NOIVAS
Personagens:
DORA AUGUSTO – Seu noivo. LIA – A costureira.
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CENA 1
(Ateliê de costura. Num canto, um manequim com um vestido de noiva inacabado. Lia está trabalhando, fixando com alfinetes uma dobra do tecido.)
AUGUSTO (entrando, de mãos dadas com Dora) É a costureira... (olha um cartão) Dona Lia?
LIA (muito segura, e sorridente) Ela mesma. A das mãos de fada.
AUGUSTO (um pouco desconcertado com a atitude de Lia) Eu vim trazer Dorinha. É minha noiva. O vestido é para ela.
DORA Mamãe lhe telefonou hoje de manhã, marcando a hora.
LIA Ah! Era sua mãe? Parecia aflita, no telefone. Praticamente me implorou pra receber você. Aí eu adiei todos os pedidos pra amanhã. Senão você não conseguiria. Neste mês de maio eu não paro um minuto... Mas ela estava mesmo aflita, não é?
DORA Ela é assim com tudo. A igreja, os convites, a decoração da casa. E “ai, meu Deus, os móveis não chegaram!” E “ai, meu Deus, o buffet! Tem que telefonar pra encomendar o buffet!” E não pense que é só porque é casamento. Batizado, aniversário, formatura... cada festa pra ela é um drama! 201
LIA É, eu entendo.
AUGUSTO Sua mãe sabe porque se preocupa. (Para Lia) Dorinha é muito... desligada. Falta um mês para o casamento e nem tinha pensado no vestido.
DORA Ora, Augusto, você sabe muito bem que eu estou fazendo isso para agradar mamãe. (Para Lia) Por mim, uma cerimônia simples, em casa mesmo, estava muito bom. Mas ela morre se não der festa, convidar a família toda, essas coisas.
AUGUSTO (para Lia) Claro, é preciso entender. Dorinha é filha única. A vida inteira a mãe sonhou com isso. (Para Dora) Você não vai estragar a alegria dela.
DORA Não... Eu só disse...
LIA (cortando) Então vocês estão de parabéns. Vieram ao lugar certo. Aqui terão o melhor do ramo.
AUGUSTO (Irônico) Modéstia à parte...
LIA É. Totalmente à parte. Fora.
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DORA (desfazendo o impasse) Bem... você espera... ou como é?
AUGUSTO (olhando o relógio) Acho que posso esperar...
LIA Pode ser que fique chateado.
AUGUSTO Vai demorar?
LIA Um pouco.
DORA Mas eu só vou escolher o feitio, o modelo, sei lá.
LIA Você imagina a quantidade de modelos que tem pra examinar? E até chegar ao que se combine melhor com o seu jeito, seu tipo, seu temperamento...
AUGUSTO Eu sempre tive a impressão de que os vestidos de noiva eram todos iguais.
LIA Mas não são. Tem noivas que levam dias, semanas, só pra resolver o tecido. Depois vem o estilo, a linha do corte.
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AUGUSTO (com sorriso condescendente) Puxa! Bem, então eu passo depois pra apanhar você.
DORA Você podia me esperar lá embaixo. Fique ouvindo música no carro...
AUGUSTO Nada disso! E eu tenho tempo pra ficar ouvindo música, Dorinha? Tenho um negócio pra fechar hoje. Não pode passar de hoje. É melhor eu ir resolver minhas coisas e depois venho te apanhar. (Bate dois dedos no relógio.) Cada minuto que estou perdendo, tenho prejuízo. (Para Lia) Bom, a que horas eu posso vir?
LIA (olhando o relógio) Digamos... sete horas.
DORA Às sete?
AUGUSTO Às sete?! Mas são três horas da tarde! Até lá são quatro horas! A senhora precisa de quatro horas?
LIA ( inabalável) É o tempo que preciso.
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AUGUSTO Não acha que... (debochando) por mais meticulosa que a senhora seja no seu ofício, é tempo demais? Ela só vai escolher o modelo e tirar as medidas... (olha as duas, esperando comprovação) Eu sou leigo no assunto, mas suponho que seja isso.
LIA Ah! Homens! Homens! Complicam tudo...
AUGUSTO Mas ao contrário! Eu estou simplificando.
LIA Por isso mesmo é que complica.
AUGUSTO É só um vestido...
LIA Senhor Augusto, um vestido de noiva não é um mero vestido. É um sonho. Um sonho branco, bordado, rendado... Um traje de rainha. Para um reinado bem curto, é verdade, mas muito importante.
AUGUSTO ( superior, irônico) Eu admiro quem leva sua profissão tão a sério. Realmente admiro.
LIA Qual é a sua?
AUGUSTO Eu sou engenheiro.
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LIA Ótimo! Então é capaz de entender bem a importância de cada milímetro, de cada minúcia. Um ponto em falso, um cálculo errado, e tudo desaba.
AUGUSTO Que comparação! Dona Lia, eu calculo prédios, edifícios, complexos armados, coisas pesadas, concretas, concreto armado, entende? A senhora calcula coisas leves, levíssimas. Rendas... cetins... sonhos, como a senhora mesma disse.
LIA Senhor Augusto... (pensando) Augusto. Poucos maridos têm um nome tão perfeito. Sabe, um sonho é uma coisa leve, levíssima, quando se ergue. Mais leve que a renda mais fina... (dura) Mas é concreto armado quando desaba.
AUGUSTO Puxa! Uma coisa eu não posso negar. Para uma costureira, a senhora tem muita imaginação. Bem, eu me rendo. Quatro horas... Vá lá.
LIA (olhando o relógio) Descontados os quinze minutos que me fez perder.
AUGUSTO (para Dora) Tchau, amor. (Beija-a rápido no rosto.)
DORA (meio sem jeito pelo clima criado entre Augusto e Lia) Até logo, amor.
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AUGUSTO (para Lia) Até às sete.
CENA 2 Depois da saída de Augusto as duas ficam paradas na sala. Lia não mostra nenhuma pressa. Simplesmente olha para Dora. Esta, depois de certo tempo, mostra-se impaciente.
DORA Bem... você quer tirar as medidas?
LIA Sim. Mas, primeiro, quero que você veja alguns modelos. Assim pode ir tendo uma idéia do que quer. Você já pensou em alguma coisa? Tem alguma preferência... assim, mais justo, mais folgado, curto, comprido, enfim, alguma idéia?
DORA (aliviada por falar do vestido) Não, eu não pensei em nada, não tenho nenhuma idéia. Acho que assim fica mais difícil pra você, mas, realmente não sei. Sabe, é como eu lhe disse, no fundo acho tudo isso tão... estranho.
LIA O que é estranho? DORA Isso... esse trabalho todo...
LIA
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Não ligue tanto, não se preocupe. Olha, faça de conta que vai fazer um vestido, qualquer vestido.
DORA Mas você mesma disse que era uma coisa muito importante... um sonho.
LIA Ora, eu disse isso ao seu noivo. Me perdoe, mas ele parecia tão superior... (Parecendo se divertir com a situação) Afinal, se a profissão dele é importante, a minha também é, não acha.
DORA (tensa) Lógico, lógico. Não repare no jeito dele.
LIA Não repare? Que quer dizer “não repare”? Eu paro e reparo em tudo. Você não repara?
DORA (constrangida) Você é engraçada. “ Não repare” quer dizer...
LIA Quer dizer que você está se desculpando por ele. Está pedindo desculpas se ele me chateou em alguma coisa.
DORA É...
LIA
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Assim como sua mãe diz para as visitas: “ Não repare na desarrumação da casa”, mesmo se tudo estiver brilhando... Ou quando tem convidado para jantar e diante da mesa posta, depois de conferir a posição de cada talher, ela anuncia: “Gente, por favor, não reparem. Empregada nova, sabem como é.”
DORA (intrigada) É. É isso mesmo. Você sabe mesmo como ela é.
(Dora olha espantada para Lia, um momento, procurando entender. Depois, para desviarse, começa a olhar a sala.)
LIA Pode reparar em tudo, à vontade. Eu vou buscar o álbum com os modelos.
(Dora continua a olhar em torno, intrigada. Lia volta com o álbum.)
LIA Venha. Vou lhe mostrar. (Sentam-se próximas. Lia passa as fotos, comentando-as, apontando detalhes; apenas se vê o movimento dos lábios, enquanto são projetadas imagens de noivas, com vestidos de tipos variados.)
DORA São lindos, todos eles. Você está de parabéns. (Percebe algo estranho) Mas... e essas fotos, essas do final?
LIA Ah! Essas são as noivas da primeira página. (Volta as páginas ao início.) Estas aqui, as primeiras. Só que foram tiradas três anos depois do casamento.
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DORA Três anos? Você tem certeza?
LIA Sim, foram tiradas três anos depois.
DORA (analisando impressionadíssima as fotos) Puxa! Três anos... É incrível! Eu jurava que ...
LIA É. Eu sei. É impressionante.
(Dora levanta-se,pensativa, anda, pára, depois volta rápida a tomar o álbum; compara alternadamente a primeira e a última página. Lia olha para ela, impassível.)
DORA (recobrando-se, assustada) Bem, vamos, vamos. É melhor tirar logo as medidas. Afinal, acho que não vamos precisar de muito tempo.
LIA Já escolheu o que quer, Dora?
DORA Não, não escolhi, mas pra mim tanto faz. Qualquer modelo serve. É... quer dizer... São todos tão bonitos. Olhe, resolva por mim. Você faz isso há tanto tempo, você entende disso, pode saber muito bem o que combina comigo. Eu confio no seu gosto, pronto.
LIA Você está me dizendo que eu sei o que é melhor pra você, Dora?
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DORA (tensa) É claro.
LIA Não, não é claro. DORA (tensa) É claro. Você faz esses vestidos há anos! Eu nunca nem pensei nisso!
LIA Mas o vestido é seu. É você quem vai vestir!
DORA É. E eu estou lhe dizendo que visto qualquer coisa! Que não me importa! (Pausa.) Tire logo as medidas, por favor.
LIA Você está muito nervosa. Não quer se sentar um pouco? Tomar um suco de frutas, ou um café?
DORA Eu só quero acabar com isso logo. Por favor!
LIA Está bem. Só vou lhe mostrar mais uma coisa. (Sai rapidamente e volta com outro álbum.) Eu faço vestidos de noiva há quinze anos. Mas só lhe mostrei os vestidos que completei, os que entraram pela porta larga da igreja, ao som da marcha nupcial. Mostrei as fotos das noivas que se casaram. Agora vou lhe mostrar as outras. (Estende-lhe o álbum.)
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DORA (tomando-o e abrindo-o rapidamente) As outras? Como assim, as outras?
LIA As que não se casaram, é claro. As fotos não são tão bonitas, estão todas em roupas comuns, mas acho que você vai gostar de ver.
DORA (devorando com os olhos, passando rápida as folhas) Mas você... por 0que você... você... fotografou? Todas?
LIA Claro.
DORA Não é claro!
LIA Claro. Faz parte do meu currículo... de vida.
DORA (ainda olhando, abismada) Todas... todas... desistiram? LIA Foi. Eu comecei a costurar o vestido, e não terminei. Desistiram.
DORA Mas então você... não teve prejuízo?
LIA
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(rindo) Você agora está falando como seu noivo. É isso que você quer saber mesmo, Dora? Você quer saber se eu tive prejuízo? É isso que lhe importa?
DORA (fechando o álbum, muito séria) Chega. Tire as medidas, rápido! Não quero ver mais nada. Tire as medidas.
LIA (muito calma) Não é preciso. (Vai até o manequim e tira o vestido. É um vestido inacabado, ainda sem mangas, sem gola, saia curta e simples.) Vamos partir de uma base, de um modelo bem simples. Depois você vai vendo o que quer mudar. (Olhando Dora, que está parada, sem ação) Não vai tirar a roupa?
DORA Ah! É.
(Dora tira o vestido que está usando, e os sapatos. Seus gestos são apressados, como se quisesse se ver livre daquilo o mais depressa possível. Lia traz o vestido que retirou do manequim e ajuda-a a vestir-se.
DORA (contorcendo-se dentro do vestido) Ai... ai...
LIA O que foi?
DORA Ai... está me espinhando toda... ai...
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LIA Espere... devem ser os alfinetes.
(Lia, de joelhos, com as mãos sob o vestido, percorre o corpo de Dora, procurando os alfinetes. Sua atitude é profissional, meticulosa, mas há nela algo de extremamente cuidadoso, terno, acariciante.)
DORA Ai...
LIA O que foi?
DORA Hã... os alfinetes...
LIA Espere...
DORA Está...
LIA Está melhor?
DORA Não... na cintura...
LIA Assim?
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DORA Como?
LIA Aqui?
DORA Sim...
(Lia se levanta e começa a trazer várias peças soltas que são montadas sobre o vestido básico: uma sobre-saia ampla e longa, mangas imensas, uma capa esvoaçante, golas, faixas, etc. Vai aplicando-as como camadas sobre camadas, e o vestido cresce, se expande, como um enorme bolo confeitado. Coloca cada peça, observa, ajeita, observa o efeito. Por fim coloca um imenso véu, prende-o e arruma-o na testa com um arranjo de flores brancas. É calma, lenta, meticulosa. Como se pintasse um quadro. Dora, parada, move apenas os olhos. Sua expressão é inquieta, assustada.)
DORA Fale alguma coisa.
LIA (continuando seu trabalho) O quê?
DORA Qualquer coisa. Até o dentista conversa com a gente.
LIA Que comparação...
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DORA Qualquer coisa. Fale. Não sei ficar assim calada.
LIA Há quanto tempo está noiva? DORA Dois anos.
LIA Quantos anos você tem?
DORA Vinte.
(Pausa.)
DORA Sabe, eu nunca tive muita paciência com isso. Compro sempre roupa pronta. Acho chato... escolher o pano, depois o modelo, experimentar...
LIA Eu sei. Comprar pronto é mais fácil.
DORA Também não gosto de ficar de loja em loja escolhendo. Compro sempre na mesma.
LIA (sempre trabalhando) Por que não comprou um vestido de noiva pronto?
DORA
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Imagine! E minha mãe ia querer? Ela é toda exigente. Não sei que milagre ela não ter vindo. Parece que estou vendo ela entrando na loja. “ Nossa! Não tem nada que preste! Que falta de imaginação!” Ela é incrível. E Augusto concorda sempre com ela. Aí eu achei que, afinal, é uma ocasião importante, não custava nada fazer a vontade deles dois.
LIA (soltando o vestido e encarando-a) Custa sim, Dora. Custa tudo. Eles vão escolher tudo. Vão escolher os móveis, as suas roupas, a sua comida, as suas festas, os seus amigos...
DORA Que é isso, Lia? Que história é essa? Você pensa... que eu sou o quê? É só desta vez.
(Pausa. Lia permanece calada.)
DORA Fale!
(Lia permanece calada, continuando o trabalho.)
DORA Ai!
(Lia permanece calada, continuando o trabalho.)
DORA Ai! Tem um alfinete! No forro, eu acho. Tem um!
(Lia mergulha sob o vestido, que a cobre totalmente. Vê-se apenas Dora, parada, no centro de uma enorme nuvem branca, o vestido. Súbito Dora solta um grito e fecha os olhos, pendendo a cabeça para o lado. Tempo. Lia reaparece, emergindo do vestido. Tem o
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mesmo ar calmo e profissional. Percorre todo o vestido com mãos ágeis, firmes, como quem modelasse barro.)
DORA (recobrando-se, perdida, atônita) Você... você não pode fazer isso.
LIA Isso o quê?
DORA Isso... Exigir assim quatro horas! É demais. Você sabe que é demais. Ninguém suporta uma coisa dessa.
LIA Você está cansada? Quer se sentar um pouco?
DORA (quase num grito) Não! LIA Mas se está cansada...
DORA Não! Quero terminar com isso!
LIA Calma, calma, Dora...
DORA Que horas são?
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LIA Seis horas.
DORA (ofegante) Uma hora... uma hora... Ainda falta uma hora.
LIA Ainda temos uma hora.
DORA Temos? Por que “temos”?
LIA Você ainda não se olhou no espelho. Podemos ainda...
DORA Temos! Podemos! Pare de falar assim! Pare com isso de temos, podemos, queremos...
LIA (séria) Eu não disse “queremos”.
DORA Pare! Você é ... (procurando a palavra) prepotente. Você é... horrível.
LIA (larga a bainha, suspende-se do chão, severa)
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Olhe aqui, garotinha. Eu é que vou lhe dizer agora: pare! Estou cheia de seus faniquitos! Você queria um vestido, não queria? Pois eu estou fazendo isso! Se você não sabia o que queria, é problema seu! Eu estou fazendo o meu trabalho!
DORA É que eu estou cansada... de ficar em pé...
LIA (áspera) Então sente-se, ora!
DORA Eu pensei que não pudesse...
LIA (enternecida pelo jeito assustado, frágil, de Dora) Mas pode, Dora. Se você quer, pode. Você quer se sentar?
DORA Não. Eu quero acabar de vez com isso. Lia, tire essa coisa toda de cima de mim, por favor. Estou me sentindo ridícula.
LIA Não, você está linda. E vai estar ainda mais linda no dia do casamento. Vai entrar como uma rainha, no tapete que estenderam para você. Só pra você. E todos vão olhar, e ficar felizes. Sua mãe, Augusto, todos os parentes. Eles vão olhar, e gozar. A mais linda boneca, no mais lindo vestido. E eles vão saber que você é deles. Que aquela linda boneca é deles. Cada um vai olhar, e pensar: “Minha sobrinha”, “minha filha”, “minha mulher”. “Minha”! Todos vão ficar completos. “Minha”, “ ela é minha”.
DORA
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Lia, tire essa coisa toda de cima de mim, por favor.
LIA Ainda preciso acertar a bainha. Está arrastando na frente.
DORA Não! Eu quero que você tire tudo isso de cima de mim!
LIA Você quer?
DORA Sim, eu quero.
LIA (sem nenhuma surpresa, como se cumprisse um ritual) Tudo bem. Não vai demorar. Pra desmanchar, não leva nem a metade do tempo.
(Lia começa a tirar calmamente todas as peças sobrepostas ao vestido, soltando presilhas, colchetes, desembaraçando fitas, desatando nós, desfazendo laços. Quando vai ajudar Dora a tirar o vestido, ela a detém.)
DORA Deixe, eu mesma tiro. (Tira o vestido e joga-o longe.)
(Pausa. Dora, seminua, anda de um lado para outro da sala. Depois percebe o que está fazendo e ri de si mesma.)
DORA Estou me lembrando da pantera. Nunca pensei que eu...
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LIA (estranhando) Pantera?
DORA A pantera negra. Eu acho que tinha dez anos quando fui ao Zoológico, com papai, e fiquei ali, presa, sem poder tirar os olhos da jaula. A pantera negra. Você já viu alguma, alguma vez? É impressionante. Os outros bichos param, dormem, alguns nem ligam mais pras coisas que jogam, ficam parados, meio anestesiados, sei lá. Mas ela, a pantera, não. Ela não pára nunca. É pra lá, pra cá, pra lá, pra cá, dentro da jaula. Chega a dar vertigem na gente. Depois em casa eu fiquei pensando: será que ela não pára? A jaula dela parecia muito menor que a dos outros bichos, mas eu sei que não, que eram iguais. E ela ficava pra lá e pra cá, pra lá...
LIA Não vai se vestir?
DORA Lia... Eu quero te perguntar uma coisa...
LIA Já sei. Você agora vai me perguntar qual o pretexto.
DORA (esboça um gesto de surpresa, mas súbito compreende que não há nada mais para estranhar) É.
LIA O pretexto para desmanchar o casamento. DORA
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É.
LIA Agora é o mais difícil, Dora. Eles estão esperando para ser felizes. E dependem de você. Não vão abrir mão disso assim, à toa.
DORA E já mandaram os convites. Vem parente até de outros estados!
LIA Eu sei. Eu entendo. Não é fácil. Nunca é fácil.
DORA Mas eu não posso. Você tem que me ajudar. Me dê uma idéia.
LIA Não. Isso é com você. E além disso, como você bem lembrou, se você não faz o vestido, eu tenho prejuízo...
DORA Você tem que me ajudar...
LIA Bem... você pode inventar muitos pretextos... use a imaginação.
DORA Não consigo pensar em nada. Principalmente, em nada que convença minha mãe. E se ela não ficar convencida, vai ser um interrogatório sem fim.
LIA Então, diga apenas: não quero mais.
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DORA Você não conhece minha mãe. Como vou enfrentá-la com “não quero mais”, e pronto? Não. É mais fácil casar do que dizer isso a ela.
LIA Você acha mesmo?
DORA (depois de um breve silêncio) Não. Eu nunca mais vou esquecer aquelas fotos.
LIA E aí?
DORA Não sei, mas eu acho que... O difícil é o momento, a decepção... Olhar na cara dela, encarar... me dá uma coisa no estômago só de pensar. Já sei. Eu viajo e escrevo uma carta. Aproveito pra visitar uma amiga em Santa Catarina. Eu sempre quis conhecer Santa Catarina... Depois de uns meses, tudo se acalma, mamãe não vai... Bom, e daí, quem sabe, talvez eu nem volte mais.
LIA Bem, depois você resolve isso. (Olha o relógio de pulso.) São sete horas. Seu noivo deve estar chegando.
(A campainha toca.)
LIA Mas isso é perfeito... Marcado a régua e compasso.
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CENA 3 AUGUSTO (entrando) Pronto, pronto. (Olha o relógio.) Foi tempo bastante para fazer um vestido, desmanchar e fazer outro. Enfim, caprichos...
(As duas simplesmente sorriem.)
AUGUSTO Como é? Gostou do modelo?
DORA Gostei, gostei.
AUGUSTO Não vai me mostrar? DORA Mostrar?!
AUGUSTO É. Não vai me mostrar?
DORA Ah! Querido, você não sabe que dá azar?
AUGUSTO Está bem, está bem. Caprichos... E vamos, que eu tenho que jantar às oito.
DORA Vamos. (Para Lia) Adeus, Lia. E obrigado.
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AUGUSTO É. Obrigado, Lia. Obrigado pelos milhões que vai me cobrar por esse vestido.
LIA (sorrindo) Não tem de quê.
DORA Adeus.
AUGUSTO Não vai logo marcar o dia de voltar pra experimentar o vestido. Eu tenho que pensar em tudo...
LIA Já está tudo certo. Pode deixar.
AUGUSTO É melhor ver o horário, porque eu posso ter compromisso e não poder trazer você.
DORA Ora, Augusto. Eu tomo um táxi.
AUGUSTO Ou então pede pra sua mãe trazer você. (Para Lia) É que Dorinha não sabe dirigir.
DORA Eu tomo um táxi, já disse. Quer ver como eu sei tomar um táxi? (Fazendo gesto de chamar um carro.) “Êi! Táxi! Êi, Táxi!” Aí ele pára, eu entro, pela direita, e digo: rua tal, número tal. Viu como é fácil?
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AUGUSTO (estranhando Dora, e procurando dominá-la) E o medo? Já esqueceu? Você não vai sentir medo?
DORA É claro que eu vou sentir medo. E daí?
AUGUSTO Está certo. Vamos, vamos, que eu já perdi tempo demais com isso. Até logo, Dona Lia.
DORA Adeus, Lia.
(Augusto e Dora vão saindo.)
LIA Esperem!
(Eles se voltam. Lia está com uma máquina fotográfica na mão.)
LIA Só um minuto! Uma lembrança.
AUGUSTO (afável) Claro! Que ótima idéia!
(Augusto abraça Dora, fazendo pose para a foto.)
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LIA N찾o, por favor. S처 ela.
(Augusto afasta-se, meio constrangido. Dora compreende o registro, e assume a pose para a foto. Pela primeira vez, tem uma express찾o segura, confiante. Lia abaixa-se procurando o melhor 창ngulo.)
FIM
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