ÁGORA – DRAMATURGIAS
A CABEÇA ALCIDES NOGUEIRA
A CABEÇA................................................................................................................................................ 2
CENA I
RUBRICA -
Um espaço qualquer. É o escritório do DRAMATURGO. Uma mesa está ali, com um computador. Uma luminária. Há um velho tapete caucasiano. É também uma estação de metrô. Uma praça. Há uma janela que dá para o mundo. Ou o mundo dá para esse espaço. Luz de serviço. O DRAMATURGO olha pela janela. A PERSONAGEM está a um canto, olhando. A RUBRICA está sendo uma rubrica. O DRAMATURGO vem para a sua mesa. Estende as mãos em silêncio. Olha para os seus dedos.
DRAMATURGO - Como se eu fosse tocar um Prelúdio de Scriabin. RUBRICA -
Ouve-se um Prelúdio de Scriabin, que ecoa por todo o espaço, furioso, agitado. A luz cai, ficando apenas focos sobre o DRAMATURGO, que digita; sobre a RUBRICA; e sobre a PERSONAGEM, que se levanta. Cessa o Prelúdio de Scriabin.
DRAMATURGO - Acabei de chegar do hospital, onde fui visitar um amigo doente. Ele vai morrer dentro de poucas horas. O câncer já tomou conta de tudo. Ele foi tirado da UTI e levado para o quarto. Não vai viver mesmo... A UTI é para aqueles que têm chance e o quase-morto não pode ocupar um leito. Abri a porta do quarto e fiquei parado. Ele me olhou com ódio. Como se eu estivesse tirando a vida dele. Não senti nada. É um amigo muito querido. Um amigo da adolescência. Mas não senti nada quando ele disparou aquele ódio contra mim, como uma bala de revólver. Não nos falamos. O que poderia ser dito? Ele nem tem mais pulmão, mas deixei um maço de cigarros na mesinha ao lado da cama e saí. RUBRICA -
O DRAMATURGO segue para uma estação de metrô. O trem chega, ele consegue um lugar e começa a ler. É uma matéria dobre Guy Debord. Cai toda a luz e entra uma projeção na parede dos fundos.
PROJEÇÃO:
A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
RUBRICA -
Foco sobre o DRAMATURGO digitando furiosamente.
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PERSONAGEM -
“Os arabescos formados no ar por esses insetos, traças, notoriamente cegos, circulando em torno de uma luz de vela à noite...”1
DRAMATURGO - Sidonius Appolinarius... RUBRICA -
O DRAMATURGO pára de digitar. Sai de sua mesa, agitado.
DRAMATURGO - Eu não sou bom! Por que eu deveria olhar para ele e chorar? Por que eu deveria passar as mãos em sua cabeça já sem os cabelos derrubados pela quimioterapia? Eu não sou um inseto cego e ele não é uma luz. Esse instante... Esse pequeno instante que me paraliza... Quando eu não sei o que fazer com a vida, com a morte, com nada... Quando eu não me entendo e nem entendo o que existe... Quando eu me reduzo a um fio de metal já tomado pelo azinhavre... Quando eu me percebo a criança que gira e gira e gira, olhando para o céu, e parando subitamente, zonza, sem saber onde está o seu apoio. Eu poderia ter sido um inseto cego, uma traça, e ter ido até ele... Meu amigo era a vela se apagando mas eu poderia ter inventado a luz... somente naquele momento... somente para que eu tocasse sua mão... e, sem palavra alguma, me despedisse dele. RUBRICA -
O telefone toca. O DRAMATURGO atende.
DRAMATURGO - Como? Não, você não pode estar falando sério... Como foi isso? Ele não tinha força para nada... PERSONAGEM -
Pensei que não iria conseguir. Mas quando a enfermeira passou eu vi como ela regulava o oxigênio. Foi difícil, mas estendi o braço e fechei o ar.
RUBRICA -
Ouve-se novamente o Prelúdio de Scriabin, muito alto e violento, enquanto a PERSONAGEM se deita sobre o pequeno tapete caucasiano, e o DRAMATURGO se aproxima. A PERSONAGEM está com olhos fechados, e o DRAMATURGO segura suas mãos. Um longo tempo de espera. Cessa a música.
DRAMATURGO - Por que eu te matei? Não era essa a história.
1
Guy Debord citando Sidonius Appolinarius
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PERSONAGEM -
Obrigado pelos cigarros. Não fumo há quinze dias. Como é que meu câncer pode sobreviver desse jeito?
RUBRICA -
Vou até a PERSONAGEM, entrego a ela um cigarro, acendo. A PERSONAGEM dá uma baforada.
PERSONAGEM -
Em que você está pensando?
RUBRICA -
A RUBRICA diz o que está pensando.
DRAMATURGO/PERSONAGEM – Rubrica!!!! RUBRICA -
A RUBRICA se cala. A RUBRICA, confusa, volta ao PERSONAGEM e acende novamente o seu cigarro. A PERSONAGEM dá uma baforada.
PERSONAGEM -
Em que você está pensando?
DRAMATURGO - Não sei... PERSONAGEM -
Mas você é um pensador. Todo dramaturgo é.
DRAMATURGO - Toda pessoa é... E eu não dei essa fala a você. PERSONAGEM -
Deita aqui e fuma comigo.
RUBRICA -
O DRAMATURGO hesita um pouco. Acaba se deitando ao lado da PERSONAGEM. Pega o cigarro dele e dá uma tragada. Ficam lado a lado. Luz cai e entra projeção.
PROJEÇÃO -
DESAFIAR O MUNDO
PERSONAGEM-
Você sempre pensa nisso?
DRAMATURGO - Estou pensando no artigo sobre Debord, que li depois que saí do hospital. PERSONAGEM -
Enquanto eu estava morrendo...
DRAMATURGO - Por que eu te matei? PERSONAGEM -
Quem faz as perguntas e sonega as respostas é você. Sou só o seu porta-voz. Talvez fosse melhor se interrogar... Interrogar o mundo... Aí poderia desafiá-lo.
DRAMATURGO - Ou entendê-lo...
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PERSONAGEM -
A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça.
DRAMATURGO - Pára!!!!! Eu sou uma enxaqueca literária. PERSONAGEM -
Eu sonhei... Você sonhou... Tantos sonharam... E, hoje, a sociedade capitalista está em seu mais alto grau de alienação. A relação do homem com a vida, e consigo mesmo, foi transformada num espetáculo de imagens.
DRAMATURGO - Não estou pensando mais em Guy Debord! PERSONAGEM -
Sua cabeça virou uma máquina complexa, uma engrenagem perfeita, que produz pensamentos sem que possa escolher. Você quer ser bom. Você quer escrever o monólogo final de Sonia, do “Tio Vanya”. Escrever só isso, o tempo todo o tempo todo o tempo todo... Acreditar na generosidade humana e em um tempo melhor. Mas você está seco.
RUBRICA -
“Você adora dizer coisas desagradáveis. Eu respeito esse homem, e não admito que falem mal dele na minha presença.”
DRAMATURGO - Tchecov! PERSONAGEM -
“Pois eu não o respeito nem um pouco. Você quer que eu também o ache genial? Sinto muito, eu não sei mentir, e os livros dele me embrulham o estômago.”
DRAMATURGO - “A Gaivota”! RUBRICA -
“Isso é ciúme. A única coisa que resta à gentinha pretensiosa e sem talento é caluniar os verdadeiros talentos.”
DRAMATURGO - Não me lembro a cena! PERSONAGEM -
“Verdadeiros talentos! Pois fique sabendo que eu tenho mais talento que vocês todos juntos. Vocês, os cabotinos, tomaram o poder nas artes, e acham que só vocês têm o direito de viver, e que só o que vocês fazem é válido: tudo o mais vocês tratam de suprimir, de sufocar! Mas eu não reconheço o poder de vocês, nem o seu, nem o dele.”
RUBRICA -
“Decadente! Você é incapaz de escrever um simples vaudeville, por mais medíocre que seja. Parasita!”
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DRAMATURGO - Só não gargalho, porque respeito demais os autores! RUBRICA -
O DRAMATURGO levanta-se rapidamente. Encara a PERSONAGEM com ódio.
PERSONAGEM -
Agora quem está expelindo ódio pelos olhos é você.
DRAMATURGO - E nem preciso de câncer para isso! RUBRICA -
O DRAMATURGO volta para a sua mesa. A PERSONAGEM continua fumando calmamente. Eu acendo uma lanterna, porque o black-out encerra a cena. BLACK-OUT!!!!
RUBRICA -
A RUBRICA vai para o canto, sem que ninguém veja, acende sua lanterna como se fosse um holofote, e diz o monólogo final de Sonia, de “Tio Vanya”.
CENA II RUBRICA -
Foco somente sobre o DRAMATURGO olhando por uma janela.
DRAMATURGO - Conheço aquela praça! PERSONAGEM -
Paris! Você ficava horas nela, em 68. Eu ficava horas nela, em 68. O mundo era Paris, em 68. Talvez o último momento em que o homem conseguiu pensar a liberdade e só a liberdade, sem nenhum adjetivo. Ou um: a liberdade livre.
DRAMATURGO - Viva a luta dos trabalhadores e dos estudantes! Somos todos judeus e alemães. Somos todos indesejáveis. Revolução cultural contra uma sociedade de robôs. Não à burocracia! O ponto de não retorno. Em quê você crê, e por quê você crê? Agite! Sabote! Eu sou o Anjo Exterminador! Não às casas populares. O urbanismo é um ato político a serviço do povo. Eu sou o verdadeiro ladrão do fogo! RUBRICA -
Cai a luz e entra uma projeção.
PROJEÇÃO:
A IMAGINAÇÃO NO PODER.
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PERSONAGEM -
Como criador, você poderia pleitear qualquer cargo no governo imaginário.
DRAMATURGO - Guardei uma pedra que tirei de uma das barricadas. Uso como peso de papel. PERSONAGEM -
Romântico idiota!
DRAMATURGO - Você não morreu ainda? PERSONAGEM -
De acordo com a RUBRICA/
RUBRICA -
O DRAMATURGO reescreveu a cena e a PERSONAGEM não tem mais câncer.
PERSONAGEM -
Um alívio! Todas as suas personagens morrem. Cansei disso... Mas entendo. É a única maneira de você continuar vivo. Um expediente vagabundo que você criou para se safar.
DRAMATURGO - Ele destilava a maldade... PERSONAGEM -
Eu me recuso a ser uma PERSONAGEM de Lautréamont!... Prefiro continuar sendo sua.
DRAMATURGO - Morreu com 24 anos... PERSONAGEM -
De novo a morte...
DRAMATURGO - “Que a minha guerra contra o homem se eternize, já que cada um de nós reconhece no outro sua própria degradação... já que somos ambos inimigos mortais. Quer deva eu conseguir uma vitória desastrosa ou sucumbir, o combate será belo; eu, sozinho contra a humanidade.”2 RUBRICA -
A PERSONAGEM encara o DRAMATURGO, ironicamente.
PERSONAGEM -
Devo aplaudir?
DRAMATURGO - Você não reconhece em mim a sua própria degradação? Cultivo a maldade, como ele. PERSONAGEM -
Inventa a maldade. É diferente.
DRAMATURGO - Será? Eu luto sozinho contra a humanidade. 2
Lautréamont
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RUBRICA -
A PERSONAGEM desfaz seu sorriso irônico.
PERSONAGEM -
Entendi o meu papel.
RUBRICA -
A PERSONAGEM vai até outro ponto, de onde, olhando como se fosse a estátua da maldade, fala friamente.
PERSONAGEM -
“Se a terra tivesse sido recoberta por piolhos, como pelos grãos de areia à beira-mar, a raça humana seria aniquilada em meio a dores terríveis. Que espetáculo! E eu, com asas de anjo, imóvel nos ares para contemplá-lo!.”3
DRAMATURGO - Somos o resumo desse embate... PERSONAGEM -
Não somos. Você pode virar o jogo. Eu não.
DRAMATURGO - Eu também não... Penso, logo não existo!... O que eu faria sem você, por exemplo? PERSONAGEM -
Não poderia inventar um amigo morrendo.
DRAMATURGO - Não saberia o que é a morte. E, não sabendo o que é a morte, não entenderia a vida. Existe um vão em minha cabeça, por onde correm rios furiosos. Tento atravessálos, mas a água sempre me joga para as margens... A certeza de que o cais é de pedra e de saudade. Brumas sebastianistas que me envolvem. Caos feito de lembranças que se apagam. A foto polaroid que perde a cor aos poucos. Resta um contorno. Já não consigo saber como eu era e como serei... A criança cruel que cresceu e destilou seus venenos íntimos. O adolescente enlouquecido que imaginou enfrentar o mundo, sem saber que armas possuía. O homem que não tem mais a bússola... Restou o mapa do medo. Conheço cada um dos riscados... Decorei cada um dos limites desse mapa do mundo que invento. Onde me perco, sem saber mais qual a palavra exata. A palavra é o veneno que tomo diariamente... esperando que o efeito seja devastador. E nunca é! A palavra é a criança que eu desejo ser, e essa criança foge, assustada, como se eu fosse um monstro... Muitas vezes eu sou um monstro... Mas tantas outras eu sou aquele que colhe o trigo para fazer o antigo pão. Minhas lavouras interiores... Não tenho mais arados...
3
Lautréamont
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Você é o corvo que eu crio, e que dilacera minha colheita... E eu sou o meu próprio espantalho! RUBRICA -
O DRAMATURGO se abate. A PERSONAGEM já sabe o que lhe cabe. A luz cai. Projeção.
PROJEÇÃO:
POTLATCH
RUBRICA -
“Potlatch, o poder de perder. Ritual de algumas tribos que, em certas datas, destroem seus objetos mais preciosos nas fronteiras de seus territórios. Ao demonstrar que não têm medo de perder seus bens mais valiosos, demonstram uma coragem capaz de amedrontar seus inimigos. Potlatch, o poder de perder.”4 Luz muito fraca. O DRAMATURGO volta à sua mesa. Começa a digitar. Lentamente. A PERSONAGEM se senta ao pé dele.
DRAMATURGO - Você sabe o que significa? PERSONAGEM -
Não.
DRAMATURGO - Um presente que não pode ser retribuído. PERSONAGEM -
Potlatch.
DRAMATURGO - Um presente raro... PERSONAGEM -
A minha morte! Você deve sobreviver.
DRAMATURGO - Senta aqui! PERSONAGEM -
Na sua mesa? Não!!! Isso é impossível.
DRAMATURGO - Nada é impossível! Não sonhamos todos com isso também? Senta e digita... Você sabe qual é o texto. Não esqueça que tem de escrever também a rubrica. Ou nada acontece... RUBRICA -
A PERSONAGEM senta-se à mesa do DRAMATURGO. Este deita-se sobre o tapete. A PERSONAGEM começa a digitar.
PERSONAGEM -
Eles me tiraram da UTI porque eu estou ocupando o lugar de alguém que ainda pode viver... Entendeu?... Ou preciso pensar por você?... Minha cabeça já não aguenta mais...
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Bataille
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DRAMATURGO - Por que você está parado aí na porta do quarto? Por que não vem até a minha cama, passa a mão em minha cabeça? Por que eu já perdi os cabelos? Perdi os cabelos mas os pensamentos estão todos lá dentro... Talvez enrolados como fios... Torcidos... Nós dados como em um tapete caucasiano... Mas estão lá... E você fica aí, parado... Não, meu olhar não é de ódio! Não entenda assim... Meu olhar é um silêncio. Qual a resposta? Você não sabe?... Então, qual a pergunta?... A vida e a arte... Elas formam o mesmo desenho... O presente que não pode ser retribuído. Estou esperando por ele. Você é o portador. Language is a virus. RUBRICA -
A linguagem é um vírus.
DRAMATURGO - Vem! RUBRICA -
A PERSONAGEM sai da mesa. Vai até o DRAMATURGO, que está deitado sobre o tapete. Passa a mão na cabeça dele. Faz um carinho em seu rosto. Tenta fechar seus olhos.
DRAMATURGO - Não! “Eu quero Luz!”5... PERSONAGEM -
Goethe!
DRAMATURGO - Até o final... Luz! PERSONAGEM -
Quando tudo estiver acabado, você perceberá que o presente foi uma invenção sua. Como eu sou uma invenção sua e, por isso, não posso mudar as falas, nem os gestos, nem as intenções... Sua cabeça! Sua cabeça é a caldeira que move as palavras... Sua cabeça é uma usina... Você entende o mundo...
DRAMATURGO - Algo precisa mudar! “A arte pode, às vezes, ser um crime, quando as pessoas envolvidas nela não expressam sua concordância.” PERSONAGEM -
Stockhausen!
RUBRICA -
O DRAMATURGO se inflama, contaminado pelo discurso que toma conta de sua cabeça.
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Goethe
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DRAMATURGO - “Há um salto para fora da segurança, para fora da autoevidência, para fora da vida, que às vezes ocorre pouco a pouco na arte.” PERSONAGEM -
Como aqui? Como agora? Como entre nós?
DRAMATURGO - Caso contrário, a arte não é nada. RUBRICA -
O DRAMATURGO faz uma pausa dolorosa.
DRAMATURGO - Tire o ar, para que os meus pulmões arrebentem de vez!... Mesmo que o preço seja esse, ALGO PRECISA MUDAR! Ao menos entre nós! Ao menos dentro desta cabeça! RUBRICA -
A PERSONAGEM estende o braço e fecha o oxigênio. Ao som de Scriabin, black-out e FIM.
PROJEÇÃO:
TRANSFORMAR A REALIDADE
São Paulo, setembro/2001 São Paulo, novembro/2003