BARBARA NÃO LHE ADORA (uma situação crítica) de Henrique Tavares.
BARBARA NÃO LHE ADORA (uma situação crítica) de Henrique Tavares. Personagens: Geraldo – diretor de teatro. Jota – ator negro canastrão. Rita Jennefer – atriz medíocre. Pablo – figurinista desastrado. Produção – produtora executiva incompetente. Bárbara Heleonora – crítica de teatro. GERALDO E JOTA EM FRENTE A UMA BANCA DE JORNAIS. GERALDO – Já chegou? JOTA - Ainda não. GERALDO - Que demora! JOTA - O jornaleiro disse que hoje deve chegar lá pelas três horas. GERALDO - Por que tão tarde? Ontem chegou às duas! JOTA - … é que teve um acidente na Avenida Brasil no finalzinho da noite. Um ônibus lotado bateu num poste. Morreu todo mundo. 42 sentados e 33 em pé. Sabe como é... Notícia de última hora. O jornal vai demorar um pouquinho mais pra sair. GERALDO - Que azar! Que tragédia! Que horas são? JOTA - Duas e meia. (...) Será que sai hoje? GERALDO - Tem que sair! Eu não agûento mais passar as madrugadas em frente a essa banca de jornal esperando o raio dessa crítica! JOTA – Será que ela vai escrever sobre a gente mesmo? GERALDO - Ela não foi ver? Se foi ver, vai escrever! JOTA - … verdade. Difícil é ela ir. Eu já participei de uma dúzia de peças e ela nunca apareceu. Parece Milagre. (...) Mas às vezes ela não escreve. Não tem espaço no jornal. O editor manda tirar. GERALDO - Ela vai escrever sim. Tenho certeza.
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JOTA - De repente é até melhor não sair nada. E se essa mulher meter o pau na gente? Essa Bárbara Heleonora é fogo! GERALDO - Vira essa boca pra lá. Quem tá na chuva é pra se molhar! JOTA – Você viu se a cara dela tava boa? GERALDO - Não tava muito boa não. Mas no final ela aplaudiu. JOTA - De pé? GERALDO – Aí você tá querendo demais. Uma crítica do gabarito da Bárbara Heleonora só bate palmas de pé quando assiste um espetáculo em Londres. JOTA - Geraldo? Será que ela gostou mesmo? GERALDO - Claro que gostou. Nossa peça tem momentos muito bons. A cena do balcão, ela gostou com certeza! E esta é a principal cena de Romeu e Julieta. JOTA - E ela adora Shakespeare! Entende tudo! GERALDO – Você está muito bem como Romeu, Jota. Ela vai te elogiar. JOTA – Você acha mesmo? Tomara. GERALDO - O único medo que eu tenho é a Rita. A Julieta dela é muito fraquinha. JOTA – Até hoje eu não entendi por que você botou essa mulher no elenco. GERALDO – Você sabe. Ela é esposa do dono da loja que cedeu os tecidos para o nosso figurino. Eu fiz isso por amor a arte! JOTA - Se você soubesse como aquela mulher me atrapalha em cena. Ás vezes eu chego a pensar que ela quer me derrubar. GERALDO - Ela é o ponto fraco da peça. JOTA - Mas o seu trabalho é inquestionável! Fantástico! GERALDO - A grande sacada da minha encenação é a mistura de toda as tradições da Itália Medieval com elementos da cultura afro-brasileira. … genial! JOTA - Nossos figurinos são lindos! Minha mãe adorou! GERALDO - A iluminação, um escândalo! JOTA - … é verdade! Ela tem que gostar! Ela é inteligente!
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GERALDO - A melhor crítica de teatro do Brasil! Tem que respeitar! JOTA - Entende tudo de Shakespeare! GERALDO - A gente pega uma indicação do jornal e casa lotada! Sucesso total! JOTA - Chegou o jornal! JOTA COMPRA O JORNAL. GERALDO - Saiu? JOTA - Saiu. GERALDO - Que foi? JOTA – Hã? GERALDO – Lê em voz alta! JOTA - Abre aspas: “O Assassinato de Shakespeare! Livre adaptação de Romeu e Julieta é um espetáculo despropositado, na linha do pior teatro infantil de gritos e correrias. O que fica no ar é a indagação pela qual esse grupo mambembe resolveu encenar esse texto; por que fazê-lo se não há indício de compreensão do significado do que está acontecendo? GERALDO - O que está acontecendo? JOTA - O diretor, se é que ele pode ser chamado assim – é um completo analfabeto teatral. A chave de sua encenação, que segundo ele, mistura elementos da cultura afro-brasileira com as tradições da Itália Medieval é simplesmente ridículo e patético. A cena do balcão é uma catástrofe! O cenário não existe, a iluminação é caótica e o figurino pavoroso. No elenco, Jota Elle, desajeitado e canastrão, faz a pior interpretação de Romeu da história. Os demais atores vão do inexpressivo ao péssimo, ficando Rita Jennefer, a Julieta, como a menos ruim. Esta montagem de Romeu e Julieta, enfim, È um despropósito inadmissível.” Fecha aspas. GERALDO - Cachorra! JOTA - Ela não entende nada de Shakespeare! GERALDO - Baixou o sarrafo! Falou mal de todo mundo! Só livrou a cara da Rita! … É mole? JOTA - Burrona!
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GERALDO - Eu não sei como ela não falou mal da bilheteira! Estamos arruinados! JOTA - Que vexame! O que a gente vai fazer agora? GERALDO - Vou chutar o pau da barraca! Liga agora mesmo para a Produção! Se estiver dormindo mande acordar! … é um caso de vida ou morte! Eu quero que você convoque uma reunião urgente!Urgentíssima! Convoque o nosso elenco, equipe técnica! Convoque todo mundo! UM TEATRO ABANDONADO. GERALDO - Meus irmãos! O dia de hoje ficará talhado nas nossas lembranças como o dia da vergonha! Humilhação! Nesse exato momento milhões de pessoas de todo o país estão lendo aquela crítica mentirosa e preconceituosa! Vergonha! Aquela megera nos tratou como vermes! Agora eu pergunto: será que ela faria o mesmo se fôssemos famosos? Será que ela faria o mesmo se algum de nós fosse parente ou amigo de alguém importante? Será que ela faria o mesmo se conhecesse algum de nós? Será que ela faria o mesmo se algum de nós fosse amigo do seu dentista? Claro que não! Ela só escreveu essas barbaridades porque somos desconhecidos! Vocês acham que o soldado americano que jogou a bomba atômica no Japão faria o mesmo se conhecesse algum japonês? Claro que não! Falta de respeito! Pouco caso! Nossas carreiras estão ameaçadas! Tanto sacrifício! O nosso trabalho, onde depositamos o nosso suor, as nossas lágrimas, o nosso sangue - e o dinheiro de vocês, é claro! - foi jogado no lixo! Ela jogou o nosso nome na lama! Aquela megera indomada cometeu um crime e terá que ser punida! Todos menos Rita - Muito bem!!! JOTA - E o que devemos fazer? GERALDO - Meu plano é o seguinte: nós vamos seqüestrar a Bárbara Heleonora! PABLO - Mas isso é crime! RITA - Hediondo! PRODUÇÃO - E se a polícia descobrir? PABLO - E se prenderem a gente? JOTA - Eu não tenho curso superior. Se for preso, tô lascado! GERALDO - Calma gente! Não é nada disso! O seqüestro é apenas um protesto. Um ato político! PRODUÇÃO - Contra o quê?
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GERALDO - Contra... contra a opressão dos meios de comunicação aos povos do Terceiro Mundo! PRODUÇÃO - E o que a gente vai ganhar com isso? JOTA - A gente pode pedir um resgate! PABLO - Não ia adiantar. Ninguém ia querer pagar. GERALDO - A gente vai pedir uma retratação. Ela vai ter que retirar tudo o que disse. Usando exatamente o mesmo espaço. Vai ter que escrever uma nova crítica. Mas desta vez com bons olhos. Crítico é assim: escolhe se vai gostar ou não do espetáculo antes de sair de casa. Eu tenho certeza que teremos o apoio de toda a classe artística. Nós vamos entrar para a história do Teatro Brasileiro! E então? Vocês concordam? Todos menos Rita - Apoiado! … isso mesmo! RITA - Eu estou fora! GERALDO – Você pode me dizer por quê? RITA - Eu não tenho nada contra a Bárbara. Ela nem falou mal de mim. JOTA - Mas também não falou bem. RITA - Eu não vou participar dessa loucura! PABLO - Cala a boca “menos ruim”! GERALDO - Mas o que é isso? Individualismo? Estrelismo? Aqui? Isto aqui é um grupo! No nosso grupo não há espaço para o individualismo e o estrelismo. Nós estamos todos no mesmo barco. O teatro é uma arte coletiva, minha filha! Bem, democraticamente a maioria concordou com o meu plano. Agora nós temos que arregaçar as mangas. Produção! PRODUÇÃO - Fala! GERALDO - Ligue agora mesmo para o nosso iluminador! Nós vamos precisar de um B.O.! A rua da Jararaca tem que ficar bem escura. Não se esqueça que se trata de um seqüestro! PRODUÇÃO - Você sabe que o Aurélio detesta B.O.! GERALDO - Ele não está sendo pago para isso! PRODUÇÃO - Tá bem! Me dê o endereço! Rua da Jararaca número?
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GERALDO - Pablo! Precisamos de figurinos apropriados! PABLO - Que tal se o seqüestrador fosse pop? Anos 70? GERALDO - Não! Não é nada disso! Vamos fazer um figurino realista. Quero tudo bem natural, bem realista! Nós não podemos chamar a atenção! PABLO - Figurino realista é chaaatoooo! Não tem a menor graça! GERALDO - Pelo amor de Deus, Pablo! Não vai colocar o meu seqüestrador cheio de fru-fru! PABLO - Tá legal! Deixa comigo! Aquela velha me paga! Ela vai ver o que é um figurino pavoroso! GERALDO - Produção! PRODUÇÃO - Fala! GERALDO - Precisamos de um carro para transportar a vítima. PRODUÇÃO - Já estou providenciando! GERALDO - Tem que ser um carro preto, tipo mafioso anos 30. Outra coisa: ela vai ter que comer e beber durante o tempo que durar o seqüestro. PRODUÇÃO - Eu vou falar com o dono da lanchonete que apóia o nosso espetáculo. GERALDO - Ah! O mais importante: precisamos de um local discreto para servir de cativeiro. PRODUÇÃO - Elenco! Amanhã todos aqui no mesmo horário para o ensaio. TODOS - Ensaio? Que ensaio? GERALDO - Nós vamos ensaiar o seqüestro. Ou vocês acham que é fácil ser seqüestrador? Nós temos que passar credibilidade, se não, nosso plano vai por água abaixo! Todos menos Rita – Tá legal! Ok! RITA - Geraldo. Eu tenho um probleminha. … é que amanhã eu tenho aula de canto. GERALDO – Tá legal! Eu te libero pra chegar um pouco mais tarde. Mas é só ela, viu gente? O resto continua no mesmo horário. Produção!
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O TREINAMENTO: OS ATORES FAZEM VÁRIOS EXERCÍCIOS FÍSICOS, APRENDEM GOLPES DE ARTE MARCIAL E TIRO AO ALVO. “Bárbara Heleonora entende tudo de Shakespeare Vou botar pimenta no seu Milk-shake! Bárbara Heleonora é inteligente de fato Vou botar pó de mico no seu casaco!” GERALDO – Sentido! Em primeiro lugar eu gostaria de dizer que eu estou muito orgulhoso de vocês rapazes! Vamos recapitular o nosso plano! Vocês vão estar namorando na porta da casa da vítima. Quando ela se aproximar, vocês cercam ela. A Rita grita: “Caladinha aí vovó!” e o Jota completa: “se gritar, eu estouro os teus miolos!” Depois disso, vocês empurram a vítima para dentro do carro. Eu vou estar no volante. Dirigindo, é claro. A gente vai sair batido. Não se esqueçam que, dentro do carro, vocês vão ter que amordaçar, amarrar os pés, as mãos e colocar o capuz na refém. Vamos lá! Ensaiando! Pablo, obrigado por ajudar fazendo o papel da Bárbara. PABLO - Eu não estou entendendo onde você está querendo chegar. Eu estou muito jovem para esse papel! OS ATORES FAZEM UM PEQUENO AQUECIMENTO. A CENA SE REPETE. O CASAL NAMORA. DE REPENTE JOTA PÁRA A CENA. GERALDO – Ação! JOTA - Assim não vai dar. Ela não está me beijando direito. RITA - Beijo de língua eu não dou. JOTA - Que foi? Tá com nojo? PABLO - Se vocês quiserem, eu faço o papel dela numa boa. GERALDO – Tá legal! Não precisa ser beijo de língua! Continua! Ação! PABLO, COMO BÁRBARA, SE APROXIMA DO CASAL. RITA - Caladinha aí miolos! JOTA - Se gritar, eu estouro os seus vovós! GERALDO - Mas o que é isso? O texto não é esse! Pode parar! RITA - Desculpe, eu me desconcentrei. JOTA - Ela me deu a deixa errada! GERALDO - A deixa certa é vovó! Vovó! Continua! Ação!
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PRODUÇÃO ENTRA NA SALA. PABLO, COMO BÁRBARA, SE APROXIMA DO CASAL. RITA - Caladinha aí vovó! PABLO – Vovó é a mãe, “menos ruim”! GERALDO - Parem com isso! Agora é sério! Acabou a brincadeira! Eu quero mais verdade! Mais violência! Mais Complexo do Alemão! Entenderam? Mais força, Jota! JOTA - Se gritar, eu estouro os seus miolos! GERALDO - O que é isso? Você está me ameaçando? JOTA - Não. Só estou ensaiando. GERALDO - (...) Ah! Claro. Mais uma vez. Projeta essa voz! JOTA - Se gritar, eu estouro os seus miolos! GERALDO - Isso! Vamos lá gente! De novo! Ação! PABLO, COMO BÁRBARA, SE APROXIMA DO CASAL. RITA - Caladinha aí vovó! PABLO - Ai! Que susto! Nossa, você foi tão convincente! JOTA - Se gritar, eu estouro os seus miolos! PABLO - Nossa! Que homem! GERALDO - Assim não dá! Intervalo! Depois a gente continua. PABLO - Eu vou buscar o figurino que ficou pronto. GERALDO - Haja paciência! E então, Produção!? O que você tá achando? PRODUÇÃO - A tendência é melhorar. Fique calmo. Vai ser um sucesso! GERALDO - Tudo pronto para a estréia? PRODUÇÃO - Tudo pronto! GERALDO - Conseguiu o carro preto mafioso anos 30? PRODUÇÃO - Isso não deu pra conseguir não. Sabe como é? A verba é curta!
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GERALDO - Vocês produtores só sabem dizer isso: que a verba tá curta! Que carro você conseguiu? PRODUÇÃO - O que deu pra arrumar foi um fusquinha. GERALDO - Fusquinha? Essa não! Pelo menos é preto? PRODUÇÃO - Verde limão. GERALDO - Não! Verde, não! Vai chamar muita atenção! PRODUÇÃO - Foi o que deu pra arrumar. JOTA - Geraldo, assim não dá! Você tem que dar um jeito! Parece que eu estou beijando uma porta! GERALDO - Rita! Vem cá! O que tá acontecendo? RITA - Eu tô tão nervosa, tão insegura. … a primeira vez que eu faço teatro de rua. GERALDO - Não fica assim não. Relaxe. Vai dar tudo certo. Você está divina! PABLO VOLTA COM UM FIGURINO ESPALHAFATOSO. GERALDO - Mas o que é isso? PABLO - O figurino do seu espetáculo. GERALDO - Eu não acredito! Eu não disse que queria uma coisa discreta? RITA - Sou eu quem vai vestir isso? PABLO - Não. Esse é do Jota. O seu é “menos ruim”. Diretor querido. Eu achei que esse seqüestro merecia uma coisa mais fashion, mais in, mais glamour. E lembre-se que é a minha reputação que está em jogo. Depois, eu não vou querer ouvir aquela bruxa dizer na delegacia que o figurino do seqüestro era pavoroso. GERALDO - Depois a gente conversa. Vamos continuar o ensaio! PABLO, COMO BÁRBARA, SE APROXIMA DO CASAL. RITA - Caladinha aí vovó! JOTA - Se gritar, eu estouro os seus miolos! GERALDO - E então, Produção!? O que você achou?
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PRODUÇÃO - Olha... pelo que eu tô vendo... a Rita é a “menos ruim”. O SEQÛESTRO: JOTA E RITA FINGEM NAMORAR NA PORTA DA CASA DE BÁRBARA HELEONORA. RITA - Não agüento mais ficar aqui! A gente já está se beijando à horas! JOTA - Que foi? Tá com nojo? RITA - Não é isso. … que eu fico sem jeito. Meu marido não deixa. Se ele ficar sabendo. JOTA - Se você começar com frescura eu como uma cebola! Fica caladinha! RITA - Eu tô nervosa! Eu não devia fazer isso. Afinal, ela não falou mal de mim. JOTA - Mas também não falou bem! Agora vê se fica calada! GERALDO - Tudo bem, aí? RITA - Socooorro! GERALDO - Silêncio! Está tudo bem. Sou eu, Geraldo. Agüentem mais um pouco. A vítima está se aproximando. A Produção me avisou pelo rádio que ela já saiu do Radio City Music Hall. RITA - Radio City Music Hall? GERALDO – Desculpem. Eu quis dizer Municipal. É que eu morei muitos anos em nova York. JOTA - O que essa mulher foi fazer no Municipal? GERALDO - Ela foi assistir a estréia de “Hamlet”. Ela deve estar voltando para casa para escrever a crítica. JOTA - O elenco de “Hamlet” vai agradecer a gente pro resto da vida. GERALDO - Lembrem-se do que a gente ensaiou! Eu quero bastante realismo! Olha lá! Deve ser ela! Merda pra vocês! BÁRBARA SE APROXIMA. RITA - Caladinha aí vovó! JOTA - Se gritar, eu estouro os seus miolos!
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O CATIVEIRO. OS SEQÛESTRADORES ESTÃO A VOLTA DE BÁRBARA HELEONORA QUE ESTÁ AMORDAÇADA E AMARRADA A UMA CADEIRA. PRODUÇÃO! FALA AO TELEFONE. PRODUÇÃO - … isso mesmo! A crítica de teatro - se é assim que ela pode ser chamada, está sobe o nosso poder! O quê? (Eles querem saber a que grupo terrorista nós pertencemos!) GERALDO - Grupo revolucionário M.S.P. PRODUÇÃO - Grupo revolucionário M.S. P. (Mas o que é isso?) GERALDO - Movimento dos sem palco! PRODUÇÃO - Movimento dos sem palco! (Eles querem saber quais são as nossas exigências?) GERALDO - Diz que mais tarde voltaremos a entrar em contato. PRODUÇÃO - Mais tarde voltaremos a entrar em contato! (desligando o telefone) Pronto! Tá dado o recado. A imprensa já está sabendo. GERALDO - Companheiros, parabéns! Nossa operação foi um sucesso! Todos menos Rita - Viva!!! GERALDO - O plano foi perfeito. Tudo correu conforme o planejado. Companheiro Jota, você estava muito bem! JOTA - O meu sonho sempre foi fazer papel de vilão! O vilão dá muito mais margem para a interpretação! GERALDO - Tudo funcionou muito bem. O carro, os figurinos... PRODUÇÃO - A gente faz o que pode. PABLO - Milagre! Finalmente ele reconheceu o nosso trabalho. RITA - E eu? Como é que eu fui? JOTA - Você foi a “menos ruim”. Desculpa. Eu não resisti. RITA – Por quê você não toma um citocol? JOTA – Citocol? Não é cimancol? RITA – Citocol é genérico. É mais baratinho.
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GERALDO – Você estava maravilhosa, Companheira Rita! (...) Ah! Mas que falta de educação da nossa parte. Vamos fazer sala para a nossa convidada. Minha querida Bárbara Heleonora! Eu espero que a senhora esteja gostando da nossa recepção! Bem, eu gostaria de apresentar a minha equipe: esta é Produção, a produtora do nosso espetáculo despropositado e inadmissível... PRODUÇÃO - Muito prazer. GERALDO - ...este é Pablo, criador de figurinos pavorosos... PABLO - Prazer. GERALDO - ...esta é Rita Jennefer, a nossa atriz menos ruim... RITA - Como vai? Tudo bem? GERALDO - ...este é Jota Elle, ator canastrão e desajeitado que fez o pior Romeu da história... JOTA - Oi! GERALDO - ...e este que vos fala é Geraldo Góes Antunes Júnior Filho, o diretor que, segundo a senhora, é um completo analfabeto teatral. Muito prazer. E então? Como a senhora está se sentindo? Engraçado. A senhora não está parecendo, nem de longe, aquela figura severa e implacável, temida por toda a classe artística. Está tão frágil, tão desprotegida, tão indefesa. Me diga, como a senhora está se sentindo? Nós sabemos como a senhora está se sentindo! … é exatamente assim quem nós artistas nos sentimos quando a senhora escreve as suas críticas irresponsáveis e preconceituosas. Nós nos sentimos frágeis, desprotegidos, indefesos, amordaçados! E agora? Cadê aquela bam-bam-bam que faz o que quer, escreve o que quer, que é a dona da verdade? Será que a senhora neste momento não está refletindo sobre todo o mal que fez a milhares de pessoas em todos esses anos? A senhora poderia ter sido mais condescendente, não é? Quem sabe a senhora não está arrependida? PABLO – Dá na cara dela! GERALDO- Nós preparamos uma surpresa para a senhora: nós vamos apresentar, agora em caráter privativo, o nosso espetáculo na íntegra para a senhora ver novamente. Parece que da primeira vez a senhora não entendeu muito bem, não é? Quem sabe dessa vez a senhora gosta. Mas antes, como boas vindas, o nosso companheiro figurinista Pablo fará a leitura de um texto em sua homenagem. Companheiro Jota, companheira Rita, vocês já podem ir se arrumando! Nós vamos começar o espetáculo no horário! JOTA E RITA SAEM DE CENA. PABLO – Bom, agora eu ler pra vocês ”A Crítica da Crítica”, de minha autoria. Abre aspas: “Ontem fui ao teatro assistir a crítica de teatro Bárbara Heleonora. Ela chegou
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ao teatro, atrasada dirigindo seu automóvel modelito popular. Distraída, Bárbara não estava usando o cinto de segurança e estacionou em cima da calçada o que é proibido pelo Código Nacional de Trânsito. Ao sair de seu carro, Heleonora se recusou a dar um troco para o flanelinha, atitude que demonstra toda a sua falta de consciência social. O figurino de Bárbara era pa-vo-ro-so. Yes! Heleonora usava um terninho lilás com ombreiras sutilmente enfeitado com um broxe borboleta, saia verde e óculos fundo de garrafa, sua marca registrada. Por um deslize inexplicável, Heleonora usava sapatos amarelos que definitivamente não combinavam com sua bolsa cor de abóbora. Um horror! Mesmo chegando atrasada, Bárbara ainda teve a coragem de exigir da produção do espetáculo um ingresso gratuito para o melhor lugar do teatro. O elenco e o público tiveram que esperar hooooras por Bárbara que, na tentativa de chegar até a sua cadeira, incomodou os espectadores que já estavam sentados nos seus devidos lugares chegando até a pisar no pé de uma velhinha. Pode? O espetáculo pôde, enfim, começar. Durante toda a apresentação Bárbara Heleonora se mostrou desinteressada. Por diversas vezes cochilou sem o menor pudor. Ao final, Bárbara timidamente aplaudiu, sentada, se levantando imediatamente e indo embora apressadamente, sem se quer se dar ao trabalho de agradecer o convite dado pela produção, fato que demonstrou toda a sua prepotência e falta de educação!” Fecha aspas! GERALDO E PRODUÇÃO APLAUDEM. PRODUÇÃO - Muito bem! Bravo! GERALDO - Companheiro Pablo, eu estou orgulhoso de você! PABLO - Obrigado. GERALDO - Agora vá ver se o nosso elenco já está pronto! O espetáculo vai começar no horário! Eu não quero que, depois, ela diga que nós não somos pontuais. Produção! PRODUÇÃO - Fala! GERALDO - Eu preciso de sua ajuda. A máquina de fumaça não está funcionando direito. Vem cá! POR UM INSTANTE BÁRBARA FICA SÓ. RITA ENTRA EM CENA. RITA - Coitadinha. Dona Bárbara! Olha, eu não concordo com nada disso que estão fazendo com a senhora. Na verdade eu fui praticamente obrigada a participar dessa loucura. Eles são muito violentos. A senhora já percebeu, não é? Eu fui coagida! Eu jamais faria uma coisa dessas com uma pessoa tão distinta. Eu sou uma grande admiradora da senhora, sabe? Fiquei tão contente quando a senhora... Posso te chamar de você? Fiquei tão contente quando você não falou mal de mim na crítica. Eu sei que você não falou bem mas mesmo assim eu gostei. Um dia eu vou provar para todo mundo que sou uma grande atriz. Dramática e cômica. (interpretando) “Aqui nesse grupo eles não gostam de mim. Eu sei que eles só me aturam porque eu sou esposa do dono da loja de tecidos.” Agora vem a parte cômica: “Sabe o que o tomate falou
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para o elefante: Prruuff! Você precisava ver a cara deles quando leram a crítica. Bem feito! Nada como um dia após o outro. Estou numa dieta de fazer dó. Mas eles vão ver. Dona Bárbara, eu vim aqui disposta a propor um acordo. … o seguinte: Eu liberto a senhora e a senhora promete nunca escrever mal de mim nas suas críticas. Pelo contrário: a senhora se compromete a sempre falar bem das minhas atuações. O que você acha? … ou não é um bom negócio? Ah, claro. A senhora não pode falar. Está amordaçada. Um barulho! Eu tenho que ir! Depois a gente volta aquele assunto. RITA SAI DE CENA. JOTA ENTRA E TENTA SEDUZIR BARBARA. JOTA - E aí meu amor, tudo bem? Você vem sempre por aqui? Quem sabe se a gente... eu, você, você e eu, nós quatro... se a gente se conhecesse melhor... quem sabe você não muda de opinião ao meu respeito? MÚSICA SENSUAL. JOTA APELA PARA A DANÇA DO ‘ACASALAMENTO’. JOTA ESCUTA UM BARULHO E SAI DE CENA. GERALDO - Tudo pronto? Podemos começar? PABLO – Só está faltando o Jota. Ele está no banheiro. GERALDO - Elenco no palco! Tudo pronto, Rita? RITA - Eu estou tão nervosa! GERALDO - Nervosa por quê? RITA - A Bárbara taí! GERALDO - Fiquem calmos! Vai dar tudo certo! … É só a gente fazer o que foi ensaiado. E vocês podem ter certeza de uma coisa: dessa vez ela vai gostar. Se não gostar por bem, vai gostar por mal! Merda pra vocês! Tudo pronto, Produção!? PRODUÇÃO - Tudo pronto! GERALDO - Tudo pronto, Pablo? PABLO - Prontíssimo! GERALDO - Vamos começar! GERALDO INICIA OS TRÊS TOQUES DE MOLIÉRE. GERALDO - Eu não sei se a senhora sabe mas estes são os três toques de Moliére. Preste muita atenção! A sua vida depende disso! Qualquer dúvida é só levantar o braço que a gente explica!
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O ESPETÁCULO COMEÇA. OS ATORES SÃO PÉSSIMOS E OS FIGURINOS PAVOROSOS! JOTA - Ó Julieta! Surge, claro sol, e mata a invejosa lua, já doente e pálida de desgosto, vendo que tu, sua serva é bem mais linda do que ela! RITA ESQUECE A SUA FALA. GERALDO - (cochichando para Rita) Fala! … você! JOTA - (cochichando para Rita) “Ai de mim!” RITA - Me desculpem, eu esqueci. Me deu um branco. Eu estou muito nervosa! Que vergonha! GERALDO - Assim não dá! Vamos concentrar, pelo amor de Deus! A fala é “Ai de mim!” Repete! RITA - Ai de mim! PABLO - Ai de mim mesmo! Ai de mim, ai de você, ai de todos nós! Minha filha, como você é péssima! GERALDO – Silêncio! Vamos começar novamente! PABLO – Só um momento! Já que parou eu queria mostrar uma coisa para essa senhora. PABLO MOSTRA O FIGURINO DE JULIETA PARA BÁRBARA. PABLO – Dá uma olhadinha nisso aqui, por favor! São duas costuras! Tá vendo? Não é qualquer figurino que tem esse acabamento não! GERALDO - Silêncio! Vamos começar tudo outra vez! Todos nos seus lugares! O ESPETÁCULO RECOMEÇA. JOTA – Ó Julieta! Surge, claro sol, e mata a invejosa lua, já doente e pálida de desgosto, vendo que tu, sua serva é bem mais linda do que ela! ROMEU APONTA A LUA E SEU FIGURINO RASGA. PABLO - Mas o que é isso? Diretor, pare essa peça imediatamente! Eu vou costurar esse figurino! GERALDO - Costura depois! Continua!
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PABLO - O problema são esses atores que não sabem usar um figurino! SURGE RITA NA “JANELA”. RITA - Ai de mim! JOTA - Julieta! Tu me amas? RITA - ”Romeu! Eu te amo! Mesmo sabendo que o nosso amor é espremido! JOTA - (cochichando) “Proibido!” RITA - Proibido! O nosso amor é proibido! JOTA - Julieta! Deixe-me encostar os meus lábios nos teus! RITA - Romeu! ANTES DO BEIJO ROMEU E JULIETA DANÇAM UM PONTO DE MACUMBA. AO TÉRMINO DA MÚSICA, ROMEU E JULIETA SE BEIJAM COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO. GERALDO - Que maravilha! Que lindo! Pára! Pode parar! Eu preciso explicar uma coisinha aqui pra essa senhora. A senhora prestou bem atenção nessa cena? A mistura de elementos da cultura afro-brasileira com toda a tradição da Itália medieval, que a senhora chama na crítica de ridícula e patética, na verdade é a grande sacada da minha encenação! A senhora não entendeu! A senhora não entende nada! Essa mistura simboliza a carnavalização do amor que acontece em Verona, na Bahia ou em qualquer outro lugar do mundo! Era isso que eu queria dizer! …é metaforicamente uma simples liberdade poética de um reles artista! (emocionado) Apenas isso. Podem continuar! JOTA - Julieta! Meu amor! Você quer fugir comigo? RITA - Romeu! Claro que sim! Eu quero fugir contigo, meu amor! DE REPENTE A LUZ COMEÇA A FALHAR. GERALDO – Produção! O que está acontecendo? PRODUÇÃO - Temos problemas com a mesa de luz! RITA - Que vergonha! JOTA - Eu acho que vou ao banheiro!
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GERALDO - A senhora tá vendo? Essa é mais uma prova da dificuldade de se fazer teatro no Brasil! Está tudo caindo aos pedaços! A gente não tem dinheiro nem pra mandar consertar essa droga dessa mesa de luz! A senhora está observando isso? PRODUÇÃO - A gente faz teatro com muito sacrifício! Para produzir esta peça, eu tive até que animar festa infantil! JOTA - E eu tive de vender o meu chevette sete cinco que eu adorava! PRODUÇÃO - E a senhora ainda tem a coragem de escrever que o nosso cenário simplesmente não existe. Não tem cenário porque não tem dinheiro! A senhora deveria considerar! PABLO - Ela está totalmente fora da realidade do nosso país! GERALDO - Chega! Vamos acabar com essa palhaçada! Vamos direto ao assunto! O negócio é o seguinte, Dona Bárbara: nós queremos que a senhora escreva uma nova crítica falando muito bem da nossa peça! PABLO - A senhora vai ter que retirar o que disse sobre os meus figurinos! JOTA - Eu não gostei nada nada de ser chamado de desajeitado e canastrão! Que tal talentoso e bonitão? RITA - E eu não gostei de ser chamada de “menos ruim”. Que tal a mais melhor! GERALDO - Produção! Pode soltar a nossa refém! PRODUÇÃO SOLTA BÁRBARA. GERALDO APONTA UMA ARMA PARA BARBARA. GERALDO - Essa crítica deve ser publicada no mesmo espaço que a anterior. Somente após a publicação da nova crítica a senhora será libertada! E então? Concorda com as nossas exigências? BÁRBARA - Crítica? Que crítica? Você está louco? Com quem você pensa que está falando? BÁRBARA E GERALDO COMEÇAM A LUTAR. A ARMA DISPARA. GERALDO CAI MORTALMENTE FERIDO. RITA - Assassina! Assassina! GERALDO - … é isso! O destino inexorável! A crítica assassina o artista! B¡RBARA - Eu não sou quem vocês pensam que sou. Vocês me seqüestraram por engano. Eu sou apenas a vizinha de Bárbara Heleonora.
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PRODUÇÃO - Eu não acredito! GERALDO - Incompetentes! Vocês pegaram a mulher errada! RITA - Mas como é que a gente ia saber que ela não era ela? GERALDO - Vocês não conhecem a Bárbara Heleonora? JOTA - Não. GERALDO - Incompetentes! JOTA - E você? Não percebeu que ela era a mulher errada? GERALDO - Claro que não. Eu não conheço a Bárbara! Eu só vi uma vez no teatro, de longe... estava escuro. PABLO - Eu também. PRODUÇÃO - Eu também. EX-BÁRBARA - Bom, eu acho que já vou indo. GERALDO - Um momento! A senhora pelo menos gostou do que viu? Gostou do meu espetáculo? Pode falar. Seja sincera. Qual a sua opinião? EX- BÁRBARA - Vocês querem saber a minha opinião? GERALDO - Seja sincera! Por favor! EX-BÁRBARA - A Rita é a “menos ruim”! GERALDO – Nãaaaaooooo!!!
FIM
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