Açaí e Dedos

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AÇAÍ E DEDOS de Carla Faour


AÇAÍ E DEDOS de Carla Faour Personagens: LAURA, a mãe. OTAVIO, o pai ALICE, a filha. REGINA, a “sobrinha” JUNIOR, o filho. CENA 1 -­‐ REGINA ESTÁ DEITADA NA SALA, SOBRE UM MÓDULO DE MADEIR, QUE SERVE COMO SOFÁ. ELA DORME. SONHO. MÚSICA. CHOVE. IMAGEM DO SONHO DE REGINA: NUM BANCO ESTÃO SENTADOS AO CENTRO, OTAVIO, O PAI, A SEU LADO ALICE, A FILHA, SEGUIDOS POR JUNIOR, O FILHO E POR ELA MESMA. EM PÉ, UM POUCO MAIS AFASTADA, ESTÁ LAURA, A MÃE. EMBORA ESTEJAM TODOS MOLHADOS, O GUARDA-­‐CHUVA NA MÃO DE OTAVIO PERMANECE FECHADO. A IMAGEM PODE SER EM PRETO E BRANCO. AOS POUCOS A MÚSICA VAI ABAIXANDO, A IMAGEM PROJETADA DA FAMÍLIA SOME E O BARULHO DE UM TIC-­‐TAC DE RELÓGIO APARECE. Off REGINA: Aboli, há uma semana todos os relógios da minha vida. Joguei fora um de pulso velho, tirei a pilha de outro que ficava na cabeceira da cama, e desativei o do celular. Foi uma atitude sensata. Pra que ficar contando as horas se elas não fazem mais diferença? Se a anterior é muito parecida da que se segue? O tempo parou, pelo menos pra gente. Há uma semana que a gente não sai do lugar. A espera não tem antes nem depois. A espera congela o tempo. Estamos há uma semana esperando. À espera por notícias dela. Congelando. Tenho tido uns sonhos estranhos, que se repetem. A vida é repetitiva. Até em sonho. CENA 2 – CAMPAINHA TOCA. REGINA ACORDA SOBRESSALTADA, LEVANTA-­‐SE E VAI ATENDER A PORTA. REGINA: Oi, Alice. ALICE: Oi. REGINA: Está tocando a campainha há muito tempo? ALICE: Não, cheguei agora.

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REGINA: Peguei no sono. Bom te ver. ALICE: Não sabia que você estava aqui. REGINA: Estávamos te esperando desde cedo. ALICE: O vôo atrasou muito. REGINA: Fez boa viagem? ALICE: Cansativa. Que calor insuportável. Não sei como vocês aguentam. Não estou mais acostumada. REGINA: Dizem que é o verão mais quente dos últimos anos. Deixa eu te ajudar com as malas. Vou levar pro nosso quarto. E o Christophe? ALICE: Não pôde vir por causa do trabalho. Na verdade eu também não podia estar aqui. E você? REGINA: Cheguei ontem de manhã. ALICE: Não precisava, Regina. REGINA: Como não? Você achou que eu não viria? E depois é até bom eu tirar uns dias. Tenho trabalhado tanto. (pausa) Desculpe, não foi isso que eu quis dizer. ALICE: Tudo bem. REGINA: Está com fome? Quer comer alguma coisa? ALICE: To morrendo de sede. REGINA: Acho que eu vi uma jarra de mate na geladeira. ALICE: (Ela fica olhando em volta) É impressão minha ou essa sala era maior? REGINA: Ela mudou os móveis de lugar. Mas tem tempo. Eu achei que ficou melhor assim. Onde será que eles guardaram o açúcar, adoçante? ALICE: Me dá um copo de água mesmo. REGINA: Gelada ou natural? ALICE: Gelada. Alguma novidade? REGINA: Nada. ALICE: Não me conformo. Não me conformo mesmo. Uma semana sem notícias. Muito tempo. E a polícia? REGINA: Continua investigando.

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ALICE: Não confio. Hoje em dia não precisa ser rico pra ser sequestrado. Esses bandidos sequestram pra comprar bujão de gás. Li que ta moda sequestro relâmpago. REGINA: O delegado acha que não é o caso, ninguém pediu resgate, pelo menos até agora. ALICE: Tem que deixar esse telefone desocupado. Aposto que o Junior fica o dia inteiro pendurado nesse telefone. Meu pai? REGINA: Tenta parecer calmo. Mas eu conheço o Tio OTAVIO. Está arrasado. Passou o dia no bar. ALICE: Pelo menos agora ele tem um motivo pra encher a cara. O Junior eu nem pergunto, porque não dá pra contar. REGINA: Ele esta se esforçando, do jeito dele. ALICE: Eu já pensei em tudo o que você pode imaginar. Assalto, acidente. Pode ter caído na rua, batido com a cabeça, essas calçadas estão todas esburacadas, é um perigo. A gente houve cada coisa. Pode estar em algum lugar sem terem identificado, essas coisas de filme. Ela estava com os documentos? REGINA: A carteira dela não está aqui. Só se foi acidente. Ela tinha uma memória. Sabia a data de aniversário de todo mundo, não esquecia de ninguém. ALICE: Droga! REGINA: O que foi? ALICE: Você esta falando da mamãe no passado. REGINA: Nem reparei. ALICE: Como se ela tivesse morrido. REGINA: É o cansaço. Vamos descansar. Amanhã a gente conversa com calma. Nosso quarto já esta arrumado. ALICE: Vai você. Quero ficar mais um pouco aqui. REGINA: Então te faço companhia. ALICE: Não precisa. REGINA: Tem certeza? REGINA SAI, ALICE FICA OLHANDO A SALA. SENTA, DEITA NO SOFÁ E ACABA PEGANDO NO SONO. ALICE (depoimento): Chegar em casa. Estar em casa. Ficar em casa. Eu cheguei em casa naquele dia e... Como o tempo passa rápido. Se eu soubesse o que ia acontecer. Se eu

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soubesse. Eu teria feito alguma coisa, nunca pensei que as coisas estavam naquele pé. Quando a gente não pára. A vida arranja um jeito de parar a gente. Ainda estou tentando entender o que foi que aconteceu e por quê. Ninguém esperava. Pegou todo mundo de surpresa. CENA 3 -­‐ ALICE DORME NO SOFÁ. OTAVIO A OBSERVA. ELA ACORDA. OTAVIO: Desculpa. ALICE, te acordei? ALICE: Eu só estava cochilando. Que horas são? OTAVIO: Chegou tarde. Dorme mais um pouco. ALICE: O voo atrasou. OTAVIO: Muito frio por lá? ALICE: Nevando, mas eu prefiro o frio a esse calor. OTAVIO: Diferença de temperatura. ALICE: Choque térmico. Estou com medo até de pegar um resfriado. OTAVIO: Eu nunca vi neve. (pausa) Quer tomar um remédio pra gripe? ALICE: Não precisa, por enquanto eu estou me sentindo bem. OTAVIO: É melhor tomar logo pra prevenir, eu tenho um remédio que é tiro e queda. ALICE: Não, pai, agora não. Se precisar eu te peço, o remédio. OTAVIO: Dizem que é uma beleza a neve. Tem um vizinho aqui na rua, o Antonio, lembra? Dono da papelaria. Ele foi para Bariloche. Me mostrou umas fotos. Dá pra ver bastante neve em Bariloche. ALICE: É bonito. Uma vez ou outra. Mas durante dias seguidos é muito transtorno. Perigoso andar nas ruas com neve. Escorrega. Tem acidente. OTAVIO: O Antonio disse que tinha tanto brasileiro, mas tanto brasileiro em Bariloche que ele falou mais português lá, do que aqui. ALICE: Tem brasileiro em tudo quanto é lugar. Muito. OTAVIO: Nós estávamos até pensando em fazer uma viagem eu e sua mãe... (pausa) Mas LAURA não gosta de sair, difícil tirar ela de casa, você sabe. (Pausa) Eu escrevi um poema que se chama “neve”, te mostrei? ALICE: Não lembro. Acho que não.

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OTAVIO: Tem tempo. Nem sei mais onde esta. (pausa) Eu só não fui te buscar no aeroporto porque o carro esta no mecânico. ALICE: Não tem importância. Peguei um taxi. OTAVIO: Você esta bonita, filha. ALICE: Sua cara está péssima, pai. OTAVIO: Não fica aborrecida comigo. ALICE: Por que ficaria? OTAVIO: Por que... Porque eu não fui te buscar no aeroporto. ALICE: Do que você ta falando, pai? OTAVIO: Bom ver você em casa. ALICE: Eu quis vir antes. Mas. OTAVIO: 04 anos. Sua mãe ia ficar feliz de ter ver. ALICE: Ela vai ficar feliz. REGINA: Bom dia. Procurei em tudo que é lugar, não consegui achar de jeito nenhum, não lembro onde ela guarda as coisas. Lembra, Alice, onde ela guarda o pó do café? ALICE: Eu? Não faço a menor idéia. REGINA: O pão ainda ta quentinho, saiu agora. ALICE: Obrigada, Regina. REGINA: Você deve estar com dor nas costas. Dormiu nesse sofá, criatura. ALICE: Já dormi em lugares piores. (TOCA O TELEFONE. TODOS SE OLHAM. ALICE ATENDE). ALICE: Alô? Alô? Alô? Quem fala? (suspense) Junior? Um momento. É pro Junior. REGINA: Acho que ele esta dormindo. ALICE: Ele não pode atender. Liga mais tarde, por favor. Dou o recado sim. Vanessa. Pode deixar. Não esqueço, não. Está anotado. Pode deixar. Vanessa diz que se o Junior não depositar a pensão da menina vai colocar ele na justiça. Era uma voz de homem. (irônica) Simpático... OTAVIO: Vanessa é a mãe da Jessica.

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REGINA: Nervosa. ALICE: Não tinha um nome melhor pra colocar na criança, não? Jessica? OTAVIO: Eu não me meto nesses assuntos do seu irmão. REGINA: Ele que abra o olho. A única coisa que dá cadeia no Brasil é pensão alimentícia. Essa vara de família é fogo. Vira e mexe até gente famosa vai presa. Outro dia foi aquele jogador, como é mesmo o nome dele? ALICE: Esses assuntos você quer dizer a sua neta. OTAVIO: Ela é uma graça. Parece você quando era bebê. ALICE: Era só o que me faltava. OTAVIO: Sua mãe também achava. ALICE: “Achava?” Nervoso que me dá. Por que vocês estão falando dela no passado? REGINA: É maneira de dizer. Só isso. (pausa) OTAVIO: Pelo menos uma coisa foi boa. Ela vai ficar feliz quando abrir essa porta e encontrar todo mundo aqui. Há tanto tempo que isso não acontecia. JUNIOR (depoimento): A vida dá umas cambalhotas de repente. Num dia ta assim, no dia seguinte não tem mais nada. Bem feito pra quem acha que sabe tudo. Bem feito. Naquele dia deu a maior merda. Aliás, aquele dia foi o começo de toda a merda que veio depois. Concentrou tudo, naqueles dias. A merda toda. CENA 4: TODOS NA SALA. JUNIOR TOCA VIOLÃO. ALICE: (desligando o telefone) Está bem. Aguardo. Obrigada. Não dizem nada. Não dá pra ficar esperando a polícia. Polícia brasileira? Carioca? Eu não confio. São lentos. Desorganizados. Vamos procurar por nossa conta. Ir aos lugares. Não dá pra ser por telefone, não confio nessa gente que dá informação por telefone. Acho que a gente pode se dividir. Eu vou correr as delegacias mais próximas. Regina, você podia procurar nos hospitais. Papai vai ao supermercado que foi o último lugar que ela foi. É esse aqui da esquina que ela costumava ir, não é? Tem que levar uma foto dela, quem é que tem foto recente da mamãe? (para Junior) Dá pra parar com esse violão? JUNIOR: Mau humor. REGINA: Esse repertório, Junior, não está ajudando. Toca uma coisa mais animada, pra levantar o astral. (ALICE PEGA UMA CAIXA DE DOCUMENTOS).

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ALICE: Caderneta de telefone, carnê da prestação da geladeira, vidro de perfume vazio, carteirinha do clube. REGINA: Tem essa foto, mas é do “tempo do onça” como ela dizia, (se corrigindo) quer dizer, diz. Olha que engraçado esse penteado. ALICE: Caderno de receita, receita médica, carteirinha de aula de dança... OTAVIO: Aula de dança? ALICE: Tem que ir aos lugares com uma foto. Mostrar, perguntar se alguém viu, se alguém se lembra de ter visto. A gente tem que tirar xerox, fazer uns cartazes na impressora, e espalhar pela vizinhança, pelos lugares que ela costumava ir. Quer parar com essa merda? (JUNIOR CONTINUA TOCANDO A MESMA MÚSICA) OTAVIO: A policia já fez tudo isso, filha. REGINA: Eu liguei pra todos os hospitais, guarda municipal, pros correios pra ver se achava os documentos... Eu acho que o que a gente pode fazer é contratar uma dessas firmas de investigação. ALICE: Não confio. JUNIOR: Você desconfia da própria sombra. REGINA: A gente, digo eu, por minha conta, faço questão. ALICE: Eu sei que você pode pagar, Regina. Todos nós sabemos. Eu também posso pagar se for o caso. REGINA: Não vamos brigar por isso. Se você quer pagar, fique à vontade. (pausa) ALICE: Não é possível que ninguém tenha uma foto recente da mamãe. OTAVIO: Serve do casamento? ALICE: Recente, pai, pelo amor de Deus. REGINA: As fotos que eu tenho estão em casa e são aquelas de grupo, um fazendo chifrinho no outro, com todo mundo de olho vermelho, meio fora de foco. Tia LAURA não gostava muito de tirar foto, não é? OTAVIO: O incrível é que no supermercado que a Laura vai, há mais de 20 anos, ninguém sabe, ninguém viu, não conhecem, não lembram. Eu quase perguntei: vem cá, por acaso ela era invisível ou vocês são cegos? Porque ela vinha quase todo dia aqui. ALICE: Do supermercado, pai, você podia ir até os bombeiros, quando uma pessoa sofre um acidente são os bombeiros que levam pro hospital. Dá pra pelo menos tocar uma música

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diferente? Você continua tocando as mesmas músicas de quando a gente era adolescente. Troca o disco. REGINA: Alice, ontem eu fui até aos bombeiros. Eles têm os nossos telefones... JUNIOR: (perdendo a paciência) Quem disse que você é a líder, a capitã do time? ALICE: Eu. Eu disse. Eu sou a capitã e no meu time você está fora. Ok? JUNIOR: Ta querendo mostrar serviço pra quem? Tudo cena! A gente já fez tudo isso. Eu já fui a todos os lugares que você possa imaginar: hospital, metrô, postos turísticos, falei com camelô, perguntei pros mendigos da área, pros flanelinhas... Falei até com bandido se tu quer saber. Eu já fui tantas vezes na delegacia que conheço até a sogra do escrevente. Eu e o papai já reviramos Copacabana pelo avesso. Diz um nome de rua. Eu já andei, papai já andou. O que você quer mais? Você chega 7 dias depois, e acha que vai resolver tudo com suas idéias de “gênio”? REGINA: Calma, Junior. Ela só esta querendo ajudar. (pausa) ALICE: Você acha que foi fácil vir de uma hora pra outra, assim, no susto? OTAVIO: Toca alguma música que ela gostava. JUNIOR: Que música, pai? OTAVIO: Qualquer uma. (JUNIOR PÁRA. FICA PENSANDO E VOLTA A TOCAR A MESMA MÚSICA DE ANTES). REGINA: Por que a gente não faz cadastro dela nesses sites de pessoas desaparecidas? ALICE: Desaparecidas? Senti até um aperto no coração. REGINA: Falei alguma coisa de errado? ALICE: Não, é que eu não tinha pensado ainda. Minha mãe é uma desaparecida. JUNIOR: Ela não é, ela está, é diferente. REGINA: Desculpa, é que esses sites ajudam a localizar. ALICE: Eu sei. Eu que ainda não tinha pensado nessa palavra. OTAVIO: Eu vou dar uma saída. ALICE: Vai pra onde? Fazer o que? Não, pai. Vamos ficar aqui. Todo mundo junto. OTAVIO: Eu só ia. REGINA: Senta aqui, tio.

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ALICE: Alguém precisa ir no... No IML. JUNIOR: Eu já fui. Quantas vezes vou ter que repetir? OTAVIO: Ela não esta lá. ALICE: Eu também acho que não, eu rezo pra que não. Mas. Ficar sem saber é pior. REGINA: Calma, que notícia ruim chega rápido. ALICE: Quer dizer que a gente não tem o que fazer? É sentar e esperar? (pausa) (TELEFONE TOCA. JUNIOR ATENDE. TODOS FICAM APREENSIVOS). JUNIOR: Alô? Hã? É daqui sim. Não sei. Não sei dizer não. Não sei mesmo. Não faço a menor idéia. Hã? Sabe que eu não sei? Um momento. Quer saber se tem o Zorro. OTAVIO: Junior, você tá cansado de ver sua mãe pra cima e pra baixo com o Zorro. JUNIOR: Tem sim, mas no momento não, ele ta de folga. Quer dizer ela, não o zorro, ela esta... REGINA: Viajando. JUNIOR: Ta viajando. Mês que vem, mês que vem ela esta de volta. Com a turma toda: Cinderela, Branca de Neve, sete anões... Nada. Às ordens. OTAVIO: Volta e meia liga uma cliente das festinhas infantis. ALICE: Não sei por que ela ainda insiste em fazer isso, nunca deu dinheiro. (Pausa) OTAVIO: E o Christophe? Não veio por quê? ALICE: Hein? OTAVIO: O Christophe. ALICE: O que? REGINA: Esta perguntando do Christophe. ALICE: Já disse, muito trabalho. E depois o Christophe detesta calor, o que ele vai fazer aqui no verão ? JUNIOR: Pensei que ele gostasse de praia. Vocês não se conheceram na praia? OTAVIO: Ele esta trabalhando com o que mesmo? ALICE: Hã? REGINA: O Christophe, esta trabalhando com o que?

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ALICE: Trabalho é trabalho, pai. (pausa) Setor de alimentos. OTAVIO: É o que dá dinheiro hoje em dia. O setor de alimentos, não é filha? ALICE: Claro, lá todo mundo come fora, ninguém tem tempo pra nada. Não é como aqui que as pessoas cozinham em casa. REGINA: Alimentos frescos ou congelados? ALICE: Como assim? JUNIOR: Fast food? REGINA: Mac Donalds? OTAVIO: Rodízio? ALICE: Isso é um interrogatório? Vocês só sabem fazer perguntas. REGINA: Se depois de tanto tempo a gente não tivesse perguntas pra fazer... OTAVIO: A gente só quer saber de você. JUNIOR: Toma. ALICE: O que é isso? JUNIOR: Não estava querendo uma foto? ALICE: Da mamãe? JUNIOR: Um dia que ela estava na cozinha, fui testar a máquina nova que eu comprei. REGINA: Tem muito tempo? JUNIOR: Uns seis meses. ALICE: Eu não a vejo há quatro anos. JUNIOR: Você desapareceu. ALICE: Ela envelheceu um pouco. Mas continua bonita. OTAVIO: Sua mãe sempre foi bonita. ALICE: Ela estava alegre nesse dia. OTAVIO: Não me lembro de um dia que sua mãe estivesse triste. REGINA: Tia Laura vivia rindo. De tudo. (ALICE COMEÇA A CHORAR. OTAVIO E REGINA SE EMOCIONAM).

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CENA 5 -­‐ LAURA. FLASH BACK LAURA (rindo): Para, Junior! Para! Não gosto de tirar foto assim. JUNIOR: Só um sorriso. Pra câmera. Vai, um sorriso. LAURA: Toda despenteada, sem batom e com cheiro de cebola? Não vale. JUNIOR: Essa máquina é boa, mas nem tanto, não vai pegar o cheiro de cebola, mãe. LAURA: Tanta coisa melhor pra fotografar. Deixa eu fazer o almoço em paz. Quero fazer uma coisa especial. JUNIOR: É o aniversário de alguém? LAURA: Tô cansada de comer essas comidinhas que eu faço. Sempre a mesma coisa, cansa. É bom mudar. Sabe que eu nunca comi comida japonesa? Nem chinesa, nem tailandesa... Tinha vontade de provar comida mexicana. Dizem que é apimentada. JUNIOR: Você gosta de uma pimentinha, não é, mãe? Pede pro pai te levar num restaurante. LAURA: Não dão receita dessas comidas nesses programas. Já escrevi pra lá e tudo, não adianta, eu acho que é monopólio, a máfia dos chefs de cozinha que não deixa ensinar as receitas pra gente na televisão, para não ter concorrência. JUNIOR: Conheço um restaurante indiano que você vai gostar. LAURA: Eu gosto de comida baiana. Acarajé, abará, vatapá, essas comidinhas mais leves. JUNIOR: Faz logo uma carne moída. Almôndegas. Adoro. LAURA: Queria uma coisa diferente. JUNIOR: De quem é o aniversário, fala? LAURA: Não diz ao seu pai que eu contei. Ele mesmo quer mostrar. Fazer surpresa. JUNIOR: Que mistério. ALICE: Fizeram uma reportagem com ele. Umas duas páginas no Jornalzinho do colégio. Professor mais antigo de língua portuguesa. Não é qualquer um que tem duas páginas, com foto e tudo. Olha. Tirei Xerox, mandei ampliar e plastificar. Não ficou uma beleza? JUNIOR: Agora o livro sai. LAURA: Ficou muito bem nessa foto, não acha? JUNIOR: Tá um pouco fora de foco ou é impressão minha? LAURA: Seu pai tem fotogenia.

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JUNIOR: Pede pro papai te levar nesse restaurante indiano. LAURA: Sabe o que eu não gosto em restaurante? Tem sempre aqueles casais mudos que ficam um em frente ao outro, sem dizer uma palavra, já reparou? Passam a noite inteira olhando pro lado, pro teto, mexendo no guardanapo, quebrando palito de dente. A gente só escuta o barulho dos talheres ou então quando um deles não aguenta mais e fala: “a conta, por favor”. (ela ri) Chega a ser engraçado. CENA 6/ SALA. – CONTINUAÇÃO CENA 4 ALICE: Saudade que me deu. JUNIOR: Agora? Não sentiu saudade nesses 04 anos em que você ficou fora, sem dar notícias? OTAVIO: JUNIOR, não é hora. ALICE: Sabe do que eu me arrependo? De não ter um retrato 3x4 dela na carteira. Nem percebi que eu tinha esquecido o rosto da mamãe. JUNIOR: Isso é sentimento de culpa. Remorso. ALICE: Pelo menos eu não sou um parasita. Que vive às custas de pai e mãe nessa idade. E ainda arranjou mais uma pra se pendurar aqui. Você devia ter vergonha. JUNIOR: Vergonha de que? Da minha filha? Talvez, se ela fosse igual a você. ALICE: Essa casa é um cabideiro. Tem sempre alguém pendurado. REGINA: Você está falando comigo? OTAVIO: Essa casa, ainda, é minha e sempre esteve de portas abertas, seja pra filho, pra sobrinho, parente, amigo, não vai ser agora que vai ser diferente. REGINA: Generosidade não é uma coisa que se aprende, a gente nasce com ela, tio. JUNIOR: Eu cuido deles. Alguém tem que fazer isso. ALICE: Acho muito engraçado. Cuido. Os pais ficam mais velhos e os filhos acham que tem que cuidar. A idade não torna ninguém incapaz. Eles sabem se virar sozinhos. JUNIOR: Você não sabe o que é cuidar. ALICE: Você não cuida de ninguém. Você explora, cafetão de pai e mãe. E agora da Regina. Pensa que eu não sei que ela dá uma grana aqui em casa todo mês? REGINA: Isso não é da sua conta. O dinheiro é meu, e eu faço o que eu quiser.

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JUNIOR: De cafetão você entende melhor do que eu. ALICE: Fala na minha cara! Fala o que você esta insinuando! JUNIOR: Eu to falando de cuidar, ter cuidado, dar atenção. ALICE: Que bonitinho. De vagabundo a filho exemplar. Você mudou nesses 04 anos. REGINA: Tem gente que muda. Tem gente que não. Você continua a mesma. Prepotente. Arrogante. Você não dá a menor bola pra eles. Nunca deu. O Junior tem razão, quem é você pra chegar agora e querer dizer o que esta certo e errado nessa casa? ALICE: Eu sou o que você não é. REGINA: Você é o que eu não quero ser. JUNIOR: Você não é nada. Sabe por quê? Porque depois de 04 anos a gente já se acostumou sem você. E quer saber? Não fez falta. ALICE: Eu não posso levar a sério um homem de 35 anos que ainda vive de mesada. JUNIOR: 33! E só pra você saber: eu trabalho. ALICE: Taí uma novidade que ninguém me contou. REGINA: Novidade a gente só conta pra quem interessa. ALICE: Eu estou falando de trabalho. Trabalho pra mim é quando você é pago por alguma coisa. Quanto você ganha pra tocar nessas espeluncas? REGINA: O que você ganha pra ser tão desagradável? ALICE: Eu só tolero vocês por causa deles. Só por isso. O dia que. Bom, deixa eu ficar quieta se não vou acabar falando besteira. REGINA: Fala. Fala o que você ia dizer. O dia que eles morrerem era o que você ia dizer? ALICE: (cortando) Como você disse as coisas mudam. Mudam mesmo. Um dia vamos ser só eu e vocês. JUNIOR: Nesse dia vai ser só você. E só eu. Só. Cada um pro seu lado. OTAVIO: Chega! Eu não quero ver ninguém apontando o dedo pro outro dentro da minha casa. Só para lembrar: nem eu nem sua mãe morremos, estamos vivos. Bem vivos! Às vezes eu “me faço de morto pra viver”, só isso... (TOCA O TELEFONE. REGINA VAI ATENDER) REGINA: Alô? Sim, sim, obrigada. É o síndico. Está avisando da missa de sétimo dia do Seu Geraldo.

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ALICE: Quem? JUNIOR: Seu Geraldo morreu um dia antes da mamãe... CENA 7 -­‐ FLASH BACK LAURA LAURA: (para JUNIOR) Não lembra? Seu Geraldo, nosso vizinho aqui de frente. JUNIOR: Assim fisicamente, não. OTAVIO: Morreu de quê? LAURA: Moço. Não tinha 80 anos. JUNIOR: Velhice. OTAVIO: Tinha uma doença estranha. Não era Alzheimer, não era Parkinson, não era dessas doenças que estão na moda. LAURA: Foi definhando. OTAVIO: Primeiro ficou meio surdo. LAURA: Surdo, não. Mudo. A gente perguntava, ele não respondia. OTAVIO: Responder o que? Ninguém falava com ele. Ia falar sozinho? Se começasse a falar sozinho iam dizer que ele estava gagá. JUNIOR: Era um que ficava rindo sozinho, sentado na portaria? Não saía dali? LAURA: Gagá não estava mesmo. Sabia exatamente o que estava acontecendo. Tinha consciência de tudo. OTAVIO: Não era surdo nem mudo. Esperto era o que ele era. Preferiu parar. De falar e escutar. LAURA: Foi minguando. Que nem uma plantinha. Andava de um lado pro outro nesse corredor, praticamente Invisível. Viveu não sei quantos anos assim. OTAVIO: Fiz até uma poesia pra ele. Aliás, vou procurar essa poesia pra colocar no livro. JUNIOR: “Geraldo o homem invisível”. LAURA: Já estava morto há muito tempo. Só esqueceram de avisar a ele. JUNIOR: Morto eu não sei, que depois de dois dias o corpo fede, não fede? A gente percebe quando tem um morto em casa. (rindo) Será que a família não percebeu? LAURA: Viu vocês pequenininhos.

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JUNIOR: Não consigo me lembrar da cara dele. LAURA: Como não? OTAVIO: Era um que de vez em quando sentava na portaria do prédio. Ficava vendo a vida passar, só olhando, que nem um velhinho. LAURA: E a vida passou. A vida passa. Coitado do Seu Geraldo quase não aproveitou. A vida passa num instantinho. (pausa) OTAVIO (depoimento): Eu estava atrasado. Nós estávamos atrasados. Estávamos atrasados há muitos anos. Não imaginávamos quanto. Hoje consigo perceber. O tempo é o melhor remédio, dizem, mas também pode ser pior que veneno. Aquele último dia foi estranho. Devia ter desconfiado. Se eu soubesse o que ia acontecer... Mau presságio a morte do seu Geraldo. CENA 8 – CASA/ SALA ALICE: Calor insuportável. REGINA: Deu no jornal que hoje chega a 40º graus. ALICE: Como o Centro está sujo. Povo mal educado joga lixo na rua. OTAVIO: Podem falar o quiser, ainda assim, essa cidade é linda. Para onde se olha é um cartão postal. ALICE: (irônica) Vide a vista da janela do nossa sala. O cartão postal mais lindo de Copacabana. OTAVIO: Sua mãe adorava essa comunidade. Principalmente à noite. Ela dizia que as luzinhas piscando pareciam um céu estrelado. REGINA: Ela achava mais bonito que a árvore de Natal da Lagoa. ALICE: Isso é piada? REGINA: Como que ela estava, Tio? Nos últimos dias? OTAVIO: Laura? Já disse, ótima. Parecia feliz. Mais feliz até do que de costume. ALICE: Aliás, o que foi esse baile funk a noite inteira? Não consegui dormir. JUNIOR: Pai, quantas vezes eu vou ter que repetir? Estava a mesma coisa. Não pira. Igual. ALICE: Só eu que escutei o baile funk? OTAVIO: Já acostumei, filha. Nem ligo mais. ALICE: (irônica) O ser humano se acostuma a tudo na vida.

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REGINA: Vocês brigaram, tio? OTAVIO: Eu? Já falei. Eu e LAURA nunca brigamos. Nunca. REGINA: Ela se arrumou pra ir ao supermercado? OTAVIO: Ela estava usando um... um vestido antigo.Um estampado claro de flores amarelas. REGINA: Eu já contei, não contei, que a última vez que eu falei com ela achei ela tranqüila? Normal. ALICE: Vocês se falavam com frequência? REGINA: Eu ligava toda terça-­‐feira. De onde eu estivesse. ALICE: Sempre se deram bem. REGINA: Sempre. (pausa) ALICE: Que horas ela saiu pra ir ao supermercado, pai? OTAVIO: 10h30, 11h da manhã mais ou menos. REGINA: E quando foi que você deu por falta dela mesmo? OTAVIO: De novo essa pergunta? Quando eu voltei pra almoçar, ela não estava em casa. Achei estranho porque ela sempre estava em casa àquela hora. REGINA: Ela sempre estava em casa a qualquer hora. ALICE: E que horas eram? OTAVIO: (pausa / constrangimento) Umas... 19hs. REGINA: 19hs? Isso você não tinha contado, Tio. ALICE: Quer dizer que você saiu às 11h da manhã e só voltou às 19h pra almoçar? OTAVIO: Foi quando eu... eu encontrei o Junior. JUNIOR: Sabia que ia sobrar pra mim. Eu só tinha passado em casa pra trocar de roupa porque eu não ia dormir em casa, aí fui até à porta do quarto dela e falei: Tchau, mãe, to indo. Nem imaginei que ela não estava. Quando eu estava saindo encontrei com o papai chegando. OTAVIO: Eu tinha... tinha tomado uma cervejinha. Cheguei, deitei no sofá e acabei dormindo. Só acordei no dia seguinte, às 9hs da manhã, atrasado pra aula. Lavei o rosto rápido e falei aqui da sala mesmo: LAURA, estou indo pro colégio, volto pro almoço. Nem fui ao quarto. E saí, sem tomar café nem nada.

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JUNIOR: No dia seguinte, quando eu voltei pra casa, à tarde, ele estava no telefone ligando pra polícia. ALICE: Mais de 24hs depois?! REGINA: Então tia Laura sumiu um dia antes de... (TOCA O TELEFONE. TODOS SE OLHAM. REGINA CORRE E ATENDE) REGINA: Alô? É daqui sim. Quem quer falar? Um momento, por favor. Pro senhor, é do mecânico. ALICE: Vê se não demora, pai, tem que deixar o telefone desocupado. OTAVIO: Alô? Alô? Oi Josias. Tudo. Oi, até que enfim, estou precisando do carro. Quando você pode me entregar? REGINA (depoimento): Algumas pessoas passam quase despercebidas. Só descobrimos sua importância quando elas faltam. São pessoas que enganam. O ponto de equilíbrio engana. Não parece estar ali. Mas quando a balança pende. Quando os lados desmoronam. Enxergamos. Sem um ponto de equilíbrio nossa casa estava de pernas para o ar. Desequilibrada. CENA 9 – SALA – REGINA ESTÁ PREENCHENDO UM QUESTIONÁRIO, ALICE ESTÁ MEXENDO EM UMA CAIXA, JUNIOR ESTÁ TOCANDO VIOLÃO. REGINA (lendo): “Ginaldo Brandão de Lyra. Nasceu em 48, desaparecido desde o dia 15 de agosto de 1979. Saiu para ir ao jogo do Fluminense, no Maracanã, e nunca mais voltou. Deixou mulher e três filhos. A última vez que foi visto vestia camisa do Fluminense, bermuda cáqui e chinelo. A família pede para quem tiver notícias entrar em contato”. 79? Tempo pra caramba! REGINA: (Lendo)“Aparecida Maria de Albuquerque, nasceu em 1964. Foi vista pela última vez no dia 23 de abril de 1986 dançando na boite Delirius, usava calça comprida preta, blusa azul clara de brilho, sapatos de salto alto e bolsa a tiracolo. Cabelos tingidos de louro, olhos verdes”. Bonita. Aparecida está desaparecida. REGINA: Criança. Acho mais triste ainda. “Ana Claudia Martins Ferreira. Nasceu em 2003. Desapareceu em 2007 enquanto brincava na pracinha em frente ao seu prédio. Tinha 04 anos”. ALICE: Dá pra parar? JUNIOR: Me esquece. REGINA: “Usava vestido rosa e lilás, sandálias brancas”. ALICE: Não estou falando com você.

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REGINA: “Tinha um sinal no braço direito, na altura do ombro. Apelido: Cacau”. Nervoso que me dá ver essas fotos. Cada história. JUNIOR: Onde estão essas pessoas? ALICE: Sei lá. Ninguém sabe o que aconteceu. Nunca mais foram vistas, não há notícias. JUNIOR: Além de desaparecidas são esquecidas. REGINA: Às vezes ficam tanto tempo longe que quando aparecem a família nem reconhece mais. ALICE: Às vezes de longe a pessoa fica mais perto. JUNIOR: Às vezes vão tão longe que não tem mais como voltar. ALICE: Tem gente que não fala coisa com coisa. JUNIOR: Tem gente que finge que não entende. REGINA: (lendo) “Leandro Sampaio Rodrigues, nasceu em 81, desaparecido em 2002, quando saía do batizado do filho na Igreja Nossa Senhora da Conceição, no Engenho Novo”. Como pode? Sumir assim? Puff! Hoje deve estar com... 31 anos. ALICE: Será que depois de tanto tempo as famílias desistem de procurar? JUNIOR: Hoje eu estava andando na rua e me peguei olhando pra dentro dos ônibus, das lojas... Ela gostava de ficar andando aqui por perto. Tive a impressão de ter visto a mamãe umas duas vezes. REGINA: Que horas são? Tio Otavio está demorando. Já esta tarde. ALICE: Só falta Papai sumir também. JUNIOR: Bicho, eu sei onde ele está. Quer ir lá buscar? (Toca o telefone. Todos param o que estão fazendo, Alice atende). ALICE: Alô? Alô? É sim. Quer falar com quem? Um momento. Vanessa. JUNIOR: Eu não estou. ALICE: Um momentinho que ele já vai atender. JUNIOR: Oi. Tudo bem? E a Jessica? Já disse, Vanessa. Semana que vem. Semana que vem sem falta... Mais R$200,00? Nunca vi um bebê de 05 meses gastar tanto. O que ela ta mamando, whisky? Ta, foi mal. Você tem que entender, as coisas estão difíceis por aqui. Tem que entender.

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REGINA: Nome: Laura de Souza da Rocha . Vulgo ou apelido. Tia Laura tinha algum apelido? ALICE: Não. Não que eu saiba. REGINA: Nome do Pai. Como era o nome todo do seu Francisco? ALICE: Do vovô?

JUNIOR: Francisco de alguma coisa da Rocha. REGINA: Mãe: Vilma. JUNIOR: Vilma.... da Rocha REGINA: Data de nascimento? Que ano ela nasceu? ALICE: Agora você me pegou. 40 e alguma coisa? REGINA: Ela não tem 60 anos? Se tiver 60 nasceu em 49. ALICE: 59. 59 anos. Não tem 60 ainda. Nasceu em... 50? REGINA: Nacionalidade: brasileira. Altura. 1:60. ALICE: 1:65. REGINA: Tia Laura era da minha altura ALICE: Claro que não. REGINA: Nós tínhamos a mesma altura? ALICE: Nunca tiveram. Só se ela encolheu. JUNIOR: Depois de tanto tempo a pessoa esquece, Regina. REGINA: Estado civil? ALICE: casada. REGINA: cor da pele? JUNIOR: negra, (falar junto com ALICE) ALICE: parda! JUNIOR: Negra! ALICE: Parda! JUNIOR: Parda é papel, porra!

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REGINA: peso? JUNIOR: 70 Kg. REGINA: Ela não tinha emagrecido um pouco? Sexo: Feminino, cor dos cabelos: castanhos. Usa óculos? Sim. JUNIOR: Lentes de contato. ALICE: Não. Mamãe não usa óculos. REGINA: Há dois anos. JUNIOR: Pra perto? REGINA: Usa barba? Não. Tem bigode? Não. REGINA: Tem cicatriz ou tatuagens? JUNIOR: Isso a gente não pode afirmar 100% REGINA: Tem defeito físico? Não. Faltam dentes? (silêncio) Faltam dentes? JUNIOR: Nunca parei pra contar. REGINA: Usa dentadura ou ponte? JUNIOR: Tem que responder agora? REGINA: Tem desvios de conduta? JUNIOR: Quem é que não tem? REGINA: Sofre de faculdades mentais? ALICE: Não que eu saiba. REGINA: Já teve amnésia? JUNIOR: Só quando convinha. REGINA: Música preferida. (Pausa. Silêncio) ALICE: Musica preferida? REGINA: Livro de cabeceira? JUNIOR: Livro... REGINA: Sonho de consumo?

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ALICE: Quem ela levaria pra uma ilha deserta? (Pausa. Silêncio) JUNIOR: Aí vocês já estão apelando! REGINA: Data do desaparecimento. JUNIOR: 23 de janeiro de 2009. REGINA: Só ou acompanhada? ALICE: Só. REGINA: Desapareceu a pé ou de carro? ALICE: A pé. REGINA: Local do desaparecimento. Copacabana, Rio de Janeiro. REGINA: Roupas, sapatos e acessórios usados no momento do desaparecimento. Que roupa a Tia Laura estava usando? JUNIOR: Pergunta pra ele. OTAVIO CHEGA BÊBADO.

OTAVIO: Como dizia Drummond: “Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar”. ALICE: Estávamos te esperando. Deixou todo mundo preocupado. OTAVIO: Estávamos mantém o acento. Acento é importante. É o que distingue uma língua da outra. Estávamos te esperando. Agora não estão mais. REGINA: Vou fazer um café. OTAVIO: Gosto da língua bem falada. Meu livro é muito bem pontuado. Faço questão. Hoje em dia ninguém mais sabe pontuar, acentuar. Ninguém sabe usar uma vírgula, um ponto e vírgula, travessão, acento agudo, crase, circunflexo. Mas o novo acordo ortográfico vai colocar um pouco de ordem nessa baderna. ALICE: Pai, é melhor você tomar um banho. OTAVIO: O novo acordo ortográfico triplicou o mercado para a língua portuguesa. É um excelente momento para a língua portuguesa. ALICE: É um excelente momento pra você tomar um banho. JUNIOR: Deixa ele.

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OTAVIO: Chegou alguma correspondência pra mim? Atenção todos: Estou esperando uma correspondência importantíssima de uma editora. ALICE: Editora hoje em dia manda email, pai, não se preocupe. JUNIOR: Seu Otavio, que manguaça! ALICE: Você acha graça. Eu acho deprimente. JUNIOR: Deixa o cara. OTAVIO: Eles viram o potencial de vendas. Eu mostrei por A+B que se pelo menos 10% dos meus alunos comprarem o meu livro já é um best seller, antes de chegar às livrarias. Se eu for contar quantos alunos já passaram pelas minhas aulas durante todos esses anos... ALICE: Eles passaram e você ficou. Continua parado no mesmo lugar. Professor de Escola Pública. JUNIOR: Não fala assim. OTAVIO: Perdi a conta. Tenho aluno advogado, médico, político, ALICE: Bandido... OTAVIO: Bandido, todos formadores de opinião. Que vão divulgar o livro. ALICE: Esses mesmos alunos, que hoje são “formadores de opinião”, faziam piada de você na escola. Aliás, você deve ser motivo de piada até hoje. JUNIOR: Qual o seu problema? OTAVIO: Isso não é verdade. REGINA: Olha o café, tio. Senta um pouco. OTAVIO: Volta e meia eu encontro com um dos meus alunos e todos lembram do professor Otavio. E eu também. Lembro de cada um deles. Nome e sobrenome. ALICE: Só eu sei o que eu sofri no colégio. Eu e a Regina. Professor “Otavio Pé de Cana”, tomava “umazinha” e saía recitando poemas. Realmente você era muito popular. REGINA: Você esta sendo muito dura com ele. ALICE: Fala a verdade, a gente morria de vergonha. Chamavam a gente de “Alice Caninha da Roça” e “Regina Velho Barreiro”. Eu sentia um ódio! REGINA: O Tio Otavio era o melhor professor de português do colégio. Era não, é. Não é, tio? OTAVIO: Meu livro vai ser um sucesso.

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ALICE: Acorda. Poesia não vende. Vende pouquíssimo, quase nada. JUNIOR: Deixa o cara. REGINA: Tio, só mais um golinho. ALICE: Esse livro ainda é aquele que você estava escrevendo, há quatro anos? JUNIOR: Para de ser escrota. ALICE: Nem nome o livro tem. REGINA: O nome não importa, né tio? OTAVIO: Claro que não. O que importa é que eu escrevi com a alma. Com a alma na ponta dos dedos. Entende? ALICE: Vocês são patéticos. JUNIOR: Olha lá como você fala! Já passou dos limites. ALICE: Eu passei dos limites? Se tem alguém que passou dos limites foi ele! Cadê a mamãe? Diz! O que ele fez com ela? REGINA: Cala a boca. ALICE: A minha mãe pode ter sido sequestrada, pode ter sofrido um acidente, pode estar morta e ele só sabe falar dele, do livro dele, da loucura dele! Um fracasso que não tem limite, um ego sem limites. JUNIOR: Todo mundo erra de vez em quando. ALICE: De vez em quando? Cresci vendo ele escolher o caminho mais longo, o restaurante mais cheio, os passeios furados. Tudo passava por ele. Das pequenas escolhas do nosso dia a dia às decisões cruciais que afetaram a família inteira. Vendeu o pouco que o vovô tinha, ficou no mesmo empreguinho a vida toda... Enche a cara até hoje! REGINA: Não teve sorte. ALICE: Sorte é genética? Tomara que não! REGINA: Você não tem o direito de falar assim. ALICE: Quem é você pra dizer os meus direitos? Para de fazer pose, de bancar a boazinha. Você sempre disputou comigo pra saber quem era a melhor aqui nessa casa, quem se dava melhor com a mamãe. Nem da família você é. Chegou aqui e foi ficando. JUNIOR: Deixa de ser estúpida.

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REGINA: Tudo bem, Junior. Deve ser mesmo difícil saber que eu tenho muito mais afinidade com ela, do que você. Vocês não se parecem em nada. Sorte e afinidade não têm nada a ver com genética. Graça a Deus! JUNIOR: Por que você voltou? Pra tumultuar? REGINA: E tem mais, se é pra competir vamos lá. Quem é mais da família: você que é do mesmo sangue ou eu que fui escolhida? ALICE: Se você é da família, por que eles não te chamam de filha? (Pausa) REGINA: Escuta bem o que eu vou dizer pela última vez: Não adianta. Por mais que você queira me provocar, não vai conseguir. Essa é a minha casa. É assim não porque eu nasci aqui, mas por que eu cheguei e fiquei. Esse lugar é meu, e nem você nem ninguém vai me dizer que não é. Dá pra entender? Eu tenho direito de estar aqui tanto quanto você. Mas eu só estou aqui porque eu quero. Essa é a diferença. ALICE: Sabe qual a diferença entre a gente? Nenhuma. REGINA: Se eu saísse por aquela porta, agora, coisa que eu não vou fazer, ainda assim eu ainda estaria aqui. A minha “falta” estaria presente pra sempre. Põe isso na tua cabeça! ALICE: Você também foi embora. JUNIOR: Você devia ter ficado onde estava. Com aquele cafetão que te conheceu na praia. ALICE: Dobra a língua que o Christophe não trabalha mais com shows. JUNIOR: Shows? O ramo agora mudou de nome? REGINA: Agora esta trabalhando com o “Setor de alimentos”. Chicken food. OTAVIO: JUNIOR... JUNIOR… JUNIOR: Oi pai... OTAVIO: Sua mãe... LAURA... Você não vai acreditar... REGINA: Abre um pouco a camisa dele. JUNIOR: Pega um copo de água. Tá suando. REGINA: Tio, respira fundo. OTAVIO: Ela foi embora com as próprias pernas. JUNIOR: Fica quieto, pai, toma um gole de água. OTAVIO: Ou melhor, sob quatro rodas.

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ALICE: Não esta mais na idade de beber assim. OTAVIO: Hoje, o Josias. Sabe o Josias? JUNIOR: Sei, pai, o mecânico. ALICE: Tem que tomar água pra hidratar. OTAVIO: O Josias ligou pra falar do conserto. REGINA: Vou pegar mais café. OTAVIO: Eu disse: Pôxa, Josias, até que enfim, vou passar aí pra pegar o carro. O Josias me respondeu: Pra pegar, Seu Otavio? Eu respondi: É. Ele disse: Mas a Dª Laura levou o carro pronto, na semana passada, falou que depois o senhor passava pra acertar. (silêncio) Entendeu Junior? REGINA: Tá branco. Deve ser a pressão. ALICE: Tá é bêbado, a mamãe não dirige, pai. OTAVIO: Eu também achava que não, até hoje. Mas o Josias me garantiu que sua mãe ligou o carro, deu uma marcha ré bem dada, agradeceu, e saiu. Dirigindo. JUNIOR: Sem pagar o conserto? Mamãe não é caloteira. ALICE: Você ensinou a mamãe a dirigir, pai? REGINA: Ele deve ter confundido a Tia Laura com outra pessoa. JUNIOR: Não viaja, pai. OTAVIO: Ela foi embora!!!Será que vocês não entendem?! Eu fui procurar os documentos do carro, ela levou! Levou! Não aconteceu nada! Ela simplesmente foi porque quis. Por livre e espontânea vontade. Ela deixou a gente! Essa casa. Ela foi embora! (pausa) Ah, o Josias disse também que achou estranho uma coisa: LAURA estava com os pés sujos. De areia. CENA 10 -­‐ / LAURA -­‐ DEPOIMENTO LAURA: Outro dia eu fiz uma loucura. Saí do supermercado, e em vez de voltar para casa, sabe para onde eu fui? À praia! Não estava preparada, não tinha maiô, toalha, nada. Fui assim no impulso. Atravessei o calçadão, tirei os sapatos e fui andando pela areia com as sacolas de compras. Leite, café, feijão, açúcar. Quando me deu calor larguei as compras na areia e fiz igual a minha avó quando ia tomar banho de mar: enrolei o vestido entre as pernas e caí na água de roupa e tudo! Que delícia! As pessoas ficaram me olhando e eu nem aí. Só queria tomar banho de mar e aproveitar um pouco de sol. Sem filtro solar. Sem

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proteção. Queria fazer alguma coisa que estivesse ao meu alcance. Que eu poderia fazer, mas que eu não fazia ou que deixei de fazer nem sei por quê. Quando você quebra a ordem do dia a dia, uma decisão vai puxando a outra e. E quando você vê, já foi. O impulso toma conta de você. Saí da praia, ainda molhada e, em vez de voltar pra casa fui tomar um milk shake numa lanchonete. Há tempos que eu não tomava um milk shake. Me embriaguei de canudinho como se eu tivesse voltado à minha adolescência. O milk shake de morango me invadiu de uma felicidade instantânea! Nem me lembro da última vez em que eu me senti assim. Instantânea. Que Deus me perdoe, mas com você posso ser sincera porque você não me conhece, e a sinceridade mais verdadeira é com um estranho. A felicidade que eu senti indo à praia e tomando milk shake de morango, foi igual a que eu senti no dia do meu casamento, no dia em que nasceu a Alice e no dia do nascimento do Junior. Deus que me perdoe: igual, nem mais nem menos. Eu amo minha família. Tenho dois filhos, três, um menino, uma menina e a Regina que a gente criou desde pequena. Mentira. Três adultos, que eu cismo em chamar de meninos. Tenho uma casa. As festinhas. Às vezes eu fico me perguntando por que eu deixei de ir à praia? Eu gosto tanto de mar, de sol, andar na areia. Será que a gente muda e nem percebe? Eu sou outra. Se eu esbarrasse comigo na rua não me reconheceria. Quem é aquela mulher carregando sacolas de compras? Eu sou muito diferente do que eu achava que eu seria. Do que seria minha vida. Não culpo ninguém, imagina, somos cúmplices no papel que eu assumi, que nós assumimos, como família. CENA 11 – SALA OTAVIO: Agora eu estou assim. Perplexo. Não consigo entender. Com quem eu estava casado há mais de 30 anos? JUNIOR: O que ela fez não tem lógica: Ir embora sem avisar? Sem se despedir? Uma carta? Tchau. Estou bem. Já volto... ALICE: O que a mamãe fez foi a minha salvação. Não tem aquele ditado: “Deus escreve certo por linhas tortas” ou “Há males que vem para o bem?” Ela não sabe o bem que me fez. JUNIOR: Mas talvez ela tenha avisado. De outras formas. REGINA: Na semana passada, eu consegui ligar pra ela. Sabe como é? Muito trabalho. Correria. Não falava com Tia Laura há 03 meses. Ela atendeu o telefone e foi logo dizendo: Sabe quem esta chegando em breve? Eu perguntei: Quem? Ela: Alice. Eu disse: Falou com ela, tia? Ela respondeu: “Deve vir nos próximos dias para resolver umas coisas” e emendou em outro assunto de um jeito tão natural que na hora eu nem liguei. Se eu tivesse percebido o que estava nas entrelinhas. LAURA: Bolero, soltinho, fox trote, cha cha cha. Adoro todos os ritmos. Não posso dizer que nasci com a dança de salão no pé mas sou esforçada. E depois de um ano de aprendizado

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não fico esquentando cadeira no salão. Sou uma dama disputada. Tive, tenho, vários parceiros, já dancei com inúmeros cavalheiros. Vou passando de mão em mão sempre rodopiando. Sempre disponível para a próxima contradança. A primeira vez que fui tirada para dançar foi com um senhor careca, de bigode, bem mais baixo do que eu, Eu ri da cosquinha que o bigode fazia esbarrando no meu decote. O careca achou que eu estava gostando e se engraçou para o meu lado. Não pensei duas vezes: Encaixei um passe de salsa entre as pernas dele e Uuh! Bem feito! Depois desse dia aprendi a dançar sem sorrir para impor respeito. Foi difícil no começo, mas ao mesmo tempo me fez perceber o quanto eu estava condicionada ao sorriso automático lá de casa. Agora, nas aulas de dança eu penso antes. De rir. Sou “a dama enigmática” é como me chamam. OTAVIO: Faço tudo nesse quarteirão: Farmácia, supermercado, padaria, banco, bar. Gosto daqui, pra que sair? Sempre achei que a pessoa pode viver num quarteirão e... morar no mundo. ALICE: Eu larguei o Christophe há dois meses. Peguei os dois na minha cama. Ele e a boliviana que trabalha lá em casa. Mercedes. Não é a primeira vez que o Cristophe apronta. Cansei. REGINA: Fala a verdade: Quem nunca pensou em largar tudo e ir pra um lugar onde ninguém te conheça, começar tudo do zero? ALICE: Eu saí da boate, nunca fiz programa não ia ser agora que eu ia começar. Ou seja, minha vida esta uma maravilha: falida, sem emprego, sem ter pra onde ir. REGINA: Acho que nem se eu fosse filha de sangue seríamos tão parecidas. OTAVIO: Como uma pessoa pode mudar tanto? Ela mudou. JUNIOR: Você não? ALICE: Eu pensei em voltar, eu queria voltar, mas não sabia como. Não tinha coragem. Aí ela foi embora e eu voltei. Estou aqui. Graças a ela. OTAVIO: Eu achava que a gente só mudava os detalhes: um corte de cabelo, uma roupa nova. Me enganei. Tem gente que muda mesmo. De gosto, de vontade. Muda a própria vida. LAURA: Outro dia o Marcos, meu professor de dança, me disse: “LAURA, você freqüentas as aulas, os bailes, há um ano, e eu, praticamente, só sei o seu nome. Fala alguma coisa, pra eu te conhecer melhor”. Eu olhei para ele e pensei: “Pretensioso esse professor Marcos, a gente não conhece quem esta ao nosso lado, com quem a gente convive há anos, sabemos tão pouco sobre os outros. Querer me conhecer melhor? Agora? Depois desse tempo todo? Eu olhei pra ele e não disse nada, apenas sorri. Ele falou: Pelo menos ganhei um sorriso! Eu respondi: Duvido que você saiba o que esta por trás dele” e saí para dançar “El Dia que me

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Quieras” que estava tocando. Adoro essa música. É a minha preferida. (toca a música) Sempre foi. ALICE: Por isso que eu digo: a mamãe foi a minha salvação. É como se ela tivesse me estendido a mão, os dedos. Como se ela tivesse me dito: vem que dessa vez vai ser diferente. REGINA: Devia ter desconfiado. Uma pessoa sem problemas não é normal. Uma pessoa sem problemas tem algum problema, escondido em algum lugar. ALICE: Você acha que ela volta? REGINA: Se eu soubesse por que ela foi. JUNIOR: Ela volta, pai. Daqui a pouco ela ta aí. Acho que ela tirou umas férias. REGINA: Existe sempre a possibilidade de ir. Ir embora é uma possibilidade que deve ficar guardada num canto, para casos de emergência. OTAVIO: Ir é diferente de partir. Deixar é mais do que fugir e menos do que abandonar. Sumir não é o mesmo que desaparecer. Cada palavra tem um significado diferente. A língua portuguesa é mesmo fantástica. LAURA: Cheguei a pensar em convidar o OTAVIO para vir numa matinê de quarta feira, cheguei a pensar em mostrar para o JUNIOR minha evolução no tango, o ritmo que eu tenho mais dificuldade, cheguei a pensar em contar para REGINA se ela me ligasse um dia desses. Não achei que falaria com a ALICE, não falo com minha filha há tanto tempo. Fui deixando, continuei dançando, continuei. Hoje eles não saberiam acompanhar meu ritmo. CENA 12 – SONHO. MESMA IMAGEM DA CENA 1-­‐ IMAGEM PROJETADA: CHOVE. NUM BANCO ESTÃO SENTADOS: AO CENTRO, OTAVIO, A SEU LADO ALICE SUA FILHA, NA PONTA DO BANCO, MEIO DE LADO, JUNIOR, REGINA, A SOBRINHA. EM PÉ UMA POUCO MAIS AFASTADA ESTÁ LAURA, A MÃE. EMBORA ESTEJAM TODOS MOLHADOS O GUARDA-­‐CHUVA NA MÃO DE OTAVIO PERMANECE FECHADO. A IMAGEM PODE SER EM PRETO E BRANCO. AOS POUCOS A MÚSICA VAI ABAIXANDO E O BARULHO DE UM TIC-­‐TAC DE RELÓGIO APARECE). REGINA OFF: Tenho tido uns sonhos estranhos. Que se repetem A vida é repetitiva até em sonho. Acho que a vida se repete para dar a chance da gente acertar. De vez em quando a gente se surpreende com alguma coisa que altera o ciclo e a ordem do dia a dia, mas não demora muito tudo volta, ao mesmo lugar. Afinal de contas nos acostumamos com quase tudo nessa vida, até com o que nos surpreende. CENA 13 – SALA / TODOS OTAVIO: Acordei com vontade de tomar açaí REGINA: Já provou, tio?

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OTAVIO: Nunca. Acordei com a palavra na cabeça. Açaí. É uma fruta diferente, não é? JUNIOR: Roxa, tem gosto de terra. ALICE: Ele estava bem. Não lembrava em nada aquela figura triste de ontem. OTAVIO: Vamos? REGINA: Estávamos prontos. Naquele momento fizemos as pazes com o relógio. JUNIOR: Não tínhamos notícias dela há dez dias. ALICE: Saímos em direção à loja de sucos. Naquele dia meu pai descobriria o gosto que o açaí tem. CENA 14 -­‐ CENA LAURA – FLASH BACK. LAURA: OTAVIO, vou ao supermercado fazer umas compras, volto rapidinho para terminar o almoço. Quer alguma coisa da rua? Otavio? Junior? Otavio? (ninguém responde, ela vai embora). Fim.

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