ANTICLÁSSICO, UMA DESCONFERÊNCIA E O ENIGMA VAZIO de alessandra colasanti
ANTICLÁSSICO, UMA DESCONFERÊNCIA E O ENIGMA VAZIO de alessandra colasanti . Uma bailarina de vermelho, um punk, um piano, um microfone, sonatas de Chopin, um vídeo ilustrativo e uma guitarra imaginária. CENÁRIO: TAPETES PERSAS, UMA CADEIRA VERMELHA, UM PIANO MINIATURA DE BRINQUEDO, UM TECLADO YAMAHA, UMA SAMAMBAIA, LIVROS, UM BAR, WHISKEY, VODKA, DOIS ABAJURES BARROCOS, TRÊS ABAJURES CHINESES, UM GLOBO DE ESPELHOS, UM PAINEL PINTADO REPRUZINDO UMA BIBLIOTECA E CORTINAS DE VELUDO VERMELHO. AÇÃO: PLATÉIA ENTRA NO ESPAÇO, BAILARINA SE AQUECE, PRATICA ALONGAMENTO E LÊ “DOM QUIXOTE”, DE MIGUEL DE CERVANTES. PUNK FOLHEIA “AS PALAVRAS E AS COISAS”, DE MICHEL FOUCAULT. PUNK BEBE CERVEJA. ALGUMA INTERAÇÃO, INTIMIDADE E SERVIDÃO. APÓS O TERCEIRO SINAL BAILARINA INICIA SUA FALA, DE PÉ DIANTE DO MICROFONE. PUNK JOGA XADREZ, PENSA E TOMA SOL.
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BAILARINA -‐ Boa noite. Antes de me apresentar, de dizer o meu nome, propriamente, eu gostaria de pedir desculpas pelo atraso. “Des-‐culpa” -‐ interessante essa palavra. Não era a minha intenção. Mas vocês estão sabendo, né? Devem ter visto nos jornais, nas revistas, na TV, os helicópteros, enfim. Devem ter ouvido falar. Foi muito difícil chegar até aqui. Por quê? Porque tá um tumulto muito grande pelas ruas. São muitos índios, jagunços, caciques, paparazzi, correndo pra todos os lados, nesse momento de caos histórico, são muitas pessoas evacuando e copulando e pelas ruas. Depois-‐não-‐entendem-‐por-‐que-‐que-‐eu-‐falo-‐ mal-‐do-‐brasil. Bom, antes de me apresentar, de dizer o meu nome, propriamente, eu gostaria de agradecer a todos pela presença aqui essa noite; eu gostaria de agradecer à organização do evento pelo convite, é uma honra muito grande estar aqui, se-‐é-‐que-‐eu-‐estou-‐aqui, não só participando, como abrindo. GESTUAL ALEATÓRIO DE ABRINDO. Essa primeira edição, e por que não dizer a edição número zero desse Seminário Ausente Internacional, que esse ano acontece dentro da Quadrienal do Plágio aqui em Copacabana 1. Muito obrigada. -‐ Como ponto de partida, eu diria que a coisa em si é a não coisa. Quero deixar claro, é importante que se diga, que eu não tenho nenhuma 1
A menção deve se dar de acordo com o local onde a peça estiver sendo apresentada: Copacabana, Ipanema, Araraquara, etc.
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bandeira na manga, também não tenho nenhuma manga na manga, e também não tenho nenhuma manga, at all. Antes de me apresentar, de dizer o meu nome, propriamente, eu vou dizer que não. Não. Eu não vou me apresentar. E no lugar do meu nome eu vou dizer uma frase do Chet Baker que diz. What a difference a name makes. Parafraseando Tatiana Leskova, é fundamental fornecer as fontes, em seu livro “Uma Bailarina Solta no Mundo” eu diria: os russos não me consideram russa, os franceses não me consideram francesa e os brasileiros não me consideram brasileira. Fecha aspas. E eu não me considero eu. De fato, eu não estou aqui. Eu não sou eu. Eu sou o herói, a heroína, sei lá, sem trajetória dessa peça sem trajetória. Bem, como diria Benjamim, adoro, essa é a história dos restos da história e vocês são a platéia. Eu diria ainda, atenção, não confundir a lógica do sentido oculto, com culto do não-‐sentido. Primeiro parágrafo já foi. Aconselho anotar tudo o que eu falo, tudo o que eu falo cai! -‐ Isso posto, vamos apresentar a ementa desta noite. Conteúdo programático também disponível na internet, e no nosso news letter a cada 15 dias. PEGA ÓCULOS, LENDO FICHA. Primeiro eu vou dizer boa noite, depois eu vou pedir desculpas e achar interessante essa palavra, depois eu vou introduzir uma espécie de preâmbulo, teoricamente digressivo, mas na prática metonímico, vou chegar a esse momento aqui agora. PAUSA. OLHA DA DIREITA PARA ESQUERDA. Passou. Vou falar um texto, que é esse aqui. MOSTRA FICHA. Em seguida eu vou dizer que esse texto não é meu. Vou contar uma anedota, vou sim. Vou mostrar
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um vídeo ilustrativo -‐ com o perdão da má palavra, eu não gostaria de ofender ninguém, de criar nenhuma celeuma, com nenhum purista, com nenhum tradicionalista da contemporaneidade, trata-‐se apenas de um vídeo ilustrativo. Ilustrativo-‐no-‐sentido-‐de-‐vídeo, mesmo. E a título de contraponto, simultaneamente ao vídeo, eu vou o quê? Eu vou elencar. O quê? Uma série de perspectivas. De temas. De problemas. De questões. Enfim. Aparentemente sem nexo, mas com um objetivo muito. Como direi? Objetivo. Não esperem de mim uma palestra com princípio, meio e fim. Não esperem de mim uma palestra. Duvidem de mim. Tenham essa coragem. Duvidem de tudo que eu estou falando. E lembrem-‐se. É muito importante isso. Estão anotando? É preciso realocar os velhos paradigmas. Adóessafra. E logo após o vídeo abriremos uma janela -‐ metafórica. Para uma narrativa provocativa, que será acompanhada de um coffe-‐break-‐brain-‐storm. E em seguida, finalmente, abriremos para as perguntas da platéia. Eu aviso logo que eu não sei se eu vou responder às perguntas de vocês, não por nenhuma razão, mas porque simplesmente eu não me sinto detentora de nenhuma verdade, até mesmo porque eu nem sei se é possível se falar em verdade nos dias de hoje. Sobre esse tema, qual seria o tema? A questão da verdade, alguém aqui não concorda comigo? Então, sobre esse tema eu indico uma bibliografia básica, dois livros fundamentais, que eu cito aqui apenas a título de reiteração, pois certamente todos aqui já leram, “La Faculté de Jugér”, de Derrida, não foi traduzido no Brasil, e um livro meu, “A Grande Trapaça da Verdade”, esgotadíssimo; mas, talvez pela Amazon vocês consigam a edição portuguesa, que é uma excelente tradução, ou senão a própria edição original mesmo em
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inglês que é perfeita. Isso não quer dizer que vocês não possam perguntar. Vocês podem perguntar. Vocês devem perguntar. Eu é que não sei se eu vou responder. Que gênero é esse? É uma questão. Guarda isso que mais adiante a gente retoma. Aproveitaremos para vender alguns produtos – e eu não me envergonho disso, em absoluto, estou em sintonia com meu tempo histórico; e encerraremos a explanação dessa noite com um número de air guitar: a guitarra imaginária. TIRA ÓCULOS. É TOMADA POR UMA IDEIA. Ah! só um minutinho que eu tive uma ideia. ANOTANDO E REPETE PARA SI. Só-‐um-‐mi-‐nu-‐ti-‐nho-‐que-‐eu-‐ ti-‐ve-‐u-‐ma-‐i-‐deia. -‐ Bom, podemos começar? Boa noite. Antes de me apresentar, de dizer o meu nome propriamente, eu gostaria de parabenizar a todos pela presença aqui essa noite. Foram enviados mais de 22.843 currículos, mais de 22.834 pessoas enviaram seus currículos na expectativa de poder estar aqui essa noite. Eu li todos. Eu gostei muito do que eu li. Portanto, esse é um momento de grande alegria. Parabéns a todos vocês, os 35 2 selecionados pela presença aqui essa noite na Societé Française de Philosophie. Lundi, mardi, mercredi, contemporanité. FALA FRANCÊS, SE DÁ CONTA, CORRIGE. Desculpa é muita coisa. É o jet leg. Como-‐é-‐que-‐se-‐fala-‐isso-‐mesmo-‐em-‐português? Enfim. Tanto faz. De fato, como eu aprendi com o professor Jarry no Collège de France. FALA COM SOTOQUE FRANCÊS. E toda vez que eu falo no Collège de France eu lembro da questão do Barthes, do Roland Barthes, que todos dizem 2
De acordo com lotação do teatro na noite.
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que foi atropelado quando estava saindo do Collège de France, ça c’est um falacie, é uma falácia, é mentira, não é verdade, parce que o Barthes está vivo, está em Menphis, ele sempre me liga, enfim. FALA COM SOTOQUE INGLES. Se alguém quiser o telefone dele depois da conferência eu posso dar, but. VOLTA A FALAR COM ACENTO BRASILEIRO. Conforme eu aprendi com o professor Jarry no Collège de France, e que toda vez que eu falo no Collège de France eu lembro da questão do Barthes, mas, enfim, vamos tentar avançar! Eu deveria ter aprontado essa desconferência, eu deveria estar apresentando aqui um material já concluído. E quando eu digo concluído eu quero dizer... no-‐ sentido-‐de-‐conclusão, mesmo, né? De fato, a presente proposta se apresenta muito mais no sentido de uma contra operação, é muito mais um trabalho de desconstrução do que de construção. Calma. Sobre Derrida nós vamos falar depois. Estão anotando? Derrida é o autor da emblemática frase, que eu cito aqui apenas a título de reiteração, porque, enfim, certamente todos aqui conhecem, que diz: “A linguagem se cria e cria mundos”. Agora, interessante pensar, né? Quando eu tava vindo pra cá, ou-‐indo-‐pra-‐lá-‐já-‐não-‐sei-‐já-‐não-‐lembro, eu li no jornal que a Toshiba acaba de criar o menor HD do mundo, o que aponta a priori para a contingência dogmática entre o Ser e o Significado, mas sobre isso nós vamos falar a posteriori. Na verdade, se é que se pode falar em verdade hoje nos dias de hoje, eu irei apresentar o que aqui hoje? É uma pergunta que se faz. Eu irei apresentar algumas possibilidades, alguns caminhos, e por que não dizer, alguns descaminhos, inclusive. Adoessapalá. E conto com a ajuda de vocês, como receptores ativos na complementação do não dito. Enfim, concuacolaboraçã de vocês. Nessa
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parte aqui, nesse parágrafo aqui que acabou de passar, eu deveria ter dito um texto do Foucault, eu deveria ter dito um texto do Michel Foucault, mas eu não fiz isso. Eu deveria ter dito o texto de abertura da conferência, da magistral conferência, “O que é um autor?”, proferida por Foucault, na Sorbonne no dia vinte e dois de fevereiro de 1969, mas eu não fiz isso, eu não fiz isso, e eu acabei falando um texto meu, né, acabei falando um texto meu. Agora interessante pensar, a partir do advento da morte do autor, enfim, se não há autor por trás do texto, na verdade eu não sei quem falou, se quem se falou foi o próprio texto, ou o quê, mas, enfim também não tá mais aqui quem falou. ACHA GRAÇA. Sobre Foucault, eu tenho uma história interessantíssima, essa é a parte que eu vou contar a anedota, uma história curiosa, quando o Foucault veio ao. RI, ARFA. Brasil -‐ desculpe é que eu acho esse país muito engraçado -‐ quando o Foucault veio ao Brasil na década de 70, convidado pela PUC, lhe foi oferecido um jantar, um jantar prestigioso em sua homenagem e, ninguém sabe o que aconteceu, isso se tornou uma lenda, um folclore, no meio acadêmico carioca, porque ninguém foi nesse jantar, é, ninguém foi. Mas o Foucault foi. O Foucault foi, e o Foucault ficou, Foucault, ficou, ficou Foucault, Foucault lá, Foucault ficou, Foucault, ficou, ficou Foucault, Foucault lá Foucault ficou, Foucault, ficou, ficou Foucault, Foucault lá. Foucault foi né? Morreu. Na década de 80 assim como muitas outras coisas. Mas afinal? Vocês me perguntarão. GESTO DE “SEGURA ISSO”. Outra questão que se coloca: com quantos clássicos se faz uma canoa? Que horas são? É dos clássicos que elas gostam mais? Are the classics the girls best friends? Em
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português: Os clássicos são eternos? E ainda: um livro que nunca foi lido pode ser considerado um clássico? São questões. São questões. -‐ Sobre isso eu tenho uma teoria muito interessante, mas depois eu falo, enfim, vamos seguir a ementa, vamos passar ao vídeo ilustrativo. PARA PUNK. Hamlet por favor. VÍDEO ILUSTRATIVO PROJETADO EM UM TELÃO, ACOMPANHADO PELA SONATA op 9 nº 2 DE CHOPIN, E FEELINGS DE MORRIS ALBERT, EXECUTADAS POR HAMLET EM SEU PIANO DE BRINQUEDO. NO VÍDEO, IMAGENS DE INTERIORES DE MUSEUS, TURISTAS EUFÓRICOS, FOTOS, LOUVRE, MONALISA, VERÃO EM PARIS, ETC. BAILARINA FALA E APONTA PARA O VÍDEO. BAILARINA -‐ Estamos aqui diretamente, ao vivo, de dentro do enigma vazio, são exatamente... que horas são meu amor? São 19 horas e 36 minutos do dia... Que dia é hoje? Do dia 19 de dezembro de 20063 . Tá bastante complicada a situação por aqui, cortes epistemológicos sistemáticos deixaram a superfície das coisas impraticável. A desconstrução foi brutal. São muitas sombras de dúvida vagando em bando, muitos bandoleiros de Schiller sem bandolim, muitos mercenários na área em 3
(data e hora da apresentação).
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busca de objetos de valor moral. A devastação é impressionante, Hamlet. Temos aqui muitas baratas protagonistas à procura do autor, e nenhum antagonista por aqui. Estamos aqui diretamente ao vivo do maior beco sem saída de todos os tempos. São muitos fragmentos espalhados por toda a região. ARFA. Tá difícil respirar. São muitas teorias conspiratórias em suspensão e a mais propagada delas é a, assim chamada, teoria do caos, tá difícil de entender. São muitas rodas de bicicleta sem bicicleta, são muitos urinóis nas galerias e fezes, fezes de artista sendo comercializadas também. Chchchcch. Uma forte chchchcchchuva de humor ácido, e ironia Hamlet, muita ironia por aqui. Estamos aqui diretamente dos escombros do castelo de areia. Tremores, subversões, inversões, apropriações, e deslocamentos são freqüentes. São muitos paradoxos. Tá difícil precisar. Eu não sei dizer direito o que quê é. É o paroxismo do paradoxo? É a práxis do paradoxo? É a paródia do paradoxo, ou o quê? Por sinal, quando eu tava vindo pra cá, ou-‐indo-‐ pra-‐lá-‐já-‐não-‐sei-‐já-‐não-‐lembro, eu vi que estão vendendo paradoxos nos sinais. E eu estou vendendo o ar de Paris, engarrafado, com selo de qualidade, de garantia, quem estiver interessado é só falar comigo no final da conferência. E por falar em sinal -‐ PISCADELA PARA PLATÉIA -‐ os sinais, os signos, os significantes, enfim, ninguém sabe onde começa uma coisa e onde termina outra, ou vice e versa, ou vice e versa, ou vice e versa, enfim. Daqui podemos ver, é uma disputa, hordas de princípios nômades queimando livros e desafiando, é briga, é briga, segura, segura, partiu pra cima dele, partiu pra cima dos discursos autofágicos provenientes das montanhas geladas, ih, caramba. Pergaminhos dão conta de que aos discursos só resta comerem-‐se uns aos outros como
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única forma de sobrevivência. A cada 12 minutos uma pessoa é assaltada nas ruas da terceira margem do Rio. Parece que o Estado é um funcionário fantasma, não sei se é verdade, tô só repetindo o que me mandaram dizer. Não acreditem em quem se auto-‐proclame fiscal de fronteira. Repito, todas as fronteiras foram apagadas. Há um delírio individual generalizado por aqui, que eu já nem sei mais se é aqui mesmo, ou o quê, mas enfim. Parece que a contra revolução fracassou, e Utopia é uma estação de rádio AM. Como diria Lacan, quem sabe faz a hora e o seu tempo acabou. Inclusive, eu falo sobre isso no meu livro, na página 53 do meu livro, se vocês, enfim, tiverem interesse, meu livro, um livro inteiro só de páginas 53. Estamos aqui diretamente do olho do furacão -‐ PISCADELA PARA PLATÉIA -‐ e ele está cego, gente, nem tudo que se vê é e muita coisa que não se vê é. As sinfonias estão inacabadas. Parece que a inteligentsia internacional possui uma lista de possíveis suspeitos, e entre eles estariam... humpf...não...humpf...não, não, não, acho que não posso. Não, não, não posso falar, eles estão por toda parte. PUNK -‐ Ah, fala Ofélia, fala! BAILARINA -‐ Não posso falar Hamlet! Esses são dados dadaístas. E eu não sou Ofélia, pô! Em casa a gente conversa. Tá querendo se mostrar para as pessoas?
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CLIMA. Estamos aqui diretamente do labirinto de espelhos. Tá difícil fixar. Não há mais diferenciação entre os sexos nem entre gêneros, nem entre gênios, aliás, porra, tá difícil saber o que é gênio e o que é gênero. As categorias estão contaminadas. A lógica interna foi deportada. Os falantes tentam se fazer entender, mas tá difícil. E eu sou a prova viva disso. De que os falantes tentam se fazer entender, mas tá difícil. Então vamos aproveitar pra gente se conhecer melhor. Essa é a foto dos meus sobrinhos. PEGA FOTO POLAROID. Esse é o Roberto e esse é o Pós-‐ Roberto. Não... Esse é o Roberto e esse é o... Pós-‐Roberto... Enfim. Adoro esses meninos. E eles são completamente diferentes. O Roberto acredita na salvação do mundo, é um idealista, utópico, revolucionário, cheio de ímpetos de ruptura, de transgressão, de negação, o seu filme predileto, por exemplo, é “Deus e o diabo na terra do sol”, por aí você já tem uma ideia mais ou menos de como é a pessoa. E o Pós-‐Roberto é como? ACHA GRAÇA. Não é que eu goste mais dele, não. O Pós-‐Roberto é uma espécie de João sem braço, sabe? Vive pregando peça nas pessoas, diz que tá num lugar, não tá, tá em outro, um piadista, irônico; o seu filme predileto, por exemplo, eu nem sei qual seja, mas certamente é o quê? É um remake de um não filme, um filme ausente, alguma coisa assim, esse tipo de coisa que o Pós-‐Roberto curte. PUNK -‐ Ofélia telefone pra você.
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BAILARINA -‐ Quem é. PUNK -‐ O Novo. BAILARINA -‐ Quem? PUNK -‐ O Novo. BAILARINA -‐ De Novo?! PUNK -‐ É. BAILARINA
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-‐Não, gente, tô ocupada, não tá vendo? Não tenho tempo, anota o recado, quando puder eu ligo pra ele. GESTO PEDINDO A HAMLET QUE ANOTE O NÚMERO. Vamos lá. Estamos aqui diretamente do vão entre as babouskas. HAMLET GESTICULA AO TELEFONE. Não, estamos aqui diretamente da proa, não, da popa, sei lá, do navio fantasma, enfim, estamos aqui diretamente ao vivo de dentro da barriga da baleia. Estamos aqui diretamente das ruínas da biblioteca de Alexandria. Relatos dão conta de maldições e epidemias entre um grupo de intelectuais que imprudentemente abriu uma série de significados ocultos no Egito. Não sei por que gente, mas tô achando que o Pós-‐ Roberto tá metido nisso... A cara dele isso... Há muita especulação. É impossível, repito, repito, repito, repito, repito, repito, repito, repito, repito, repito, repito, repito, repito, repito, é impossível distinguir as fontes, tudo é intertexto, dizem que não sobrou nada além do horizonte de expectativas e que, mutatis mutandis, é tudo ficção Horácio. PUNK -‐ Hamlet. BAILARINA -‐ Então. Atenção! Atenção! Não entrem em síndrome do pânico! Não entrem em síndrome do pânico! Tá problematizada a situação por aqui. Estamos aqui diretamente da falha histórica de Santo André e tem bastante gente já faturando com a situação Rosenkranz, Guildenstern,
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sei lá. Inclusive gente, o Hamlet tá passando. O Hamlet tá passando clássicos da literatura. PUNK CAMINHA ENTRE A PLATÉIA VENDENDO LITERATURA DE CORDEL. O Hamlet é gente nossa, pode confiar. Eu indico especialmente um dos títulos -‐ um clássico a ser lançado-‐ não sei direito o que quê é, se é um conto, uma novela, um romance, um HQ, ou o quê, mas tem um story line bem interessante, onde o sujeito e o objeto são gêmeos univitelinos que foram separados na maternidade e passam a história toda tentando se reencontrar. E também, eu tô vendendo o meu peixe, eu estou vendendo aqui o carnê museu para todos. Um único carnê que dá direito a ingressar em todos esses museus aqui: tem o museu da imaginação, inclusive foi assaltado semana passada, não sei se vocês viram, tst, tst; o museu da transgressão, bárbaro; o museu da repetição, só uma obra em loop permanente, faz pensar; o museu da aura, belíssimo, super clean, só aura, cool, bem cool; o museu do monocromatismo, muito legal, só telas monocromáticas, super colorido, pra toda a família, indico; e o museu da morte, né, gente, tá todo mundo enterrado lá, o autor, a figura, o sujeito, a História -‐ uma espécie de Pére La Chaise conceitual -‐ Deus, a moral, o século XX, com um epitáfio modernérrimo logo na entrada, e a própria arte, né gente. Esse é o cenário, caros ouvintes da rádio Utopia AM, não tem centro, não tem periferia, não tem perspectiva, nem ponto de fuga. Os ficcionistas foram expulsos do paraíso. O eterno retorno saiu pra comprar cigarro e nunca mais voltou. Passada a onda das vanguardas o resultado é: a)dantesco e deleitoso? b)um dialeto deja vu? ou, c)um dilema dilatado? Como diria Heráclito a vida humana é uma folha xérox ao vento, ninguém sabe, ninguém viu. O rei está nu, o caixeiro viajante
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está morto, enterrado e jogaram a chave fora. Ou como diria o neurótico avant la lettre é aflitivo, mas é bom. O mar quando quebra na praia é bonito, é bonito, e é bonito. E não é stricto sensu. Diante disso eu perguntaria: só é possível filosofar em alemão? Ou não? O que acontece? Com o mundo? ACHA GRAÇA. Essa pergunta não tem resposta. FIM DO VÍDEO ILUSTRATIVO. FIM DO CONCERTO. BAILARINA -‐ Eu gostaria de aproveitar essa proximidade, agora que nós já pegamos uma certa intimidade, para fazer um apelo, um alerta, um apelo-‐alerta, um híbrido, por favor, não se assustem, não entrem em pânico, mas nós temos, aquí, agora, dentro dessa sala, um camaleão, um camaleão, perdido aqui dentro dessa sala, não se assustem, não entrem em pânico, ele é manso, ele não morde , é o nosso pet, nós não estamos conseguindo encontra-‐lo, caso alguém consiga ve-‐lo, por favor fale com a gente. (CHAMANDO) Zelig! Zelig! Tst tst… HAMLET ATENDE UM TELEFONE VERMELHO. PUNK
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-‐ Ofélia telefone pra você. BAILARINA -‐Quem é? PUNK -‐ Se eu fosse você eu atendia.... BAILARINA -‐ " se fosse eu..." num entendi... Ai gente, bem na hora do coffe break. PARA PLATÉIA. Essa é a hora que vai rolar o coffe break. PARA HAMLET. Dá aqui. Mô, aproveita passa um cafezinho pra gente? Usa aquela cafeteira que a Rosa de Luxemburgo deu pra gente a última vez que a gente foi pra Praga… BAILARINA AO TELEFONE. -‐ Alô, oi mamãe...sei... ah, aquela coisa né mãe, os pilares ruíram.... PARA HAMLET. Mô, aproveita passa aquele palmier do Le Corbusier pro pessoal... AO TEL. Oi mamãe, tô aqui, sei, sei... ah, Carlinha com aquela crise...dos valores...que não passa...humhum...falei, falei, falei mamãe,
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claro que eu falei, falei pra ela que a gente vive numa época vazia onde concepções políticas, crenças, idéias, sensibilidades, enfim, formas de existência e visões do mundo que antes pareciam dar sentido às coisas perderam o valor, falei mamãe, falei, claro que eu falei, mas ela não me escuta...sabe como é, nessa idade...é...sei...tá com a infiltração...sei no box..sei...no banco? Não, mamãe, não vou no banco hoje, não...mãe, eu tô no meio da aula...Sorbonne? Que Sorbonne, mamãe? Não, essa bolsa já terminou faz muito tempo, mamãe. O quê que, é? Eu tô em Copacabana4 agora, mãe. Precisa jogar isso na minha cara? Pô, toda vez isso...hum...eu sei mamãe! Que a ópera é uma manifestação do século XIX e a canção do século XX! ...E daí, mamãe?...Tá, tá, tá. Eu tenho que desligar...humhum...ó ! Não esquece da ração, hein!. Razão não mamãe, ração. Ok! Beijo. Beijo na vovó. DESLIGA. PARA PLATÉIA. Ai gente, desculpe, minha mãe sempre me liga. Ela sabe que eu tenho horror a monólogo com cena de telefone! BAILARINA CAMINHA EM DIREÇÃO À CADEIRA VERMELHA COMO VELHA. COM DIFICULDADE DE LOCOMOÇÃO. HAMLET A AMPARA. BAILARINA -‐ Ai meu Deus do céu, tô precisando dá uma descansada, gente, esse vai e vem, esse pega pá capá, essa coisa toda, esse fuzuê, tá acabando comigo. E o peso da história? Hein? E o peso da história bem aqui na 4
De acordo com local da apresentação.
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minha ciática? E a herança cultural? Herança cultural é que nem família a gente não escolhe não. SENTA COM DIFICULDADE, E RECOMPÕE IMEDIATAMENTE. Calma, calma pessoal, brincadeira. MOMENTO COFFE BREAK: A BAILARINA SENTADA EM SUA CADEIRA VERMELHA. HAMLET SE OCUPA DA TRANSFORMAÇÃO DO AMBIENTE. LIGA UM GLOBO DE ESPELHOS. UMA LUZ ESTROBOSCÓPICA. MÚSICA DE FUNDO, JAZZ. SERVE DRINKS E PASSA UM CAFÉ. BAILARINA -‐ Eu gosto muito desse encontro com a minha recepção, vocês, essa recepção maravilhosa, que sabe melhor do que ninguém que é no encontro com a recepção que a obra se realiza. TIRA FOTO DA PLATÉIA E MOSTRA O VISOR. Aqui, vocês dentro da obra. Palmas pra vocês. Eu gosto muito de bater esse papinho com a minha recepção durante as minhas explanações porque eu acho que funciona como uma janela no discurso, eu acho que funciona como um break, eu acho que funciona como um casual break, e por que não dizer como um breakstorm? Eu adoro essa expressão, que eu mesma criei. (T) Na verdade esse é um momento muito delicado pra mim. Eu sofri um acidente. Eu não sei, eu não me lembro. Não sei se foi em 1789, em 1929, se foi em 2001, ou 69, mas me lembro como se fosse hoje, era um dia de primeiro de abril, eu sofri um acidente, eu não sei mais, não me lembro, se foi de avião, se foi
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de carruagem, ou se foi de percurso, mas o fato é que eu perdi completamente a memória. Portanto, sempre que, tipo assim, rola um flash back eu gosto de falar, que é pra ver se fixa; o que em psicanálise nós chamamos da fixação através da fala. GESTOS ALEATÓRIOS. -‐ Então, a Monalisa uma grandessíssima amiga minha, inclusive na época em que eu morei no Louvre, a gente não tinha um contato direto, aquele tête-‐à-‐tête, porque a Monalisa, como vocês sabem, é uma estrela, e ela tem uma sala do museu só pra ela, e a parte do Dégas fica um pouquinho mais afastada, um pouquinho, assim, descentralizada. Mas mesmo assim, nós nos tornamos grandes amigas. E nós batíamos altos papos sobre arte, sobre o em si, que era um faxineiro gostosinho que trabalhava no Louvre naquela época, e sobre toda a questão dos ismos. Na verdade – se é que se pode falar em verdade nos dias de hoje -‐ agora que a gente tá pegandointimidade eu posso falar -‐ difícil, complicada, pessoa complicada, complicada relação com a Monalisa , tá sempre com aquele meio sorrisinho na cara. Tá rindo de quê? É da minha cara? Te deixa insegura. Tô com a cara suja, o que quê é? Não tem a menor graça, minha filha. Não tem a menor graça, inclusive, porque à noite eles desligam a calefação -‐ calefação vocês sabem né? É o sistema de aquecimento do Louvre, e da Europa de maneira geral. E pra nós bailarinas era um suplício, era um frio terrível, isso sem falar naquela infinidade de nus, naquele bando de gente pelada espalhada naquele museu, é no óleo sobre tela, alto-‐relevo, baixo-‐relevo, vaso, ladrilho, presilha, todo o estatuário do Louvre, não sei se algum instituto
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de estatísticas já focou -‐ Foucault não, focou -‐ mas se fosse feito um levantamento, o quê? Eu diria que pelo menos 50% das obras residentes no Louvre, tão o quê? Tão nuas, né? Absolutamente expostas. Imagina. Eu, uma ativista marxista na época, estava na iminência de fazer circular um abaixo assinado contra o desligamento da calefação no museu, mas tive que deixar às pressas Paris porque nós tínhamos uma tournée agendada na América Latina. E a nossa primeira exposição foi no MASP em São Paulo. Aí eu desbundei. Aí eu desbundei. Era a época da tropicália aqui no Brasil. Brasil, esse país maravilhoso onde não tem maremoto, não tem furacão, esse gigante adormecido, com essa malha acadêmica excepcional. Eu fiquei louca, fiquei muito encantada com o Brasil, que na época era um outro Brasil, mas que também se chamava Brasil. Então eu tava ali no MASP, não tinha ninguém, uma coisa assim bem terceiro mundo, e eu tava morrendo de fome, tava starving, de repente passou um jabuti, passou um jabuti e eu perguntei pra ele: senhor jabuti, onde é que tem uma creperie por aqui? Daí o inimaginável aconteceu, ele virou pra mim e disse: não tem nenhuma creperie no Brasil. Eu fiquei completamente bouleversada! Imagina, como assim não tem creperie no Brasil? E não tinha mesmo. Não tinha nada no Brasil naquela época. Hoje em dia começa a ter uma coisinha, ou outra, mas naquela época, não tinha nada. Mas ninguém me avisou! Eu só sei que eu xinguei tanto aquele jabuti, xinguei tanto , porque eu não sabia. Depois eu vim, a saber, que se tratava de um personagem famoso, importante da literatura aqui de vocês, “o jabuti”. Aproveitei uma falha na segurança do museu, o que não foi difícil, e saí pra dar um rolé, ou rolê, como eles diziam em São Paulo naquela época. Saí pra dar
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um rolê na Avenida Paulista, e não voltei nunca mais. Porque encontrei logo um pessoal meio folk, meio naif, eu não sabia direito o que era, uma coisa meio rumba, meio capoeira, meio, meio...enfim uma coisa esdrúxula, estranha, bem idiossincrática, mas extremamente sedutora, uma síntese por assim dizer da idéia do que vem a ser o conceito do assim chamado homem tropical. E eles me receberam muito bem nesse grupo, me receberam de calças e braços abertos. Esse pessoal era muito, a gente se tocava muito, de maneira que eu acabei entrando na Kombi que tava de partida pro Rio de Janeiro. Esse pessoal era um pessoal muito criativo que fazia arte nos sinais. E naquela época o Rio de Janeiro já despontava como líder dessa fatia do mercado internacional da arte, que é a arte dos sinais, e hoje é isso que a gente vê por aí, essa maravilha, essa febre, esse sucesso, o Rio realmente se confirmou como líder dessa fatia do mercado internacional da arte, exportando know-‐ how pro mundo todo, hoje em dia não tem sinal um onde não tenha um artista. Uma maravilha. E foi nessa época que eu conheci Diaghilev. Eu tava num sinal, ali, perto da Praça Tiradentes – uma zona de baixo meretrício que tem no Rio de Janeiro – e Diaghilev passou. Diaghilev passou e me levou com ele. Diaghilev, essa força da dança russa, um hedonista sensual no palco, e fora dele inclusive, me apresentou seus amigos, e logo nós formamos um grupo itinerante dançando ballets russos pelos sinais da União Européia. Era uma dança nova, era uma dança moderna, nós éramos muito vívidos, eu, Diaghilev, Nijinsky, Anna Pavlova... a gente tinha uma competiçãozinha, porque, ela não admitia, porque eram todos loucos por mim: Diaghilev, Nijinsky, Balanchine -‐ que fundou o New York City Ballet -‐ e no fundo no fundo a própria Ana
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Pavlova era apaixonada por mim, mas eu não sabia nada do mundo, eu não sabia nada da vida, e eu não sabia direito o que era aquilo, todmumechupantodmumepegan, eu era muito nova, eu era muito linda, eu era deslumbrante. Foi quando um grupo sueco surgiu numa bacanal, isso em 1920, e os suecos espalharam muita polêmica pela Europa, porque os suecos introduziram o cubismo no balé. E foi nessa época , porcaucenáriosnumseioqnãnãnã, que eu namorei o Picasso. Eu gosto muito contar essa história, eu falo mesmo, falo sempre em todas as palestras, colóquios, conferências, talk shows, cafés literários, porque o Picasso é o perfeito exemplo da disparidade entre o significante e o significado, porque não condiz o nome com a coisa, porque enquanto o nome se apresenta assim como uma hipérbole, a coisa em si -‐ eu tô rindo , porque tô até me lembrando – era de dimensões liliputianas, por assim dizer. Tô brincando, gente, o Picasso é super meu amigo, eu adoro ele, ele sempre me liga, isso já é um assunto inteiramente outro, isso já é outra conferência. (T) A verdade é que eu não tava preparada, ninguém tava preparado, ninguém tava preparado pras contradições na arte. Ninguém tava preparado pras contradições na arte contemporânea iminente, por que nasceu tudo ali, né gente, nasceu tudo no dadá, nasceu tudo no dada; os anos loucos, era tudo muito nonsense, o czar não entendia , cortou o patrocínio, resultado, o grupo se dissolveu, eu tive que deixar São Petersburgo, que já não se chamava mais São Petersburgo, não sei o que era, se era de bom grado, se era Leningrado, o que era, nunca entendi. O absinto tinha sido proibido, aqui tem, tá servindo , né, Hamlet? Não, faço questão! Por minha conta! Rimbaud tinha desaparecido na Absínia. Tchaikovsky e Stravinsky caíram em
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ostracismo. Eu já não agüentava mais o Nijinsky atrás de mim, colado no meu pé, todo lugar que eu tava lê tava, uma coisa chata, desagradável. O outro menino também, o pimentinha lá, o Van Gogh, toda hora me mandando flores, me mandando flores, me mandando flores, desculpa, meu bem, eu não gosto de qualquer flor! Ok, foi legal, foi gostoso, mas e aí? Quer o quê? Quer casar? Século XX! Eu falei pra ele, eu falei, mas ele não me deu ouvidos. Foi nessa época que Stanislavski começou a beber, Tchekhov tomou gosto pelas cartas e o teatro de arte de Moscou foi interditado. Stanislavski muito esperto teve um insight, foi para Nova York; começou a fazer palestras pra sobreviver. E eu devo muito da minha técnica em oratória a ele, porque na época o Stanislavski não falava inglês (acontece), e eu consegui um emprego como intérprete do Stanislavski. Daí eu conheci muita gente, conheci muita gente na América, quase fiz Gilda, mas eu era muito magra para os padrões hollywoodianos da ocasião, fiz uma ponta, não me envergonho disso, fiz sim, uma pontinha num filme do o Elvis, no Hawaii, namorei o Elvis, mas enfim aqueles bangalôs, balneário tenho horror. Peguei uma carona num avião de carga com o Joseph Beuys fui para em Nova York. Cheguei em Nova York tava aquela loucura, aquela efervescência, aquele fluxus! Tava todo mundo lá no Studio 54: Calvin Klein, Lisa Minnelli, Brooke Shields, Andy Warhol. Conheci o John Cage no set do Woody Allen, namorei o John Cage, que inclusive compôs para mim a peça para piano intitulada 4'33". HAMLET AMUADO EM UM CANTO. O Hamlet não gosta que eu fale, né amor? Mas ele fez mesmo, fazer o quê? Toca um trechinho pra gente, amor? Ah, toca , por favor.
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BAILARINA FAZ CHARMINHO. HAMLET VAI ATÉ O TECLADO , SENTA, ESTALA OS DEDOS, CONCENTRA-‐SE. EXECUTA 4’33”. ENCARA AS TECLAS. SILÊNCIO, APARENTEMENTE SÓ A BAILARINA OUVE . E SE COMOVE. PAUSA BAILARINA -‐ Linda, né? APLAUSOS DA PLATÉIA. Saudades do Cage... Foi nessa época que eu resolvi me estabelecer definitivamente em Paris, eu não tinha nem um tostão, eu tinha perdido a minha identidade, eu tinha o quê? Tinha glamour, tinha status, tinha um modus vivendi, um way of life, mas dinheiro não tinha. Para comprar uma baguete, um patê de foie chinfrim, uma latinha de creme de marrom que fosse, não tinha. Eu tinha uma bicicleta, que eu vendi pro Duchamp, e, foi com esse dinheirinho que eu consegui alugar um atelier em Montmartre, onde eu fui morar com o meu namorado na época o Charles Aznavour, que fez aquela música pra mim, je-‐vous-‐parle-‐d’um-‐temps-‐que-‐le moin-‐de vingt-‐ ans-‐num-‐sei-‐o-‐que-‐nã-‐nã-‐nã, mas o Charles era muito duro...duro em termos financeiros. Daí, eu ouvi falar de uma vaga de vedete no circo do Calder, mas não me interessei, porque achei que seria a hora de startar a minha carreira solo. Foi então que eu comecei a posar, não nua ainda, porque eu tinha os meus figurinos do Ballet Imperial de Moscou; foi quando eu conheci Degas, e comecei a posar pra ele...o resto é história. PAUSA DRAMÁTICA
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BAILARINA -‐ Mas tem uma coisa aí, né. Eu tenho uma coisa pra falar. Agora eu vou falar. O que aconteceu? O que quê aconteceu lá atrás quando num ímpeto de coragem e vontade de potência eu me projetei para além do meu suporte? O que aconteceu com esse suporte? Com esse quadro? Onde é que tá? Eles não divulgam isso. Ninguém fala sobre isso na França, ninguém fala sobre isso em Paris, ninguém fala sobre isso no Louvre, é um assunto tabu – “Totem e Tabu” vocês leram? Me lembra que eu quero falar um negocinho sobre isso mais tarde. Enfim, é muito difícil pra mim estar aqui falando porque eu tô diretamente envolvida. Então eu vou mostrar. PARA HAMLET. Amor, mostra aquele retratinho pro pessoal. HAMLET ABRE UM LIVRO, VEMOS A FOTOGRAFIA DE UM QUADRO DE DEGAS, “LE FOYER DE LA DANSE À LÓPERA DE LA RUE LE PELETIER”, BAILARINAS EM TORNO DE UMA CADEIRA VAZIA EM UMA SALA DE ENSAIO. BAILARINA -‐ Né? Cadê? Né? Cadê? Não precisa entender nada de nada. Não precisa entender nada de arte, de equilíbrio das formas, pra ver o quê? Que o quadro inteiro tá o quê? Convergindo pra onde? E cadê? Obrigada amor. HAMLET FECHA O LIVRO. Sabe, gente?! Vamos questionar! O que é isso? A gente não pode aceitar as coisas como são passadas pra gente,
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assim pura e simplesmente, não. Vocês já pararam pra pensar? Parar pra pensar é figurado, não precisa parar pra pensar, pode pensar andando, o importante é pensar. Hoje em dia não tem um Degas no Louvre. Estranho, não? No mundo inteiro tem, qualquer museu chumbrega tem, no MASP tem, mas no Louvre não tem. Por quê? Porque inventaram um negócio aí de impressionismo e enfiaram tudo no Musée D´Orsay, um buraco mofado na beira do rio. O que é isso?! E digo mais, Dégas é considerado um impressionista, mas na verdade ele é um conservador porque o seu maior paradigma são as odaliscas de Ingres, eu sei, eu vi, eu tava lá, eu posso falar. Deu vontade falei. Façam vocês o que quiserem com essa informação.... -‐ Vamos retomar a parte teórica. Amor, desliga essa luz de boate. Quando eu digo “e o resto é história” seria interessante pensar: o que é história? Que conceito é esse? Há quem diga que só existe uma história no mundo. Seria a História a maior narrativa de todos os tempos? Qual o papel do ficcionista hoje em dia? Onde está o ficcionista? Há quem diga que ele não está. Que ele saiu. Que horas ele volta? Quem tá falando? Quer falar com quem? Eu trato disso no meu livro, na página 53 do meu livro, um livro inteiro só de páginas 53. São questões, né, são questões. BAILARINA E HAMLET SE COMUNICAM. UMA COMUNICAÇÃO SÓ DELES.
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-‐ Ué, chegou a hora da vídeo conferência? Ótimo! Chegou o sinal? Vamos ver. BAILARINA ACIONA A TECLA PLAY DE UM CONTROLE REMOTO. INÍCIO DO VÍDEO. VEMOS UMA MULHER VESTIDA DE VERMELHO COM UM CHAPÉU, TOCANDO VIOLÃO EM FRENTE À CATEDRAL DE NOTRE DAME EM PARIS. SEM ÁUDIO. BAILARINA - Ué, o que é isso? Ih, gente, minha prima. ? Ué! Quem é esse cara? Ah deve ser o próximo palestrante... Essa minha prima tem uma tese interessantíssima, eu não sei dizer direito o que quê, é... É melhor a gente ouvir ela mesma falar... BAILARINA DÁ AS COSTAS PARA O TELÃO ENQUANTO FALA COM O PÚBLICO. AS IMAGENS DA CATORA DE VERMELHO SOFREM INTERFERÊNCIAS. VÊ-‐SE UM FILME PORNÔ NO TELÃO. BAILARINA NÃO SE DÁ CONTA. QUANDO VOLTA A ENCARAR O TELÃO, AS IMAGENS PORNOGRÁFICAS SÃO SUBSTITUÍDAS PELAS IMAGENS DA CANTORA DE VERMELHO NOVAMENTE. CORTE SECO. FIM DA TRANSMISSÃO. BAILARINA
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-‐ Fantástico, né? Muito material pra pensar... Tá friozinho aqui, né? Hamlet, meu amor, pega um casaquinho pra mim, por favor? HAMLET SAI. BAILARINA FLERTA COM UM HOMEM DA PLATÉIA NA PRIMEIRA FILEIRA, MANDA BEIJOS, LAMBE OS LÁBIOS. HAMLET VOLTA COM UMA ESTOLA DE RAPOSA. COLOCA ESTOLA NOS OMBROS DA BAILARINA. PISCADELA. BAILARINA
-‐ Obrigada, coração. (T) Vamos agora passar ao momento mais esperado da noite. Com vocês, as perguntas da platéia! HAMLET JOGA LUZ SOBRE A PLATÉIA E SE POSICIONA PARA LER AS PERGUNTAS DO PÚBLICO, BAILARINA FLERTA. PUNK - Olá. BAILARINA - Olá PUNK
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- Como vai? BAILARINA - Eu vou indo e você tudo bem? PUNK - É você? BAILARINA - Sim sou eu. Quer dizer, acho que sou. PUNK - Primeira pergunta de Pedroca, 18 anos, ator, vestibulando em crise: como surgiu a ideia para essa obra? BAILARINA - Muito bem, Pedroca, né? Eu gostaria que você soubesse, Pedroca, esteja você onde estiver, que crise faz parte tá, Pedroca, crise é crucial, parabéns, meu amor, continue assim, um beijão pra você. Qual foi mesmo a pergunta? PUNK
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- Como surgiu a ideia para essa obra? BAILARINA - Se você me permite Pedroca, antes de responder a sua pergunta, eu faria uma outra pergunta. Quais seriam... (gesto indefinível) ...dessa obra especificamente? PUNK - Quais seriam os... (gesto indefinível ) ... Sic, dessa obra especificamente? BAILARINA -‐ Nossa! Muito boa pergunta. Não é fácil isso gente, -‐ tá gravando? Petrônio, né? PUNK - Pedroca. BAILARINA - Então, Petrônio, quem é? Quem é o autor dessa pergunta? Te pergunto mais: Quem é o autor da pergunta quem é o autor dessa pergunta? (P) Alguém aqui se chama Petrônio? ...Pedroca? Você é
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Pedroca? Um gênio entre nós, palmas pra ele, (PALMAS) pensa nisso Pedroca. 5 PUNK - O que a seduziu na questão da ausência? A ausência seria uma onipresença axiomática da contemporaneidade? Pergunta de João Aurélio, 17, doutorando em cultura pós-‐moderna, vencedor do prêmio Pequenos Gênios Fantásticos Latino-‐Americanos pelo ensaio “O Monstro do Lago Ness Roeu a Roupa do Rei de Roma e Ele está Nu”, atualmente lecionando em Glascow, Bruxelas, Praga, Moldavia e Laos, via email. BAILARINA - Interessante a sua pergunta, João Aurélio, né? Tá em Glascow meu amor? Manda um beijão pro pessoal de Glascow, eu tenho cada história sobre Glascow, mas enfim, em outra ocasião eu conto, mas sobre a sua pergunta meu amor, depende do contexto. Próxima. PUNK - 8107-‐1110, Hamlet te acho super interessante, me liga mais tarde quando estiver sozinho... 5
Nome escolhido de acordo com a platéia da noite.
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BAILARINA SE DISTRAI, FLERTA COM CAVALHEIRO DA PRIMEIRA FILEIRA. BAILARINA -‐ Desculpa, meu amor, não ouvi. PUNK - A senhora esperava fazer todo aquele sucesso em Zurique? Anônimo. BAILARINA - Sim, Zurich. Mas, em que ano? PUNK - Por quê? Renata Flores, estudante cinco anos. BAILARINA - Excelente pergunta! Puta que pariu! Finalmente uma pergunta decente! (TATIBITATI) Renata, né?... Há quem diga que só existe uma pergunta no mundo. É uma pergunta que se coloca de maneiras diferentes sempre, então por isso é que ela é importante,
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porque dentro dessa pergunta existe uma série de perguntas que nunca foram perguntadas antes, pelo contrário, foram repetidas inúmeras vezes, entendeu, Renata?! (T) Adoro criança – dos outros. Próxima. PUNK - Júnior, seu fã, pergunta: A senhora acredita na especificidade da glasnost como premência iconoclasta subjacente? BAILARINA - (TEMPO)...Júnior, né?...( BAILARINA TENTA ACHAR UMA RESPOSTA. MOMENTO DE GRANDE CONCENTRAÇÃO) Passo. PUNK - M.P.S, 12 anos, foragido: O que a senhora espera do próximo presidente em relação a políticas sociais? O que dá para fazer em quatro anos de mandato? BAILARINA - Eu não entendo de economia. E também não falo da minha vida pessoal. FA-‐LO: do verbo fa-‐lar. Não fa-‐lo. Mas eu poderia falar. Mas eu não vou falar. Sabe por quê? Porque e eu tenho que dar uma palestra ainda essa noite em Manaus. Eu tenho que ir.
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BAILARINA SE LEVANTA. BAILARINA -‐ Como vocês já sabem, todo carnaval tem sem fim. Bom, eu queria mandar um beijão pra Carlinha, queria mandar um beijão pra Pina Baush, pro Beckett, pro Joyce e, em especial, pro Nietzsche que não puderam ser citados aqui essa noite, amo todos vocês! Queria mandar um beijão carinhoso pra toda a minha equipe de bolsistas do CNPQ, que não pode estar presente aqui essa noite, eles estão ocupadíssimos fazendo o carregamento do banco de dados. Sei como é, já fiz muito... Eu queria agradecer, do fundo do meu peito, a todos aqueles que me ajudaram na minha pesquisa: sem vocês eu não seria ninguém – e não é qualquer pessoa que tem a coragem de falar uma coisa dessa. Eu queria pedir pra vocês, por favor, que vocês não comentassem nada do que foi dito aqui essa noite por aí. A Monalisa é super minha amiga, não tem nada a ver. Qualquer coisa, sabe como francês é, eu nego. Será que eu poderia deixar meu telefone de contato? Hein? O Hamlet tá passando o meu cartão pra vocês HAMLET DISTRIBUINDO CARTAS DE BARALHO VERMELHAS PARA PLATÉIA, ELE MOSTRA INTIMIDADE NO MANEJO COM AS CARTAS.
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BAILARINA -‐ E nele está escrito o telefone da minha agente literária, caso vocês tenham interesse em adquirir meu livro “53, a Página Intermitente”, um best seller fora de catálogo, não adianta que vocês não vão encontrar em nenhum lugar, liga pra ela, diz que é meu amigo, que ela dá um jeitinho pra vocês; e pra quem preferir uma leitura mais prosaica, eu indico um outro livro meu, a minha autobiografia não autorizada, “Descaminhos de uma auto-‐estrada” que a crítica especializada definiu como um “auto-‐romance de deformação”, não sei o que quer dizer, mas adoro. COÇA O PEITO. Tem alguém da imprensa aqui? Também não precisa se identificar, eu tenho uma nota quentíssima, anota aí, o lançamento do meu próximo livro, um romance epistolar, minha troca de emails com os dadaístas. TIRA PAPELZINHO COM ANOTAÇÃO DO PEITO. Ué gente o que é isso aqui?...Um voucher? Um ticket? Um paper? Quem botou isso aqui?... OLHA PARA HAMLET COMO QUEM DIZ, DE NOVO VOCÊ LANÇANDO MÃO DESSE EXPEDIENTE. Vem cá amor. Fica aqui. O Hamlet sempre coloca esses recadinhos no meu peito. HAMLET AO LADO DA BAILARINA. É o seguinte, gente, o Hamlet tem uma banda de forró, a Evanescência do Belo, é romantic metal na verdade, mas o Hamlet gosta de ser contracultura, ele acha que forró é contracultura, Evanescência do Belo, não tem nada a ver com pagode, né Hamlet? Belo em termos filosóficos? HAMLET FAZ QUE SIM. Então, a Evanescência do Belo vai se apresentar essa noite na feira de São Cristóvão, logo ali no além túnel. Quem nunca foi vale a pena o passeio, super folk, bem bacana. Inclusive quando eu estava vindo pra cá, ou indo pra lá, já não sei, já não lembro, eu li uma frase num muro, porque as frases podem
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estar em muitos lugares, e eu gostaria de encerrar, portanto, com essa frase que diz: Serper oupou nãopão serper? Eispeis apa quespestãopão. Ou como diria Murilo Mendes, em seu Pós-‐poema “ser e não ser, eis a questão”. Gostaria de acrescentar alguma coisa Hamlet? PUNK - “O tempo está fora dos eixos”. PLATÉIA APLAUDE. BAILARINA - Gracinha, né? HAMLET ENTREGA UM BOUQUET DE ROSAS A BAILARINA. VAI SAINDO. APLAUSOS. CHUVA DE ROSAS. BAILARINA (DA PORTA) -‐ Gente, gente. Pra pensar em casa: avant-‐garde, ou Ava Gardner? EXPLOSÃO, EFEITO ESPECIAL, BAILARINA DESAPARECE EM MEIO À UMA NUVEM DE FUMAÇA.
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MAKING OFF DO VÍDEO ILUSTRATIVO.
FIM
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