A Ponte e a Água de Piscina

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A PONTE E A ÁGUA DE PISCINA ALCIDES NOGUEIRA


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“Não há guarda-chuva contra o tempo, rio fluindo sob a casa, correnteza carregando os dias, os cabelos.” João Cabral de Melo Neto

Para Gabriel Villela, com todo o meu amor. São Paulo, outono/inverno de 2002


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PERSONAGENS:

NIL PIA SÓROR JUSTINA MARIA DO CANTO

Há uma guerra que ninguém sabe quando começou e, muito menos, quando acabará. Um lugar ermo, onde existe um sanatório praticamente em ruínas. Por ali, não chove. Há uma secura eterna que envolve tudo e a todos. SÓROR JUSTINA mora nesses escombros com sua filha PIA. Fabricam farinha de ossos, a moeda forte nesse lugar esquecido por Deus e pelo Diabo. Perto do sanatório, há uma velha piscina – símbolo irônico dos imaginados dias da chuva - onde NIL constrói uma ponte, em meio ao pó e às carcaças de animais mortos. O espectro de MARIA DO CANTO vaga pelo sanatório, envolto em seus cantares. Cães sem plumas latem, dolentemente, enquanto bombas explodem, e o tempo se arrasta sem sentido algum.


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CENA 1 NO BLACK-OUT, OUVE-SE UMA FORTÍSSIMA RAJADA DE METRALHADORA. DEPOIS, UM TEMPO DE SILÊNCIO. LUZ SOBE LENTAMENTE SOBRE SÓROR JUSTINA QUE, SENTADA DIANTE DE SEU COMPUTADOR, TECLA, ENQUANTO PIA PENTEIA SEUS LONGOS CABELOS VERMELHOS. JUSTINA -

Não vai acabar nunca!

PIA -

Tudo acaba.

JUSTINA -

A guerra não! Começou sei lá quando. Você já nasceu com cheiro de granada, Pia. Vai morrer ouvindo o zumbido das balas que voam como urubus.

PIA -

Quem faz a guerra, mãe?

JUSTINA -

Não me chame de mãe! (T) Sou uma sóror.

PIA -

Sóror Justina, mas minha mãe.

JUSTINA -

Ninguém precisa saber disso.

PIA -

Ninguém aparece por aqui.

JUSTINA -

Nunca se sabe. Somos as únicas que ainda conseguem os ossos para a farinha.

PIA -

Mas eu saio para vender a farinha. Ninguém vem até aqui comprar.

JUSTINA -

Tudo muda, Pia.

PIA -

Para pior. (T) Aqui era mais alegre quando Maria do Canto estava viva. Sua voz tão bonita. Até a senhora gostava.

JUSTINA -

Se fui eu que enfiei o canto na cabeça dela! Também sinto falta. (TECLA NO COMPUTADOR) Vou trazer Maria do Canto de volta.

PIA -

Vai?

JUSTINA -

Para ficar por aí. Cantando. Como se fosse vento suave.


5 SÓROR JUSTINA TECLA. LUZ VAI SUBINDO E REVELANDO MARIA DO CANTO, EM UM PONTO DO SANATÓRIO, CANTANDO BAIXINHO. PIA -

Estou ouvindo.

JUSTINA -

Só vai cantar. Se disser uma palavra, faço sumir de novo.

PIA -

Eu vi a ponte!

JUSTINA -

Que ponte?

PIA -

Que vai passar por cima da piscina velha. (T) Mãe...

JUSTINA -

Sóror Justina!

PIA -

Sóror... Uma ponte estranha. Não entendo. Não existe água na piscina.

JUSTINA -

Se não chove...

PIA -

O rio secou.

JUSTINA -

Tudo secou! (T) Quem está construindo essa ponte?

PIA -

Não sei.

JUSTINA -

Pia! Não se mente para uma sóror. Ainda mais quando a sóror é sua mãe!

PIA -

Eu não sei.

JUSTINA -

Ai!... Não passe esse pente com força, já cansei de dizer... Meus cabelos... Tão lindos... Sedosos... Sempre foram assim... Resistiram ao sol... Ao pó... Claro que a touca de sóror ajuda... Mas eles são fortes...

PIA -

Eu pensei que/

JUSTINA -

Você não pensa. Você pensa que pensa, mas não pensa. Você só sabe o que eu ensino. (T) Conseguiu mais ossos?

PIA -

Achei duas carcaças.

JUSTINA -

Bicho grande?

PIA -

O osso da perna vai dar muita farinha.


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JUSTINA -

Já colocou para torrar?

PIA -

O forno está esquentando.

JUSTINA -

Esse forno tem de estar sempre quente. SEMPRE. (OLHA A TELA DO COMPUTADOR) O que é isto aqui?... A ponte sobre a piscina.

PIA-

Deixa ver, mãe! (T) Sóror...

PIA VAI PARA PERTO DO COMPUTADOR. OBSERVAM A TELA. LUZ SOBE SOBRE NIL, EM OUTRO PONTO DO PALCO, FORA DO SANATÓRIO. NIL -

Nil! Não sei quem me chamou assim primeiro. Nil! Sempre foi meu nome. Eu gosto. Gosto porque nunca tive outro. Acostumei. Como acostumei com a guerra, com a fome, com a seca. Dizem que antes chovia por aqui. Há muito tempo atrás. Antes da guerra. Mas será que existiu alguma coisa ANTES da guerra?

PIA -

É ele!

JUSTINA -

Ele quem?

PIA -

O que está construindo a ponte!

JUSTINA -

Você disse que não sabia quem estava construindo a ponte!

PIA -

Não sabia. Agora eu sei.

JUSTINA -

Pia!

PIA -

Tenho certeza. É ele.

AS DUAS CONTINUAM ESPIANDO NIL, QUE OLHA PARA A FRENTE. NIL -

Sempre sonhei com essa ponte. Passando sobre a piscina velha, vazia, arrebentada pelo sol.

JUSTINA -

(PARA PIA) Para quê uma ponte?

PIA -

Não sei.

NIL -

(PARA A FRENTE) Uma ponte que me leve de um lado para o outro. A ponte que sai de um ponto.


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JUSTINA -

(PARA PIA) Quem é ele?

PIA -

Não sei.

JUSTINA -

Sabe! Você sabe! Vai ver até já se deitou com ele!

PIA -

Mãe!

NIL -

(BERRA) Aqui tem osso?

JUSTINA -

(TAPA A BOCA DE PIA) Quieta!

NIL -

Aqui tem osso? Preciso para construir a ponte.

JUSTINA -

(VINDO) Aqui não tem nada! Nada.

SÓROR JUSTINA VEM DESCENDO, FIRME, EM DIREÇÃO A NIL. PIA, ATRÁS DELA, COM CERTO MEDO. NIL OLHA PARA SÓROR JUSTINA. OS DOIS FICAM DIANTE DE UMA ENORME CRUZ DE MADEIRA VELHA. NIL -

Disseram/

JUSTINA -

Ninguém disse nada.

NIL -

Que aqui/

JUSTINA -

A cruz. Aqui é onde se guarda a cruz. Não depósito de osso.

NIL -

A farinha...

PIA -

Acabou.

JUSTINA -

Pia!

NIL -

De ossos?

JUSTINA -

Farinha de pó. Como tudo que existe por aqui. Tudo é pó.

NIL -

Estou precisado. A ponte/

JUSTINA -

Que ponte?

PIA -

A que vai passar sobre a piscina, mãe! Eu disse.

NIL -

Mãe? É mãe dela?


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JUSTINA -

Ela é uma louca, não está vendo? Mora aqui no sanatório, aos meus cuidados. A loucura dela é achar que sou sua mãe.

NIL -

E não é?

JUSTINA -

Sou uma sóror. Sóror Justina. Sou a doutora-dona do sanatório. (T) Você também é louco?

NIL -

Todo mundo aqui é.

JUSTINA -

Engano. Alguns fingem.

NIL -

A senhora?

JUSTINA -

Sou a doutora-dona. Já disse!

PIA -

Ela era puta antes.

JUSTINA -

Cala a boca, Pia!

NIL -

Pia! Nome bonito como você.

PIA -

Acha?

JUSTINA -

Ele não acha nada. O que quer aqui?

NIL -

(PARA PIA) O meu é Nil.

PIA -

Gosto.

JUSTINA -

Gosta nada.

PIA -

Nil parece/

JUSTINA -

Não parece nada.

NIL -

Parece o quê?

PIA -

Um som.

NIL -

Que som?

PIA -

Um som de novo.

JUSTINA -

Vá fazer o seu serviço, Pia. Vá!... (T) Saia por trás. Já!


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PIA -

Eu vou. Só pegar a sombrinha.

NIL -

Sombrinha?

PIA -

(PEGANDO UMA SOMBRINHA) Minha proteção. (ABRE UMA SOMBRINHA SEM PANO, SÓ COM AS HASTES). Pele muito clara. Tenho medo do sol.

JUSTINA -

Tem medo de tudo. Não sei como nasceu. Vá de uma vez! Os homens estão esperando perto das barracas.

NIL -

Vai fazer o quê lá, perto das barracas?

JUSTINA -

Fora, Pia!

PIA -

Sei que achou a sombrinha esquisita. Tirei o pano porque, quando chover, quero que a água fique caindo em meu rosto, em meu corpo.

JUSTINA -

Não existe chuva. Isso é invenção. Falatório.

PIA -

Quero acreditar que um dia caia a chuva. Vivo assim. Acreditando. Em qualquer coisa. Acreditar na água é bom. (T) Quando eu era menina/

JUSTINA -

Nunca foi menina. Sempre foi louca!

PIA -

Quando era uma menina-louca, queria ser a água da piscina.

NIL -

E eu queria ser uma ponte. Por isso estou construindo.

PIA -

(SAINDO) Quem sabe um dia... (SAI)

PIA SAI, COM SUA SOMBRINHA. SÓROR JUSTINA FICA UM TEMPO OLHANDO NIL E, DEPOIS, VEM PARA ELE, DURA. JUSTINA -

Fala!

NIL -

Já falei! Quero osso! Sei que aqui tem. Só aqui. O único lugar.

JUSTINA -

É?

NIL -

Eu pago.

JUSTINA -

(AGARRANDO NIL) Não! Você é mais um desses ladrões!


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NIL -

Só estou construindo a ponte!

JUSTINA -

Ninguém constrói uma ponte onde não existe água. Onde nunca existiu.

NIL -

Solta!

JUSTINA -

Louco-ladrão. Caso sempre difícil de tratar. Mas eu sei como!

NIL -

Não sou louco!

JUSTINA -

Todos dizem isso.

NIL -

(TENTANDO SE SOLTAR) Sua puta!

JUSTINA -

(ARRASTANDO NIL) Sou a sóror! A doutora-dona!

LUZ VAI CAINDO SOBRE A SÓROR JUSTINA QUE CONDUZ NIL, E SOBE SOBRE PIA, QUE COM SUA SOMBRINHA E UMA CESTA, ESPIA POR UMA FRESTA, DO LADO DE FORA DO SANATÓRIO.


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CENA 2 PIA -

Você é tão lindo! Nil! Nunca tinha visto um homem bonito. Só aqueles da barraca, que compram a farinha. Feios. Todos com cara de fome, de barro batido, de risco na parede... Você, não! Parece um desejo. Parece a flor da planta esturricada, que está para brotar. E não brota nunca. Aqui tudo é nunca! Menos você!... (T) Por que foi provocar a mãe?... Ela é boa. Cuida de mim. Mas ela vira bicho quando aparece alguém aqui. Já roubaram nossos ossos. Muitas vezes. E você olhou para mim. Ela não deixa. E você falou comigo. Pior ainda... (T) Tão lindo!... Você nunca mais vai construir a ponte. Duvido... (T) Mas vai ficar aqui.

LUZ CAI SOBRE PIA, QUE SE AFASTA RAPIDAMENTE. SOBE SOBRE NIL, DEITADO EM UMA CAMA HOSPITALAR, ENQUANTO SÓROR JUSTINA VAI COLOCANDO FIOS EM SUA CABEÇA, E PREPARANDO O APARELHO DE ELETROCHOQUES. JUSTINA -

Aqui, os pacientes não podem conversar.

NIL -

(BERRA) Eu não sou louco!

JUSTINA -

É! Conheço. Sou a doutora-dona.

NIL -

O sanatório está abandonado. As freiras fugiram. Eu sei. Faz tempo. Eu sei. Não agüentaram a guerra. Eu sei. Não agüentaram a fome. Eu sei. Não agüentaram o calor. Eu sei. Dizem que fugiram pra onde chove.

JUSTINA -

Não chove em lugar algum. (T) Eu fiquei! Por isso sou a doutora-dona. E você é o louco!

NIL -

Só vim comprar osso.

JUSTINA -

Aqui não vendemos ossos.

NIL -

Dizem que pegam as carcaças dos bichos. E que também matam gente. Mendigos. Farinha de osso de gente é muito mais cara!

JUSTINA -

Cala a boca! (COLOCA UM PANO NA BOCA DELE) Proteção!

SÓROR JUSTINA APLICA CHOQUES. NIL DEBATE-SE VIOLENTAMENTE.


12 JUSTINA -

Doendo? Acostuma.

NIL CONTINUA A SE DEBATER. SÓROR JUSTINA, CALMA. JUSTINA -

Ela falou a verdade. Eu era uma puta. (T) Cuidado se não vai soltar os fios. Pior para você. Eu ajeito. (AJEITA) Era uma puta de fama. Vinha homem de muito longe para se deitar comigo. O puteiro era uma casa amarela. A guerra acabou com ela. Ficava perto dessa piscina onde você IA construir a ponte.

NIL DEBATE-SE, QUER FALAR QUE VAI CONSTRUIR. JUSTINA -

(MEXENDO NO APARELHO) O choque está fraco. O paciente continua rebelde. (TESTA) Melhor assim! O último que levou um desses morreu, mas você é forte. Jovem. (OLHA COM INTERESSE) Muito jovem.

NIL ESTREBUCHA E PERDE OS SENTIDOS. ELA SE APROXIMA. PEGA UM ESTETOSCÓPIO E AUSCULTA O CORAÇÃO DE NIL. JUSTINA -

Está vivo! Ainda bem. (T) Mas daria uma farinha da melhor qualidade. (COMEÇA A PASSAR A MÃO NO CORPO DELE) Pele quente. Gosto. Dourada. Músculos rijos. (T) Parece o meu homem. Era assim como você. Bonito e forte. Apareceu no puteiro, me viu, me jogou na cama, me enfeitiçou. Durante muito tempo, não me deitei com mais ninguém. Não tinha vontade nem precisava. Todos os homens ficaram frouxos depois dele. (VAI SUBINDO ENQUANTO CONTINUA) Ficava dias na cama comigo. Sabia todos os jeitos de enlouquecer uma mulher. Era como se me virasse do avesso. E eu gozava uma vez atrás da outra. Ele ficava feliz e me fazia gozar mais e mais e mais, até me deixar caída na cama, quase morta. E me lambia inteira. Dizia que era a água me limpando. Água. Água. Pensava na água o tempo todo. Um dia disse que ia desenhar como era a água. (CHEGA NA PARTE SUPERIOR) Fiquei esperando. Ele pegou um papel e ficou olhando para o papel durante muito tempo. Muito tempo. Aí, sorriu e disse que tinha conseguido. Olhei. O papel estava em branco. Perguntei. Respondeu. “A água é assim. Invisível.” Não discuti. Nunca tinha visto a água. (SENTA-SE DIANTE DO COMPUTADOR) Tento achar sua foto em algum lugar. Só aparece o contorno. Não reconheço os traços. (RI) Se você me visse assim. Sóror Justina. A sua puta agora é uma freira. (T) Não tinha como sobreviver depois que a bomba caiu sobre o puteiro. As mulheres fugiram. Duas morreram dentro da piscina. Estavam alucinadas. Acharam que a piscina estava cheia e se jogaram.


13 Ainda vi as cabeças estouradas. Os miolos saindo. Recolheram o sangue e os ossos. Foi quando descobri que uma das putas ganhava muito dinheiro fazendo farinha com ossos. Foi assim. (T) Saí de lá e fui morar com um outro homem nas barracas. Mas voltava toda noite ao puteiro destroçado. Esperava. Você apareceu. Não disse nada. Pegou meu braço com força e me jogou sobre a terra seca. Noite de lua cheia. “Bom para embuchar”, você disse e, com uma fúria que nunca tinha visto antes, quase me arrebentou. Eu estava quase dormindo quando você se levantou. Disse que precisava ir. (T) Meu homem trabalhava com a guerra. Vendia armas para os exércitos. Para todos os exércitos. Antes de ir, chegou bem perto de mim e me deu um beijo. A única vez em que me beijou. Senti a língua dele correndo pelo céu da minha boca, enroscando na minha, percorrendo meus dentes. Sua saliva se misturando com a minha. Chupou longamente meus lábios, que ficaram inchados durante muito tempo, e partiu. Meu homem. (T) O homem das barracas, quando viu meus lábios inchados, bateu muito em mim, e me jogou para fora. Amanhecia. O sol estava mais quente do que nunca. Aqui sempre é o nunca! Eu saí sem saber para onde. Importava? LUZ CAI SOBRE SÓROR JUSTINA, QUE ABAIXA A CABEÇA. MARIA DO CANTO PASSA POR ELA, CANTANDO. LUZ SOBE SOBRE PIA, EM OUTRO PONTO FORA DO SANATÓRIO. PIA -

Era inverno. Nasci já no sanatório. Eu me lembro de tudo. De como fui saindo da barriga dela. Do frio. Ela tirou a touca de sóror e me protegeu. Deu o peito para mim. Mamei muito. Era um leite com gosto de poeira, mas era bom. Ela não dizia nada. Ficava olhando para longe. Esperava alguém. Meu pai? Mas ela sempre me disse que meu pai é Jesus. Que Jesus apareceu uma noite, quando ela dormia, e se deitou ao lado dela. Os dois em um monte de feno. E foi assim que Jesus me fez. Mas, por isso, porque foi um pecado dele, eu sou louca. Jesus, depois que saiu do monte de feno, entregou uma pedra a ela. Quando eu nascesse, ela deveria colocar a pedra dentro da minha cabeça. A pedra da loucura, para que eu nunca soubesse a verdade sobre o meu pai. Mas eu sempre soube. Ela estava me operando. Já era a doutora-dona porque todas as outras freiras tinham ido embora. Quando ela abriu minha cabeça, com uma faca enferrujada, e colocou a pedra aqui dentro, contou toda a história. Disse que eu nunca iria me lembrar de nada. E costurou minha cabeça, com a pedra dentro. Mas eu nunca esqueci. (T) Filha de Jesus!


14 LUZ SOBE SOBRE SÓROR JUSTINA, E CONTINUA EM PIA. JUSTINA -

Pia? Pia? Voltou?

PIA -

Já. Vendi tudo.

JUSTINA -

Pagaram? Eles sempre enganam você.

PIA -

Pagaram. (T) E ele?

JUSTINA -

(ARRUMANDO OS CABELOS) Ele quem?

PIA -

Nil.

JUSTINA -

Olhe!

PIA -

(VENDO) Morreu?

JUSTINA -

Não. Está sonhando.

PIA -

Está?

JUSTINA -

Com a ponte.

PIA -

Está sonhando? (INDO PARA ELE) Está sonhando?

JUSTINA -

Pare! Não chegue perto desse homem!

PIA -

Quero ver o sonho dele!

JUSTINA -

Suba! Agora, Pia! Suba!

PIA -

(SUBINDO) O sonho. Como é?

JUSTINA -

Você não quer ver o sonho dele. Quer se deitar com ele.

PIA -

Mãe!

JUSTINA -

Sóror! Sóror Justina! (T) Quer passar a mão no corpo dele. Sentir o calor de homem. (PUXA PIA) Mas não vai! Penteie meus cabelos. Não suporto quando ficam assim. Parecendo ninho de rato.

PIA -

Já cuidei deles hoje.

JUSTINA -

O pente. Estou mandando!


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PIA -

(INDO BUSCAR O PENTE) Sim, senhora!

JUSTINA -

Ele ficou nervoso.

PIA -

Por quê?

JUSTINA -

E eu sei? (T) Não entendo de homem. Nenhum me tocou até hoje.

PIA -

O meu pai/

JUSTINA -

Seu pai é Jesus. Você foi feita por um raio que ele disparou.

PIA -

Não foi/

JUSTINA -

(CORTA) Abri as pernas e desmaiei. Quando acordei, você já estava nascendo.

PIA -

A senhora me contou outra história. Jesus apareceu. O monte de feno.

JUSTINA -

Inventei.

PIA -

Não inventou.

JUSTINA -

Eu invento tudo. Tudo! Até você. E ele, ali, naquela mesa, entorpecido pelos choques.

PIA CORRE PARA UMA JANELA. ESPIA PARA FORA. JUSTINA -

Venha me pentear! (T) O que você está procurando?

PIA -

Minha estrela! A que brilhava na noite em que nasci.

LUZ SOBE SOBRE NIL, QUE ACORDA E BERRA. MARIA DO CANTO PONTUA O DIÁLOGO ENTRE ELES. NIL -

Antares! Antares! (T) Minha estrela, me tira daqui!

PIA VOLTA-SE. NIL SAI DA CAMA. OS DOIS SE OLHAM. ESPANTADOS. NIL -

Uma estrela brilhante.

PIA -

Mas fria.


16 NIL -

Escorpião!

PIA -

Bicho que entra no círculo de fogo, para não ser morto.

NIL -

Estrela que não se apaga.

PIA -

Feita de espelho.

NIL -

Quando eu nasci fazia muito frio.

JUSTINA -

Você não nasceu! (DESCE APRESSADA) Você apareceu por acaso no mundo! (AGARRA NIL)

MARIA DO CANTO FICA EM SILÊNCIO. PIA REAGE. PIA -

Mãe!

NIL -

Não tenho medo da puta!

PIA -

Não fala assim!

JUSTINA -

(AGARRANDO) Repete!

NIL -

Puta!

JUSTINA -

(LEVANTANDO O BRAÇO PARA BATER) Sou uma sóror. Casada com Jesus.

PIA -

O meu pai!

NIL -

Puta! (SEGURA O BRAÇO DELA E MANDA VER UM BOFETÃO)

PIA -

Nil!

SÓROR JUSTINA CAI, COM A MÃO NO ROSTO. NIL OLHA PARA PIA. NIL -

Precisava!

JUSTINA -

Não olhe para ela, filho do Cão!

NIL -

Vou embora. Alguém mais deve vender osso por aqui!

JUSTINA -

(AGARRA AS PERNAS DELE) Não!

NIL -

Sai da minha frente! Ou esmago você como se fosse uma barata.


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JUSTINA -

(AGARRANDO) Você não vai sair!

NIL CHUTA SÓROR JUSTINA E VAI PARA A SAÍDA. ESTÁ TRANCADA. NIL -

Abra!

PIA -

Eu abro!

JUSTINA -

Fique aí, Pia! (LEVANTA-SE) Não! Você ainda está doente.

NIL -

Doente está você! Louca!

JUSTINA -

Todos somos. Você, eu, Pia. Por isso precisa ficar. Não pode sair. Os loucos não entram nas cidades. Carregam a pedra na cabeça.

PIA -

A minha está aqui!

NIL -

Não acredito nisso!

JUSTINA -

Deveria acreditar! Porque é verdade. (T) E é uma boa verdade. O louco é feliz.

NIL -

Não sou louco!

JUSTINA -

Isso quem decide não é você. (T) O louco tem olhares próprios. O louco sabe mais que as outras pessoas. Conhece o mundo de outra maneira. O louco é aquele que sobrevive. Camaleão entre troncos e folhas!

NIL -

Sai da minha frente!

JUSTINA -

(AFASTA-SE) Se conseguir sair, deixo de ser a doutora-dona! O último que tentou morreu com os choques. Os que apliquei em você são cócegas perto desse da porta. (T) Vai! Gosto de ver uma morte bonita!

PIA -

Não, Nil! Vai morrer mesmo!

NIL -

Não acredito nela!

PIA -

Ela pode tudo!

JUSTINA -

Posso! Posso!


18 NIL -

Contra mim, não!

NIL VAI INDO. PIA DESCE CORRENDO. COLOCA-SE NA FRENTE DELE. PIA -

Se você morrer, meu sonho se apaga. Como fica a água da piscina? Como fica a ponte? Não!

NIL FICA PARADO. SÓROR JUSTINA GARGALHA. BLACK-OUT.


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CENA 3 LUZ SOBRE NIL, SENTADO EM UM CANTO E SÓROR JUSTINA EM SEU COMPUTADOR. POR ALI, HÁ UMA CAIXA AMARRADA COM CIPÓS. NIL -

O que você faz com isso aí?

JUSTINA -

Tudo.

NIL -

Que tudo?

JUSTINA -

Tudo tudo. Vejo o que existe no mundo.

NIL -

O mundo também é aqui. E fora daqui. E é todo lugar.

JUSTINA -

Não. Aqui é só o quintal. Mudo destinos. Navego com o meu poder.

NIL -

Não acredito!

JUSTINA -

Não estou interessada se acredita ou não. Você é um louco!

NIL -

Você está me deixando louco!

JUSTINA -

Eu cuido dos loucos. (COMEÇA A DESCER) Você será bem tratado aqui. Se obedecer o regulamento do sanatório. Sou uma doutora-dona boa. Compreensiva. Já reparou como meus cabelos são sedosos? Antes, eu mesma cuidava deles.

NIL -

Quando era puta? Os homens vinham por causa de seus cabelos vermelhos?

JUSTINA -

Hoje cansei. Pia me penteia. Sempre com muito cuidado.

NIL -

Você trata Pia como se fosse uma escrava.

JUSTINA -

Amo essa menina. Você vai ficar na cela que era da Maria do Canto. Uma paciente que ficou aqui durante muito tempo. Não falava nada. Só cantava o dia inteiro.

LUZ SOBRE MARIA DO CANTO, CANTANDO BAIXINHO. NIL -

O que aconteceu com ela?


20 JUSTINA -

Morreu com uma nota engasgada. Foi uma morte bonita, daquelas que gosto.

MARIA DO CANTO MOSTRA SUA MORTE. E FICA EM SILÊNCIO. NIL -

Fez farinha com os ossos dela?

JUSTINA -

Aqui não se faz farinha de osso! (FICA BEM PRÓXIMA A ELE) Você não vai mais precisar pensar em nada.

NIL -

Eu quero pensar!

JUSTINA -

No quê? Na ponte?

NIL -

Na ponte.

JUSTINA -

Para que essa ponte?

NIL -

A água vai chegar. Pia sabe disso.

JUSTINA -

Pia não sabe de nada! (AFASTA-SE) Como ele. Como o meu homem. Só pensava na água. (VOLTA-SE) A água não existe. Só existe essa baba que sai das plantas, das raízes.

NIL -

Existe sim. A água da chuva!

JUSTINA -

Louco!

NIL -

Eu sei como ela é. (VAI SUBINDO)

JUSTINA -

Onde você vai?

NIL -

Mostrar a água da chuva na sua máquina.

JUSTINA -

(INDO ATRÁS) Não chegue perto do computador!

NIL -

Se você é capaz de ver tudo, então eu acho a água!

JUSTINA -

Não vai tocar nele! (COLOCA-SE NA FRENTE DE NIL) Sai daqui!

NIL -

Não preciso disso aí para dizer como é.

JUSTINA -

Não?

NIL -

(PEGA UM PAPEL) Vou mostrar.


21

NIL FICA OLHANDO PARA A FOLHA DE PAPEL. JUSTINA, ANSIOSA. NIL -

(MOSTRANDO UM PAPEL EM BRANCO) Assim.

JUSTINA -

Não tem nada aí!

NIL -

Porque a água é invisível!

JUSTINA -

(ASSUSTADA) Desce! Desce!

NIL -

Acertei?

JUSTINA -

Desce já! Sai daqui! Vá pra sua cela!

NIL -

(DESCENDO) Ficou com medo.

JUSTINA -

Não tenho medo de nada.

NIL -

Tem medo da água.

JUSTINA -

Desce, Nil!

NIL VAI DESCENDO. VOLTA-SE. NIL -

O que tem nessa caixa?

JUSTINA -

Nada!

NIL -

O que tem nessa caixa?

JUSTINA -

Nada!

NIL -

Nada?

JUSTINA -

Tudo, mas nada que interesse a você!

NIL DESCE. VOLTA PARA SEU CANTO. SÓROR JUSTINA SENTA-SE EM SEU COMPUTADOR, MUITO ASSUSTADA. JUSTINA -

É ele! Meu homem! Achava. Agora tenho certeza. Voltou e perguntou da caixa. Só ele sabe da caixa. (T) Seu cheiro. O mesmo. Sua pele. Igual. O brilho nos olhos. (T) Deve ter ido para algum lugar onde o tempo não existe. Por isso continua forte e bonito. Venceu o tempo. (T) Não me reconheceu. Não


22 ligou para meus cabelos. Adorava passar a mão neles. (PASSA A MÃO) NIL -

(PARA JUSTINA) Cabelos ridículos!

JUSTINA -

(PARA SI) Mas é ele! Eu sei... (NERVOSA, ESCONDE A CAIXA POR ALI)

NIL -

O que está fazendo?

JUSTINA NÃO RESPONDE. DISFARÇA. PIA VEM COM PÃES. PIA -

Fiz pão.

NIL -

Estou com fome.

JUSTINA -

Desperdício!

NIL -

De farinha de osso?

JUSTINA -

Devia ter feito sopa, Pia. De raiz com pedras quebradas.

PIA -

Fiz para o hóspede.

NIL -

(OLHA FIXAMENTE PARA PIA) Pia.

OS DOIS SE OLHAM POR UM TEMPO PONTUADO PELA VOZ DE MARIA DO CANTO. SÓROR JUSTINA QUEBRA. JUSTINA -

Não é hóspede! É louco! E a comida do sanatório é outra. Nada vai mudar aqui.

PIA -

(OLHANDO FIXAMENTE PARA NIL) Já mudou.

JUSTINA -

Ele vai ficar na cela da Maria do Canto.

PIA -

É a única que existe, fora a minha e a sua.

NIL -

A doutora-dona recebe poucos pacientes!

JUSTINA -

Recebo quem eu quero.

NIL -

Achou o que queria aí na sua máquina?

PIA -

O que a senhora está procurando, mãe?


23 JUSTINA -

Sóror! Sóror Justina! (T) Não preciso disto aqui para saber o que já sei.

NIL -

E os ossos, vai me vender?

JUSTINA -

Você ainda não entendeu que nunca mais vai sair daqui? Que não vai construir a ponte sobre a piscina? Ainda mais agora...

NIL -

O quê?

PIA -

Aconteceu mais alguma coisa?

JUSTINA -

Agora que está internado. Vai ficar aqui no sanatório.

PIA -

(BAIXO, PARA NIL) Que bom.

NIL -

(BAIXO, PARA PIA) Não vou ficar.

PIA -

(BAIXO, PARA NIL) Fica!

JUSTINA -

(DESCENDO) Já avisei que os pacientes não conversam aqui no sanatório! (T) Este pão está horroroso.

PIA -

Fiz do mesmo jeito de sempre.

JUSTINA -

Com as mãos. Mas a cabeça devia estar em outro lugar. Onde?

PIA -

Não sei.

JUSTINA -

Vá dormir!

PIA -

Vou arrumar a cela para Nil.

JUSTINA -

Não há nada para se arrumar lá. (T) Vá dormir. Estou mandando!

PIA -

Sua bênção!

JUSTINA -

Seu pai a abençoe. Que Jesus a proteja dos sonhos!

PIA ABAIXA A CABEÇA, CONTRITA. DEPOIS OLHA PARA NIL E SAI. NIL -

Também vou dormir. Onde fica a cela?

JUSTINA -

Fala!


24

NIL -

O quê?

JUSTINA -

Tudo.

NIL -

Não é capaz de descobrir qualquer coisa no seu computador?

JUSTINA -

De onde vem?

NIL -

Você sabe. Da piscina velha.

JUSTINA -

Onde estava antes de aparecer na piscina velha?

NIL -

Em muitos lugares. (TENTA SAIR) Estou com sono.

JUSTINA -

Você nunca têve sono!

NIL -

Não me conhece.

JUSTINA -

Diz que sabe como é a água.

NIL -

Sei.

JUSTINA -

(APROXIMA-SE DELE) Sabe também como é o cheiro dela?

NIL -

Água não tem cheiro!

JUSTINA -

(MUITO PRÓXIMA DELE) Tem. Você sabe que tem. Um cheiro escondido. Misterioso. Como o cheiro dos meus cabelos.

NIL -

Seus cabelos fedem! Têm cheiro de crina de animal morto!

JUSTINA -

(JOGA-SE SOBRE ELE) Por que, agora, é assim?

NIL -

Quem está pensando que eu sou?

JUSTINA -

Eu tenho certeza. (COLADA NELE) Se soubesse como senti falta do seu corpo. Das suas mãos em minha pele. Em meus cabelos. De você entrando em mim. Com força, sem pena, querendo que eu gemesse. Alto. Muito alto.

NIL -

(LUTANDO) Desgruda!

JUSTINA -

Seu beijo! Fundo! A única vez em que bebi água. A água da sua boca. Água da boca de um homem. Grossa, babosa. Sua língua se enroscando na minha. Como duas cobras.


25

NIL -

Nunca beijaria você!

JUSTINA -

Beijou! (T) Vem! Abro as pernas de novo. Como sempre fiz. Como naquela noite. A lua explodindo no céu. Antares em algum lugar. Na noite em que me embuchou da menina. Fazia frio. Muito frio. Mas você me incendiou.

NIL -

(EMPURRA COM TUDO) Louca!

JUSTINA -

Você me conhece por dentro. Meus cabelos. São seus. Sempre foram seus.

NIL VEM ATÉ SÓROR JUSTINA E ARRANCA A PERUCA VERMELHA. NIL -

Não quero nem os piolhos disto aqui!

JUSTINA -

Eles secaram com o sol. Mas eu sabia que você gostava de mim com eles. Sempre vermelhos e penteados. Dei um jeito!

NIL -

Você já está apodrecendo. Logo aparecerá por aqui outra sóror, e fará farinha com seus ossos. Uma farinha avermelhada como seus cabelos falsos. Farinha azeda de loucura! (DERRUBA SÓROR JUSTINA)

SÓROR JUSTINA CAI. NIL AINDA A CHUTA E VAI PARA O INTERIOR DO SANATÓRIO. SÓROR JUSTINA COMEÇA A RASTEJAR. LUZ CAINDO. JUSTINA -

Não! Não é assim! Não pode ser assim! Há uma história. Ainda ouço os latidos dos cães sem plumas no meio da noite. Você queria água. Dei a única que eu tinha. A minha água de dentro. A água do gozo. Não! (VAI RASTEJANDO, PUXANDO A PERUCA COMO UM PANO DE CHÃO) Meus cabelos caíram por causa das lembranças que ficaram na minha cabeça. Nunca parei de pensar em você. Pensamentos que foram queimando a raiz dos fios. E os cabelos, cada vez mais finos, cada vez mais frágeis, despencaram como as areias que deslizam das dunas. Você conhece as dunas. (CHEGA PERTO DA CRUZ) Não minto quando digo que ela é sua filha, Jesus. Porque ele é o meu deus. Não acredito em você, mas acredito nele. (T) O mesmo corpo que o seu. Pernas grossas como a sua. Peito forte.

SÓROR JUSTINA FICA AGARRADA À CRUZ. MARIA DO CANTO PASSA, PONTUANDO COM SUA MÚSICA. LUZ SOBE NA CELA DE PIA. ELA ESTÁ DEITADA. NIL ENTRA.


26

PIA -

Sai daqui! Se ela/

NIL -

Esquece aquela louca!

PIA -

Minha mãe.

NIL -

Vem comigo, Pia! Agora.

PIA -

Para onde?

NIL -

Para a ponte.

PIA -

Não está pronta.

NIL -

Eu termino. Antes que a chuva chegue.

LUZ CONTINUA EM SÓROR JUSTINA, JUNTO À CRUZ. JUSTINA -

Não é você, Jesus. É ele! É ele! Arranco os pregos. Passe suas mãos em meu corpo, Jesus, como se fosse meu homem. Por toda a minha pele. Tiro sua coroa de espinhos. Enfie cada um deles nos meus buracos, como se fosse ele, meu homem. Quero a sua dor, como se fosse a dor dele. E darei a minha. Quero me deitar com você nessa cruz, como se estivesse me deitando com ele, meu homem. Chupar o sangue que sai de suas feridas, como se fosse o sangue dele, meu homem. Lamber o suor da sua testa machucada, como se fosse o suor dele, meu homem. Arrancar esse pedaço de pano. Sua nudez diante de mim. (T) Eu e ele rolando pelo Calvário que invento. Despencando entre os que choram. Eu e ele não choramos. Estaremos gozando. A reza dos homens e das mulheres se confundindo com nossos gemidos. Sua mãe, Madalena, todos os que aparecem nos santinhos e nos quadros, olhando para mim e para ele. (T) Com inveja, Jesus. E nossos corpos grudados, sujos de sangue, terra, esterco dos cavalos dos centuriões, das lascas das cruzes, estarão vibrando. Como corpo algum vibrou antes! (T) Ele voltou para mim. Vou ser mulher de novo. Meu homem! (T) Meu Jesus! Meu Jesus! (T) Nunca mais o gozo solitário.

SÓROR JUSTINA VAI PARA UM CANTO. FICA DE CÓCORAS. A PERUCA NAS MÃOS. CABEÇA BAIXA. MÚSICA DE MARIA DO CANTO. LUZ CONTINUA COM NIL E PIA. PIA -

Termina como? Você não tem mais ossos.


27

NIL -

Você pode arrumar.

PIA -

E ela?

NIL -

Ela vai continuar aqui. Até que apareça outro, para ela continuar sendo a doutora-dona. E nós iremos pelo mundo.

PIA -

O mundo é só aqui.

NIL -

O mundo é uma largueza. Vou levar você até o mar.

PIA -

O mar não existe.

NIL -

É imenso.

PIA -

Vi no computador. Mas ela disse que era uma mentira.

NIL -

Não tem fim.

PIA -

Como a guerra?

NIL -

Como a guerra. Mas, ao invés de bombas, há ondas e espumas.

PIA -

Por que você precisa da ponte? A piscina pode virar mar.

NIL -

Só se chovesse.

SÓROR JUSTINA COMEÇA A SUBIR, PUXANDO A PERUCA. JUSTINA -

A vontade da chuva. Sei porque disso. Para lavar a solidão. A água purificada caindo caindo caindo. Mas não irá chover nunca. (T) Solidão. Arame farpado enferrujado. Coração empoeirado. Casa sem teto. (CHEGA NO COMPUTADOR, TECLA) Continuaremos morando no pó. Continuaremos com as carcaças, com os ossos, com o barro fendido. (AGITA-SE) Ele está querendo Pia. A louca vai perceber, se é que já não percebeu. (TECLA DE NOVO) Entendi! É isso. Ele me repudia porque pensa que ela sou eu. Como domou o tempo, acha que continuo como antes. Como Pia é agora. Ele me quer querendo Pia! (TECLA NERVOSA) Como mudo isso? Como? (CONTINUA TECLANDO)

LUZ CAI SOBRE SÓROR JUSTINA.


28

CENA 4 LUZ CONTINIA SOBRE PIA E NIL NA CELA. NIL -

Quero você!

PIA -

Eu também! Soube disso quando entrou aqui.

NIL -

Você com aquela sombrinha sem pano.

PIA -

Vergonha!

NIL -

Fica linda. A equilibrista sem arame. (T) Vem! Agora!

PIA -

Precisa terminar a ponte antes!

NIL -

Como?

PIA -

Eu arrumo os ossos. E esperamos a chuva! (T) A chuva que eu sempre quis.

NIL -

Eu também. Desde que nasci.

PIA -

Antares olhando por nós.

NIL -

Como olha agora! (PUXA PIA) O cheiro dos seus cabelos.

PIA -

Eles têm cheiro? Como os da minha mãe?

NIL -

Não! Os seus são como flores que nunca conhecemos. Jacintos e saudades. Rosas e frésias. Acácias. Jasmins misteriosos. Damas que se abrem para a noite.

PIA -

Tudo isso existe, Nil?

NIL -

É o que nos espera, Pia!

PIA -

A pedra na minha cabeça. A pedra da loucura.

NIL -

Dizem que a chuva derrete essa pedra. Acaba com a loucura.

PIA -

Não tenho medo. Sempre fui assim. Só tenho pena dela. Foi a única coisa que minha mãe me deu.


29 NIL -

(AFAGANDO) A água cai sobre seu rosto. Você sorri. Linda. Como se olhasse o mundo pela primeira vez. Pego suas mãos. Digo para não ter medo. E subimos na ponte que vou terminar.

PIA -

A piscina vai encher?

NIL -

Como se fosse um mar! O nosso mar.

NIL COMEÇA A BEIJAR PIA. MÚSICA DE MARIA DO CANTO PONTUANDO. PIA QUEBRA. PIA -

Aqui não! Ela vê! (T) Vem!

PIA CONDUZ NIL. LUZ CAI. MARIA DO CANTO AUMENTA A VOZ. CHEGAM A UM LOCAL DO SANATÓRIO, ONDE HÁ OSSOS PENDURADOS, E VÁRIOS BAUZINHOS DE COURO. NIL -

O que é aqui?

PIA -

A cela dos anjos. Ela disse isso.

NIL -

(OLHANDO) Achava que era história inventada.

PIA -

O quê?

NIL -

Aconteceu muita coisa aqui. Quando ainda era um convento. (T) Crianças que não nasceram. Muitas. Freira não podia ter filho.

PIA -

Eu não sei de nada disso.

NIL -

(INDO PARA OS BAUZINHOS) Estes baús pequenos.

PIA -

Não toque neles, Nil. Não pode! Tudo sagrado.

NIL -

Tudo escondido. Tudo mentido. Ninguém podia saber. Nem a terra podia saber. Por isso as freiras colocaram os abortos aí. O olho do mundo não poderia ver. O olho de ninguém. (T) Quantos?

PIA -

Não sei. Ela nunca me deixou abrir.

NIL -

Cemitério dos pequenos.

PIA -

Não!


30 NIL -

Cemitério dos que não puderam ser.

PIA -

Você está inventando!

NIL -

Cemitério dos arrancados!

PIA -

Ela sempre me disse que aí estão as relíquias. Escapulários. Lembranças sagradas.

NIL -

Viraram só isso. Lembranças. (T) Muitos homens passavam aqui por perto. Quase todos fugindo da guerra.

PIA -

Que nunca acaba. Que sempre existiu.

NIL -

Homens quase mortos. As freiras recolhiam. Cuidavam deles. Os homens ficavam fortes de novo. (T) De noite, elas ficavam nas celas, ardendo de desejo. Espremiam raízes na testa, para essa febre do corpo passar. Mas não passava. Então, saíam escondidas. Iam atrás dos homens. Em silêncio, elas se deitavam ao lado dos machos. (T) Abriam as pernas e gemiam só por dentro. Sem que nenhum som escapasse. Gozavam como se uma granada estivesse arrebentando. Estilhaços por todo lado. (T) E depois voltavam para as celas. Mudas. Cabeças baixas. Mas com os corpos saciados. Plenas.

PIA -

Como você sabe?

NIL -

Porque sei. Passavam dias ajoelhadas. Agora conheciam homem. (T) Muitos deixavam a semente dentro delas. Embuchavam as freiras. A Superiora trancava as barrigudas aqui. De madrugada, quando o sol começava a aparecer, ela vinha com os ferros. As freiras não gritavam. Não podiam. Sentiam os ferros entrando e não se mexiam. Não podiam. O filho do homem ia sendo arrancado e elas não soltavam um gemido. Não podiam. Muitas morriam. Eram levadas daqui e enterradas longe. Para que ninguém soubesse. (T) A Superiora colocava os abortos nos bauzinhos. (T) Ela não mentiu para você, Pia. São relíquias. Da vontade da carne.

PIA -

Desde que vi você, comecei a sentir essa vontade.

NIL -

(INDO PARA PIA) Como eu. A vontade do tudo.

PIA -

Mas se eu/

NIL -

Embuchar?


31

PIA -

Não quero que ela me traga para cá. Que me enfie os ferros e arranque de dentro de mim/

NIL -

Não está no seu tempo. (ACARICIANDO) Você está comigo. Agora e para todo o sempre.

PIA -

Minha mão. Treme.

NIL -

Meu corpo também treme. Inteiro. Por você.

PIA -

Esses restos de gente.

NIL -

Você mesma disse. Lembranças.

PIA -

Vamos sair daqui, Nil.

NIL -

Apenas lembranças. Que nem são nossas.

PIA -

Nós não temos lembranças.

NIL -

(ABRAÇA PIA) Estão começando a nascer agora.

PIA -

Também vão ser jogadas dentro de um baú. Abortadas.

NIL -

Não! Estarão soltas pelo mundo. (T) Lembranças de sua pele na minha. Lembranças de meu corpo conhecendo todo o seu. (T) Vem.

PIA -

O homem.

NIL -

Seu. (T) A mulher.

PIA -

Sua! Sua! Sua!

ELES SE ABRAÇAM. EM OUTRO PONTO, MARIA DO CANTO CANTA. ELES COMEÇAM A SE AMAR. NIL ESBARRA NOS BAÚS. ELES SE ABREM. CAEM OSSINHOS. MUITOS, MUITOS OSSINHOS. PIA -

Nil!

NIL -

(RINDO, RODOPIANDO COM PIA) Ressurreição dos corpos. Dos pequenos corpos! A vontade que escapa. As freiras que nos dão o melhor presente! A vergonha que não se esconde mais! (T) A vida, Pia! (T) A vida!


32 NIL DEITA PIA SOBRE OS OSSINHOS. OS DOIS COMEÇAM A SE AMAR COM MUITA PAIXÃO. A VOZ DE MARIA DO CANTO AUMENTANDO. LUZ CAINDO SOBRE OS DOIS. LUZ SOBE SOBRE SÓROR JUSTINA, NO COMPUTADOR, MUITO AGITADA. JUSTINA -

Ele será meu! Nem que, para isso, eu tenha de mentir, matar, esquartejar, roubar. Ser excomungada, como já devo ter sido! Ele será meu, como são minhas as bombas que caem, e os homens e mulheres que morrem, e as carcaças que enfeitam a terra seca. Meu!

LUZ VAI CAINDO SOBRE ELA. SOBE SOBRE PIA E NIL, DEITADOS SOBRE OS OSSINHOS. PIA -

Meu!

NIL -

Não existe mais distância entre nós!

PIA -

Não!

NIL -

Chamam isso de amor. Não chamo de nada. São fogueiras de dentro. Farinha de estrela colada na pele. Tudo brilha.

PIA -

Até quando?

NIL -

Mesmo que tudo morra, por todos os séculos. (LEVANTA-SE) Também posso inventar. Como ela faz. (PEGA ALGUNS SACOS DE COURO QUE ESTÃO POR ALI).

PIA -

Para guardar os ossos da farinha.

NIL -

Agora, guardam histórias que ouvi. As pedras me contavam, quando deitava para dormir, e o sono custava a chegar. Elas me falavam do fogo que não se apaga.

PIA -

(VEM PARA ELE) Histórias?

NIL -

(ABRAÇA PIA) Como a nossa. Estamos vivendo o que outras gentes viveram. Eterna repetição de quem não têve medo. (T) O que se aprende com as pedras não se esquece mais!

OS DOIS FICAM ABRAÇADOS. LUZ CAINDO. SOBE SOBRE SÓROR JUSTINA, FURIOSA EM SEU COMPUTADOR. JUSTINA -

(ESPIANDO A TELA DO COMPUTADOR) Chega! (T) Eu não devia ter botado essa cria no mundo! (T) Você está certo, meu


33 homem: as histórias, as grandes histórias, as infinitas histórias de amor, se repetem. Mas a minha ninguém rouba! Muito menos ela. Não será uma Isolda. Uma Heloísa. Uma Julieta. Porque você é Tristão, Abelardo e Romeu só para mim! (T) Querem as tragédias que engrandecem o amor? Terão! (T) Pela cibernética maligna! (T) Com a linguagem virótica que invento! (T) Esta! SÓROR JUSTINA TECLA FURIOSAMENTE. BOMBAS E RAJADAS DE METRALHADORAS SE MISTURAM À VOZ DE MARIA DO CANTO. LUZES TREMEM. NIL E PIA, ALUCINADOS, EMBARALHAM FRASES DE “ROMEU E JULIETA”, “ABELARDO E HELOÍSA”, “TRISTÃO E ISOLDA”, TOMADOS POR UMA LOUCURA FURIOSA. CAEM EXAUSTOS NO CHÃO, MAL SE CONTENDO, ENQUANTO SÓROR JUSTINA, DO ALTO DE SEU PODER, SENTENCIA, FIRMÍSSIMA: JUSTINA -

Esperavam algo da minha bondade?

BLACK-OUT.


34

CENA 5 LUZ SOBRE PIA, QUE BATE UMA PELE DE BICHO PENDURADA NUM ARAME. TEMPO. SÓROR JUSTINA SURGE. FICA OLHANDO. JUSTINA -

Não me lembrava mais dessa pele.

PIA -

Estava na cela da Maria do Canto. Ela usava para se cobrir quando fazia muito frio.

JUSTINA -

Você foi até a cela?

PIA -

Passei.

JUSTINA -

Eu disse para não ir.

PIA -

Ele é bom!

JUSTINA -

Não é!

PIA -

A senhora implicou.

JUSTINA -

Conheço os homens. E, mais ainda, os loucos. (T) Onde está ele?

PIA -

Dormindo.

JUSTINA -

Como sabe?

PIA -

Fui levar o pão e o suco de raiz e vi.

JUSTINA -

Venha cá, Pia. Vamos nos sentar ali, onde bate menos sol. Está muito quente hoje.

PIA -

Quer minha sombrinha? Posso pegar?

JUSTINA -

Quero. Mas volte logo!

PIA VAI PARA DENTRO. SÓROR JUSTINA VAI PARA A PELE DO ANIMAL. JUSTINA -

Pele boa. Agora me lembro. Do cavalo do homem das barracas. (OLHA EM VOLTA) Pia nem imagina que matei aquele homem, quando veio me procurar. Soube que eu estava aqui e queria se deitar comigo. Deu boa farinha. E o cavalo também. (ALISA A PELE) Gostava de cavalgar naquele


35 baio. Mais do que quando o homem cavalgava em mim. Tenho nojo só de lembrar. (T) Só quero me lembrar dele, que agora está aqui. (T) Se Pia soubesse que ele pensa que ela sou eu. LUZ SOBE SOBRE PIA ENTREGANDO UM SACO DE OSSOS PARA NIL. PIA -

Vai logo. Disse que vinha buscar a sombrinha.

NIL -

Você conseguiu bastante osso.

PIA -

Vai! Ela pensa que você está dormindo.

NIL -

(BEIJANDO PIA) Logo iremos os dois!

JUSTINA -

(BERRANDO DE FORA) Pia! A sombrinha!

NIL SAI APRESSADO, COM O SACO DE OSSOS. PIA PEGA A SOMBRINHA SÓ DE HASTES E VOLTA PARA PERTO DE SÓROR JUSTINA. JUSTINA -

Estava fabricando a sombrinha?

PIA -

Não achava.

JUSTINA -

E Nil?

PIA -

Acho que continua dormindo. Não sei.

JUSTINA -

Ali está mais fresco.

AS DUAS SENTAM-SE. SÓROR JUSTINA ABRE A SOMBRINHA. JUSTINA -

É arejada! Dá para sentir o vento no rosto.

PIA -

Por isso arranquei o pano.

JUSTINA -

Pia!

PIA -

Mãe!

JUSTINA -

Hoje pode me chamar de mãe. Prefiro. É conversa de mulher.

PIA -

A última conversa assim foi quando tive as primeiras regras. Pensei que ia morrer. Aquele sangue todo saindo de dentro de mim.


36 JUSTINA -

Estava virando mulher. Eu me lembro tão bem. Senti pena de você.

PIA -

Não disse isso. Disse que era assim mesmo.

JUSTINA -

E é assim mesmo. Mas senti pena.

PIA -

Se não é conversa sobre regras, o que é?

JUSTINA -

De certa forma, é sobre regras de novo. Regras do coração. O seu está sangrando, Pia.

PIA -

Está?

JUSTINA -

Você é uma louca-fingidora.

PIA -

Não sei do que está falando/

JUSTINA -

Sabe! Ele quer você como mulher!

PIA -

Mãe/

JUSTINA -

Agora, me chame de sóror! (T) Sou a doutora-dona. (T) Vi nos olhos dele! Desejo que mal se contém! (T) É difícil falar o que preciso.

PIA -

Não fale!

JUSTINA -

Você é minha filha! (T) E ele também! Nil é seu irmão, Pia. Vocês não podem se deitar.

PIA -

(BERRA, HORRORIZADA) Mentira!

JUSTINA -

Eu não minto! (T) Invento, mas não minto!

PIA -

Está inventando agora! A senhora só têve uma filha.

JUSTINA -

Naquela noite, quando Jesus apareceu e mandou que eu abrisse as pernas/

PIA -

(NERVOSA) Eu sei essa parte!

JUSTINA -

Não sabe tudo. O raio veio com duas sementes. Uma saindo de cada bola do saco dele. As duas sementes entraram em mim. Você nasceu antes. Logo depois, Nil.


37 PIA -

Mãe!

JUSTINA -

Devia ter contado faz tempo. Mas achava que ele tinha morrido. Não queria que você sofresse.

PIA -

Não acredito!

JUSTINA -

Acredite! (T) Depois que você nasceu, eu saí andando. Você no colo. Já morava aqui no sanatório.

PIA -

Eu sei. Fazia muito frio. Tirou sua touca de sóror para me proteger.

JUSTINA -

Você estava roxinha. Ele também. Você dormiu durante todo o tempo que caminhei.

PIA -

Só me lembro da senhora me aquecendo com a touca.

JUSTINA -

Você não se lembra disso. Eu contei tantas vezes, que você passou a achar que se lembrava. (T) Chegamos perto de uma jaqueira velha, que, naquele tempo ainda estava em pé. Depois desabou. Ali havia uma terra preta. Olhei para o meu menino e ele tremia. A terra era quente. Deitei você, coberta pela touca, e fiz um buraco. Enterrei o menino, só com a cabecinha para fora, para que a terra o esquentasse. (T) Começaram as bombas. Fiquei apavorada. E havia tiros também. Granadas. Peguei você e saí correndo. Corri muito muito muito muito. Até conseguir voltar para cá. (T) Até hoje me pergunto porque Jesus me levou tão longe para disparar o raio em mim?

PIA -

E ele?

JUSTINA -

Deixei você aqui e voltei para buscá-lo. Não estava mais lá. Alguém deve ter passado e levado o menino. (T) Farinha de osso de criança é a melhor que existe. Nem tem preço!

PIA -

(CHORANDO) Não fale assim!

JUSTINA -

Também chorei muito. Você sugava meu peito e eu chorava. (T) Mas ele voltou! Está de novo conosco!

PIA -

Não pode ser.

JUSTINA -

Não ficou feliz? Seu irmão, Pia. O irmão que eu pensava que tinha morrido.


38 PIA -

Ele já sabe?

JUSTINA -

Não. Se eu contar agora, não vai acreditar.

PIA -

Não! Não! (T) Não contou porque é mentira!

JUSTINA -

Ele pode ter muita mágoa. O coração de Nil pode estar machucado até hoje, por ter sido abandonado pela mãe debaixo de uma jaqueira! (T) Quem sabe um dia. Quando ele pegar amor por mim. Aí vai entender. Vai desculpar. (AFAGA PIA) Por isso, Pia, nunca deixe que ele toque em você. Mais do que tocar. Você sabe do que estou falando! (T) Seu pai, Jesus, nunca perdoaria. Incesto! Pecado tão grande que nem cabe na consciência!

PIA -

Não pode ser!

JUSTINA -

Mas é!

PIA -

(CHORA) Eu/

JUSTINA -

Não precisa dizer nada, Pia.

PIA -

Não posso acreditar nisso.

JUSTINA -

Não tem escolha, filha! (T) Se quiser continuar fechando os olhos, a pedra da sua cabeça vai crescer mais ainda!

PIA -

A senhora inventou isso! Inventa tudo!

JUSTINA -

Queria ter me inventado. Ter inventado você. Ele. Este lugar. O que aconteceu entre dois irmãos. (T) Para desinventar tudo! Para sempre!

PIA -

(BERRA) Desinvente!

JUSTINA -

Não tem como. Eu existo. Você existe. O sanatório existe. Seu irmão existe. E a guerra não acaba nunca! (T) Vou jogar paciência no computador! (SAINDO) Se quer ser queimada no inferno, deite no feno com ele. Seja mulher dele. Será escrava do Cão! E seu pai, Jesus, não levantará um dedo para salvá-la, Pia.

SÓROR JUSTINA VAI PARA SEU COMPUTADOR. COMEÇA A JOGAR PACIÊNCIA. PIA CHORA CADA VEZ MAIS, ENROLANDO-SE NO COURO DE BICHO.


39

PIA -

(CHORANDO) Era uma lindeza. Não é mais! (T) Foram eles. Os abortos nos amaldiçoaram. As freiras. Os homens que se deitaram com elas. Por isso os filhos arrancados caíram sobre nós. Sobre os dois irmãos que se grudaram como bichos! (CHORA MUITO)

LUZ VAI CAINDO E SOBE EM OUTRO PONTO, ONDE NIL SURGE. NIL -

(BAIXO) Pia!... (PROCURA) Pia!... Falta pouco agora, Pia! Quero te contar... (PROCURA) Pia...

JUSTINA -

(FALA DO COMPUTADOR) Ela está lá fora! (T) Mas você não vai atrás dela!

NIL -

Vou!

JUSTINA -

(DESCENDO) Não vai arrebentar a vida da minha filha!

NIL -

Faz muito bem em morar em um sanatório! Louca como é!

JUSTINA -

(CHEGANDO) Será?

NIL -

O que você quer?

JUSTINA -

Venha!

NIL -

Para onde?

JUSTINA -

Sua cela.

NIL -

Acabei de sair de lá.

JUSTINA -

Acabou de chegar da ponte. Levou um saco de ossos que a idiota deu para você. Que roubou de mim! (PUXA NIL) Venha! Quero conversar, e não aqui.

NIL -

Não tenho nada para conversar.

JUSTINA AGARRA NIL COM FORÇA E O CONDUZ ATÉ A CELA DELE. LUZ CAI SOBRE PIA, QUE, AINDA CHORANDO, ESTÁ ENROLADA NO COURO. JUSTINA E NIL ENTRAM NA CELA DELE. JUSTINA -

(ENTRANDO COM NIL) E a ponte?

NIL -

Não sei da ponte.


40

JUSTINA -

Com os ossos que ela roubou, você deve ter trabalhado bastante. (T) Está pronta, ou quase?

NIL -

Sua filha não tem nada a ver com isso.

JUSTINA -

Ela confessou!

NIL -

Você obrigou?

JUSTINA -

Além de filha, Pia é minha paciente.

NIL -

Levou muito choque?

JUSTINA -

Só um. E nem foi na cama. Nem precisou de pano na boca. E olha que foi um choque muito forte!

NIL -

O que você fez?

JUSTINA -

Uma boa conversa, às vezes, resolve muita coisa!

NIL -

Onde ela está?

JUSTINA -

Não saia daqui!

NIL -

Quero saber como foi essa conversa!

JUSTINA -

(VEM PARA ELE) Fique aqui. Na sua cela. Você está doente!

NIL -

Sai da minha frente!

NIL TENTA SAIR. SÓROR JUSTINA DÁ UM CHUTE NO SACO DELE. JUSTINA -

Você precisa se acalmar! (VAI PARA ELE, QUE SE RETORCE EM DOR)

NIL -

Não toque em mim!

JUSTINA -

(TIRA UMA SERINGA DO BOLSO) Vai dormir bastante. Sonhar com sua ponte. Com a água da piscina. Vai sonhar com a chuva. Com o fim da guerra. Vai sonhar comigo!

NIL -

Não!


41 JUSTINA -

(AGARRANDO FIRME) Estarei com você no sonho. Nós dois no monte de feno. Meu Jesus amado! (APLICA) Os céus estão se abrindo para você.

NIL AINDA TENTA SE SAFAR. ESTÁ ZONZO. SÓROR JUSTINA O AMPARA. JUSTINA -

Assim. Em meus braços.

NIL -

Você vai me matar!

JUSTINA -

Não! Você vai dormir e eu vou entrar em seu sonho. Só isso!

NIL -

Não deixo!

JUSTINA -

(SOLTANDO NIL, QUE DESABA) Não pode impedir.

NIL PERDE OS SENTIDOS. SÓROR JUSTINA OLHA FIRME PARA ELE. JUSTINA -

Quando você acordar, meu homem, tudo será diferente!

LUZ VAI CAINDO NA CELA E SOBE SOBRE PIA, AINDA COM O COURO. PIA -

Nil! Nil! Você voltou! Um pesadelo, Nil!... (LEVANTA-SE) Nil!... Ouvi sua voz... (T) Nós dois não podemos, Nil... Eu estou suja! Muito suja! Você me deixou assim! Meu pai não vai me querer mais. Nil! Era pecado. O pecado mais imundo. Sou uma porca, Nil. Você também. Nós dois somos bichos, Nil. Vamos apodrecer. Duas carcaças. E nem vão fazer farinha, porque seremos carcaças envenenadas... (VÊ SÓROR JUSTINA QUE ENTRA) Mãe!

JUSTINA -

(ABRINDO OS BRAÇOS) Filha!

PIA -

(ABRAÇANDO) Ele voltou, mãe?

JUSTINA -

Voltou de onde, Pia? Ele está dormindo. Você mesma me disse isso.

PIA -

É... Disse...

JUSTINA -

Passei pela porta da cela. Forcei um pouco. Ele está lá dentro, dormindo. (T) Como deve ter dormido, na noite em que ficou enterrado debaixo da jaqueira.

PIA -

Se houvesse água para me limpar agora.


42 JUSTINA -

Não existe água. E nem precisaria existir, filha! Só você saber que jamais/

PIA -

Nunca! Nunca!

JUSTINA -

Chore nos braços de sua mãe. Quer a touca para protegê-la?

PIA -

(CHORANDO) Quero morrer!

JUSTINA -

E deixar sua mãe aqui, sozinha? Não. Você é boa. Você tem o nome certo. Pia.

PIA -

(SEGURANDO O ROSTO DE SÓROR JUSTINA) Só quero dizer uma coisa.

JUSTINA -

Diga tudo, minha filha. Diga tudo! Faz parte da cura!

PIA -

Eu odeio a senhora! Odeio! (E COSPE NO ROSTO DE SÓROR JUSTINA)

JUSTINA -

(LIMPANDO O ROSTO) Entendo. Agora fique assim, quietinha. Como se ainda estivesse dentro de mim. Quietinha.

AS DUAS FICAM ABRAÇADAS. LUZ CAI. RAJADA DE METRALHADORA. BLACK-OUT.


43

CENA 6 MARIA DO CANTO, NA PENUMBRA, ENTOA SUA MÚSICA. LUZ VAI SUBINDO SOBRE NIL, QUE RECUPERA OS SENTIDOS. NIL -

(AINDA ZONZO) Não! Você não vai conseguir! Tranquei minha cabeça, lacrei os meus sonhos. Não! Você não tem esse poder. É que você sabe que eu estou com medo. Com muito medo. (VAI SE APRUMANDO) Um medo que nunca tive. Que nunca conheci. (T) Meu pai me ensinou a não ter medo. Meu pai! O Mil-Mulheres. O que vendia armas para todos os exércitos. E, assim, estava no centro da guerra. O único canhão que NUNCA tomaram! (SUBITAMENTE SÃO, LEVANTA-SE. FALA PARA A FRENTE) Nunca soube o nome dele. Ele também nunca me deu um nome. Achava nome uma besteira! Só depois é que começaram a me chamar de Nil. Não sei quando. Não sei quem. Dele, só conhecia esse apelido. MilMulheres. Que ganhou porque tinha uma mulher em cada lugar. Não ficava com nenhuma. Mas amava todas. Uma delas foi minha mãe. A mais quieta. A que ficava o dia inteiro sentada na soleira da porta, esperando por ele. Sabia que ele estava com outras. De noite, eu ouvia quando minha mãe rezava baixinho, para um deus só dela, pedindo por ele. Mesmo que meu pai estivesse nos braços de outra mulher. E sempre estava! (T) A primeira vez que vi meu pai foi quando minha mãe morreu. Ele apareceu e me levou pela mão. (T) Onde está sua mão agora, meu pai? A mão que usou para construir a piscina velha. Ninguém mais se lembra que foi ele quem começou a cavar o buraco. Foi tirando mais e mais terra, cortando raízes secas, brigando com as pedras. Até a piscina ficar pronta para receber a água que nunca veio. (T) Por isso eu sei como é a água. Ele me ensinou! Ele me levava para os lugares mais secos e dizia que havia um rio passando por debaixo de tudo. Uma correnteza que carregava os dias. Dizia também que não havia guarda-chuva contra o tempo. (T) Pia! É isso que quero mostrar a você! É essa liberdade que vai escorrer de todos os lados que eu quero lhe dar! (T) Pia! Por isso estou fazendo a ponte sobre a piscina de meu pai! A ponte que sai do ponto!

LUZ SOBE NA CELA DE PIA. ELA ANDA POR ALI, NERVOSA. PIA -

Não quero mais ouvir sua voz!

NIL -

Ela já está dentro de você!


44

PIA -

Vou arrancar, como mosquito que gruda no bicho morto!

NIL -

Não quer isso!

PIA -

Preciso! O pecado/

NIL -

Pecado é invenção. Castigo que se aplica.

PIA -

Você é meu irmão!

LUZ ACENDE SOBRE SÓROR JUSTINA, QUE SE PENTEIA. JUSTINA -

Perdi o jeito de pentear. Tão acostumada com Pia! (T) Mas é melhor que ela fique trancada até esquecer tudo. (PEGA UMA BACIA COM SANGUE) Os fios desbotaram... (VAI PASSANDO UM PANO COM SANGUE NOS CABELOS) Meu homem gosta de cabelos cor-de-sangue! Mas não sangue velho! Novo! Quente! E agora que ele está aqui de novo...

NIL -

Eu sei!

PIA -

Sabe?

NIL -

Não faz diferença!

PIA -

Faz! Faz! Nosso pai é Jesus!

JUSTINA -

Meu Jesus, que amei tanto, obrigada por ter trazido meu homem de volta. Novo e forte como era como é como será!

NIL SAI DE SUA CELA. VAI ATÉ A CELA DE PIA. NIL -

Abre!

PIA -

Não! Sai daqui! Vai embora! Pode pegar todos os ossos e sumir. Estão lá embaixo. Eu dou a chave. Você pode acabar a ponte de uma vez. Mas vai embora!

NIL -

Abre!

JUSTINA -

(PEGANDO ALGUMA PEDRA, E RASPANDO) Um pouco de pó no rosto. Preciso parecer como era antes. Um vermelho nos lábios também. (PASSA O PÓ NO ROSTO) Sem abusar. Ligeiramente pálida. E os cabelos fulgurantes! (T) Meu homem sempre gostou de mulher vaidosa!


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NIL -

Nem que seja para ver você pela última vez! Abre!

PIA FICA NERVOSA E DEPOIS ABRE A PORTA. NIL ENTRA. PIA -

Fique longe de mim. Bem longe!

NIL -

Quem é seu pai?

PIA -

Você sabe. Jesus.

NIL -

Seu pai foi um homem. Não sei o nome dele. Só o apelido. MilMulheres. Que foi meu pai também.

PIA -

Fala assim. Sem tremer.

NIL -

Nosso pai!

PIA -

Não é verdade! Não quero que seja verdade! Pecado!

NIL -

Já disse. Pecado é bicho que se enfia na cabeça.

PIA -

Não!

NIL -

Tudo tão simples. Só nós dois.

PIA -

Sai daqui, Nil!

NIL -

Nosso pai. Mas não nossa mãe. Não sou filho dela. Sou filho de uma mulher que o sol murchou. Vivia muito longe daqui. Só o pai é o mesmo. O Mil-Mulheres. Foi ele quem embuchou a sua mãe e a minha!

PIA -

Então. Mesmo pai. Mesmo sangue.

NIL -

Nunca tinha visto você, Pia.

PIA -

Não muda nada.

NIL -

Porque nada precisa mudar. Eu só imaginava que existia uma mulher como você, que tinha nascido na mesma noite.

PIA -

Com o mesmo frio.

NIL -

Nós dois iluminados por Antares quando saímos da barriga de nossas mães. O pai já estava longe. Ele sempre ficou longe.


46

JUSTINA -

(OLHANDO-SE NO ESPELHO) Longe. Muito longe. Sempre. Com balas, metralhadoras, canhões. (T) Estou bonita! (T) Estou como Pia!

NIL -

Sempre soube que você seria a minha mulher.

PIA -

Não fala assim!

NIL -

Você também sempre soube que eu seria o seu homem. Está me esperando. (T) Seu corpo ainda tem fome do meu. Sempre terá.

PIA -

Sempre...

NIL -

Nós dois/

PIA -

Não venha para mim. Fique aí. Aí!

NIL -

Tudo isso estava escrito. Seria assim. A ponte passando por cima da piscina. Como meu corpo por cima do seu!

JUSTINA -

Justine! Ele gostava de me chamar de Justine! Dizia que era mais bonito. Que tinha o som do pecado! (RI) Do pecado mais gostoso de se fazer. (BERRA) Justine!

PIA -

(OUVE O BERRO) Ela vai aparecer aqui! Voltou a ser Justine! A puta que enfeitiçava os homens.

NIL -

Nunca enfeitiçou ninguém.

PIA -

Nosso pai.

NIL -

Nosso pai têve tantas mulheres. Minha mãe.

PIA -

Justine ficou esperando por ele. Sempre.

JUSTINA -

Quantas mentiras eu contei! (T) Ele nunca vai saber que meu fogo queimou tantos outros. (T) Ia pelas estradas. Dava meu corpo por um punhado de farinha, por uma raiz úmida. (T) Se um dia eu morrer, meu Jesus saberá que saciei o desejo de muitos. Como uma santa a quem se pede um milagre, eu abria as pernas e dizia: vem! Vou curá-lo de seus males e de suas tristezas. (FALANDO PARA A FRENTE) As estradas seguem quase sempre em linha reta. De vez em quando se cruzam, mas logo se descruzam. Continuam como duas linhas


47 paralelas. Vão dar em algum lugar que nem imagino. Talvez no céu. Talvez no inferno. Não, o inferno é aqui! O inferno que está em todos nós. Eu ficava no meio da estrada e esperava os homens. PIA -

Ela me deixava no mato. Meus olhinhos só conseguiam ver as pedras do chão. Às vezes, uma raiz de planta morta. Um bicho estirado na poeira. (T) Se eu conseguia me virar, via que ela estava no meio da estrada. Coberta pelo pó.

NIL -

Pronta para se deitar. Era o que sabia fazer. E fazia.

PIA -

Nunca me contou.

NIL -

Ela só conta o que quer.

JUSTINA -

Fui boa! (T) Os homens deixavam em mim suas sementes velhas. Fui muito boa! Eles iam embora menos tristes. (T) Ganhei tantos presentes. Não. Oferendas ao amor que distribuí! (T) Anéis falsos, pedras raras. Um me deu um brinco feito com uma bala disparada. Bala que tinha matado um homem! Só usei uma vez. Minha orelha pesava como um caixão sendo enterrado!

PIA -

Minha cabeça vai arrebentar! A pedra da loucura que está aqui dentro.

NIL -

Vou tirá-la!

PIA -

Se chovesse! Você disse que a água da chuva dissolve a pedra. Só assim. Você não sabe como.

NIL -

Sei. (PEGA PIA PELAS MÃOS) Sem a pedra, você vai perder o medo.

NIL CONDUZ PIA PARA JUNTO DA MESA HOSPITALAR. NIL -

(DEITANDO PIA) Nosso pai tinha uma caixa.

JUSTINA -

Feita de cipós.

NIL -

Feita de cipós.

JUSTINA -

E de pedaços de madeira dura.

PIA -

Você não vai conseguir, Nil!


48

NIL -

Quer que eu consiga?

PIA -

Quero.

NIL -

Então, vou tirar a pedra da sua cabeça. (ACARICIANDO A CABEÇA DE PIA) Nosso pai dizia que essa caixa só seria aberta uma vez.

PIA -

Por quê? O que tinha dentro da caixa?

JUSTINA -

Nunca soube! (MOVIMENTA-SE E PEGA A CAIXA. FICA OLHANDO)

PIA -

Onde está a caixa?

JUSTINA -

Roubei! (T) Um dia ele viria buscar essa caixa. E, aí, voltaria para mim.

NIL -

Sumiu. (T) Nosso pai passou o resto da vida procurando.

JUSTINA -

Uma vez achei que estava rondando.

NIL -

Deve ter passado por aqui, procurando.

PIA -

Nunca vi. (T) Vai doer tirar a pedra?

NIL -

Você vai dormir e sonhar.

PIA -

Nunca sonhei.

JUSTINA -

Ele passou pelas barracas, perguntando. (TENTA ABRIR) Não consigo abrir!

PIA -

Nunca sonhei.

NIL -

(BEIJANDO PIA, ACARICIANDO) Vou ensinar.

PIA -

Vai entrar em mim de novo? (T) Pecado.

NIL -

Vou. Pegue o pecado. Amasse. Esmague o pecado com todas as suas forças. Até com as forças que você não tem.

PIA -

Não consigo.


49 NIL -

Consegue. Depois, jogue o pecado no chão. Cuspa nele. Vomite nele. Menstrue sobre ele. (T) Deixe que as formigas carreguem o pecado para longe. Comam.

JUSTINA -

Mesmo quando ele se deitava comigo, ficava vigiando a caixa com um olho. (T) Gozava e me inundava, mas a mão continuava agarrada nos cipós!

PIA -

Vem!

NIL -

Seus caminhos de dentro, Pia!

PIA -

Vem!

NIL -

Seus nichos, seus desvãos, seus esconderijos.

PIA -

Vem!

NIL VAI SE DEITANDO SOBRE PIA. JUSTINA SE AGITA, COM A CAIXA. JUSTINA -

Vou abrir! (T) Ele não voltou por causa da caixa. Voltou por mim! (T) Meu Jesus, por mim!

NIL -

(SOBRE PIA) E, assim, o sonho vai tomar conta de você e abrirei sua cabeça. Um dia, quando achar a caixa de nosso pai, eu colocarei a pedra lá dentro. Para mostrar que nós dois ganhamos a guerra.

JUSTINA -

Talvez seja a minha vida que esteja aqui dentro! Porque vivo a vida de todos, e nem sei como sou! Talvez seja minha vontade. Talvez sejam minhas invenções. Minhas verdades e minhas mentiras. Talvez sejam meus cabelos que foram embora. Talvez seja o tudo. Talvez seja um espelho. E, olhando meu rosto nele, eu consiga descobrir o seu. O que nunca apareceu na tela do computador. O que sempre ficou no contorno. Talvez.

PIA -

Talvez...

NIL -

Talvez seja o que você sempre quis.

PIA -

O mesmo que você sempre quis!

NIL -

Talvez... Dentro da caixa...


50 LUZ VAI CAINDO SOBRE NIL E PIA, QUE SE AMAM SOBRE A MESA HOSPITALAR. FICA SÓ EM JUSTINA, EM PÉ, MAJESTÁTICA, COM A CAIXA NAS MÃOS. JUSTINA -

Importa que você voltou! Se foi pela caixa ou por mim, tanto faz. Você está aqui, meu homem! (T) E, se quiser a caixa, terá que me querer! (T) Foi o que ficou. Por ter dado tudo a você. Até a filha! (T) Essa filha que você pensa que sou eu!

SOM DE METRALHADORAS E BOMBAS EXPLODINDO. JUSTINA -

Isso nunca acaba! (T) Talvez seja o fim da guerra que esteja aqui dentro! Você nunca quis o fim dela. Era o seu ouro. (T) Mas eu lhe dou mil sacos de ossos para que fique aqui para sempre. Desse jeito. Jovem como era. Fecharei as janelas. Trancarei as portas e o tempo não entrará. (T) Sou a doutoradona. Posso. (T) Você nunca pensou que eu seria dona de alguma coisa. Sei disso. (T) Mas sou. Até da sua caixa.

FOCO SOMENTE EM JUSTINA. MAS SOMBRAS, MARIA DO CANTO ENTOANDO A MÚSICA. JUSTINA -

A música. A mesma que os homens cantavam na noite em que você foi embora. A mesma. Cantavam como cães uivando para a lua. Cães famintos. (T) Todos nós famintos e secos. (T) Secos. (T) Secos! (T) Você indo embora. Nunca me esqueci de sua boca se abrindo. Nenhum som saindo. Mas entendi o que dizia. O preço que deveria ser pago por quem quisesse sair daqui e entrar nas cidades. O preço que deveria ser pago por quem quisesse arrancar a poeira das entranhas. (T) A chuva! (BERRA) Diz! Diz! Existe a chuva? Ou ela é só o querer? Existe a chuva que pode encher a piscina velha, batizar nossos corpos e nossas cabeças? Existe? (T) E se existir, ela vai inundar tudo? É isso a morte? (T) A ponte. A ponte é para passar por cima desse aguaceiro que pode cair? (ERGUE A CAIXA) O que tem aqui? A chuva?

JUSTINA DÁ UM BERRO, QUE SE MISTURA COM A MÚSICA, COM O SOM DAS METRALHADORAS. VAI SE AGACHANDO, SEGURANDO A CAIXA COMO SE FOSSE UM BEBÊ. BLACK-OUT.


51

CENA 7 LUZ SOBE SOBRE NIL E PIA NA CAMA HOSPITALAR. NIL, VESTIDO APENAS COM UM TRAPO, ACARICIA PIA, NUA. NIL -

Sua cabeça está vazia agora.

PIA -

Leve.

NIL -

Era uma pedra pequena.

PIA -

Pesava.

NIL -

Negra. (T) Vai ser guardada na caixa do nosso pai. (OLHA A CRUZ) Por que essa cruz?

PIA -

Ela diz que foi presente de Jesus. Que ganhou quando eu nasci. (T) Tenho medo dessa cruz.

NIL -

Ainda pensa no pecado? (T) Você estava sonhando. Saiu desta cama e chutou o pecado para longe. Depois voltou e dormiu em meus braços. (T) Não precisa mais ter medo de nada.

PIA -

Dela.

NIL -

Sou sua arma contra tudo! (T) Deita em meu peito. Descansa.

PIA ACONCHEGA-SE EM NIL. FOCO EM JUSTINA, QUE COM A CAIXA, BERRA LÁ DE CIMA. JUSTINA -

(BERRANDO) Não!

PIA -

Ela!

NIL -

Não sai daqui!

JUSTINA -

(DESCENDO) Com seu irmão! Com seu próprio irmão!

PIA -

Eu sei!

JUSTINA -

Suja!

PIA -

Não tenho mais medo! (T) Estou armada.


52 JUSTINA -

Bala não mata o pecado!

PIA -

Não precisa. O pecado virou pó.

JUSTINA -

Bate nessa boca maldita! (CHEGA peçonhento! Não saiu de mim.

NIL -

A caixa!

JUSTINA -

É sua! (INDO PARA ELE) Meu homem! Meu homem! (AGARRA NIL) Sua caixa sou eu! Onde sempre guardou tudo. Não isto aqui!

NIL -

Sou filho dele!

JUSTINA -

Não! É ele! Voltou! Não pela caixa! Por mim! (T) E ela sou eu! O tempo também não passou para mim.

NIL -

Sai!

JUSTINA -

Sua Justine! Meus cabelos continuam vermelhos! Minha boca. A água que você sonha está dentro de mim! (VAI TIRANDO NIL DA CAMA E BERRA COM PIA) Ela não existe! (T) Ela sou eu! Eu provo! Ela veio do meu computador! Ilusão do tempo que inventei!

PIA -

A sóror acabou! Tudo aqui acabou!

JUSTINA -

Não fale assim diante da cruz! (T) Meu homem!

ATÉ

ELES)

Bicho

NIL EMPURRA JUSTINA. SUA PERUCA CAI. ELA DEIXA A CAIXA, AGARRA NIL E O COLOCA NA CRUZ, COMO CRISTO. VAI PARA CIMA DELE. JUSTINA -

Seu torso forte! Dourado!

PIA -

Mãe!

JUSTINA -

Sou eu, Justine! Sua mulher! Ela, não! Ela, não!

NIL -

(SEGURANDO JUSTINA MUITO FORTE) Minha mulher é ela sim! Minha irmã. Pia!

JUSTINA -

(ENLOUQUECIDA) Você é a minha tragédia! A água que me prometeu um dia!

PIA -

Pára, mãe!


53

JUSTINA -

Não sou sua mãe. Não sou nada. Só o que ele quiser! (T) Entra em mim aqui. Assim!

NIL -

Vou matá-la!

JUSTINA -

Não vai! (APERTANDO O PESCOÇO DE NIL) Eu sou ela! (SUFOCANDO CADA VEZ MAIS) Ficará para sempre aqui, na cruz! E eu virei me esfregar em você, meu homem!

PIA -

Pára, mãe!

JUSTINA -

(PARA PIA) Pensou que podia roubar o meu homem? Roubar a minha loucura? O meu fogo?

NIL -

(BERRA SUFOCADO) Pia!

JUSTINA -

Justine! (BERRA) JUSTINE! JUSTINE!!!

JUSTINA SUFOCA NIL, QUE MORRE, DEIXANDO TOMBAR A CABEÇA. FICA COMO A IMAGEM DE CRISTO NA CRUZ. PIA -

(AGACHADA SOBRE A CAMA) Você o matou!

JUSTINA -

Não! Está dormindo! Dormindo! O sono! O sono!

PIA -

Nil! Não posso. Sem você, não vivo mais nada!

JUSTINA -

(PARA PIA, GARGALHANDO) Você não existe!

PIA -

(BERRANDO) Nil!

JUSTINA -

Ele vai dormir para sempre aqui! (T) Aqui! Meu Jesus!

E COMEÇA A AMARRAR NIL NA CRUZ. PIA, DESESPERADA, DEITA-SE NA CAMA. JUSTINA -

Ligue os fios na tomada certa!

PIA PLUGA OS FIOS. ELETROCHOQUES. PIA ESTREBUCHA. JUSTINA VAI PUXANDO A CRUZ, COM NIL AMARRADO NELA. JUSTINA -

Meu homem! (T) A caixa! A caixa! (T) Agora consigo abrir! Consigo!

JUSTINA PEGA UMA FACA, CORTA O CIPÓ, E ABRE A CAIXA. COMEÇA A


54 CHOVER. CADA VEZ MAIS FORTE, INUNDANDO TUDO. JUSTINA -

(BERRANDO) Era tudo verdade!

PIA ESTREBUCHA MAIS UMA VEZ E MORRE. JUSTINA SE AGARRA NO CORPO DE NIL. ARRASTA O CORPO DELE. PIA, MORTA. CHUVA CADA VEZ MAIS FORTE. MARIA DO CANTO ENTOANDO SUA MÚSICA. DEPOIS, METRALHADORAS E BOMBAS. LUZ SOBE ATÉ UMA CLARIDADE INSUPORTÁVEL. TEMPO. SILÊNCIO TOTAL. MUITO TEMPO. JUSTINA -

(ENCHARCADA, AGARRADA EM NIL) Eis o cordeiro de deus. Qui tollit pecata mundi!

SÓROR JUSTINA JUNTA OS CORPOS DE NIL E PIA, QUE FORMAM UMA PONTE. PEGA A SOMBRINHA SEM HASTE, ABRE, E VAI EMBORA.

BLACK-OUT.

FIM


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