A CABEÇA II Alcides Nogueira
CENA I
RUBRICA -
Um espaço qualquer. É o escritório do DRAMATURGO. Uma mesa está ali, com um computador. Uma luminária. Há um velho tapete caucasiano. É também uma estação de metrô. Uma praça. Há uma janela que dá para o mundo. Ou o mundo dá para esse espaço. Luz de serviço. O DRAMATURGO olha pela janela. A PERSONAGEM está a um canto, olhando. A RUBRICA está sendo uma rubrica. O DRAMATURGO vem para a sua mesa. Estende as mãos em silêncio. Olha para os seus dedos.
DRAMATURGO - Como se eu fosse tocar um Prelúdio de Scriabin. RUBRICA -
Ouve-se um Prelúdio de Scriabin, que ecoa por todo o espaço, furioso, agitado. A luz cai, ficando apenas focos sobre o DRAMATURGO, que digita; sobre a RUBRICA; e sobre a PERSONAGEM, que se levanta. Cessa o Prelúdio de Scriabin.
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DRAMATURGO - Acabei de chegar do hospital, onde fui visitar um amigo doente. Ele vai morrer dentro de poucas horas. O câncer já tomou conta de tudo. Ele foi tirado da UTI e levado para o quarto. Não vai viver mesmo... A UTI é para aqueles que têm chance e o quase-morto não pode ocupar um leito. Abri a porta do quarto e fiquei parado. Ele me olhou com ódio. Como se eu estivesse tirando a vida dele. Não senti nada. É um amigo muito querido. Um amigo da adolescência. Mas não senti nada quando ele disparou aquele ódio contra mim, como uma bala de revólver. Não nos falamos. O que poderia ser dito? Ele nem tem mais pulmão, mas deixei um maço de cigarros na mesinha ao lado da cama e saí. RUBRICA -
O DRAMATURGO segue para uma estação de metrô. O trem chega, ele consegue um lugar. Cai toda a luz e entra uma projeção na parede dos fundos. Não. Entra uma projeção na RUBRICA.
PROJEÇÃO:
A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO. O DRAMATURGO começa a ler. É uma matéria sobre Guy Debord.
DRAMATURGO - A arte de desmascarar Pensador francês ressurge na cena mundial e é homenageado no Festival de Veneza Se hoje a expressão ''sociedade do espetáculo'' é extensamente utilizada ao se falar sobre o papel da
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mídia nas relações sociais, muitos esquecem que na origem este era o título de um livro de Guy Debord. Muitas vezes certeiro, ocasionalmente furioso, mas sempre um revolucionário das idéias, Guy Debord foi para os jovens franceses que leram ''A Sociedade do Espetáculo'' nos anos 60 uma espécie de ''Marx da era dos
Beatles''.
Ele
revitalizava
o
desejo
da
transformação radical da vida e defendia a utopia de um mundo em que vida e arte, pensamento e ação não fossem separados. Apaixonado pelo poeta maldito Lautréamont, o jovem pequeno-burguês Debord desembarca em Paris no início dos anos 50 para, em pouco tempo, criar o seu próprio grupo: a Internacional Situacionista. Com inúmeros panfletos, grafites, slogans, filmes e histórias em quadrinhos, o grupo denunciava a ''sociedade do espetáculo'' e esteve na vanguarda das lutas de Maio de 68 na França. Depois de seu suicídio em 1994, aos 62 anos, Debord parecia destinado a um progressivo anacronismo ou à antologia da prosa francesa. De repente, ele ressurge na cena mundial por todos os cantos, não apenas como grande escritor, mas como inspiração política, fonte
de
argumentação
crítica
e
uma
das
personalidades mais inquietantes do século 20.
RUBRICA -
Foco sobre o DRAMATURGO digitando furiosamente.
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PERSONAGEM - “Os arabescos formados no ar por esses insetos, traças, notoriamente cegos, circulando em torno de uma luz de vela à noite...”1 DRAMATURGO - Guy Debord citando Sidonius Appolinarius... RUBRICA -
O DRAMATURGO pára de digitar. Sai de sua mesa, agitado.
DRAMATURGO - Eu não sou bom! Por que eu deveria olhar para ele e chorar? Por que eu deveria passar as mãos em sua cabeça
já
sem
os
cabelos
derrubados
pela
quimioterapia? Eu não sou um inseto cego e ele não é uma luz. Esse instante... Esse pequeno instante que me paraliza... Quando eu não sei o que fazer com a vida, com a morte, com nada... Quando eu não me entendo e nem entendo o que existe... Quando eu me reduzo a um fio de metal já tomado pelo azinhavre... Quando eu me percebo a criança que gira e gira e gira, olhando para o céu, e parando subitamente, zonza, sem saber onde está o seu apoio. Eu poderia ter sido um inseto cego, uma traça, e ter ido até ele... Meu amigo era a vela se apagando mas eu poderia ter inventado
a
luz...
somente
naquele
momento...
somente para que eu tocasse sua mão... e, sem palavra alguma, me despedisse dele. RUBRICA -
1
O telefone toca. O DRAMATURGO atende.
Guy Debord citando Sidonius Appolinarius
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DRAMATURGO - Como? Não, você não pode estar falando sério... Como foi isso? Ele não tinha força para nada... PERSONAGEM - Pensei
que
não
iria
conseguir.
Mas
quando
a
enfermeira passou eu vi como ela regulava o oxigênio. Foi difícil, mas estendi o braço e fechei o ar. RUBRICA -
Ouve-se novamente o Prelúdio de Scriabin, muito alto e violento, enquanto a PERSONAGEM se deita sobre o pequeno tapete caucasiano, e o DRAMATURGO se aproxima. A PERSONAGEM está com olhos fechados, e o DRAMATURGO segura suas mãos. Um longo tempo de espera. Cessa a música.
DRAMATURGO - Por que eu te matei? Não era essa a história. PERSONAGEM - Obrigado pelos cigarros. Não fumo há quinze dias. Como é que meu câncer pode sobreviver desse jeito? RUBRICA -
Vou até a PERSONAGEM, entrego a ela um cigarro, acendo. A PERSONAGEM dá uma baforada.
PERSONAGEM - Em que você está pensando? RUBRICA - (A RUBRICA canta uma música). PERSONAGEM - Rubrica!!!! RUBRICA -
A RUBRICA se cala. A RUBRICA … confusa … a RUBRICA se cala.
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PERSONAGEM - Em que você está pensando? DRAMATURGO - Não sei... PERSONAGEM - Mas você é um pensador. Todo dramaturgo é. DRAMATURGO - Toda pessoa é... E eu não dei essa fala a você. PERSONAGEM - Deita aqui e fuma comigo. RUBRICA -
O DRAMATURGO hesita um pouco. Acaba se deitando ao lado da PERSONAGEM. Pega o cigarro dele e dá uma tragada. Ficam lado a lado. Luz cai e entra projeção.
PROJEÇÃO -
DESAFIAR O MUNDO
PERSONAGEM-
Você sempre pensa nisso?
DRAMATURGO - Estou pensando no artigo sobre Debord, que li depois que saí do hospital. PERSONAGEM - Enquanto eu estava morrendo... DRAMATURGO - Por que eu te matei? PERSONAGEM - Quem faz as perguntas e sonega as respostas é você. Sou só o seu porta-voz. Talvez fosse melhor se interrogar... Interrogar o mundo... Aí poderia desafiálo.
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DRAMATURGO - Ou entendê-lo... PERSONAGEM - A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. DRAMATURGO - Pára!!!!! Eu sou uma enxaqueca literária. PERSONAGEM - Eu sonhei... Você sonhou... Tantos sonharam... E, hoje, a sociedade capitalista está em seu mais alto grau de alienação. A relação do homem com a vida, e consigo mesmo, foi transformada num espetáculo de imagens. DRAMATURGO - Não estou mais pensando em Guy Debord! PERSONAGEM - Sua
cabeça
virou
uma
máquina
complexa,
uma
engrenagem perfeita, que produz pensamentos sem que possa escolher. Você quer ser bom. Você quer escrever o monólogo final de Sonia, do “Tio Vania”. Escrever só isso, o tempo todo o tempo todo o tempo todo... Acreditar na generosidade humana e em um tempo melhor. Mas você está seco. RUBRICA -
“Você adora dizer coisas desagradáveis. Eu respeito esse homem, e não admito que falem mal dele na minha presença.”
DRAMATURGO - Tchecov!
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PERSONAGEM - “Pois eu não o respeito nem um pouco. Você quer que eu também o ache genial? Sinto muito, eu não sei mentir, e os livros dele me embrulham o estômago.” DRAMATURGO - A Gaivota! RUBRICA -
“Isso é ciúme. A única coisa que resta à gentinha pretensiosa e sem talento é caluniar os verdadeiros talentos.”
DRAMATURGO - Não me lembro dessas palavras! PERSONAGEM - “Verdadeiros talentos! Pois fique sabendo que eu tenho mais talento que vocês todos juntos. Vocês, os cabotinos, tomaram o poder nas artes, e acham que só vocês têm o direito de viver, e que só o que vocês fazem é válido: tudo o mais vocês tratam de suprimir, de sufocar! Mas eu não reconheço o poder de vocês, nem o seu, nem o dele.” RUBRICA -
“Decadente! Você é incapaz de escrever um simples vaudeville, por mais medíocre que seja. Parasita!”
DRAMATURGO - Só não gargalho porque respeito demais os autores! RUBRICA -
O DRAMATURGO levanta-se rapidamente. Encara a PERSONAGEM com ódio.
PERSONAGEM - Agora quem está expelindo ódio pelos olhos é você.
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DRAMATURGO - E nem preciso de câncer para isso! RUBRICA -
O
DRAMATURGO
PERSONAGEM
volta
continua
para fumando
a
sua
mesa.
calmamente.
A Eu
acendo uma lanterna, porque o black-out encerra a cena. BLACK-OUT!!!! A
RUBRICA
vai
para
seu
esconderijo,
sem
que
ninguém veja, e diz o monólogo final de Sonia, de “Tio Vânia”. DRAMATURGO - “O que se pode fazer? Viver é prciso!” RUBRICA -
“O que se pode fazer? Viver é preciso! E nós viveremos, Tio Vânia, viveremos o longo, longo rio de dias e noites. Suportaremos com paciência os golpes do destino; trabalharemos sem descanso pelos outros, agora e na velhice, e quando chegar a nossa hora morreremos em paz, e lá, além do túmulo, diremos que sofremos, choramos, tivemos muitas tristezas, e Deus então se apiedará de nós, e ambos – voce e eu, querido titio – conheceremos uma vida maravilhosa, cheia de luz, a alegria nos invadirá, e olharemos com um sorriso emocionado nossa infelicidade de agora – e descansaremos. Descansaremos. Ouviremos os anjos e contemplaremos os céus cravejados de diamantes e veremos que toda a maldade terrestre, todos os sofrimentos, mergulharão na misericórdia que encherá o universo, e nossa vida será tão tranquila, terna e doce quanto uma carícia. Eu creio nisso, eu creio . . .
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Pobre, pobre tio Vânia, voce está chorando . . . Você não conheceu a alegria em sua vida, mas espere tio Vânia,
espere
.
.
.
Descansaremos
.
.
.
Descansaremos! Descansaremos!” DRAMATURGO - Descansaremos. Descansaremos. Que peso sinto no coração, pobre criança.
CENA II RUBRICA -
Foco somente sobre o DRAMATURGO olhando por uma janela.
DRAMATURGO - Conheço aquela praça! PERSONAGEM - Paris! Você ficava horas nela, em 68. Eu ficava horas nela, em 68. O mundo era Paris, em 68. Talvez o último momento em que o homem conseguiu pensar a liberdade e só a liberdade, sem nenhum adjetivo. Ou um: a liberdade livre. DRAMATURGO - “Viva a luta dos trabalhadores e dos estudantes!” “Revolução cultural contra uma sociedade de robôs.” “Não à burocracia!” “Em quê você crê, e por quê você crê?” “Agite! Sabote!” “É proibido proibir.” “Eu sou o verdadeiro ladrão do fogo!”
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PERSONAGEM - Somos jovens! Temos vigor, temos impetuosidade! Nossos inimigos são covardes. Não tem vigor, não tem ideais. Nós estamos montados nas asas dos nossos ideais, nas asas do nosso amor. É preciso ter um certo caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançarina.
Queremos
que
o
mundo
tenha
uma
realidade: querer o impossível. RUBRICA -
Cai a luz e entra uma projeção.
PROJEÇÃO:
A IMAGINAÇÃO NO PODER.
PERSONAGEM - Como criador, você poderia pleitear qualquer cargo no governo imaginário. DRAMATURGO - Guardei uma pedra que tirei de uma das barricadas. Uso como peso de papel. PERSONAGEM - Romântico idiota! DRAMATURGO - Você não morreu ainda? PERSONAGEM - De acordo com a RUBRICA … RUBRICA -
O DRAMATURGO reescreveu a cena e a PERSONAGEM não tem mais câncer.
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PERSONAGEM - Um alívio! Todas as suas personagens morrem. Cansei disso... Mas entendo. É a única maneira de você continuar vivo. Um expediente vagabundo que você criou para se safar. DRAMATURGO - Ele destilava a maldade... PERSONAGEM - Eu
me
recuso
a
ser
uma
PERSONAGEM
de
Lautréamont!... Prefiro continuar sendo sua. DRAMATURGO - Morreu com 24 anos... PERSONAGEM - De novo a morte... DRAMATURGO - “Que a minha guerra contra o homem se eternize, já que cada um de nós reconhece no outro sua própria degradação... já que somos ambos inimigos mortais. Quer deva eu conseguir uma vitória desastrosa ou sucumbir, o combate será belo; eu, sozinho contra a humanidade.”2 PERSONAGEM - Devo aplaudir? DRAMATURGO - Você
não
reconhece
em
mim
a
sua
degradação? Cultivo a maldade, como ele. PERSONAGEM - Inventa a maldade. É diferente.
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Lautréamont
própria
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DRAMATURGO - Será? Eu luto sozinho contra a humanidade. PERSONAGEM - Entendi o meu papel. RUBRICA -
A PERSONAGEM vai até outro ponto, de onde, olhando como se fosse a estátua da maldade, fala friamente.
PERSONAGEM - “Se a terra tivesse sido recoberta por piolhos, como pelos grãos de areia à beira-mar, a raça humana seria aniquilada em meio a dores terríveis. Que espetáculo! E eu, com asas de anjo, imóvel nos ares para contemplá-lo!.”3 DRAMATURGO - Somos o resumo desse embate... PERSONAGEM - Não somos. Você pode virar o jogo. Eu não. DRAMATURGO - Eu também não... Penso, logo não existo!... O que eu faria sem você, por exemplo? PERSONAGEM - Não poderia inventar um amigo morrendo. DRAMATURGO - Não saberia o que é a morte. E, não sabendo o que é a morte, não entenderia a vida. Quando um homem adoece, quase todos os seus amigos experimentam um desejo secreto de vê-lo morrer: uns para comprovar que ele tinha uma saúde inferior à deles; outros, na desinteressada esperança de estudar uma agonia.
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Lautréamont
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Existe um vão em minha cabeça, por onde correm rios furiosos. Tento atravessá-los, mas a água sempre me joga para as margens... A certeza de que o cais é de pedra e de saudade. Brumas sebastianistas que me envolvem. Caos feito de lembranças que se apagam. A foto polaroid que perde a cor aos poucos. Resta um contorno. Já não consigo saber como eu era e como serei... A criança cruel que cresceu e destilou seus venenos íntimos. O adolescente enlouquecido que imaginou enfrentar o mundo, sem saber que armas possuía. O homem que não tem mais a bússola... Restou o mapa do medo. Conheço cada um dos riscados... Decorei cada um dos limites desse mapa do mundo que invento. Onde me perco, sem saber mais qual a palavra exata. A palavra é o veneno que tomo diariamente... esperando que o efeito seja devastador. E nunca é! A palavra é a criança que eu desejo ser, e essa criança foge, assustada, como se eu fosse um monstro... Muitas vezes eu sou um monstro... Mas tantas outras eu sou aquele que colhe o trigo para fazer o antigo pão. Minhas lavouras interiores... Não tenho mais arados... Você é o corvo que eu crio, e que dilacera minha colheita... E eu sou o meu próprio espantalho! RUBRICA -
O DRAMATURGO se abate. A PERSONAGEM já sabe o que lhe cabe. A luz cai. Projeção.
PROJEÇÃO:
POTLATCH
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RUBRICA -
“Potlatch, o poder de perder. Ritual de algumas tribos que, em certas datas, destroem seus objetos mais preciosos
nas
fronteiras
de
seus
territórios.
Ao
demonstrar que não têm medo de perder seus bens mais valiosos, demonstram uma coragem capaz de amedrontar
seus
inimigos.
Potlatch,
o
poder
de
perder.”4 Luz muito fraca. O DRAMATURGO volta à sua mesa. Começa a digitar. Lentamente. A PERSONAGEM se senta ao pé dele. DRAMATURGO - Você sabe o que significa? PERSONAGEM - Não. DRAMATURGO - Um presente que não pode ser retribuído. PERSONAGEM - Potlatch. DRAMATURGO - Um presente raro... PERSONAGEM - A minha morte! Você deve sobreviver. DRAMATURGO - Senta aqui! PERSONAGEM - Na sua mesa? Não!!! Isso é impossível.
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Bataille
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DRAMATURGO - Nada é impossível! Não sonhamos todos com isso também? Senta e digita... Você sabe qual é o texto. Não esqueça que tem de escrever também a rubrica. Ou nada acontece... RUBRICA -
A PERSONAGEM senta-se à mesa do DRAMATURGO. Este deita-se sobre o tapete. A PERSONAGEM começa a digitar.
DRAMATURGO - Digita. Eles me tiraram da UTI porque eu estou ocupando o lugar de alguém que ainda pode viver... Entendeu?... Ou preciso pensar por você?... Minha cabeça já não aguenta mais . . . Por que você está parado aí na porta do quarto? Por que não vem até a minha cama, passa a mão em minha cabeça? Por que eu já perdi os cabelos? Perdi os cabelos mas os pensamentos estão todos lá dentro... Talvez enrolados como fios... Torcidos... Nós dados como em um tapete caucasiano... Mas estão lá... E você fica aí, parado... Não, meu olhar não é de ódio! Não entenda assim... Meu olhar é um silêncio. Qual a resposta? Você não sabe?... Então, qual a pergunta?... A vida e a arte... Elas formam o mesmo desenho... O presente que não pode ser retribuído. Estou esperando por ele. Você é o portador. Language is a virus. RUBRICA -
A linguagem é um vírus.
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DRAMATURGO - Algo precisa mudar. E para mudar é preciso arriscar. Ou voce esqueceu? O fato de que alguns espíritos tenham conseguido, em um único ato, algo que não poderíamos sonhar na música, e o fato de que tenham ensaiado aquele concerto durante 10 anos, ensaiado como loucos, de um modo totalmente fanático, e então tenham morrido, esse fato mudou a história de toda a humanidade. PERSONAGEM - De que concerto você está falando? Você não é um compositor. Você é um autor. DRAMATURGO - Mas foi um compositor, o Stockhausen, quem falou isso, logo após o ataque de 11 de setembro ao World Trade Center. Eu não poderia ter feito isso. Nós não somos nada comparados a esse acontecimento. O que aconteceu lá, e agora todos têm de reajustar seus cérebros, é a maior obra de arte que já existiu. PERSONAGEM – Depois disso, Stockhausen foi proibido de tocar na Filarmonica de Berlim e teve que se retratar. DRAMATURGO - Vem! RUBRICA -
A PERSONAGEM sai da mesa. Vai até o DRAMATURGO, que está deitado sobre o tapete. Passa a mão na cabeça dele. Faz um carinho em seu rosto. Tenta fechar seus olhos.
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DRAMATURGO - Não! “Eu quero Luz! Até o final... Luz!” Luz! Luz! 5... PERSONAGEM - Quando tudo estiver acabado, você perceberá que o presente foi uma invenção sua. Como eu sou uma invenção sua e, por isso, não posso mudar as falas, nem os gestos, nem as intenções... Sua cabeça! Sua cabeça é a caldeira que move as palavras... Sua cabeça é uma usina... Você entende o mundo... DRAMATURGO - Algo precisa mudar! “A arte pode, às vezes, ser um crime, especialmente quando as pessoas envolvidas nela não expressam sua concordância.” PERSONAGEM - De novo Stockhausen! DRAMATURGO - Porque eu sei que
“há um salto para fora da
segurança, para fora da auto-evidência, para fora da vida, que às vezes ocorre pouco a pouco na arte.” PERSONAGEM - Como aqui? Como agora? Como entre nós? DRAMATURGO - Caso contrário, a arte não é nada. RUBRICA -
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Goethe
O DRAMATURGO faz uma pausa dolorosa.
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DRAMATURGO - Tire o ar, para que os meus pulmões arrebentem de vez!... Mesmo que o preço seja esse, ALGO PRECISA MUDAR! Ao menos entre nós! Ao menos dentro desta cabeça! RUBRICA -
A PERSONAGEM estende o braço e fecha o oxigênio. Ao som de Scriabin, black-out e FIM.
PROJEÇÃO:
TRANSFORMAR A REALIDADE
São Paulo, setembro/2001 São Paulo, novembro/2003