavra não existe mais... Nunca existiu... Nunca... O cheiro de mato misturado com o sêmem dele não sai da minha pele... Por mais que eu me banhe... Por mais que eu me perfume toda...
LUZ VAI CAINDO SUAVEMENTE. LYDIA VELHA VAI SUBINDO AS ESCADAS. LUZ CAI TOTAL. BLACK-OUT.
CENA 07 EXPLODE “PARIS-BELFORT” MUITO ALTO. AINDA NO BLACK-OUT. FOCO DE LUZ REVELA AFONSO JOVEM SENTADO NUM PONTO DA VARANDA. SURGE ÚRSULA VELHA. OS DOIS SE OLHAM INTENSAMENTE. CAI A MÚSICA. ÚRSULA VELHA -
Nesse dia, corri feito louca atrás de você...
AFONSO JOVEM FICA DE CABEÇA BAIXA. ÚRSULA VELHA -
Corri para saber onde você estava... E você já tinha partido... Sem dizer nada...
PARIS - BELFORT....................................................................................................65 AFONSO JOVEM CONTINUA EM SILÊNCIO. ÚRSULA VELHA -
Eu precisava falar com você... Tinha toda a urgência do mundo... Mas você já tinha sumido! (PAUSA) Mas foi até bom não ter encontrado você no bar, nem na estação... Porque não quero que você saiba... Eu não quero que você saiba mais nada de mim, da minha vida! Porque, se você soubesse, isso daria algum sentido à sua vida! E a sua vida não merece sentido algum! Vá embora! Suma! Suma desta casa! Para sempre!
AFONSO JOVEM VAI SAINDO, DE CABEÇA BAIXA. SOME. UM TEMPO DE SILÊNCIO. ÚRSULA VELHA ACENDE UM CIGARRO. DÁ UMA LONGA BAFORADA. ÚRSULA VELHA -
Eu o amei tanto, Afonso... Tanto... Como não se ama neste mundo!... O que você queria mais?
ÚRSULA VELHA FICA EM SILÊNCIO, OLHANDO PARA A PLATÉIA, COMO SE FOSSE A NOITE. ÚRSULA JOVEM SURGE, ENTRANDO PELA VARANDA. VEM DE FORA, DA ESCURIDÃO. ÚRSULA JOVEM -
Ele partiu... Nem me esperou...
ÚRSULA VELHA -
Ele vai voltar um dia...
ÚRSULA JOVEM -
Eu ia me casar com ele...
ÚRSULA VELHA -
Não!
ÚRSULA JOVEM -
Se eu tivesse dito tudo a ele...
ÚRSULA VELHA -
Não!
ÚRSULA JOVEM SE APROXIMA DE ÚRSULA VELHA. ÚRSULA JOVEM -
Estou cansada... Os amigos dele me olharam com risadas... Parece que sabiam de tudo...
ÚRSULA VELHA -
E sabiam... Afonso contava que toda a tarde eu e ele íamos até o Capão Bonito!
ÚRSULA JOVEM -
Eu não era mais a filha do Doutor Salles! Não era mais uma Paes de Almeida!
ÚRSULA VELHA -
Desonrada! Foi esse o preço do prazer!
ÚRSULA JOVEM -
Do amor!
PARIS - BELFORT....................................................................................................66
ÚRSULA VELHA NADA DIZ. ÚRSULA JOVEM -
Estou cansada... Me apóie...
ÚRSULA VELHA -
Não! Ninguém vai me apoiar... Nunca mais quero um ombro, uma ajuda, a mão de alguém, nada... Quero ficar sozinha, morrer sozinha, me acabar sozinha...
ÚRSULA JOVEM -
Só um pouquinho... Segure meu ombro...
ÚRSULA VELHA -
Não!
ÚRSULA VELHA E ÚRSULA JOVEM SE ENCOSTAM NA BALAUSTRADA E FICAM OLHANDO PARA O VAZIO. AS DUAS FUMANDO. LUZ MUITO TÊNUE NA VARANDA. SOBE A LUZ NA SALA. AFONSO JOVEM, FARDADO, JÁ DE MOCHILA E ESCOPETA, ESTÁ ALI. OLHA PARA O JIRAU. AFONSO VELHO ESTÁ ALI, ACENANDO PARA ELE E SORRINDO. AFONSO JOVEM FAZ UM SINAL DE URGÊNCIA. AFONSO VELHO -
O que há?
AFONSO JOVEM -
Chegou a hora da partida...
AFONSO VELHO -
Eu tenho de partir assim, de repente?
AFONSO JOVEM -
Quanto mais rápido, melhor... Não posso mais ficar por aqui...
AFONSO VELHO -
(RINDO) Eu consegui, hein?
AFONSO JOVEM -
As três... Primeiro, Úrsula; depois, Olga; e agora, Lydia... As três!
AFONSO VELHO -
Estou feliz?
AFONSO JOVEM -
Estou vazio!
AFONSO VELHO -
Não entendo...
AFONSO JOVEM -
Meu pai queria se casar com a mãe delas. Apanhou como um cachorro sem dono...
AFONSO VELHO -
Ele me dizia que ficou três dias num tronco, como se ainda fosse no tempo dos escravos...Sangrando, sangrando... E ainda jogaram sal nos cortes... Porque era um carcamano!
AFONSO JOVEM -
Queriam capar o pai, sabia?
PARIS - BELFORT....................................................................................................67
AFONSO VELHO -
Sabia... E o velho amava a mãe das meninas. Amava como um louco... E a mãe delas nunca soube disso...
AFONSO JOVEM -
Nem o pai delas... (RI) Se o velho Salles soubesse, eu nem chegava perto daqui...
AFONSO VELHO -
Eu sou um herói!
AFONSO JOVEM -
Um herói que vai ser mais herói ainda... Eu vou voltar... Eu vou escolher uma delas e me casar... Ficar por aqui, como dono de tudo...
AFONSO VELHO -
Eu não sei qual delas...
AFONSO JOVEM -
Eu sei sim... Úrsula... A mais forte... A mais difícil... Mas a que mais caiu no chão comigo... Rolando, rolando... Terra por todo o corpo... Suor misturado com folhas... E eu dentro dela... (PEQUENA PAUSA) Eu estou com medo...
AFONSO VELHO -
Do quê?
AFONSO JOVEM -
De morrer na batalha... Não posso morrer numa trincheira imunda...
AFONSO VELHO -
Eu vou fugir... Embarco e caio fora na primeira estação que der...
AFONSO JOVEM -
Covardia!
AFONSO VELHO -
Vou ser covarde sempre! Mas eu não posso morrer lá, no meio das balas... Eu preciso voltar!
AFONSO JOVEM -
É isso! Eu preciso voltar! Como um herói! Cheio de medalhas, de glórias! E acabar com as Paes de Almeida! Esta casa, isso tudo será Dattoli! Com dois tês!
AFONSO VELHO -
Bravo! Bravíssimo!
AFONSO VELHO ACENA PARA AFONSO JOVEM. JOGA UM BEIJO PARA ELE. AFONSO JOVEM -
Ciao, bello...
AFONSO VELHO -
Ciao...
PARIS - BELFORT....................................................................................................68 AFONSO JOVEM VAI SAINDO PELOS FUNDOS. PÁRA. VOLTA CORRENDO PARA O CENTRO DO PALCO. AFONSO JOVEM -
Que gosto tem a vingança?
AFONSO VELHO -
De óleo de rícino!
AFONSO JOVEM -
Eu vou desistir de tudo... Talvez Úrsula...
AFONSO VELHO -
Agora não tem mais volta, caro... O tempo me enganou... O tempo é uma armadilha... Quem sabe depois... Daqui a muito tempo... Quem sabe depois da morte, as coisas se acalmem... E fiquem como deveriam ser! (TRISTE) Eu queria todas e não queria nenhuma! Vendetta! Que palavra estúpida! Não significa nada, nada... O que eu sinto é um bando de coisas diferentes... A “Casta Diva”... Essa música vai estourar meus tímpanos para o resto da vida, porque eu sei a volta que terei de dar até chegar ao mesmo ponto...
AFONSO JOVEM -
Eu vou me esquecer de tudo! Porque é assim mesmo! Não sobra nada do passado... Nada... Eu ficarei como uma árvore com a raiz para fora.
AFONSO JOVEM -
Raiz podre...
AFONSO VELHO -
Raiz podre...
AFONSO JOVEM -
Se eu tivesse um filho para me vingar depois...
AFONSO VELHO -
É... Porque a lança virá direto para o meu peito... Assim...
AFONSO VELHO FAZ UM GESTO DE FACADA NO PEITO. AFONSO JOVEM SAI CORRENDO PELOS FUNDOS. CAI A LUZ NA SALA. FICA EM AFONSO VELHO AINDA NO JIRAU. AFONSO VELHO -
Úrsula... Lydia... Olga... Minhas mãos estiveram em vocês... E eu não mais me esqueci!... Que peça o tempo me pregou! Acabei eu sendo a vítima de tudo! Passei o visgo no galho e o passarinho que ficou preso fui eu! Até quando? Até quando?
CAI A LUZ NO QUARTO DE HÓSPEDES. ÚRSULA JOVEM ENTRA CORRENDO, DE FORA. BERRA. LUZ SE ACENDE TOTAL NA SALA. ÚRSULA JOVEM -
Nããããããããããoooooooo!
PARIS - BELFORT....................................................................................................69 LYDIA JOVEM E OLGA JOVEM DESCEM CORRENDO AS ESCADAS, DE CAMISOLAS. ÚRSULA JOVEM -
Ele partiu! Ele foi embora! Ele vai morrer!
SILÊNCIO. AS TRÊS, LENTAMENTE, SE ABRAÇAM E COMEÇAM A CHORAR, UNIDAS. LUZ VAI CAINDO VAGAROSAMENTE, ENQUANTO SOBE COM TUDO A “CASTA DIVA”. BLACK-OUT.
CENA 08
LUZ SE ACENDE AOS POUCOS NA SALA, NO LADO OPOSTO AO DA SALA DE JANTAR. À VOLTA DO RÁDIO ANTIGO, ÚRSULA JOVEM, OLGA JOVEM E LYDIA JOVEM TRICOTAM. ESCUTAM O RÁDIO. É UMA LOCUÇÃO DE CÉSAR LADEIRA. TEXTO DE GUILHERME DE ALMEIDA. CÉSAR LADEIRA -
(OFF) O paulista não mudou! Há três séculos, quando a epopéia das Bandeiras subia brilhando ao delírio da riqueza, e Anhangüera, o Diabo Velho, do ciclo de paulistas, surpreendia e domava no sertão escuro a Tribo Goiá, que dançava ao luar, nua, suntuosa. De cabelos empoados de ouro. E arcas...
ÚRSULA JOVEM DESLIGA O RÁDIO, NERVOSA. ÚRSULA JOVEM -
Não quero mais saber da epopéia dos paulistas!
SILÊNCIO ENTRE AS TRÊS IRMÃS. UM SILÊNCIO DOLORIDO. LYDIA JOVEM CORTA. LYDIA JOVEM -
Já é setembro!
OLGA JOVEM -
Ele não escreveu mais nada... O último cartão veio de Buri... Ele falava dos aviões... Dos “vermelhinhos”...
LYDIA JOVEM -
Meu Deus! Será que caiu uma bomba em cima de Afonso? Será... Será que ele morreu?
ÚRSULA JOVEM -
Não diga bobagem!
LYDIA JOVEM -
Eu não quero pensar nisso! Mas todo mundo tem recebido correspondência do front... E nós... Está certo que não somos a família dele...
ÚRSULA JOVEM -
Deixe de falar em Afonso, Liddy... Pense um pouco nos seus primos que também estão lutando...
PARIS - BELFORT....................................................................................................70
OLGA JOVEM -
O que adianta Liddy não falar? Nós todas só pensamos nele... Você, Sulita, só pensa nele... Está com medo que ele...
ÚRSULA JOVEM -
Ele vai voltar! (FIRMÍSSIMA) Ele vai voltar nem que seja a última coisa que faça na vida!
OLGA JOVEM -
Por que essa raiva?
ÚRSULA JOVEM -
Não é raiva! É certeza! Esse italiano não tem outro caminho, a não ser o que vem para cá! Não sei quando, nem como, mas ele virá! Como um herói!
OLGA JOVEM -
ÚRSULA JOVEM DÁ UMA OLHADA FIRME PARA ELA E LIGA NOVAMENTE O RÁDIO. VOLTA A LOCUÇÃO DE CÉSAR LADEIRA. CÉSAR LADEIRA -
(OFF) Todo paulista sabe dizer como Jó: “São Paulo me deu, São Paulo me tirou.” Seja bendito o nome de São Paulo! Todo paulista sabe ser pobre como Jó, para com esta pobreza alcançar a riqueza suprema, a única riqueza que São Paulo quer! A vitória! A vitória!
TEMPO PARA UMA GARGALHADA HOMÉRICA DE ÚRSULA JOVEM, QUE ACENDE UM CIGARRO E TRAGA. ENTRA “PARIS-BELFORT” SAINDO DO RÁDIO E TOMANDO CONTA DE TODO O AMBIENTE. LUZ VAI CAINDO NESSA PARTE DA SALA. CAI TOTAL. VAI ACENDENDO SOBRE A MESA DE JANTAR. ESTÃO SENTADOS, MUITO ELEGANTES, ÚRSULA VELHA, OLGA VELHA, LYDIA VELHA E AFONSO VELHO. UMA SOLENIDADE PAIRA NO AR. AS TRÊS COM VESTIDOS ANTIGOS, MAS MUITO ELEGANTES. AFONSO VELHO, DE TERNO E GRAVATA PUÍDOS. AFONSO VELHO -
(QUEBRANDO O SILÊNCIO) O peru está ótimo, Olga...
LYDIA VELHA -
Como será esse Ano Novo?
AFONSO VELHO -
Bom... Muito bom. (COMENDO GULOSAMENTE) Será melhor que todos os outros anos...
OLGA VELHA -
Deus o ouça, Afonso... Chega de passar tanto tempo sofrendo, sofrendo... Eu não entendo mais este país... Se São Paulo tivesse vencido Revolução! República de Piratininga! Eu continuo separatista! São Paulo seria muito melhor! Um país rico, independente, sem
PARIS - BELFORT....................................................................................................71 dívida externa, próspero... Como um país europeu! Nós temos tudo aqui! ÚRSULA VELHA -
Menos heróis!
SILÊNCIO CONSTRANGEDOR. ÚRSULA VELHA -
Infelizmente um país não se faz sem heróis! Mesmo que isso seja a pior coisa do mundo... Mas onde estão esses heróis?
LYDIA VELHA -
(CORTANDO) Afonso, você não quer mais purê?
AFONSO VELHO ENCARA ÚRSULA VELHA, COM HUMILDADE. AFONSO VELHO -
Por que tudo isso, Úrsula?
ÚRSULA VELHA -
(SILÊNCIO; DEPOIS, DESCONVERSANDO) Depois, poderemos fazer um pouco de música, não acham?
AFONSO VELHO -
(MAIS AGRESSIVO) Por que tudo isso, Úrsula?
ÚRSULA VELHA -
Porque você não devia ter voltado! (PEQUENA PAUSA) Mas eu sabia que tinha de ser assim!
LYDIA VELHA -
Úrsula!!!
AFONSO VELHO -
Você sempre diz que sabia que eu voltaria... Mas por que eu parti?
OLGA VELHA -
Por quê?
AFONSO VELHO -
O tempo me fez esquecer o porquê... Não sei...
ÚRSULA VELHA SE LEVANTA NERVOSA. FUMA. ANDA. TENTA SE CONTROLAR. ÚRSULA VELHA -
O tempo... Esse bandido... Esse assassino... Eu poderia ficar em paz... Mas não... O tempo não perdoa... É circular... Não tem começo, não tem fim... Estamos sempre no mesmo ponto...
OLGA VELHA -
(VEM PARA PERTO DE ÚRSULA E TENTA ABRAÇÁ-LA) Vamos continuar a ceia, Sulita... Já é quase primeiro de ano...
ÚRSULA VELHA -
Aos diabos o Ano-Novo! (VAI DIRETO PARA AFONSO) A sua história toda é uma mentira! Você é
PARIS - BELFORT....................................................................................................72 uma mentira! Todos nós somos uma mentira! Eu descobri que seu pai queria se casar com minha mãe! LYDIA VELHA -
Isso é lenda, Sulita! Invencionices do povo!
ÚRSULA VELHA -
Afonso não acha isso! Nunca achou! Mas essa história é mentira sim! Liddy está certa... Minha mãe nem conhecia bem seu pai...
AFONSO VELHO -
O tronco! O sangue!
ÚRSULA VELHA -
Essas são histórias de gaveta. Devem ficar lá para sempre. Senão, elas viram teias perigosas. E essa história virou uma teia que nos aprisionou. Estamos aqui, nessa teia de dias, de minutos, segundos, e nada muda. Por isso você partiu!
AFONSO VELHO -
E por que voltei?
ÚRSULA VELHA -
Porque não há outro lugar no mundo para você... Porque você tem a necessidade de voltar para ver as vítimas da sua sedução barata nos seus últimos momentos...
OLGA VELHA -
Úrsula, agora não é hora!
ÚRSULA VELHA -
É hora sim, Gaia... De dizer tudo... Esse homem não lutou coisa alguma!
AFONSO VELHO -
Você está sendo uma velha ridícula!
ÚRSULA VELHA -
Nosso primo Manequinho Paes sabia que você tinha fugido do front... Para o Rio Grande... Nem chegou ao front... E, do Rio Grande, sei lá por onde andou... Mas sempre muito longe das trincheiras!
LYDIA VELHA -
Meu Deus! E os cartões??? E as mensagens???
ÚRSULA VELHA -
Invenções! Invenções! Mentiras dele... Esse homem precisava nos manter presas à mão dele para sempre...
AFONSO VELHO ENGOLE A RAIVA. OLGA VELHA -
É verdade, Afonso Dattoli? É verdade que você não lutou? Que fugiu?
AFONSO VELHO -
Isso tem importância?
PARIS - BELFORT....................................................................................................73 ÚRSULA VELHA -
(CADA VEZ MAIS AMARGA) Não! Não tem importância! Só importa o que aconteceu aqui, entre nós... Importa que você seduziu Lydia!
LYDIA VELHA -
Úrsula!
AFONSO VELHO -
(IRADO) Vingança, Úrsula! Vendetta!
LYDIA VELHA COMEÇA A CHORAR. ÚRSULA VELHA -
Mais vingança com Olga!
AFONSO VELHO -
Mais vingança com Olga, sim!
OLGA VELHA -
Não, não... Por favor! Onde está nossa decência? Essas histórias não se contam... São segredos!
ÚRSULA VELHA -
Segredos de quem, Gaia? De quem?
OLGA VELHA -
Por favor... Se soubesse a minha vergonha...Olhe Liddy, a coitadinha...
ÚRSULA VELHA -
(FIRME) Pare de chorar, Liddy... Na nossa idade!
LYDIA VELHA -
(REPENTINAMENTE DURA) E como você soube de tudo isso, Úrsula?
ÚRSULA VELHA -
Meus olhos cansaram de ficar prestando atenção em todas as coisas desta casa. De olhar por todas as frestas... De vigiar o seu vestido manchado de sangue... Ou a mala que Olga deixou pronta durante todos esses anos...
OLGA VELHA -
Por favor...
AFONSO VELHO -
Muito bem, Úrsula... Agora conte o seu segredo... Conte que, durante muito tempo, nós dois rolamos pelo mato, como dois bichos selvagens, fazendo amor... Nus... Nossos cabelos e pelos misturados com grama, com pó, com barro, com bosta de vaca...
OLGA VELHA -
Chega!
ÚRSULA VELHA -
(RINDO) Para que contar isso, Afonso Dattoli? Se aconteceu com elas, por que não teria acontecido comigo também?
LYDIA VELHA -
Você... Você não se envergonha, Úrsula?
PARIS - BELFORT....................................................................................................74 ÚRSULA VELHA -
Não! (FIRME) Eu fiquei grávida de você, Afonso!
SILÊNCIO PESADO. AFONSO VELHO ARREGALA OS OLHOS. ÚRSULA VELHA -
Seu filho... Um Dattoli... O que você queria tanto... Abortei... Fui até aquela mulher velha do Fundão, e pedi que arrancasse de dentro de mim!
OLGA VELHA -
(BERRANDO, ESCANDALIZADA) Úrsula, você não podia...
ÚRSULA VELHA -
Era a minha salvação! A única forma de quebrar a corrente... O filho que vinga o pai que faz um filho que vinga o pai que faz um filho... Chega!
AFONSO VELHO -
Úrsula, eu não sabia... Se soubesse disso, eu ...
ÚRSULA VELHA -
Não mudaria nada, Afonso... Abortei porque não mudaria nada... Tudo não passava de uma sedução!
AFONSO VELHO -
(BAQUEADO) Não... Não era isso...
ÚRSULA VELHA -
O jogo sempre foi esse, Afonso! Sedução! Você nos seduzia e nós o seduzíamos... Porque não podemos passar sem isso! Um espelho refletindo o outro!
AFONSO VELHO -
Eu não tenho toda a culpa! Não tenho! E você me joga essa culpa na cara!
ÚRSULA VELHA -
Porque você perdeu o jogo! Quem volta perde o jogo! Você veio bater o piques! Mas não há mais escapatória!Você perdeu para sempre!
AFONSO VELHO -
Liddy, Olga... Por favor... Essa criança...
LYDIA VELHA -
Não fale mais nisso, Afonso! Estou chocada!
AFONSO VELHO -
Gaia...
OLGA VELHA -
Úrsula, Úrsula, por que fez isso?
ÚRSULA VELHA -
Essa criança que não nasceu está viva dentro de mim! Não vou parir nunca! Esse filho vai morrer comigo! Encruado em mim!
SILÊNCIO ABSOLUTO. AFONSO VELHO TOSSE ALGUMAS VEZES. AFONSO VELHO -
Eu... Eu preciso de ar...
PARIS - BELFORT....................................................................................................75 ÚRSULA VELHA -
Para quê? Para fugir de novo?
OLGA VELHA -
Chega, Úrsula! Se havia o silêncio, que ficasse o silêncio!
ÚRSULA VELHA -
Todas nós fomos mulher desse homem! Ele devia saber de tudo! Voltou para isso!
AFONSO VELHO -
Você... Você está sendo cruel...
LYDIA VELHA FAZ UM MOVIMENTO EM DIREÇÃO A AFONSO VELHO. AFONSO VELHO -
Não! Não me toque! A morte... Ela está aqui... Ela sempre esteve aqui... Ela sempre morou com vocês...
ARFANTE. ELE VAI SUBINDO AS ESCADAS. SILÊNCIO. AS IRMÃS NEM SE OLHAM. CLIMA PESADO ENTRE ELAS. ÚRSULA VELHA SENTA-SE À MESA NOVAMENTE. ÚRSULA VELHA -
Devemos continuar a ceia!
OLGA VELHA -
Não!!! (GRITANDO) Nãããããoooo! Mudou tudo! Acabou tudo!
ÚRSULA VELHA -
(CALMA) O que acabou, Gaia querida? Não acabou nada...
OLGA VELHA -
Os nossos segredos... Todos eles foram contados... Essa criança...
ÚRSULA VELHA -
Amanhã teremos esquecido tudo... Guardaremos nossos segredos na caixinha de jóias novamente.. E ela nunca mais será aberta!
LYDIA VELHA -
Eu quero morrer!
ÚRSULA VELHA -
É melhor que coma seu peru, Lydia Maria! Sua irmã perdeu muito tempo com ele na cozinha! Não é justo que você faça birra!
LYDIA VELHA, DERRUBADA, SENTA-SE À MESA. OLGA VELHA RELUTA UM POUCO MAS TAMBÉM VEM. AS TRÊS COMEM EM SILÊNCIO. NISSO, AFONSO VELHO DESCE COM A MALA NA MÃO. ATRAVESSA A CENA. ELAS CONTINUAM A COMER, SEM OLHAR PARA ELE. À PORTA, AFONSO VELHO SE VOLTA, EM DIREÇÃO A ELAS. AFONSO VELHO -
Pensei que tivesse voltado...
NENHUMA DELAS DIZ NADA. NENHUMA DELAS OLHA PARA ELE.
PARIS - BELFORT....................................................................................................76
AFONSO VELHO -
Eu amei vocês três... De uma maneira ou de outra!... Eu queria todas e não queria nenhuma... Pensei que pudesse morrer aqui... Mas meu filho já ocupa o meu lugar no mausoléu das Paes de Almeida! E eu nem sou um herói!
AFONSO VELHO SAI PARA A VARANDA COM A MALA NA MÃO. LUZ SE ACENDE NA VARANDA, CONTINUANDO TAMBÉM NA SALA. AFONSO VELHO SE ENCOSTA TRÔPEGO NA BALAUSTRADA DA VARANDA. NA SALA, AS TRÊS IRMÃS SE LEVANTAM. OLGA VELHA SERVE LICOR ITALIANO, LYDIA VELHA PASSA UM PRATO DE MARRON-GLACÊ E ÚRSULA VELHA COLOCA NA ELETROLA A “CASTA DIVA”. MÚSICA VAI AUMENTANDO CADA VEZ MAIS. LUZ NA SALA CONTINUA. ÚRSULA VELHA -
Nosso herói não voltou... Foi um sonho mal sonhado!
LUZ NA SALA CAI UM POUCO. NA VARANDA, AFONSO VELHO TEM UM ACESSO DE TOSSE. REPRIME A TOSSE COM O LENÇO E CAI MORTO ALI MESMO. A ÁRIA TOMA CONTA DE TUDO, MUITO ALTA. LUZ VAI CAINDO ATÉ QUASE TOTAL.
CENA 09
LUZ CONTINUA MORTIÇA NA VARANDA. ACENDE NAS ESCADAS. DESCEM ÚRSULA JOVEM, LYDIA JOVEM E OLGA JOVEM, EM VESTIDOS DE BAILE, LONGOS E ESVOAÇANTES. ESTÃO FELIZES. ELAS ATRAVESSAM A SALA, ENQUANTO AS VELHAS CONTINUAM TOMANDO SEUS LICORES EM SILÊNCIO. AS JOVENS VÃO ATÉ A VARANDA. NA VARANDA, AFONSO JOVEM, FARDADO, CHEIO DE MEDALHAS, BONITO E FELIZ, ERGUE AFONSO VELHO. AS TR~ES JOVENS NÃO OLHAM PARA AFONSO JOVEM. ACARICIAM AFONSO VELHO. TOMAM OS BRAÇOS DELE, ALEGREMENTE, E SOMEM COM ELE NA ESCURIDÃO. AFONSO JOVEM TAMBÉM NÃO OLHA PARA ELAS E ENTRA NA SALA. ABRE A PORTA COM TUDO. LUZ SE ACENDE TOTAL NA SALA. AFONSO JOVEM -
Como estão as meninas?
AS TRÊS VELHAS FICAM TOTALMENTE SURPRESAS E ILUMINADAS PELA FELICIDADE. ÚRSULA VELHA -
Afonso!
OLGA VELHA -
Meu Deus, como você está bonito!
LYDIA VELHA -
Essas medalhas todas!
PARIS - BELFORT....................................................................................................77
AFONSO JOVEM -
Todas para vocês! Conseguidas na raça e no combate! Perdemos a Revolução, mas vocês ganharam um herói!
AFONSO JOVEM ABRAÇA ÚRSULA VELHA, DEPOIS LYDIA VELHA, DEPOIS OLGA VELHA. COMEÇA A RODOPIAR COM ELAS, TODOS MUITO FELIZES. ÚRSULA VELHA -
(FELIZ) Você voltou... Você voltou...
AFONSO JOVEM -
Para viver! Um licor, minhas queridas! Um licor! Ao herói, tudo!
ESTOURA “PARIS-BELFORT” MUITO ALTO. ELES CONTINUAM A RODOPIAR E A BAILAR, ENQUANTO A LUZ VAI CAINDO SUAVEMENTE. BLACK-OUT AINDA AO SOM DE “PARIS-BELFORT”, QUE PERDURA.
FIM